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May 24, 2017 | Autor: R. Martins Tourin... | Categoria: Brazilian Law, Autonomia, Direito Civil, Direitos Da Personalidade, Direito Civil Constitucional
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VALE TUDO NO MMA? A relativa disponibilidade do direito à integridade física na prática de esportes violentos. Luã Lessa Souza* Rodrigo Martins Tourinho Costa**

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A relativa disponibilidade dos direitos da personalidade e o alcance da dignidade humana; 3. O exercício do direito à integridade física na prática de esportes violentos: autonomia e consentimento informado do atleta; 4. O MMA (Mixed Martial Arts) sob a luz do príncipio constitucional da dignidade da pessoa humana; 5. Considerações Finais; 6. Referências. RESUMO: O presente trabalho objetiva reconhecer a modalidade esportiva do MMA (Mixed Martial Arts) como lícita e possível para o ordenamento jurídico brasileiro, além de constitucional, a partir da aplicação extensiva do princípio da dignidade da pessoa humana, visto sob uma ótica positiva do exercício das liberdades jurídicas. O fará mediante a defesa da tese civilista da relativa disponibilidade dos direitos da personalidade e da aplicação da autonomia e consentimento informado do atleta na prática da modalidade violenta. PALAVRAS-CHAVE: DIREITOS DA PERSONALIDADE; DISPONIBILIDADE DO DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA; ESPORTES VIOLENTOS; MMA (MIXED MARTIAL ARTS).

1. INTRODUÇÃO: As novas relações sociais moldadas pelas nuances da pós-modernidade e a influência da diretriz constitucional pós-1988 na configuração normativa do ordenamento jurídico brasileiro são alguns dos responsáveis pela extensão conceitual do que vem a ser dignidade humana. Tal princípio norteador não só estimulou a mudança paradigmática do foco civilista, que veio a ser a pessoa humana, mas revolucionou os contornos de aplicação dos direitos da personalidade. Os direitos da personalidade, quando conceituados pela clássica doutrina civilista, não estavam preparados para as modificações do exercício humano em busca da dignidade, pois apenas se voltavam a uma perspectiva negativa de atuação de tais direitos, como, por exemplo, o foco na defesa estatal irrestrita da esfera privada do indivíduo. Não fora compreendido que esse mesmo indivíduo pode, em determinadas situações, desejar atuar de forma positiva em relação aos direitos da personalidade, com o exercício da sua autonomia privada e relativizando características delineadas pela doutrina clássica como conformadoras desses direitos, tais como a extrapatrimonialidade e a indisponibilidade. *Graduado em Direito da Universidade Federal da Bahia. **Graduando em Direito da Universidade Federal da Bahia.

A manutenção da integridade física como um direito da personalidade é uma das possibilidades nas quais se podem aferir a presença da relativização da indisponibilidade como característica conformadora do direito à proteção do corpo vivo. Essa relativização se dá não apenas no contexto de doação de órgãos e tecidos do corpo humano, tampouco nos casos de autolesão tolerados pelo aparato estatal, mas também em atividades e esportes vistos como agressivos pela coletividade e que demandam mitigações do direito a um corpo intacto e sem vestígios de violência. As artes marciais mistas, mais conhecidas pela sigla em inglês MMA (Mixed Martial Arts) são uma modalidade esportiva de propagação internacional que tem estimulado o debate acerca dos limites do uso da violência em esportes que fazem o uso de luta corporal. Com milhares de admiradores por todo o mundo, o MMA movimenta hoje milhões de dólares no mercado esportivo de lutas e é o responsável pela existência de canais exclusivos na rede fechada de TV para a transmissão dos seus torneios. Dentre as organizações responsáveis pelos campeonatos de artes marciais mistas, a principal é o UFC (Ultimate Fighting Championship). O presente trabalho visa defender a constitucionalidade e licitude da prática do MMA pelo atleta que externa um consentimento informado sobre as regras e riscos atinentes ao esporte. Para isso, serão discutidos os contornos dos direitos de personalidade de forma geral, além da exposição de uma análise mais detida sobre o direito à integridade física dos indivíduos, notadamente quanto à possível disponibilidade no exercício de tal direito. A ideia de autonomia e consentimento informado também é essencial para visualizar a dignidade humana em um contexto macro, no qual a autonomia privada do ser humano é encarada como ponto fulcral e de forma individualizada, sem a pretensão de um tipo ideal de dignidade que mitigue a liberdade e desejos específicos dos agentes sociais. A primeira seção do artigo discute os direitos da personalidade enquanto projeção dos direitos fundamentais e apresenta a ideia da disponibilidade em um contexto do direito civil constitucionalizado. Necessária é, para isso, a exposição dos conceitos que envolvem a personalidade no direito civil e uma breve retomada acerca das características dos direitos da personalidade, bem como dos limites e flexibilizações já encontrados pela doutrina civilista como possibilidades às ideias clássicas do direito civil sob a égide do Código de 1916. A segunda seção se debruça sobre o direito à integridade física dos indivíduos e sua relativa disponibilidade em relação às modalidades esportivas que fazem o uso da violência. A tese que parte em defesa da existência e licitude do MMA será fundamentada a partir das ideias de autonomia, autolesões permitidas pelo direito e consentimento informado do

