Valorização do capital (já) como luta de classes: reflexões teóricas sobre a mais-valia através da escola althusseriana

May 28, 2017 | Autor: Alexandre Pimenta | Categoria: Sociology, Marxism, Louis Althusser
Share Embed


Descrição do Produto

Valorização do capital (já) como luta de classes: reflexões teóricas sobre a mais-valia através da escola althusseriana Alexandre Marinho Pimenta*

Resumo: Buscar-se-á com este trabalho uma reflexão teórica sobre o conceito de mais-valia na teoria marxista do valor. Com a mais-valia se capta, em sua especificidade, todo o constructo de Marx sobre o funcionamento do modo de produção capitalista e suas principais contradições. Além do retorno a Marx (1997a, 1997b), serão utilizadas, sobretudo, as leituras de Althusser (1999) e Balibar (1975a, 1975b). As concepções da escola althusseriana, marcadas pela recuperação da tese da primazia das relações de produção, colaborarão para destacar o papel da mais-valia em Marx para além do excedente (quantitativo) de valor via compra e utilização da força de trabalho assalariada. Além da introdução, o artigo se divide nas seções: o “marxismo” sob a primazia das forças produtivas e o caráter “neutro” da produção; a “descoberta” da mais-valia por Marx e seus impactos teóricos e políticos; as contribuições de althusserianas sobre a mais-valia e o retorno da luta de classes na produção e as considerações finais. Palavras-chave: teoria do valor marxista, mais-valia, luta de classes. Abstract: This work consist in a theoretical reflection on the concept of surplus value in Marxist theory of value. Starting from surplus value is possible to see the whole construct of Marx on the operation of the capitalist mode of production and its main contradictions in its specificity. Besides the return to Marx (1997a, 1997b), will be used central readings of Althusser (1999) and Balibar (1975a, 1975b). The conceptions of the “althusserian school”, marked by the recovery of the thesis of the primacy of relations of production, collaborate to highlight the role of surplus value in Marx beyond the quantitative value by buying and using the assalaried labor force. Besides the introduction, the paper is divided into sections: “Marxism” under the primacy of the productive forces and the “neutral” character of production; the “discovery” of surplus value by Marx and his theoretical and political impact; the contributions of althusserian on the surplus value and the return of class struggle in production and final considerations. Keywords: marxist theory of value, surplus value, class struggle. *

Graduado em pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (UnB), na linha de pesquisa Educação, Ciência e Tecnologias. . II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

59

A luta de classes é o “elo decisivo” ” para compreender O capital. [...] Expliquemos em poucas palavras o princípio essencial da tese de Marx. Não há produção econômica “pura”, não há circulação (intercâmbio) “pura”, nem há distribuição “pura”. Todos estes fenômenos econômicos são processos que ocorrem sob relações sociais que são, em última instância, isto é, sob suas aparências, relações de classe, e relações de classe antagônicas, isto é, relações de luta de classes. Althusser (1983: 12)

Introdução A inspiração deste artigo se deve, em grande parte, ao trabalho O primado das relações de produção — uma contribuição de Althusser e Balibar para dilemas atuais, Garcia (2011), apresentado na Anpocs. Ali, Garcia, amparando-se nas leituras de Althusser e Balibar, vai problematizar sobre a utilização dos conceitos de classes sociais e luta de classes na contemporaneidade. Demonstra que as interpretações que focam nas transformações tecnológicas das forças produtivas como principal fator de mudanças históricas acabam por abandonar, erroneamente, o paradigma das classes. Para o autor, a escola althusseriana e sua retomada da tese da primazia das relações de produção, sãos essenciais para compreender a determinação sociopolítica da técnica e do poder produtivo, e da centralidade da luta de classes no próprio seio da produção. Vai concluir, então: “[...] é o primado da relação de produção que permite explicar as transformações das forças produtivas como mudanças das condições da luta de classes” (versão online). Balibar (1975b: 127), importante nome do que chamamos aqui de “escola althusseriana”, chega à conclusão muito semelhante, ao dizer: “não há processo social que esteja situado para cá ou para lá da luta de classes”, não existindo nenhuma necessidade natural ou ideal preexistente na história. Nesse quadro, caberia à teoria marxista, principalmente, explicar e desenvolver o conceito da luta de classes em suas formas concretas e diversas articulado aos modos de produção/exploração (Balibar, 1975b: 130). O trabalho de Garcia não é um evento isolado. A retomada da escola althusseriana tem se intensificado nas últimas décadas no Brasil e no mundo.1 Após uma onda fortemen-

