Utopia e Distopia em A Jangada de Pedra de José Saramago

July 8, 2017 | Autor: Célia Branco | Categoria: Utopia, Distopías
Share Embed


Descrição do Produto

_______________________________________

Utopia e Distopia em A Jangada de Pedra de José Saramago Célia Branco

___________________________________________________

Mestrado em Línguas, Literaturas e Culturas Área de Especialização em Estudos Ingleses e Norte-Americanos Seminário: Teoria da Literatura Docente: Professor Doutor Carlos Ceia

28 de Janeiro de 2008

UTOPIA E DISTOPIA EM A JANGADA DE PEDRA DE JOSÉ SARAMAGO Célia Branco

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente, Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha. Livro do Desassossego, Bernardo Soares No romance A Jangada de Pedra, publicado em 1986, José Saramago transforma a Península Ibérica numa jangada que se separa do resto do continente europeu e navega ao sabor da corrente pelo oceano. Este trabalho pretende demonstrar que utopia e distopia1 são duas realidades constantes desta narrativa: na relação dialógica mantida com a História, nos diversos intertextos, o leitor encontrará utopias que fazem parte do seu passado, referencial importante para a definição da sua identidade enquanto parte integrante de um povo. Ignorar essas memórias significa entrar passivamente no mundo distópico do presente, do qual o autor também nos dá conta. Por isso, mais do que relembrar a História, Saramago reescreve-a e reinterpreta-a, numa tentativa de correcção 1

Entenda-se Utopia como sendo um ideal a atingir, uma sociedade perfeita, onde se dissolvem as diferenças e se fomenta a igualdade, equitativa na distribuição dos recursos, como Thomas More a descreveu no livro que deu origem ao termo. Distopia será a antítese da sociedade utópica, a “anti-utopia”. Caracteriza-se pelo totalitarismo, autoritarismo e corrupção: ”A distopia está para a utopia como o acordar de um sonho progressivamente degenerado em pesadelo, ao desmitificar a tentação de transformar uma idealização utópica (necessariamente lacunar) em sistema de despótica aplicação.” (J. M. de Sousa Nunes. s.v. “Distopia” in E-Dicionário de Termos Literários)

1

de erros passados, como adiante se provará. Veja-se que A Jangada de Pedra é publicada em 1986, ano em que Portugal e Espanha integram a União Europeia, sendo importante na análise deste romance a sua contextualização política, histórica e cultural. O Autor, nesta fantástica viagem peninsular, não só relembra o heroísmo do povo ibérico que, por mares nunca de antes navegados, tinha descoberto novos mundos, como também critica o desinteresse com que esse povo, noutros tempos pioneiro da navegação e herói de epopeias marítimas, olha para o seu futuro, ignorando o significado do termo nacionalidade e mostrando indiferença face ao destino do seu país e do mundo. Saramago propõe ainda um percurso alternativo àquele que a entrada na União Europeia vaticina. A viagem da Península Ibérica, em busca da sua identidade, motiva outras viagens, nomeadamente aquelas que Joana Carda, Joaquim Sassa, Pedro Orce, José Anaiço, Maria Guaivaira e o cão Ardent, encetam no interior da península. A acção da narrativa organiza-se a partir do conjunto de situações insólitas que acontecem a estas cinco personagens na sequência da separação da Península Ibérica do resto da Europa e a consequente viagem pelo Atlântico. Adiante também se demonstrará que estas jornadas não resultam da fuga à realidade, eventualmente ameaçadora e perigosa, antes provêm da vontade evidenciada pelas personagens de se encontrarem a si próprias e de se contextualizarem num mundo em mudança. Mais do que problematizar questões de carácter nacional, Saramago reflecte sobre a identidade humana na sociedade moderna, atribuindo aos valores histórico-culturais um papel de relevo na sua construção. A língua portuguesa é o veículo utilizado para a transmissão desse património cultural comum e, Saramago, tem na palavra escrita o instrumento necessário à consecução deste objectivo. O narrador, não só orienta o leitor nesta história fantástica, como também reflecte sobre o contexto político-social em que a narrativa se desenrola, reavivando e reescrevendo em simultâneo memórias histórico-culturais. Veja-se ainda que o fantástico2 tem origem em pessoas comuns, protagonistas de coisas extraordinárias.

2

Numa entrevista concedida a Francisco José Viegas, Saramago define este termo da seguinte forma: “Eu creio que o fantástico, desde os contos antigos ou lendas, coisas para crianças, velhos contos, digamos, estão cheios de fantástico e creio que nem sequer podemos viver com ele porque provavelmente o fantástico é também um outro nome da imaginação.” (1998: 33). O mundo fantástico presente neste romance deverá ser considerado como a construção de um universo alternativo àquele que a entrada na União Europeia de Portugal e Espanha anuncia.