interessado, qual seja, o atleta das artes marciais mistas. Com o fim de justificar a prática de tais esportes serão expostas as teorias justificadoras criadas pela doutrina penalista e civilista, dentre as quais podem ser citadas, a título informativo, a teoria da inexistência do dolo e a teoria do consentimento do participante da prática esportiva. A terceira seção explora as características técnicas do esporte MMA, com a exposição necessária das distinções de tal modalidade para o “Vale-Tudo”, técnica de luta sem regras claras que era vista como verdadeiro espetáculo de carnificina. Visto que existem regras específicas e entidades representativas do esporte no Brasil e no Mundo, a defesa da prática do esporte se dá a partir do cotejamento dos seus regulamentos com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, sempre com o foco na concretização de uma dignidade individualizada e concreta. A possibilidade da unificação das regras do MMA em âmbito internacional é uma alternativa possível e já pensada pelas Confederações representativas das artes marciais mistas e que pode embasar de forma cabal a justificativa de que o MMA não é um “vale tudo” para a concretização da violência exacerbada. A ideia central não é a de encarar o direito à integridade física como um contexto plástico que pode ser moldado ao bel prazer dos indivíduos, tendo em vista que cabe à coletividade a defesa da vida e da segurança pessoal como verdadeiras diretrizes para a harmonização da sociedade. No entanto, também é vital a crítica aos fatores que são postos pela comunidade jurídica como limitadores ao exercício da autonomia privada, quais sejam: a lei, a ordem pública, a moral e os bons costumes, visto que tais agentes limitadores não são estanques no tempo e espaço e carecem da necessidade de intensa reformulação a partir das mudanças sociais. A manutenção do status quo deve ser sempre revisitada a fim de o Direito não se manter alijado das transformações de uma sociedade pós-moderna.

2. A RELATIVA DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E O ALCANCE DA DIGNIDADE HUMANA: Adentrar a temática dos direitos da personalidade e das suas características envolve optar por um conceito de personalidade que concretize o alcance da efetiva dignidade da pessoa humana. Muitos autores vislumbram o conceito de personalidade no âmbito jurídico como a própria capacidade jurídica. É o caso, por exemplo, do clássico civilista Clóvis Beviláqua, para o qual a personalidade é: “[...] o conjunto dos direitos atuais ou meramente possíveis, e das faculdades jurídicas atribuídas a um ser. [...] é a aptidão, reconhecida

