Vahram Asdurian - A dicotomia da vontade para a vida em Arthur Schopenhauer

June 13, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Schopenhauer, Subjetividade, Representação, Vontade. Filosofia
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A dicotomia da vontade Arthur Schopenhauer

para a vida em

Vahram Asdurian1

Resumo: nesta comunicação, pretende-se expor a dicotomia da objetivação da Vontade para a Vida, Der Wille zum Leben, em Schopenhauer como elemento metafísico, ou seja, o impulso que move tudo para a vida e anseia pela preservação da mesma, mas que, contudo, não traz em si nada que garanta a felicidade ou o bem-estar e chega ao ponto de fazer com que a atual geração sofra para que uma nova surja, pois a vontade não reconhece a si própria fora do corpo que essa habita. Palavras-chave: vontade; representação; subjetividade; Schopenhauer.

 Vahram Asdurian é Graduado em Letras pela PUC-Goiás.

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Tudo o que vive ou que se move em direção à vida, assim o faz por um ato de vontade, seja por fecundação, germinação ou mesmo por geração espontânea dos organismos vivos. Posto desta forma, o conceito de vontade (ou até vontade para a vida) de Arthur Schopenhauer é um elemento metafísico que preenche plenamente a relação causa-efeito, se deus for excluído como causa primeira para todas as coisas e também para a vida.

uno inseparável e indivisível, assim como era a tentativa de explicação de mundo, segundo a concepção dos pré-socráticos.

Schopenhauer é o filósofo que afirmou o mundo como representação e vontade, que são, para ele, as duas colunas fundamentais para o entendimento do mundo e do ser humano. O filósofo alemão afirma que a aceitação do mundo como representação é uma verdade de assimilação fácil e acessível, pois como ele mesmo o esclareceu: “[...] tornase claro e certo, que não se conhece nem o sol nem a terra, mas sempre um olho vê o sol e uma mão sente a terra [...]”2 (SCHOPENHAUER, 1996, p. 31). Entende-se que o mundo adentra o ser humano por meio de seus sentidos e, posteriormente, é representado, interpretado pelo sujeito que o re-conhece. Contudo, a segunda coluna, o mundo como vontade, de acordo com o idealista alemão, é de difícil aceitação e compreensão.

O que torna a filosofia de Schopenhauer, por excelência, humana é o fato de que estas duas verdades convergem e se encontram única e exclusivamente no ser humano, pois esse é o único ser que pode trazer a idéia de representação à sua consciência abstrata e ao fazê-lo representa o mundo; por outro lado, seu corpo, sua materialidade orgânica é o mais alto grau de objetivação da vontade para a vida. Assim, até este ponto, apreende-se que o ser humano de Schopenhauer (1996) vive como vontade e representação.

Consoante Schopenhauer (1996), o mundo como vontade é uma verdade complementar à primeira estabelecida, porém não é imediata como esta, mas sim, somente é descoberta após pesquisa muito profunda, abstração intensa, separação do não idêntico e negação do idêntico. Outra barreira para a compreensão apropriada do conceito de vontade é o fato de ele ser exposto ao longo de todo o segundo livro da obra O mundo como vontade e representação, e ele não é postulado de forma direta, seguindo uma forma linear de construção conceitual, em vez disso o conceito de vontade se cristaliza, pouco a pouco, nos esclarecimentos sobre a afirmação e a negação da vontade. Trata-se de um conceito metafísico que remete o entendimento de todas as coisas a um  “[...] Es wird ihm dann deutlich und gewiß, daß er Keine Sonne kennt und keine Erde; sondern immer nur ein Auge, das eine Sonne sieht, ein Hand, die eine Erde fühlt [...]”.

Schopenhauer (1996) afirma que a metafísica é possível porque ela se deixa constatar empiricamente, trata-se, portanto, de uma metafísica imanente, diferentemente da de Immanuel Kant, cuja metafísica é transcendental.