2

No livro O Modo Fantástico e «A Jangada de Pedra» de José Saramago, Cristiana Pires observa a esse propósito: O fantástico não constitui uma rejeição do real nem do presente, mas uma mobilização no sentido de reorganizar e repensar essa realidade presente propondo realidades alternativas, em que o imaginário não é uma compensação, mas antes o desequilíbrio necessário à observação da exterioridade. (2006: 142) O narrador de A Jangada de Pedra recorre a contextos mágicos, mitológicos e alegóricos e, em sucessivas digressões, no jogo metaficcional e auto-reflexivo que estabelece com os leitores, incita à meditação sobre o significado das palavras e sobre a identidade humana. Quando A Jangada de Pedra foi publicada, dois momentos marcantes da História lusa pairavam na contemporaneidade portuguesa. Acordava-se de um sonho utópico e vivia-se uma realidade que em nada traduzia essas aspirações de igualdade, justiça, fraternidade e liberdade. A Revolução dos Cravos, em Abril de 1974 significou o final da ditadura de Salazar e do colonialismo, bem como a abertura de Portugal ao resto do mundo; no entanto, também provou que muito da ideologia revolucionária nunca se viria a concretizar, ficando o país dividido em diferentes horizontes políticos, situação ademais agravada pelo regresso de centenas de milhares de portugueses das ex-colónias e pelo desaparecimento do bloco soviético (símbolo máximo da utopia comunista). O desejo de uma sociedade igualitária nunca foi atingido. Da mesma forma, a entrada na União Europeia significou para Portugal uma evidência acrescida da sua condição de país periférico e das suas dificuldades em acompanhar o desenvolvimento europeu e mundial. Luís Carmelo, no livro Órbitas da Modernidade, procurando fixar os limites que unem o advento do sujeito moderno e o seu confronto com a era global, refere: A modernidade praticou uma natureza de clivagens e, sobretudo, confrontou as comunidades com a radicalidade de opções, em função de compulsões onde foram dominantes as ideologias; os devires transnacionais; o ideal do trabalho versus ‘relações e produção ’; o igualitarismo mítico versus tradição de liberdade; a apoteose ascética dos movimentos de massas versus ordem parlamentardemocracia; e ainda as estruturas de repressão (polícias/exército) na sua relação difícil com situações-limite. (2003: 234) Na actualidade a utopia tornou-se, no mínimo, obscura. No verbete do Dictionary of Literary Themes and Motifs, a propósito deste novo sentir, sumariando-se a evolução do conceito Utopia ao longo dos séculos, observa-se:

3

From Plato Politeia ( The Republic, dialogue, c. 380 B.C.) to Sir Thomas More Utopia (political romance, 1516) and B. F. Skinner Walden Two (novel, 1948), utopian fiction spans almost the entire literary history of Western Man. It remained for the twentieth century to conceive its dark opposite: the dystopian (Greek., dys-, bad topos, place) world of the future. So rapid has been its growth, so disquietingly exciting its effect, that writer Karl Meyer declared, "Utopia is no more," replaced by "a new kind of imaginative society which, instead of evolving the possibilities of earthly bliss, serves only as a lens through which every barbarity of our age is magnified" ( 1954). Meyer calls the new society "Futopia" (future and futile); Lewis Mumford calls it "Cacotopia"; Erich Fromm, "negative utopia"; many simply, "anti-utopia." V. L. Parrington's "Dystopia" has come to be the most generally accepted term. But call it what one may, the nightmare world of the future is one of the facts of modern fiction and, in a span of some sixty years, has established itself as a literary genre.(Ljungquist et al. 421) No mundo contemporâneo, o futuro, ao invés de se perspectivar promissor, revela-se ameaçador. Parafraseando Giddens,3 a época actual está cheia de altos riscos o que faz com que as utopias do presente se tornem defensivas. Saramago vê a entrada de Portugal e Espanha na União Europeia como uma ameaça à identidade cultural destes dois países, sendo essa perda de identidade o “pesadelo do futuro”; por isso, neste romance propõe outro destino para a História da península. O título escolhido, A Jangada de Pedra, metáfora (que se tornará alegoria)4 utilizada para designar a Península Ibérica após a sua separação da Europa, remete para a visão distópica que Saramago tem do mundo contemporâneo: tendo por base um cenário fantástico – a separação da Península Ibérica do resto do continente europeu, transformada numa jangada de pedra a vogar pelo Atlântico – Saramago traça um novo rumo para a Ibéria, que pode ser entendido como uma proposta de acção sobre o presente no sentido de o alterar e de o tornar conforme valores histórico-culturais, considerados matriciais da identidade de um povo.

3

Anthony Giddens , sociológo britânico, nascido em 1938, escreveu várias obras entre as quais se destacam as que referem o tema em análise, Utopia/Distopia : Consequence of Modernity (1990), Modernity and SelfIdentity (1991), The Transformation of Intimacy (1992), Beyond Left and Right (1994) e The Third Way: The Renewal of Social Democracy (1998). Este autor pretende sobretudo analisar os percursos da modernidade. 4 A metáfora, como Paula Mendes observa, é uma “figura de estilo que possibilita a expressão de sentimentos, emoções e ideias de modo imaginativo e inovador por meio de uma associação de semelhança implícita entre dois elementos”; neste romance esta situação transforma-se - parafraseando Carlos Ceia, na definição de alegoria - em história que joga com sentidos duplos e figurados, cuja decifração depende sempre de uma leitura intertextual. (Paula Mendes, s.v. "Metáfora", Carlos Ceia s.v. "Alegoria" in EDicionário de Termos Literários).