pela ordem jurídica a alguém para exercer direitos e contrair obrigações”. (BEVILÁQUA, 1953, p. 79-80). Segundo a civilista Roxana Cardoso Brasileiro Borges, quando a personalidade jurídica é confundida com o conceito de capacidade jurídica, transforma-se em requisito para que o indivíduo possa ingressar no mundo jurídico e seja reconhecido o caráter de sujeito portador de direitos e deveres. (BORGES, 2007). Tal conceituação clássica de personalidade desenha um sujeito subordinado ao campo da possibilidade de exercício dos seus direitos no campo jurídico, a uma função que pudesse vir a ocupar em determinada relação jurídica. Logo, o real valor do indivíduo não é captado, sendo este retratado sob uma ótica mecanicista e não alinhada a uma ideia de personalidade jurídica que surge enquanto projeção da natureza humana e que possui maior amplitude em relação à categoria da capacidade jurídica. (AMARAL, 2000). A metodologia deste trabalho toma por pressuposto a ideia de encarar a personalidade jurídica como um valor jurídico ou princípio geral que norteia o sistema jurídico, em vez de toma-la por mero atributo possível ao ser humano. Essa opção denota a exigência de um direito da personalidade que não tutele apenas situações específicas, mas o valor unitário da pessoa, o valor da personalidade jurídica. (PERLINGIERI, 1999). A personalidade jurídica enquanto valor jurídico irradia seus efeitos nos campos do direito público e privado; e alcança a dignidade humana quando tal é encarada em um sentido subjetivo, alinhado a um conteúdo de dignidade que depende do próprio indivíduo e das suas características biológicas e socioculturais. Assim, com o foco na sistematização, mostram-se essenciais dois requisitos básicos à concretização da dignidade humana no exercício dos direitos da personalidade. O primeiro é a materialização do mínimo existencial, tendo em vista que o ser humano carece de um núcleo mínimo de direitos garantidos, a fim de ver concretizada a sua vivência digna em sociedade. O segundo requisito é encarar como real a historicidade e subjetividade da dignidade da pessoa humana, já que esta não é um dado pronto e objetivo, mas fruto de determinado período histórico e lapso espacial, além de possuir conteúdo plástico e fluido a depender das circunstâncias concretas do indivíduo. Embora os direitos da personalidade sejam comumente classificados como extrapatrimoniais, inalienáveis, impenhoráveis, imprescritíveis, irrenunciáveis, indisponíveis, inatos, absolutos, necessários e vitalícios, opta-se, neste trabalho, por encará-los a partir do viés da relativa disponibilidade, algo que será discutido com mais vagar nas seções posteriores.

O alcance da real e ampla dignidade da pessoa humana também depende do reconhecimento de duas facetas concernentes à autonomia. Em sentido amplo, o da autonomia jurídica individual, e em sentido restrito, o da autonomia privada. A primeira faceta é sinônima à ideia de liberdade jurídica, qual seja, a faculdade de atuar de forma lícita e da ilicitude apenas surgir quando houver proibição expressa por norma jurídica. De forma mais particular, autonomia privada é sinônima de liberdade negocial, a possibilidade dos indivíduos estabelecerem regramentos específicos para determinadas situações ao longo da vida, desde que tais regras não entrem em conflito com as diretrizes que norteiam o ordenamento jurídico. É importante encarar que a defesa da autonomia privada presente neste trabalho não se confunde com o conceito individualista clássico de autonomia da vontade. Primeiro porque a simples aceitação entre as partes não é suficiente para criar o direito, apenas se tal vontade compartilhada se submeter aos contornos morais e normativos do ordenamento jurídico. Segundo porque a competência para criar o direito se funda a partir da autonomia privada/liberdade jurídica do indivíduo, mas também das normas estatais que compõem as fontes do direito. Embora não seja necessária autorização expressa para a realização dos negócios jurídicos, a delimitação para o exercício da autonomia se dá a partir da influência da lei, ordem pública, moral e bons costumes, conceitos estes que são ressignificados sob a égide constitucionalizada do direito civil e constantemente criticados pela doutrina mais progressista. A crítica mais aceita pela doutrina se funda na análise extensiva dos primeiros artigos da Constituição Federal, os quais se debruçam por elencar os fundamentos da República Federativa do Brasil. Ao considerar a liberdade como um instrumento concretizador da dignidade humana, depreende-se que os direitos da personalidade formam um conteúdo jurídico sobre o qual a intervenção estatal deve ser praticamente nula. Além disso, é imperioso afirmar que os conceitos de moral e bons costumes são relativos ao tipo de conservadorismo que se deseja manter ou ao modelo de sociedade buscado, o que se mostra em relevante contraste com as finalidades deste trabalho. Ora, ver concretizada a dignidade da pessoa humana não é estar vinculado a uma posição autoritária de proteção da pessoa. (BORGES, 2007). Até porque a dignidade necessita ser encarada como um direito, não um dever do sujeito se proteger dos seus próprios atos, a partir da intervenção coercitiva do Estado. Não cabe ao aparato estatal, nem à comunidade jurídica vigente, aferir um conceito abstrato e generalizante de dignidade, sem levar em conta ato que não atinja interesses de terceiros, tampouco seja considerado lesivo pelo indivíduo que o exerce.