Essa é, portanto, a característica principal do pensamento do filósofo e o coloca em contraposição a todos os seus predecessores na tradição filosófica ocidental na tentativa de determinação e conceituação de sujeito e de subjetividade, ou seja, na separação total entre a vontade e o conhecimento. Os filósofos anteriores a Schopenhauer entendem que a vontade é inseparável do intelecto, ou até que a vontade seja condicionada pelo intelecto, ou ainda que, a vontade é uma mera função do conhecimento. O filósofo alemão comparou a dissociação de conhecimento e vontade à redução da água em seus elementos constituintes. Ele asseverou que quando se fala da tal “Alma”, já se trata de uma composição entre vontade e intelecto. Nesta composição, a assim chamada Alma, no sentido mais laico possível do termo, entendida aqui como aquilo que dá ânimo; é formada pelo intelecto que é o elemento secundário, temporal ou uma função cerebral, e pela vontade, que é o elemento primário do organismo. “A vontade é a essência em si, a qual se

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apresenta apenas na representação como um corpo orgânico”3, conforme Schopenhauer (1992, p.51), e cada e toda ação do corpo representa um ato de vontade. É compreensível que, após tantos anos de dominação da corrente racionalista que se alastrou pelo Ocidente a partir de pensadores como René Descartes, Leibniz e outros, o legado de Schopenhauer encontre uma forte resistência à sua assimilação e à sua compreensão, uma vez que, a má interpretação do conceito de vontade pode levar ao entendimento de que o homem seja um ser guiado somente por seus impulsos mais primitivos e de que ele não consiga, nem possa se erguer na natureza mediante os outros seres vivos. Tal leitura do pensamento de Schopenhauer também causa desconforto àqueles que, como filósofos, filosofam em nome de deus. Assim sendo, torna-se muito importante o entendimento da atuação recíproca entre vontade e intelecto. O intelecto, de acordo com Schopenhauer (1996), é uma instância reguladora da ação (objetivação da vontade), entretanto, ele está sempre a serviço da vontade, no intuito de dar-lhe um caráter plausível, tanto para o próprio indivíduo, quanto mediante os outros, a fim de justificar constantemente os atos como fruto de uma ação gerida pela razão. Essas justificativas, porém, não passam de um pretexto racional para um ato de vontade. Schopenhauer, ao ponderar, exemplificou que, na ausência da atuação do intelecto, o que se tem é a atuação livre da vontade, a que comumente chama-se de delírio ou loucura. É nessa condição que a vontade revela sua essência original e clara, pois se a vontade reside em todas as ações humanas, pode-se entender o mundo como espelho da vontade. Consoante Schopenhauer (1992, p.62): “De acordo com tudo isso, a vontade sabe onde o conhecimento a ilumina, constantemente o que a vontade quer aqui e agora, mas nunca o que ela quer como um todo. Cada ato isolado tem um propósito, o querer na sua

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totalidade não”4. Como se pode notar, o conceito de vontade não só afeta diretamente o agir humano, como também atua de forma fundamental na teoria do conhecimento de Schopenhauer, que é assaz análoga a de Kant (1974), todavia, ela reserva uma divergência crucial que pode ser esclarecida brevemente da seguinte forma: inadvertidamente, muitos estudiosos se limitam a afirmar que a vontade de Schopenhauer seria um correlato direto do conceito de Kant “a coisa em si”, no entanto, Schopenhauer deixou clara a diferença entre esses dois conceitos. Aquilo que Kant determinou como sendo a coisa em si, do mero Erscheinung (fenômeno) e, como tal, incognoscível, foi da mesma forma designado por Schopenhauer como mecanismos da representação. Porém, a coisa em si, esse substrato de todas as Erscheinungen, nada mais é do que aquilo que é conhecido e familiar, aquilo que se encontra no interior do próprio eu, a saber, a vontade. A grande e fundamental diferença entre Kant e Schopenhauer, é que, para o primeiro, todas as coisas em si são incognoscíveis, já para o último, resta uma coisa em si que pode ser conhecida, e essa é o próprio corpo humano, pois este é concebido de forma dupla, ou seja, o corpo humano é objeto do conhecimento e, como tal, submetido a todas as formas de conhecimento como tempo, espaço e causalidade, por outro lado, o corpo humano é entendido por Schopenhauer, como o mais alto grau de objetivação da vontade. Em outros termos, o corpo humano é o único objeto do conhecimento, ou fenômeno, que é vislumbrado a partir de duas perspectivas completamente distintas: uma como um objeto representado e aferido pelo intelecto, e em termos de perspectiva da orientação do pensar de fora para dentro; outra, como o mais alto grau da objetivação da vontade, ou como vontade simplesmente, e para o pensar: de dentro para fora, sobretudo, quando se pensa o que a vontade quer do corpo, “Allem zufolge weiβt der Wille, wo ihn Erkenntnis beleuchtet, stets was er jetzt, was er hier will, nie aber, was er uberhaupt will. Jeder einzilne Akt hat einen Zweck, das ganze Wollen keinen”. 4 

“Der Wille ist dasjenge Wesen as sich, welches erst in der Vorstellung sich als ein solcher Leib darstellt”.