4

A propósito de literatura distópica, Booker5 observa que esta inclui those works that rely on a dialogue with utopian idealism as an important element of their social criticism. Further, I consider the principal literary strategy of dystopian literature to be defamiliarization: by focusing their critiques of society on imaginatively distant settings, dystopian fictions provide fresh perspectives on problematic social and political practices that might otherwise be taken for granted or considered natural and inevitable. (Booker, 1994: 3-4) Assim, este romance enquadra-se num contexto de ficção distópica: a expressão metafórica “jangada de pedra”, utilizada para designar a Península Ibérica, relembra o desejo da descoberta do povo ibérico que rumou ao desconhecido, procurando novos mundos. Observe-se que a jangada é um meio de navegação precário e a pedra é um material que se opõe à navegação, situação em tudo contrária às memórias do passado glorioso das naus e caravelas dos Descobrimentos. A partir deste cenário atenua-se a diferença entre ficção e História; a jangada de pedra é a própria Península Ibérica, que, não só flutua, como se separa e movimenta para longe da Europa, sendo o Atlântico o caminho no qual portugueses e espanhóis poderão encontrar a sua identidade. Os povos peninsulares fazem parte da Europa, mas vivem na margem e à margem deste continente, sendo proposta de Saramago a reflexão sobre este tema. Portugueses e espanhóis andam ao sabor da corrente há muito tempo; esta navegação fantástica irá provar que a imaginação criativa e a História podem co-existir e dar rumo a essa demanda. Distanciando-se dos preconceitos do iberismo, “constrói” uma só jangada, dando ao povo ibérico a hipótese de um recomeço de vida em comum. Numa entrevista realizada por Inês Pedrosa e publicada pelo Jornal de Letras, Saramago refere o seguinte: Neste livro tentei demonstrar duas coisas; primeiro: a Península Ibérica tem pouco a ver com a Europa no plano cultural. Dir-me-ão que a língua vem do latim, que o Direito vem do Direito Romano, que as instituições são europeias. Mas o certo é que, com este material comum, fez-se nesta península uma cultura fortemente caracterizada e distinta. Segundo: há na América um número muito grande de povos cujas línguas são a espanhola e a portuguesa. Por outro lado, nascem em África novos países que são as nossas antigas colónias. Então imagino, ou antes, vejo, uma enorme área ibero-americana e ibero-africana, que terá certamente um papel a desempenhar no futuro. Esta não é uma afirmação rácica, que a própria diversidade das raças desmente. Não se trata de nenhum quinto nem sexto nem 5

M. Keith Booker é professor de Inglês na Universidade de Arkansas e escreveu vários livros sobre literatura contemporânea, entre os quais se inclui The Dystopian Impulse in Modern Literature: Fiction as Social Criticism.

5

sétimo império. Trata-se apenas de sonhar – acho que esta palavra serve muito bem – com uma aproximação entre estes dois blocos, e com o modo de o demonstrar. Ponho a Península Ibérica a vogar para o seu lugar próprio, que seria no Atlântico, entre a América do Sul e a África Central. Imagine, portanto que eu sonharia com uma bacia cultural atlântica. (10-16/11/1986: 24-26) O sonho de Saramago, acto profético por excelência, enuncia a sua aspiração utópica: a edificação de uma bacia cultural atlântica, contrariando a realidade presente ou universo distópico, que coloca Portugal no contexto europeu, onde lhe é imposto o rótulo de país subordinado. Nesta narrativa alegórica, repetindo o passado, os povos ibéricos lançam-se ao mar, não para descobrirem novos mundos ou retomarem o esplendor dos impérios, mas antes para se encontrarem a si próprios alterando a distopia que o presente europeu comporta. Na epígrafe “Todo futuro es fabuloso”, Saramago aponta o futuro, dirigindo-lhe uma dimensão utópica, e introduz na narrativa o conceito fantástico, uma vez que o escritor Alejo Carpentier,6 no prólogo do seu romance El reino de este mundo, sugere uma teoria sobre o real maravilhoso. A apatia e desinteresse com que os ibéricos olham para esse futuro são, desde logo, criticados pelo narrador: perante uma situação tão insólita quanto o é a separação da Península, vive-se o quotidiano como se nada tivesse acontecido: Dentro das casa as luzes já estão acesas, ouvem-se vozes calmas, de gente cansada, um choro discreto no berço, em verdade os povos são inconscientes, lançam-nos numa jangada ao mar e continuam a tratar das vidas como se estivessem numa terra firme para todo o sempre, (A Jangada de Pedra: 51) Num momento em que os ensejos ibéricos foram esquecidos, José Saramago reinterpreta a História, no desejo de alterar o presente. Parafraseando o poema Pecado Original, de Álvaro de Campos, o narrador desabafa: ”por isso é que o outro gritou, Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido.” (op.cit.:15), dando razão ao heterónimo de Fernando Pessoa quando este sugere “Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido? / Será essa, se alguém a escrever, /A verdadeira história da humanidade”.7 Num mundo que “não nos fatigaremos de o repetir, é uma comédia de 6

Alejo Carpentier, novelista, ensaísta e músico cubano, cuja produção literária está associada ao realismo mágico. 7 Álvaro de Campos, “Pecado Original”, in Fernando Pessoa, Obra Poética, pp.252-253.

6

enganos” (op.cit.: 67), questiona o valor de dogmas como o de “estava escrito”, referindo, “Estava escrito, não sabemos que prestígio tem que ocupa o primeiro lugar nos prontuários do estilo fatal.” (op.cit.: 26), e, envolve o leitor no processo de reavaliação, alertando, por exemplo, a propósito de Venta Micena, local de nascimento de Pedro Orce, lugar de meter medo, “ambiguidade formal que tanto significa o que parece como o seu exacto contrário, dependendo mais do leitor do que da leitura, embora esta em tudo dependa daquele, por isso nos é tão difícil saber quem lê o que foi lido e como ficou o que foi lido por quem leu” (op.cit.:71). O narrador remete para o leitor a responsabilidade da leitura e transforma a História numa disciplina hipertextual. Cada facto passado referido na narrativa é, muitas vezes, mesclado com outras referências literárias ou mitológicas, “histórias de fadas, embruxamentos e andantes cavalarias” (op.cit.:59),8 perspectivando e permitindo momentos de reflexão, onde novas interpretações são possíveis. Ao acrescentar a sua voz ao facto histórico, solicita ao leitor uma leitura hermenêutica e actualiza o valor da História, numa tentativa de viabilizar a sua utopia. Esta metaficção historiagráfica é, parafraseando Mioara Caragea, uma arte didáctica porque “possibilita o diálogo individual e criativo com a história […]. Como num palimpsesto, à história real (imperfeita) sobrepõe-se uma história fictícia modelar que funciona como instância de julgamento das decisões dos actores da história”.9 A palavra é sinónimo de acção e nela se pode encontrar a forma de alterar uma realidade que não serve. Na actualidade, a palavra mais do que dizer comporta o fazer, “O sangue, suor e lágrimas de Churchill; a dita minha luta de Hitler; o No passarán da Passionária; A pátria ou morte de Che – são expressões que carregam consigo um agir que é de muitos” (Carmelo: 221), tendo o seu eco chegado aos nossos dias. As palavras, em certas circunstâncias, são dotadas de eficácia. O narrador refere que uma palavra, quando dita, dura mais que o som e os sons que a formaram, fica por aí, invisível inaudível para poder guardar o seu próprio segredo, uma espécie de semente oculta debaixo da terra, que germina longe dos olhos, até que de repente afasta o torrão e aparece à luz, um talo enrolado, uma folha amarrotada que lentamente se desdobra.” (A Jangada de Pedra: 249) 8