1

É praticamente inviável analisar os teóricos do pós-marxismo e do pós-estruturalismo sem tomar como um dos seus principais pontos de referência a teoria althusseriana. Para ficar em poucos e importantes nomes, lembremos-nos de Slavoj Zizek, Alain Badiou, Jacques Rancière, Goran Therborn... Vários, inclusive, ex-alunos de Althusser. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

60

te crítica, e por vezes caricatural, ao marxismo francês décadas atrás, nosso país tem retornado às contribuições althusserianas. Um exemplo marcante é a recente publicação do livro de Motta (2014): A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista. Ali, ele comenta: [...] a atual conjuntura, diga-se de passagem, felizmente não [é] mais a mesma dos anos 1980, na contraposição a essa posição dogmática [antialthusseriana] [...], uma enxurrada de textos traduzidos de Althusser, ou artigos favoráveis sobre Althusser, de autores estrangeiros e brasileiros, estava sendo publicada — incluindo revistas dedicadas a seu pensamento —, sem falar de diversos seminários e colóquios em diversos países da América [...] que analisavam sua obra. (Motta, 2014: 4).

Esse debate em torno das contribuições da escola francesa ao marxismo toca em questões centrais da teoria marxista hoje. Buscamos com esse trabalho dar continuidade a essas reflexões, utilizando autores como Althusser e Balibar para revitalizar da teoria valor marxista e na sua ruptura radical com a problemática da economia política clássica, trazendo a tona também elementos adicionais ao artigo de Garcia. Neste trabalho escolhemos trabalhar teoricamente com o conceito de mais-valia. A escolha não é arbitrária. É através da “descoberta” da mais-valia que Marx causará uma inflexão no legado clássico da teoria do valor da economia política burguesa, e munirá a política da classe operária de um caráter científico, superando a crítica “socialista” de cunho moral, vigente até então. Com a mais-valia se capta, em sua especificidade, todo o constructo de Marx sobre o funcionamento do modo de produção capitalista e suas principais contradições. Além do retorno a Marx ([1867] 1997a, 1997b), serão utilizadas, sobretudo, as leituras de Althusser (1999) e Balibar (1975a, 1975b). As concepções da escola althusseriana colaborarão para destacar o papel da mais-valia em Marx para além do excedente (quantitativo) de valor via compra e utilização da força de trabalho assalariada. A mais-valia se ilumina a partir dessas leituras como fundamento para pensar a luta de classes no capitalismo na dimensão não só econômica, mas também política e ideológica; como processo determinante das contradições no todo social. Ou seja, como categoria central da ciência histórica de Marx e do seu projeto político. Ao colocar a mais-valia, esse processo de valorização do capital e, concomitantemente, exploração e subordinação do trabalho assalariado, como solo da luta de classes no capitalismo, as próprias teorias das classes sociais e do processo de desenvolvimento histórico capitalista se alteram. A luta de classes não se mostra mais como um processo secundário na história e a posteriori, somente no confronto entre organizações políticas/sindicais das classes “para-si”, sob o solo pretensamente objetivo (isto é, II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