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analisando todos os impulsos e ações que este assume, já que para Schopenhauer todo movimento que o corpo realiza é um reflexo de um ato de vontade. Schopenhauer (1992) postula que a única coisa real, original e de fato metafísica no mundo é a vontade, o resto é Erscheinung, ou segundo ele próprio, representação. Com efeito, o que torna o legado filosófico de Arthur Schopenhauer ímpar para o entendimento do ser humano é o fato de que ele não só construiu essa malha conceitual, que é fruto de uma erudição rara dentre os filósofos ocidentais, mas também que ele investigou o viver humano até suas últimas consequências, sempre à luz dos conceitos por ele engendrados. Além disso, ele conseguiu trazer esclarecimentos para nuances do viver do homem que, até então, repousavam num lago de indiferença ou incapacidade dos outros filósofos. Um dos aspectos mais relevantes apresentado pelo filósofo alemão é, justamente, a relação entre os seres humanos (que são objetivações da vontade). O problema entre os seres começa a existir justamente ao se pensar como a objetivação da vontade se explica. Consoante Schopenhauer (1992, p.69), “todo nível de objetivação da vontade disputa com os outros a matéria, o espaço e o tempo [...] já que cada um quer revelar sua idéia”5. Dessa colocação, pode-se entender que o simples fato de um ser existir e necessitar de matéria para efetivar sua existência já representa um obstáculo para a existência de outros tantos, dada a limitação de matéria disponível. Schopenhauer (1996) utilizou o conceito de principium individuationis para elucidar que uma das facetas mais complexas para a humanidade é que a vontade objetivada na forma do indivíduo não reconhece no outro a mesma vontade que o jogou para a vida. Logo, o que se tem é a luta da vontade contra si mesma, que para a própria vontade não há consequências, mas sim, para os indivíduos, pois desta luta surge o egoísmo como característica principal do agir humano. O egoísmo é, de certa forma, uma afirmação plena da vontade objetivada dentro de “Jede Stufe der Objektivation des Willens macht der anderen die Materie, den Raum, die Zeit streitig. Da jede ihre Idee offenbaren will”.

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um corpo que só pode entender o seu agir de forma limitada, assim como, limitado é o seu intelecto mediante o tempo infinito e a vontade que se manifesta em tudo, a todo tempo e em todo o tempo. Como se pôde ver acima, o egoísmo para Schopenhauer não é fundamentado em observações empíricas do agir humano, como é o caso de Hobbes (2000), por exemplo. O egoísmo pessimista de Schopenhauer tem sua fundamentação em princípios metafísicos, que são entendidos na ilusão da individuação dos sujeitos que não conseguem reconhecer em outros sujeitos a vontade que nele habita e o anima, assim como, no conceito de não liberdade da vontade humana, tema que foi amplamente pesquisado por Schopenhauer na obra premiada pela Sociedade Real de Ciências da Noruega “Sobre a liberdade da vontade humana”, publicado em 1839. Por fim, pode-se afirmar que o egoísmo no ser humano é como uma característica inata de sua natureza, dada a constituição desta, que não pode ser outra, a não ser aquilo que é. Mas de onde brota o querer no ser humano? Para Schopenhauer (1996, p. 205), “todo o querer brota da carência, da insuficiência, ou seja, do sofrer”6. A partir desta proposição da vida como afirmação da vontade, Schopenhauer (1996) elaborou o conceito de sujeito do querer, Subjekt des Wollens, que é aquele que busca o preenchimento constante da vontade, do querer, aquele que vê no objeto da vontade (Objekt des Wollens) a sua própria razão de existir. A tragédia do sujeito do querer é que não há objeto do querer que o preencha plenamente. Sendo assim, a vida se torna uma busca, sem paz e sem pausa, pelo próximo objeto do querer, que, na ilusão do sujeito do querer, será aquele que lhe dará o tão ansiado sentido pleno da vida, portanto, viver é sofrer! O intelecto, a consciência de si e de mundo do sujeito do querer é tão exaustivamente esgotada pelo querer, que ele já não tem mais energia intelectual para enxergar nada, a não ser os meios para a efetivação dos anseios, gerando uma plausibilidade pretensamente racional para os