Esta matriz mítica, memória invisível evidente dos povos, institui-se como construtora da própria identidade. As comunidades edificam o seu agir, não a partir de factos, mas a partir de complexidades imaginárias. 9 Mioara Caragea s.v. " metaficção historiográfica ", in E-Dicionário de Termos Literários

7

Neste romance, no exercício da escrita, “dificílimo acto […], responsabilidade das maiores” (op.cit.: 11), institui-se como personagem organizador da história e do mundo que ela configura, explicita as suas técnicas, limites e implicações, recorre a frases longas e sinuosas que apelam ao envolvimento e cumplicidade do leitor e efectua incursões metalinguísticas que procuram consciencializar para as possibilidades do uso da palavra. No decorrer da narrativa são inúmeros os exemplos ilustrativos destes factos; citam-se alguns: As palavras, assim nós as fizemos, têm muito de bom, ajudam, só porque as dizemos exageradas logo aliviam os sustos e as emoções, porquê, porque os dramatizam (op.cit.: 23); Porém, conjunção coordenada adversativa que sempre anuncia oposição, restrição ou diferença, e que, aplicada ao caso, vem lembrar que mesmo as coisas boas para uns precisamente têm os seus poréns para outros (op.cit.:91); esta construção[Ponte sobre o Tejo], falamos da frase, é perifrástica, usámo-la só para não repetirmos a palavra ponte, de que resultaria solecismo, da espécie pleonástica ou redundante (op.cit.: 93); Em as várias artes, e por excelência nessa de escrever, o melhor caminho entre dois pontos, não foi, e não será, e não é a linha a que chamam recta, nunca por nunca ser, modo este de responder a dúvidas, calando-as (op.cit.: 94); Aonde formos, vou, [diz Pedro Orce] e esta frase, que obviamente ofende a gramática e a lógica por excesso de lógica e talvez de gramática, deverá ficar sem correcção, tal qual foi dita, acaso se lhe encontrará um particular sentido que a justifique e absolva, quem de palavras tenha experiência sabe que delas se deve esperar tudo (op.cit.: 176); a importância relativa dos assuntos é variável, ele é o ponto de vista, ele é o humor do momento, ele é a simpatia pessoal, a objectividade do narrador é uma invenção moderna, basta ver que nem Deus Nosso Senhor a quis no seu Livro (op.cit.: 186); Carpe Diem, o mérito destas velhas citações latinas está em conterem um mundo de significações segundas e terceiras, sem contar com as latentes e indefinidas, que quando a gente vai traduzir, Goza a vida, por exemplo, fica uma coisinha frouxa, insossa, que não merece sequer o esforço de a tentarmos. Por isso insistimos em dizer, Carpe Diem, e sentimo-nos como deuses que tivessem decidido não ser eternos para poderem, no exacto sentido da expressão, aproveitar o tempo (op.cit.:207). Os seus múltiplos comentários entrelaçam-se com os diálogos das personagens e orientam-se para o esforço de compreender o mundo; a narrativa constitui-se como espaço de indagações múltiplas sobre uma realidade em mudança, como poderemos comprovar nos quatro exemplos que se seguem. 8

No diálogo mantido entre Joaquim Sassa e José Anaiço, a intertextualidade com o livro de Cervantes, onde o fidalgo D. Quixote promete ao seu escudeiro, Sancho Pança, uma ilha imaginária: neste episódio a alusão a D. João II,10 associa-se à paródia, a propósito do seu cognome Príncipe Perfeito, Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista, deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga-me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que fez o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem como se pode encontrar uma ilha imaginária (op.cit.: 55). O décimo-terceiro rei de Portugal teve um papel importante nos Descobrimentos, mas foi um déspota que mandou matar muitos dos seus pares. A utopia do Novo Mundo que serve os sonhos europeus de conquista é desconstruída e substituída pelo mito de D. Quixote. O cavaleiro da triste figura impõe-se como o anti-herói que luta contra moinhos de vento, persistindo na defesa da sua utopia e ajudando a esbater a fronteira entre o real e o fantástico na narrativa. Esta personagem, desenquadrada do seu tempo, de corpo cansado e de expressão triste, reflecte a imagem da Península Ibérica que, Joaquim Sassa vê “como se, com igual humor, tivesse decidido meter-se ao mar à procura dos homens imaginários” (ibid.). À semelhança da demanda quixotesca, a separação da Península indicia o início de um sonho, a independência face à Europa, o desejo de um novo espaço de fixação que no final da viagem será uma nova nação. Entre as serras Morena e Aracena, o intertexto alusivo a Platero y yo introduz Roque Lozano na narrativa como o yo da obra de Juan Jamón Jimenez.11 Esta personagem não acredita nas imagens transmitidas pela televisão, só acredita no que vê e “julga pelas aparências, com elas faz uma razão que é sua e boa de entender” (op.cit.:60) 10