O ideal de moralidade não pode ser o único balizador para autorizar a intervenção do aparato jurídico na vida privada dos agentes sociais, pois o que alguém considera como causa de provável dano pode não ter esse significado para o próprio indivíduo que pratica a ação tida por perigosa. O livre desenvolvimento da pessoa e a garantia dos direitos de personalidade necessitam da compreensão de um individualismo localizado em algumas searas de existência do ser humano, atuando sobre certas áreas do direito. (BORGES, 2007). A relativa disponibilidade dos direitos da personalidade pode ser visualizada como a prerrogativa dos indivíduos agirem de forma positiva em relação a tais direitos, não apenas de forma passiva ou negativa, como a clássica doutrina os idealizou. Opta-se, portanto, por uma corrente liberal para tratar da problemática que envolve a disponibilidade, na qual pessoa e corpo são categorias distintas, podendo a pessoa exercer certos poderes sobre seu corpo. É com lucidez que afirma o doutrinador José Abreu Filho que serão inválidos apenas os atos ou negócios de natureza translativa, modificativa ou extintiva que tenham a sua indisponibilidade atingida. Caso o ato ou negócio não se enquadre em uma das três facetas, mesmo que tenha por conteúdo direito de natureza indisponível, ter-se-á como válido perante o sistema jurídico. (ABREU FILHO, 1997). Acompanha o entendimento Carlos Alberto Bittar, para o qual, desde que o direito não seja descaracterizado, a disponibilidade deve ser admitida para permitir a melhor fruição do direito por parte do titular. (BITTAR, 2000). Assim, quando existir negócio jurídico que tenha por objeto o uso de certos direitos da personalidade, este deve ser o mais específico e claro possível, além de ser necessária a permissão expressa do titular do direito. Deve expor a forma de utilização, o período e a finalidade do uso, além de todas as avenças se submeterem às regras de interpretação restritiva. (BORGES, 2007). Sobre o impacto da autonomia privada, entende Emilio Betti que o ser humano deve ser livre em relação à sua maneira de agir, desde que apenas ele sofra as consequências da sua atuação, sejam elas gravosas ou abonadoras. (BETTI, 1969). Desse modo, pode-se afirmar que o livre desenvolvimento do indivíduo, a partir de uma existência com dignidade plena, está diretamente ligado ao exercício das liberdades jurídicas, o que se vê concretizado pela autonomia privada e existência dos negócios jurídicos provenientes de tal autonomia. Por conseguinte, encerra-se a presente seção com a ratificação do argumento de que os direitos da personalidade não podem ser considerados como deveres da pessoa, mas ao contrário, como uma liberdade de viver, autonomamente, os aspectos mais personalíssimos da vida, tendo por alvo o constante desenvolvimento da pessoa humana em sua rede de relações interpessoais.

3. O EXERCÍCIO DO DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA NA PRÁTICA DE ESPORTES VIOLENTOS: AUTONOMIA E CONSENTIMENTO INFORMADO DO ATLETA: Antes de iniciar a análise do direito à integridade física e das especificidades relacionadas à prática de esportes violentos, faz-se imprescindível a apresentação do contorno teórico-conceitual acerca dos estudos jurídicos sobre o consentimento do interessado, também chamado de consentimento do ofendido na seara penal. O consentimento que interessa a este trabalho, qual seja, o existente nas práticas esportivas consideradas como violentas, pode ser conceituado como próprio e direto, além de autorizante, nas palavras do doutrinador Capelo de Sousa: “[...] o consentimento autorizante só é válido se não for contrário aos princípios da ordem pública, insere-se normalmente num negócio ou ato jurídico de estrutura bilateral e tem um caráter constitutivo, pois envolve a celebração de um compromisso sui generis, pelo qual o titular de direitos de personalidade limita voluntariamente o exercício de tais direitos mas dispõe sempre da faculdade de revogar tal consentimento, ainda que com a obrigação de indenizar os prejuízos causados às legítimas expectativas da outra parte.” (CAPELO DE SOUZA, 1995, p. 441-442)