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 “Alles Wollen entspringt aus Bedürfnis, also aus Mangel, also aus Leiden”.

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mesmos. O ser humano torna-se plenamente um escravo a serviço da vontade da qual ele, por vezes, até nega a existência! Tudo o que impulsiona o sujeito do querer é o motivo gerado pela vontade. Não é de causar espanto que a raça humana, que se considera tão superior e tão elevada, continue a encontrar enormes barreiras interiores para se enxergar por meio do prisma lapidado por Schopenhauer, pois, para que a ruína da fábula construída em torno do gênero humano se desfaça até a última pedra, é de fato necessário que o ser humano se reinvente, como Nietzsche (2005) propôs com o conceito do Übermensch. Apesar de todo o pessimismo realista, Schopenhauer (1950) deixou uma porta aberta para a fuga da escravidão imposta pela vontade, solução essa que se estabelece sempre que o sujeito da Vontade se torna o Sujeito do Conhecer. Quem é o Sujeito do Conhecer? É aquele que consegue com o seu poder mental, Geiteskraft, dirigir o seu foco mental para fora do motivo da vontade e passa a ver o mundo livre da relação com a vontade, ou seja, sem interesse, sem subjetividade, pois o mundo é apenas representação e não motivo. Mais do que tudo, as artes, sobretudo a música, são os elementos que detêm o poder de fazer o sujeito do conhecer aflorar de dentro do sujeito do querer. Nas artes ou na natureza, o querer não encontra o seu correlato. Toda a dor e todo o sofrer cessam a ilusão da individualidade, da subjetividade e cedem lugar a uma existência que é apenas o olhar do mundo, que perde o seu valor. Esse estado contemplativo (ou seja, negação temporária da vontade), é o elemento mais oriental na filosofia de Schopenhauer. Ele advertiu, todavia, que tal anulação da vontade ocorre por breves momentos e que o retorno à condição de sujeito da vontade é uma constante na vida humana, aquele, porém, que é capaz da negação definitiva e permanente (ascese) da vontade é percebido e chamado no Ocidente de santo, que, segundo Schopenhauer, é apenas aquele que possui a força para enxergar além dos motivos gerados pela afirmação da vontade, e Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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negá-los plenamente, e, ao negar a vontade, ele nega a própria vida e a objetivação da vontade que é o seu corpo. O homem de Schopenhauer é aquele que aceita espontaneamente o sofrer da existência, na medida em que a condição humana assim o impõe, mas que tem a chance de fazer surgir dentro de si algo que possa ir além daquilo que o homem é. Ainda que essa possibilidade tenha um caráter poético, dramático e heróico, ela ao menos aponta para um pensar da existência que seja pleno e grandioso para uma humanidade que vive e sofre de qualquer forma, de maneira miseravelmente material, perene e insignificante, e sem nenhuma aspiração poética estética. O homem de Schopenhauer olha para o mundo com a paz e a indiferença do jogador de xadrez que olha para as peças deitadas no tabuleiro após o fim da partida.

Referências HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Ícone, 2000. KANT, Immanuel. Kritik der reinem Vernunft. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1974. NIETZSCHE, Friedrich. “Menschliches Allzumenschliches”. Gesammelte Werke. Bindlach: Gondrom Verlag GmbH, 2005.

In:

SCHOPENHAUER, Arthur. Aphorismen zur Lebensweisheit. Stuttgart: Alfred Kröner Verlag, 1950. ______. Die Welt als Wille und Vorstelung. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1960. ______. Über die Freiheit des menschlichen Willens. Diogenes Verlag AG, Zürich,1977. ______. Welt und Mensch. Stuttgart: Phillipp Reclam, 1992. www.inquietude.org

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