D. João II subiu ao trono em 1481, mas já governava o país desde 1474, devido às ausências de seu pai, D. Afonso V (consequentes das lutas com os castelhanos). Os Descobrimentos são a sua prioridade governamental e, durante o seu reinado, toda a costa ocidental da África foi navegada, dobrou-se o Cabo da Boa Esperança e preparou-se por terra com as viagens de Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva, a viagem de Vasco da Gama à Índia. Em 1494, assina-se o Tratado de Tordesilhas, dividindo-se a Terra em duas zonas de influência, a atribuir a Portugal e a Espanha. Dentro da zona de influência portuguesa ficava o Brasil, o que faz com que muitos historiadores acreditem que este monarca tinha conhecimento da existência dessas terras. No plano interno retirou poderes à aristocracia, concentrando-os em si, reprimindo com mão de ferro as conspirações.. Entre 1481 e 1485, muitos nobres são mortos, presos ou exilados para Castela. Entre eles destaca-se D. Diogo, duque de Viseu, primo e cunhado de João II, de quem se diz ter sido chamado ao palácio e esfaqueado pelo próprio rei. 11 Juan Ramón Jiménez Mantecón, poeta espanhol, Prémio Nobel da Literatura em 1956. Este livro, Platero y yo, recria poeticamente a vida e morte do burro Platero

9

e, por isso, está a caminho dos Pirinéus para ver a Europa. O encontro de Roque Lozano, no início e no final da viagem, ajuda a esclarecer o significado da demanda empreendida pelos cinco viajantes, que contrariamente a esta personagem, procuram o que não se pode ver mas pressentem que existe. Em Aracena os dois homens repetem o feito de “D. Afonso o Terceiro, nosso rei, quando a conquistou aos mouros” (op.cit.:61), conquistando desta vez, não o território mas a consciência do património histórico que o local implica. No entanto, mais uma vez o presente distópico irrompe através das “ameaçadoras imagens e palavras que na televisão tinham visto e ouvido” (ibid.), numa crítica a algumas opções políticas da actualidade: Veneza corre o risco de ser inundada e apela-se à salvação da cidade, “façam menos uma bomba de hidrogénio, façam menos um submarino nuclear, se ainda vamos a tempo” (ibid.). A caminho das terras do sul, onde Pedro Orce, Joaquim Sassa e José Anaiço esperam ver passar Gibraltar, o narrador faz uma alusão aos Descobrimentos, deixando clara a sua crítica aos colonizadores que “avançavam dentro de couraças de ferro, na cabeça elmos de ferro, contra a nudez dos índios, só vestidos de penas de aves e aguarelas, idílica imagem” (op.cit.:73). A descoberta de novos mundos foi muitas vezes apresentada como um espaço utópico, a partir do qual se realizariam os sonhos do homem europeu. Nesta citação essa utopia é, uma vez mais, desconstruída, sendo os limites entre a história fictícia e a história real progressivamente apagados. A narrativa materializa-se em sucessivos intertextos, muitas vezes próximos da sabedoria oral de toda uma comunidade (lendas, contos de fadas e provérbios, são recursos frequentes), outras recordando episódios da História, reescritos e entrelaçados de mitos e alegorias que abarcam as diferentes etapas de evolução da humanidade, da PréHistória ao momento de produção da narrativa. O momento presente, a distopia consubstanciada na adesão à União Europeia, é “interrompido” e outros cenários são sugeridos. Convoca-se a capacidade hermenêutica do leitor, reescrevem-se factos, que no seu conjunto formam a identidade de um povo, justificando-se uma utopia denominada “bacia cultural atlântica”, o sonho enunciado por Saramago na entrevista atrás mencionada. (V. pp. 5-6)

10

No entanto, o significado da narrativa não se esgota nesta proposta. A demanda das personagens - Joana Carda, Joaquim Sassa, Pedro Orce, José Anaiço e Maria Guaivaira, guiados pelo cão Ardent - pela península, também ela à deriva, ganha universalidade. No mundo contemporâneo do imediatismo e fragmentação, na era da globalização a resposta à pergunta, tantas vezes feita, “Quem somos?”, é tentada através da introdução em A Jangada de Pedra da matriz da viagem literária, a qual se constitui como estratégia narrativa onde se procura o conhecimento de si próprio e do outro. Numa época de aviões e comboios de alta velocidade, onde não há espaço para o romantismo da viagem (chegase muito depressa e, frequentemente permanece-se pouco tempo, o que torna a própria narrativa de viagem quase uma impossibilidade), opta-se pelo fantástico e viaja-se numa jangada de pedra, adequando-se o ritmo “à medida do corpo”. Ao leitor, que não se desloca, os viajantes, para além de reportarem o seu percurso, vão transmitir todo um passado histórico-cultural que se constituirá em vários princípios de reflexão. Desta forma, a viagem empreendida pode ser entendida como um processo de aprendizagem, um movimento de indagação a partir do qual um mundo alternativo (a utopia do autor) pode ser encontrado e, porque os percursos são múltiplos, a viagem é uma viagem da terra que, através dos mares, busca outra terra, uma viagem dos homens que, sobre a terra (numa carroça que tem também o nome comum de galera), se buscam para se unirem na amizade e no amor, partindo de uma interrogação inicial, prosseguindo em corrente humana reforçada, trocando e partilhando os diversos viáticos, e buscando um sentido que encontram afinal na sagração de si mesmos como entidades definidas e conscientes de um fim, de um recomeço e, sobretudo, de uma mobilidade interior; (Seixo, 1998: 34) O narrador esclarece que “em todas as viagens, sejam quais forem duração e percurso, aconteceram mil episódios, mil palavras, mil pensamentos, e quem disse mil diria dez mil” (A Jangada de Pedra: 123), dando conta da multiplicidade de hipóteses de aprendizados só possíveis na miríade de cenários de uma viagem; Pedro Orce acrescenta que no final de cada viagem será desvendado o seu sentido: ”diz-me que fim tiveste e eu te direi que sentido pudeste ter” (op.cit.:133). As personagens desta história, Joana Carda, Joaquim Sassa, Pedro Orce, José Anaiço, Maria Guaivaira e o cão Ardent, percorrem o interior da península procurando uma razão para o seu insólito afastamento do resto do continente europeu, que relacionam a factos recentes, ocorridos nas suas vidas, eles próprios não menos insólitos: Joana 11

