Utilização das matérias-primas rochosas na indústria lítica musteriense do sítio ao ar livre de Santa Cita (Tomar, Portugal)

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Utilização das matérias-primas rochosas na indústria lítica musteriense do sítio ao ar livre de Santa Cita (Tomar, Portugal) Antonella Pedergnanaa, Sara Curaab, Stefano Grimaldiad, Luiz Oosterbeekac, Pierluigi Rosinaac a

Grupo “Quaternário e Pré-História” (Centro de Geociências, uID73 – FCT); b Museu de Arte Pré-Histórica de Mação Instituto Terra e Memória; c Instituto Politécnico de Tomar; d Università di Trento

1. INTRODUÇÃO A coleção que foi objecto deste estudo é proveniente do sítio arqueológico de Santa Cita, localizado no distrito de Santarém, concelho de Tomar, o qual foi escavado pela primeira vez no ano 1994 por Nuno Bicho. Logo em seguida, em 1997, realizou-se uma intervenção arqueológica de emergência, coordenada por Bicho e Ferring (BICHO&FERRING, 2001), necessária devido ao contexto de trabalhos que estavam sendo realizados no local para a construção de uma auto-estrada. No entanto, a coleção aqui apresentada, composta por aproximadamente duas mil peças, foi recolhida na terceira campanha de escavações, realizada entre os meses de Outubro de 1999 e Março de 2000, sob direcção do CEIPHAR (Centro Europeu de Investigação da Préhistória do Alto Ribatejo). A coleção foi atribuída, quer por razões tecno-morfológicas, quer por razões geomorfólogicas ao Paleolítico Médio (estado isotópico 3, 60-40 ka BP) (LUSSU et al., 2001). Entre as matérias-primas identificadas destacam-se o quartzo, o quartzito e o sílex, este último mais raro em relação aos primeiros. Este trabalho visa apresentar as estratégias de utilização das diferentes matérias-primas que compõem a coleção lítica do Paleolítico Médio do sítio de Santa Cita proveniente da última campanha de escavação.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO O sítio foi encontrado na região do Ribatejo, próximo à cidade de Tomar, no topo de um terraço fluvial pertencente à ordem dos terraços fluviais do rio Nabão (LUSSU et al., 2001). O sítio, então, encontrava-se no vale do Nabão, área que contem vestígios cruciais para o entendimento da Pré-História do Ribatejo (CRUZ et al., 1998). Esta zona específica (a norte do Tejo) foi definida como Alto Ribatejo, em função das suas características geológicas e hidrográficas. O Alto Ribatejo foi descrito então como uma zona de confluência das três formações geológicas principais da região (Fig. 1). A oeste do sítio (assinalado na Fig. 1) encontra-se o Maciço Calcário, a leste o Maciço Hespérico, composto de quartzitos, xistos, granitos e filitos, a sul a Bacia Sedimentaria, constituída por seixos, areias, argilas e limos. A estratigrafia do sítio se constitui por três camadas, a mais superficial (camada A), pertencente ao Epipaleolítico, as mais profundas (camadas B e C), pertencentes ao Paleolítico Médio e apresentando características fluviais. Portanto, durante a formação do depósito, os artefactos arqueológicos sofreram eventos pós-deposicionais, como foi demonstrado através de uma análise traceológica sobre algumas peças da coleção em quartzito (PEDERGNANA, 2011). A análise microscópica (com SEM) mostrou uma leve modificação da superfície das lascas, distribuída na totalidade das peças, a qual impediu a detecção das marcas de uso. Fato interessante é que as peças da camada C foram todas extraídas do topo da mesma camada, onde foi identificada uma paleo-superfície (LUSSU et al., 2001). Isto é de extrema importância na comparação entre os dados tecnológicos, existindo uma grande homogeneidade entre as peças provenientes da camada B e as provenientes do topo da camada C. A camada C, então, resulta ser arqueologicamente estéril visto que todas as peças arqueológicas atribuídas a essa camada foram de fato encontradas no topo da mesma.

Figura: 1: Detalhe da Carta Geológica de Portugal: escala 1:1 000 000 (Serviços Geológicos de Portugal) com a sinalização do sítio no círculo branco.