Tal consentimento livre de vícios de vontade e informado contribui para a exposição da licitude do ato ou negócio jurídico a ser desempenhado pelo indivíduo, no caso, o atleta que se submete à prática da modalidade esportiva violenta, com o fim de ver exposta a possibilidade da relativa disponibilidade do bem jurídico em questão: o seu próprio corpo. Com a intenção de saber qual bem jurídico pode ser objeto da relativa disponibilidade e qual não pode se submeter à relativização, importa dizer que todas as classificações que já tentaram distinguir bens jurídicos em disponíveis e indisponíveis se mostraram eivadas de falhas. Logo, todos os bens que interessam à vivência da esfera privada devem ser disponíveis, pois não cabe a ninguém definir o destino que o titular do direito deseja dar a tais bens jurídicos. (BORGES, 2007). Por opção didático-metodológica, este trabalho acompanha a doutrina que prefere classificar o direito à integridade física como espécie do gênero direito ao próprio corpo. Além da tutela constitucional do art. 5º da CF/88, sob a expressão “segurança”, o direito ao próprio corpo encontra resguardo normativo no Código Civil Brasileiro de 2002, nos arts. 13, 14 e 15. Parcela expressiva da doutrina admite a relativa disponibilidade do direito ao próprio corpo, desde que vinculados aos limites norteadores da lei, ordem pública, moral e bons costumes. Bittar cita, ainda, a necessidade de subordinação a certos limites naturais do indivíduo, quais sejam o direito à vida e o próprio direito à integridade física. Tal ideia, com a

máxima vênia, revela grande influência conservadora de manutenção do status quo, a qual não se preocupa em revisar os conceitos do que vem a ser moral ou bons costumes, tampouco de vislumbrar atualização social das atividades humanas exercidas em um período pós-moderno. Devido à falta de unidade teórica acerca do tema, é cediço afirmar a importância da declaração expressa de vontade, preferencialmente, na forma escrita, que deve detalhar a extensão da disposição, a finalidade e o âmbito de possibilidade da intervenção que poderá ser realizada no corpo do indivíduo. Quando a integridade física é discutida no âmbito de certos espaços profissionais, tais quais espetáculos circenses e esportes considerados violentos, a sua possível disponibilidade vem a ser questionada, sobretudo devido à visibilidade extrema dos atos de disposição sobre o próprio corpo, bem como o caráter sanguinolento e de exposição corporal que algumas dessas manifestações apresentam para a sociedade em geral. Entretanto, a aceitação social, a crescente divulgação e a não punição de tais atos revelam sinais de sua permissibilidade. (BORGES, 2007). O consentimento informado do atleta em relação à prática de esportes violentos deve ser adstrito à adesão geral do conteúdo dos regulamentos e a prática correspondente do esporte, pois o indivíduo deve se sujeitar de forma consciente aos riscos posteriores que poderão existir, podendo sofrer de forma consentida as consequências em seu complexo vital, mas com as cautelas que são necessárias às práticas e aos limites de ação permitidos para cada modalidade esportiva. (BITTAR, 2000). A ciência do direito penal, ao caracterizar o consentimento do ofendido, contribui de forma magistral para a análise do consentimento informado do atleta de esportes violentos. Segundo Pierangeli, o consentimento do interessado só terá validade se houver uma representação geral do risco absorvida de forma consciente pelo atleta. Na tentativa de distinguir os grupos de esportes violentos, o mesmo autor divide tais modalidades esportivas em dois subgrupos. O primeiro comporta os jogos de violência direta e necessária, dentre os quais se enquadram as artes marciais mistas, objeto último de análise deste trabalho. O segundo grupo congrega os jogos de violência eventual, dentro do qual se pode ver o futebol, o basquete e o vôlei. Se há a necessidade da representação geral do risco nas modalidades de violência eventual, muito mais importante será a consciência de tais informações quando da prática dos esportes que usam de violência direta e necessária, a fim de ver resguardada a dignidade humana em sua plenitude. Com o fim de justificar as lesões causadas aos praticantes das modalidades esportivas que fazem uso direto da violência, Pierangeli aponta cinco teorias justificadoras. A primeira é

a da inexistência do dolo, visto que o atleta não possui a intenção de produzir lesões na outra parte. A segunda é a teoria do móvel contrário ao direito, pois a modalidade esportiva em si não é ilícita, tampouco ilegal. A terceira teoria é a da realização de um fim reconhecido pelo Estado, já que a modalidade esportiva possui autorização estatal para o exercício, sendo até mesmo incentivada por este. A quarta é a teoria da autorização estatal mediante permissão da autoridade competente, visto que existem normas, regulamentos e autoridades que ratificam e limitam o exercício da prática esportiva. Por último, apresenta-se a teoria do consentimento informado, já discutida anteriormente neste trabalho. (PIERANGELI, 2001).