Carda risca o chão com uma vara de negrilho “em um lugar de Portugal de cujo nome nos lembraremos mais tarde” (op.cit.:8), causando o pânico da população de Cerbère, a centenas de quilómetros de distância, perante o ladrar de todos os cães da localidade, até então sempre mudos; Joaquim Sassa, numa praia do norte, lança uma pedra ao mar “tão pesada que já as mãos lhe cansam” (op.cit.:10), a qual ao invés de cair a seus pés, fez ricochete a perder de vista; no mesmo momento, no país vizinho, em Espanha, Pedro Orce levanta-se de uma cadeira, bate com os pés no chão, nunca mais deixa de sentir a terra a tremer e “ninguém ali dá por nada” (op.cit.:13); na manhã seguinte José Anaiço atravessa uma planície e, no meio da maior solidão, é acompanhado no seu movimento por um bando de estorninhos que não mais o abandona, “tantos que faziam uma nuvem escura e enorme, como de tempestade” (op.cit.:14); Maria Guavaira, no sótão da sua casa, acha um pé-de-meia velho, feito de lã, e, não lhe achando utilidade, começa a desfazerlhe as malhas, constatando que o fio de lã azul “não pára de cair, porém o pé-de-meia parece não diminuir de tamanho” (op.cit.:15). As cinco personagens estão ligadas por estes fenómenos que coincidem com a ruptura da península; são pessoas comuns, cujos gestos apontam acções simples mas com consequências fantásticas. São eles que irão efectuar uma jornada, que Cristiana Pires, no seu livro O Modo Fantástico e «A Jangada de Pedra» de José Saramago, divide em seis etapas,12 que decorrem quase que desenhando os limites geográficos da península. Nestes percursos, encontra-se a pureza original do “ver para crer”, dá-se voz a um povo, criticase a efemeridade dos meios de comunicação, expoente da sociedade contemporânea, descobre-se o amor e a felicidade e conclui-se que a força da escrita ficcional pode alterar o mundo. Os cinco viajantes em tudo contrastam com o resto dos habitantes da península: ao homem que se rege pelos interesses do momento, contrapõe-se esta demanda à qual se juntará o cão Ardent. Joaquim Sassa, através das notícias, toma conhecimento das fendas dos Pirinéus e de um homem que, em Orce, sente a terra tremer, estabelecendo uma relação entre estes

12

Para um melhor esclarecimento dos percursos consulte-se as páginas 195-202 deste livro, nas quais a autora disponibiliza mapas, cujos traçados são uma preciosa ajuda na visualização dos mesmos.

12

fenómenos. Ao interpretar estes sinais do mundo, parte procurando alguém que, como ele, está desligado da aparente lógica do real. Mais uma vez o presente constitui-se como realidade distópica onde: “aos povos pequenos ninguém dá ouvidos“ (op.cit.:21); a informação veiculada nos meios de informação é efémera, as memórias facilmente esquecidas: “a celebridade de Orbaiceta não durará muito […] só até ter-se declarado, em outra parte uma celebridade maior, é sempre assim com as celebridades” (op.cit.:18), ou seja “sic transit gloria mundi” (op.cit.:22); os heróis de ocasião são os “Senhores Sousas” (op.cit.:24) que, parafraseando o narrador, ornamentam histórias em resposta a perguntas ansiosas e retóricas, caricatura de muitos indivíduos que regularmente aparecem no ecrã que mudou o mundo. No Ribatejo, Joaquim Sassa sabe do professor José Anaiço e dos estorninhos, e os dois partem com destino a Orce no automóvel Dois Cavalos. Este veículo, no qual se efectua parte da jornada, adquire características humanas, num processo de animização crescente - anda “a passo” (op.cit.:46), “é deixado em descanso” (op.cit.:55) e, “previdente, anunciou no mostrador próprio que estava a chegar ao fim do bebedouro da gasolina” (op.cit.:65) - deixando de ser encarado como simples meio de transporte e passando a ser parte integrante da comunidade de viajantes. A crítica aos tempos faz-se também pela falência dos símbolos da modernidade: “Sobrecarregados, com as memórias pletóricas, saturadas, os computadores vacilaram, multiplicaram-se os erros, até que se deu o bloqueamento total” (op.cit.:35). Adiante, na narrativa, troca-se o automóvel, símbolo de poder e progresso na civilização ocidental, pela galera que, nas palavras do narrador “rejuvenesceu com a saída para o ar livre” (op.cit.:189). Em Orce, lugar onde os antropólogos pensam ter morado o europeu mais antigo (cujo crânio, embora tendo sido encontrado em Venta Micena, ficou conhecido como Homem de Orce), encontram o farmacêutico Pedro Orce, também natural de Venta Micena e de apelido Orce. Estabelece-se uma relação entre o Diabo, o antigo europeu e Pedro Orce, ”a ponto de se conjecturar que o diabo é o europeu mais antigo e Pedro o seu descendente mais directo, de quem herda o fogo de viver e a ânsia de descobrir até morrer para dar origem a uma nova geração de inquietos” (Cristiana Pires: 151).