3. ESTRATÉGIAS DE REDUÇÃO DO PALEOLÍTICO MÉDIO As estratégias tecnológicas principais típicas do Paleolítico Médio são identificadas com o método Levallois (BOËDA, 1994) e o método discóide (PERESANI, 2003). A presença da aplicação destes dois métodos e de vários tipos morfológicos característicos (raspadores, pontas,

denticulados)

(BORDES,

1988;

DEBENATH&DIBBLE,

1994)

são

as

características principais que quando combinadas em diversas percentuais de presença definem o complexo Musteriense e as suas variantes. O Paleolítico Médio Português, com as devidas diferenças, apresenta estes elementos (CARDOSO, 2006). O método Levallois é atestado no sílex, no quartzito e por vezes também no quartzo. Isto significa que a menor facilidade de trabalho destas rochas, frequentemente consideradas inferiores as rochas siliciosas, não influenciou a aplicação das tecnologias típicas dos grupos Neandertais que se encontravam na área que hoje corresponde ao território português. Em relação às matérias-primas rochosas, uma nota importante está ligada com o fato do que no Paleolítico Médio em Portugal se amplia o conjunto dos tipos de matérias-primas

utilizadas na actividade de lascamento. De fato,, antes deste período cronológico as indústrias líticas da região eram constituídas principalmente por quartzito, com o emprego também do quartzo, rochas que constituem localmente as matérias-primas matérias primas mais abundantes e acessíveis (CURA&GRIMALDI, 2009). No caso do sítio de Santa Cita, este fenómeno é bem visível, considerando que a coleção inclui vários tipos de rochas. Veremos a seguir que vários elementos atípicos da indústria lítica de Santa Cita ita sugerem uma situação particular que pode ser indicativa na tentativa de compreender nder a funcionalidade do sítio. 4. NOTAS SOBRE A INDUSTRIA LÍTICA E UTILIZAÇÃO DAS MATÉ MATÉRIASPRIMAS NO SÍTIO DE SANTA CITA Como já foi dito, a coleção ção é composta por diferentes matérias-primas, primas, sendo a mais frequente o quartzo, seguido pelo quartzito e o sílex, este último mais raro em relação aos primeiros (Gráfico 1). Camada B

Topo da camada C Quartzito Sílex

14%

10% 60%

49% Quartzo 30%

34% Outras 1% 2%

Indeterminada

Gráfico fico 1: Composição das matérias-primas matérias da coleção lítica musteriense do sítio de Santa Cita (Camada B e topo da Camada C).

A grande quantidade dos artefactos em quartzo pode ser explicada com a presença, além dos produtos que foram certamente obtidos durante a actividade do lascamento, de elementos indetermináveis ou naturais (fragmentos que não possuem estigmas claros claros). Tal situação não surpreende, visto que o grande problema na análise do quartzo é que muito frequentemente

as marcas devidas à actividade de talhar a pedra não são visíveis ou não são suficientemente claras (DRISCOLL, 2001). Em relação às lascas encontradas, a maior parte destas é em quartzito, mas também o quartzo foi bastante utilizado para a obtenção de suportes. Entre estes últimos, os que foram identificados como produtos predeterminados foram obtidos principalmente a partir de núcleos em quartzito. Referente a esta matéria-prima, foi possível reconstituir a morfologia dos blocos originais, havendo a disponibilidade de alguns núcleos pertencentes ao primeiro estágio de redução. Após a análise destes, pode-se afirmar que os seixos fluviais em quartzito foram escolhidos com base na morfologia mais apta à actividade de lascamento. Assim, notou-se que foram aproveitadas as convexidades naturais dos seixos fluviais para abrir um primeiro plano de percussão e uma respectiva superfície de lascamento. Desta maneira, os gestos necessários para a preparação dos núcleos para obter lascas com dimensões e morfologias predeterminadas foram reduzidos.

Figura 2: Exemplos de núcleos em quartzito (desenhos diacríticos e fotografias) que mostram a morfologia dos blocos recolhidos sob forma de seixos fluviais (Camada B).