4. O MMA (MIXED MARTIAL ARTS) SOB A LUZ DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: As Artes Marciais Mistas (Mixed Martial Arts) possuem uma origem que remonta aos Jogos Olímpicos de Atenas. O interesse pelo esporte foi aceso há cerca de oitenta anos, através de uma forma incipiente e com poucas regras chamada de “Vale-Tudo”. Como o próprio nome demonstra, o MMA não é uma arte marcial, mas sim uma conjunção de diversas modalidades, o que depende da formação do atleta. Tal configuração estrutural dificulta a regulamentação normativa interna do esporte, tendo em vista que não há uma uniformidade em sua prática. A proposta inicial quando da sua criação era a de encontrar a “melhor” e mais efetiva arte marcial, bem como o “melhor” lutador do mundo, através de um combate de um atleta contra o outro na arena, sem nenhuma regra, para que a situação fosse a mais próxima possível da realidade. Assim, por volta de 1993, surgiu o UFC 1, gerenciado pela Família Gracie, considerada o maior expoente do Jiu Jitsu mundial. É esse marco histórico inicial o grande influenciador para a problemática que envolve a aceitação do MMA e o entendimento da sua prática pelo homem médio, pois ainda há quem entenda a modalidade como uma luta destituída de regras e regulamentos. Por sinal, a denominação “Vale-Tudo” foi criada na segunda década do século XX, no território brasileiro, local onde o esporte começou a despontar como modalidade entre as lutas marciais existentes. Não se pode citar o histórico do MMA, sem mencionar o UFC, uma vez que as histórias de ambos se entrelaçam com o início da popularização do esporte, a partir das transmissões do UFC 1, ainda com a Família Gracie sob o comando da instituição. Em 2001, a empresa foi vendida para três sócios: Frank Fertitta, Lorenzo Fertitta e Dana White. Após tal mudança de gestão, o MMA mundial, representado popularmente pelo UFC, sofreu profunda

reestruturação, deixando para trás o estigma de “Vale-Tudo” com a introdução de normas de segurança. Para que a prática do MMA possa considerada como lícita e tutelada pelo aparato jurídico, esta deve se vincular não apenas às regras internas e regulamentos que traduzem a sua melhor performance, mas também estar subordinada aos ditames constitucionais que propagam a dignidade da pessoa humana em sua plenitude. A busca pela concretização da dignidade da pessoa humana é considerada como um valor para todo o ordenamento jurídico pátrio, através dos efeitos que irradiam do texto constitucional da Carta Magna de 1988. Tal conceito de dignidade foi mais bem conceituado pelo doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet, para o qual é: “[...] qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem à pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existentes mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.” (SARLET, 2007, p.62)

Assim, mesmo que a dignidade da pessoa humana possa limitar o exercício da autonomia privada dos indivíduos, o que se refletiria na relativização do direito à integridade física do atleta que pratica o MMA, é a própria que permite o alcance do respeito às condições fundamentais de liberdade e igualdade, além de ser mola de propulsão da intangibilidade da vida humana. (FARIAS; ROSENVALD, 2013). Portanto, ao lutar, o atleta de MMA está protegido constitucionalmente para o exercício da sua profissão, com o fulcro no seu direito de disposição do próprio corpo. Concluem a lição os brilhantes autores: “Efetivamente, não parece existir interesse público no controle dos atos (genérico) de disposição da integridade física. A regra há de ser a autonomia privada, com um controle estatal quando houver uma periclitação da dignidade do titular.” (FARIAS; ROSENVALD, 2013, p.212).