13

O encontro destes três homens tem lugar “debaixo duma oliveira cordovil”, símbolo da paz. Este quadro mítico é o local onde decidem começar as suas vidas, facto comentado pelo narrador: Quantas vezes, para mudar a vida, precisamos da vida inteira, pensamos tanto, tomamos balanço e hesitamos, depois voltamos ao princípio, tornamos a pensar e a pensar, deslocamo-nos nas calhas do tempo com um movimento circular, como os espojinhos que atravessam o campo levantando poeira, folhas secas, insignificâncias, que mais não lhes chegam as forças, bem melhor seria vivermos em terra de tufões. Outras vezes uma palavra é quanto basta. (A Jangada de Pedra.:73). Prosseguirão a sua jornada, com o intuito de ver passar Gibraltar e regressarão a Orce desanimados pelas contas de José Anaiço, segundo as quais o rochedo demoraria dez dias até poder ser avistado. Contudo, recusam ser como Roque Lozano que partira para ver a Europa e não havia nada para ver: “Vamo-nos embora, Não quer ficar, Não é depois do sonho que o sonho pode ser vivido” (op.cit.:78). De volta a Orce, é de novo através da televisão que tomam conhecimento da situação da península. Nesta actualização da informação o narrador recorre ao intertexto de Camões, descrevendo as sensações que causavam as imagens obtidas de um satélite, ilustrativas do progressivo afastamento das duas margens: arrepiavam-se as carnes e o cabelo de olhar tão extrema fatalidade, maior que a força humana,, que aquilo já não era canal mas água aberta, por onde navegavam os barcos à vontade, em mares, estes sim, nunca dantes navegados. (op.cit.: 79). Este desafio, maior que a força humana, impele de novo os personagens na busca da resolução dos seus mistérios. À realidade da separação alia-se o intertexto camoniano que, de novo, remete o leitor para as Descobertas, num contínuo entrelaçar de realidade e ficção, retratando-se momentos presentes da narrativa que se mesclam com quadros míticos e episódios da história. A esta actualidade irá contrapor-se uma nova esperança num futuro que poderá ser diferente: a utopia como o desejo de uma nova realidade, justificada pelas diferentes leituras que se podem fazer da História. Em Lisboa, o encontro entre Joana Carda e José Anaiço faz desaparecer os estorninhos e permite a José Anaiço sentir o navegar da península, ”só o sabia por observação exterior, agora é por sua sensação própria que o sabe” (op.cit.:103), deixando de ser “apenas o involuntário chamariz de pássaros loucos” (ibid.). Ao lado da bagagem 14

de Joana Carda a vara de negrilho, com que havia riscado o chão, faz-se notar; a ela se deve a demanda desta personagem e assim o refere a José Anaiço: “é ele que me traz a mim” (op.cit.:104). Essa vara, instituída como metáfora do poder da escrita, traça agora a força da união amorosa que se inicia entre as duas personagens: Compreenderá agora José que os estorninhos, efectivamente, anunciavam uma tempestade na sua vida, mas de amor, que aparece tão repentinamente como o bando que um dia o encontrou numa planície do Ribatejo e o acompanha até que esta mulher tão extraordinária como ele, capaz de percorrer quilómetros à procura do outro, que a complementa e compreende. (Cristiana Pires: 156) Joana Carda justifica o seu encontro com as três personagens “não […] tanto por causa dos insólitos a que estão ligados, mas porque os vi como pessoas separadas da lógica aparente do mundo” (A Jangada de Pedra:127). Os quatro prosseguem viagem para verificar que o risco traçado não desaparece. No local onde constatam que “o risco refaz-se, recompõe-se exactamente como fora antes,” (op.cit.:128) aparece o cão Ardent que na boca tinha “um fia de lã azul que pendia húmido” (op.cit.:130). Recorde-se que na narrativa a primeira fenda teve lugar nos Montes Alberes, onde vagueavam os cães de Cerbère (que haviam sido mudos até Joana Carda riscar o chão com a sua vara de negrilho). Estes animais lembram-nos a mitologia grega, onde o cão de três cabeças guardava a porta do inferno. Ardent, dotado de uma audição aguçada, ouve a pedra estalar, vê a fenda aumentar e, porque “não é dos que se acomodam ás situações” (op.cit.:17), opta por saltar o abismo e ficar do lado “de aquém, preferiu as regiões infernais” (ibid.). As profundezas abissais evocam o país dos mortos e a descida ao inferno. Ao ultrapassar o abismo, o cão Ardent metaforiza o renascimento de uma nova etapa, na qual é possível antever a afirmação dos povos peninsulares em relação à Europa. É este cão (cuja primeira função mítica é a de psicopompo, guia do homem na morte, depois de ter sido seu companheiro durante a vida), sabedor do seu destino, que vai ao encontro dos viajantes, tornando-se no seu guia, conduzindo-os a casa de Maria Guavaira pelos caminhos de Santiago. O imaginário místico do Caminho de Santiago é recuperado pelo narrador. Quase a chegar ao destino, o fio não parece o mesmo. O outro, de sujo que se tornara, tanto já poderia ter sido azul como castanho ou negro, mas este brilhava na sua cor própria, azul nem do céu nem do mar, quem assim o teria tingido e dobado, quem o lavar, se o mesmo era, e outra vez colocara na boca do cão, dizendo, Vai. (op.cit.: 158) 15