No que diz respeito ao sílex, não existem núcleos que possam ajudar na reconstrução da morfologia dos blocos originais. A totalidade dos núcleos presentes em sílex é constituída por elementos muito reduzidos. Pode-se deduzir, então, que o sílex foi extremamente

explorado e que os núcleos que ainda podiam ser lascados foram muito provavelmente transportados para fora do sítio. Esta informação é fundamental para entender a possível função do sítio e as actividades que foram efectuadas no mesmo. As lascas em geral não apresentam um grau de predeterminação muito alto, nem vestígios de retoques dos gumes. Isto pode significar que não haveria uma intenção de obter produtos com características fixas, nem haveria a necessidade de modificar os gumes das lascas obtidas. Sobre a tecnologia empregada, não há elementos que demonstrem a aplicação do método Levallois, mas ao contrário uma parte considerável da indústria, sobretudo em quartzito, apresenta estigmas derivadas do emprego do método discóide. Entre estes artefactos líticos, emerge o método unifacial (com a criação de uma única superfície de trabalho) e ficam totalmente ausente os métodos bifacial e multifacial. Este fato poderia ser explicado tendo em conta a morfologia dos blocos originais (em quartzito), a qual facilitaria a obtenção de um plano de destaque dos produtos (com ou sem preparação do plano de trabalho). O baixo nível de predeterminação e a falta de elementos retocados são os elementos que mais se diferenciam (destacando-se da definição tradicional do complexo Musteriense). Parece possível afirmar com bastante clareza que o sítio de Santa Cita poderia corresponder a um local de desenvolvimento de uma ou mais actividades com uma duração muito breve e que as lascas necessárias para atingir os objectivos destas actividades foram ali produzidas e abandonadas logo após a conclusão das mesmas. Estas últimas considerações levam-nos à conclusão do que os produtos da coleção lítica de Santa Cita sejam uma consequência de uma necessidade momentânea (uma precisa actividade num preciso lugar). Isto explicaria também a ausência de núcleos em sílex de grandes dimensões (que seriam transportados para o sítio residencial e então reutilizados) e o número limitado de produtos obtidos da mesma matéria-prima (não haveria necessidade de

utilizar a matéria-prima com as melhores propriedades para o maior controle da actividade de lascamento). Tendo como base a carta geológica apresentada na Fig. 1 e recordando a localização das rochas aptas ao lascamento em relação à posição do sítio, podemos fazer algumas considerações sobre a aquisição das matérias-primas. Como já vimos, a matéria-prima mais comum nos arredores do sítio é o quartzito, na forma de seixos fluviais, encontrados nas proximidades dos rios. Isso explicaria a presença de vários núcleos pertencentes à uma primeira fase de exploração e a grande quantidade de lascas desta matéria-prima. O sílex, cujos afloramentos mais próximos localizam-se a oeste do sítio, no Maciço Calcário, parece ter sido cuidadosamente explorado, comportamento que não foi detectado nas outras matérias-primas. Por isso, não existem núcleos de grandes dimensões e o número das lascas é limitado. Temos que lembrar do que a aquisição do sílex (vários quilómetros a oeste do sítio) implicava um maior investimento energético. Por esse motivo então essa matériaprima foi utilizada limitadamente. No que diz respeito ao quartzo, não há núcleos que possam ser identificados certamente como seixos fluviais, por falta de elementos corticais. No entanto, esta matéria-prima está disponível nessa forma ao redor do sítio e então muito provavelmente seixos fluviais em quartzo foram colectados e utilizados na obtenção de lascas. É possível que os blocos tenham sido decorticados no lugar aonde foram colectados, talvez para verificar a qualidade do quartzo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Da análise das considerações feitas anteriormente, parece, então, bastante evidente a presença de comportamentos diferentes em relação às várias matérias-primas disponíveis na região. Comportamentos que implicam escolhas diferentes feitas pelos grupos humanos que

produziram os artefactos líticos do sítio, estando estas relacionadas com o ambiente circundante, ou seja, com a aquisição e a exploração dos vários recursos bióticos disponíveis. As modalidades da utilização dos vários recursos rochosos dependem, então, da localização dos mesmos, da função do sítio, da relação entre os objectivos em função dos quais foram obtidos os artefactos líticos e a quantidade de tempo/energia empregados para a obtenção das matérias-primas necessárias para a produção dos mesmos. Portanto, podemos afirmar que a distribuição geográfica dos afloramentos rochosos da região influiu directamente na economia das matérias-primas, na sua utilização e consequentemente nas percentagens dos vários tipos rochosos que constituem a coleção lítica do sítio arqueológico de Santa Cita.

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