Além da tutela jurídica estatal, pode-se inferir a existência de normas de controle e proteção do atleta, como requisitos para a atuação profissional, com o objetivo de evitar lesões graves, problemas de saúde e de criar uma padronização. São licenças, exames médicos regulares, aprovação das luvas, classes de pesos, tempos de rounds predeterminados, juízes e equipe médica de prontidão para interromper e oferecer os primeiros socorros, além de diversas especificações para luvas, arenas e juízes. Como exemplo, segue uma passagem do Estatuto do UFC: “Ringue – Requisitos e Equipamento para a área de luta - Um ringue usado para uma competição ou exibição de artes marciais mistas deve ter os seguintes requisitos:

(i) O ringue não deve ter menos do que 20 pés (6.1 metros) de cada lado e mais do que 32 pés (9.75 metros) de cada lado dentro da área das cordas. Um corner terá uma designação azul e o corner diretamente oposto terá uma designação vermelha.” (UFC, 2008).

Existe hoje uma tentativa por parte da comunidade internacional de MMA para que este possua regras universais, válidas para todas as competições e países adeptos da modalidade esportiva. Tal intenção seria extremamente favorável à tutela jurídica do esporte, pois o consentimento informado dos atletas poderia ser mais facilmente observado e colhido como meio de prova em seu favor. Contudo, enquanto isso não ocorre, as regras são criadas por cada instituição/empresa mantenedora da modalidade, dentre as quais podem ser citadas as empresas UFC e PRIDE. A maioria das normas é comum a todos os eventos de MMA, com pouquíssimas diferenças entre as regras. Um dos locais precursores na criação de regras mais rígidas de segurança para os lutadores foi o estado norte-americano de New Jersey, através da New Jersey Athletic Conference, em um documento conhecido como “Mixed Martial Arts Unified Rules of Conduct”, criado para o UFC e que serve de base para todos os eventos desde a sua existência. Dentre as entidades representativas, é importante citar a International Mixed Martial Arts Federation (IMMAF), com sede na Suécia, a World Mixed Martial Arts Association (WMMAA), sediada em Mônaco, além de outras entidades precursoras nacionais como a Confederação Brasileira de MMA (CBMMA) e a Comissão Atlética Brasileira de MMA. Apesar das regras bastante definidas, embora esparsas, a modalidade esportiva ainda é vorazmente criticada pelos atos de suposta violência exacerbada e pelo alto número de lesões. Contudo, um estudo realizado nos EUA e publicado pela Journal of Sports Science and Medicine constatou que o número de lesões existentes pertence aos padrões de outros esportes que utilizam a luta corporal como ponto fulcral, tais como o boxe.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A tutela jurídico-constitucional capaz de assegurar a dignidade humana plena aos praticantes do MMA é aquela capaz de proteger as liberdades individuais com o foco no desenvolvimento humano contínuo e progressivo. Não é possível que vivenciar uma sociedade pós-moderna ainda seja conceber padrões homogeneizantes de cultura e tipos sociais já definidos como estanques e perpetuadores do status quo. As modalidades esportivas, mesmo as consideradas violentas, são capazes de trazer o reconhecimento profissional a muitos, bem como dão concretude aos contornos necessários à felicidade para os atletas amantes do esporte. É óbvio que limitações são necessárias ao uso

pleno do próprio corpo, entretanto, é cediço demonstrar que até mesmo os limites normativos podem ser questionados quando da sua aplicação à pretensa indisponibilidade dos direitos da personalidade. O direito civil constitucionalizado e que busca o alcance da dignidade humana como valor norteador do sistema jurídico deve ser o mesmo que revisita regularmente os conceitos que se fundam na lei, na ordem pública, na moral e nos bons costumes, tendo em vista que todas essas categorias podem sofrer transformações a partir das conjecturas admitidas como verdadeiras, em certo contexto espacial e temporal. Não deverão existir óbices, tampouco covardia academicista, a fim de que a comunidade jurídica possa apontar instrumentos legislativos e valores jurídicos que entrem em confronto com a constitucionalização das relações privadas em prol da dignidade plena. E a prática do MMA se revela não apenas lícita e possível quanto à sua juridicidade, mas também se traduz constitucional à medida que aponta a liberdade jurídica do indivíduo e o exercício pleno da autonomia privada na execução de negócios jurídicos válidos que sustentam economicamente o atleta e, além de tudo, dão realização pessoal e prazer aos seus desejos enquanto ser humano merecedor da tutela da dignidade.

6. REFERÊNCIAS

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