Quem segura o fio é Joaquim Sassa que, com Maria Guavaira “que tem uma maneira de olhar que não é olhar mas mostrar os olhos” (op.cit.:164), forma o segundo par amoroso da narrativa. Tal com Joana Carda que riscando o chão em dois, tinha deixado para trás o seu passado, também, Maria Guavaira renasce na comunhão que estabelece com Joaquim Sassa. Em sua casa fica o automóvel Dois Cavalos e os viajantes prosseguirão caminho numa galera puxada por dois cavalos, Alazão e Pigarço, conduzidos pelo cão Ardent, agora chamado Constante. Apesar da aliança e do sentimento de comunhão entretanto criados entre estas cinco personagens, a entrega das duas mulheres a Pedro Orce causa uma fenda na relação com Joaquim Sassa e José Anaiço que se sentem traídos pelas mulheres que amam, mas recuperam e de novo recomeçam porque “amanhã será realmente outro dia” (op.cit.:255). Perto do final da viagem, reencontram Roque Lozano, que tal como não conseguiu ver a Europa, também não verá que a semente de uma nova humanidade germina no ventre destas duas mulheres. Adiante na narrativa, uma gravidez de todas as mulheres férteis, metaforiza o início de uma nova etapa. Pedro Orce não resiste ao apelo da morte, sendo transportado na galera até Venta Micena e enterrado no local onde foi encontrado o crânio do europeu mais antigo. Joana Carda espeta a vara de negrilho à altura da cabeça de Pedro Orce. A Península Ibérica que começara a deslocar-se para o sul, contrariando a aproximação aos Estados Unidos, acaba por parar no Atlântico entre a América Central e o noroeste do continente africano. No final da narrativa o narrador especula: “Os homens e as mulheres, estes, seguirão o seu caminho, que futuro, que tempo, que destino. A vara de negrilho está verde, talvez floresça no ano que vem” (op.cit.: 288). Entre todos estes percursos estabelece-se finalmente uma ligação e A Jangada de Pedra termina em tom interrogativo, atribuindose ao leitor a tarefa hermenêutica da interpretação da narrativa, tendo em vista a reconfiguração do seu próprio presente. Da breve incursão pelo romance de José Saramago, A Jangada de Pedra, poderse-á concluir que a narrativa pretende constituir-se como alternativa ao momento político-social da entrada de Portugal e Espanha na União Europeia, o qual pressupõe, na opinião do Autor, a manutenção dos países ibéricos numa situação de periferia face à Europa e o desrespeito pela sua identidade cultural. A partir da criação de um cenário

16

fantástico, a Península Ibérica transformada em jangada que se separa do resto do continente europeu e navega ao sabor da corrente pelo oceano, materializa esta crítica e propõe outro futuro, instituindo-se enquanto ficção distópica. A narrativa também comporta a indagação do homem contemporâneo, que na era do mediatismo questiona a sua identidade pessoal e social. Reescrevendo o passado, na viagem da península e pela península, os cinco viajantes dão cor à utopia do autor: durante o percurso descobrem o sentido da existência nos itinerários históricos e culturais de um povo. A morte de Pedro Orce não significa um fim mas antes um recomeço. Certezas não as há, o tom em que termina a narrativa é interrogativo, mas uma utopia nunca será uma certeza, sendo antes um projecto desejável, activado pelo poder da palavra.

17

OBRA ANALISADA Saramago, José. A Jangada de Pedra. Editorial Caminho e Círculo dos Leitores, Lisboa 1986. BIBLIOGRAFIA Arenas, Fernando. Utopias of Otherness: Nationhood and Subjectivity in Portugal and Brazil. University of Minnesota Press, Minneapolis, 2003. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Bakhtin, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. 1ª ed., Trad. Vern W. McGee. Ed. Caryl Emerson and Michael Holquist.. University of Texas Press, Austin, Texas, 1986. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Booker, M. Keith. The Dystopian Impulse in Modern Literature: Fiction as Social Criticism. Greenwood Press, Westport, 1994. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) ---------------------. Dystopian Literature: A Theory and Research Guide. Greenwood Press, Westport, 1994. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Butler, Andrew M. e Bob Ford. Postmodernism. Pocket Essentials. Herts, 2003. Carmelo, Luís. Órbitas da Modernidade. 1ª edição, Mareantes Editora, Lisboa, 2003 E-Dicionário de Termos Literários. coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9, (18/01/08). Holtgraves, Thomas. Language as Social Action: Social Psychology and Language Use. Erlbaum, Mahwah, 2002. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Leone, Massimo. Religious Conversion and Identity: The Semiotic Analysis of Texts. Routledge, New York, 2003. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Ljungquist, Kent, et al. "D." Dictionary of Literary Themes and Motifs. Vol. 1, Ed. JeanCharles Seigneuret. Greenwood Press, Westport, 1988. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Ortiz-Griffin, Julia L., and William D. Griffin. Spain and Portugal Today. Peter Lang, New York, 2003. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Pancrazio, James J. The Logic of Fetishism: Alejo Carpentier and the Cuban Tradition. Bucknell University Press, Lewisburg, 2004.

18

Pedrosa, Inês. "A Península Ibérica nunca esteve ligada à Europa", Jornal de Letras. Lisboa, Ano VI, nº 227, de 10 a 16 de Novembro de 1986, pp. 24-26. Pessoa, Fernando. Fernando Pessoa, Obra Poética. Vol. II, Org. por João Gaspar Simões, Círculo de Leitores, Lisboa, 1986. Pires, Cristiana Sofia Monteiro Santos. O Modo Fantástico e «A Jangada de Pedra» de José Saramago. Edições Ecopy, Porto, 2006. Rabkin, Eric S., Martin H. Greenberg, and Joseph D. Olander, eds. No Place Else: Explorations in Utopian and Dystopian Fiction. Southern Illinois University Press, Carbondale, 1983. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Stavans, Ilan. Art and Anger: Essays on Politics and the Imagination. 1st ed. University of New Mexico Press, Albuquerque, 1996. (Disponível em: < http://www.questia.com/ >) Seixo, Maria Alzira. Poéticas da Viagem na Literatura. Edições Cosmos, Lisboa, 1998. Viegas, Francisco José. “Alguns dos Nomes de Saramago”, Uma Voz Contra o Silêncio. Caminho, Lisboa, 1998. Wegner, Phillip E. Imaginary Communities: Utopia, the Nation, and the Spatial Histories of Modernity. University of California Press, Berkeley, 2002. (Disponível em: )

19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.