61

“neutro”) do “desenvolvimento das forças produtivas”, mas se funde à própria existência das classes e ao processo produtivo, como um processo objetivo (necessário, constitutivo), que se reproduz cotidianamente na produção capitalista mesma, iniciando-se no e pelo ato da produção. Como dizia Althusser (1978: 27), “exploração já é luta de classes”, ou seja, o ato (ativo) de valorização do capital como ato primeiro, principal e decisivo da luta de classes no capitalismo, e não como dado sem contradição ou história. O artigo se divide nas seções: o “marxismo” sob a primazia das forças produtivas e o caráter “neutro” da produção; a “descoberta” da mais-valia por Marx e seus impactos teóricos e políticos; as contribuições althusserianas sobre a mais-valia e o retorno da luta de classes na produção, e suas considerações finais. Cabe desde já apontar uma importante debilidade do trabalho no que diz respeito à curta extensão da obra de Marx avaliada, função das limitações de espaço deste artigo. Capítulos essenciais dos livros III e IV, e também dos Grundrisse, e mesmo temas fundamentais como a crise, por exemplo, ficaram de fora, dando-se preferência apenas a partes que achamos fundamentais do livro I.

O “marxismo” sob a primazia das forças produtivas e o caráter “neutro” da produção O debate sobre a questão das forças produtivas atravessa toda a história do marxismo. Uma corrente interpretativa muito comum busca compreender o materialismo histórico através da dialética entre forças produtivas e relações de produção, tal qual Marx (1977) o teria dito no famoso Prefácio à contribuição à crítica da economia política. As forças produtivas seriam o principal fator do desenvolvimento histórico humano, na qual as relações sociais de produção se adequariam ou não.2 Esse encaixe entre o nível da técnica e do poder produtivo e o seu “apêndice” social definiria uma época como revolucionária ou não. Revolução seria o romper das forças produtivas com relações de produção anacrônicas. As forças produtivas, mecanicamente e de fora, afetariam as relações de produção e, por conseguinte a superestrutura político-jurídica e ideológica. Ou, como diz Balibar (1975b: 22-23), as revoluções viriam “[...] sob o efeito duma tendência natural para o desenvolvimento das forças produtivas e da produtividade do trabalho”, e “atrapalhadas” por fatores não econômicos a partir de um dado momento nessa evolução.

2

Para Magaline (1977: 49-49), no Prefácio ainda não se trata do conceito relações de produção, apenas desenvolvido em O capital. O é apenas formalmente. Seu conteúdo ainda diz respeito ao que Marx/Engels denominavam, em A ideologia alemã de “formas de troca” ou de “sociedade civil” - que também eram vistas como entraves a serem substituídos num dado momento de acordo com o avanço das forças produtivas. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

62

O modo de produção capitalista teria, portanto, a primazia das forças produtivas ou seja, do nível da técnica e do poder produtivo, quase independente das práticas sociais diversas. Estaria assim, fechado o grosso da teoria da história do marxismo. Caberia ao proletariado, no capitalismo, “esperar” o avanço das forças produtivas, o seu amadurecimento agudo, já que a história seria um progresso linear e absoluto, tal qual pregava o evolucionismo da II Internacional. Ou, como pregou o revisionismo soviético, o socialismo venceria na disputa pacífica (competição/concorrência) com o capitalismo no campo da produtividade do trabalho. O marxismo seria um desenvolvimentismo — uma apologia ao crescimento econômico das “nações” ou dos “seres humanos”, benéfico a todas as classes pois acima delas, no final das contas —, com o objetivo de evoluir as forças produtivas neutras e depois alterar juridicamente quem seria a classe “proprietária”. E as “condições” materiais da revolução se limitavam a um nível absoluto, pré-determinado, de produtividade, não entendido em termos históricos e sociais, pertencentes a um conjunto de classes, mas de toda a humanidade. Diz Magaline (1977: 26), concluindo, que “todas estas definições pressupõem que se possa considerar o ‘desenvolvimento das forças produtivas’ como o motor relativamente autônomo do movimento histórico”. Esse elemento “dinâmico” seria considerado seja num nível objetivo, seja num nível subjetivo - através dos grandes homens, inovadores/inventores, como em Schumpeter (Magaline, 1977: 152). Mas sempre como fator externo e não imanente do processo social e produtivo. Essa postura não vinha sozinha. Pressupostos filosóficos embasam tudo isso. Uma das “regras” da dialética (hegeliana) é a da negação da negação, a incorporação/superação através de uma síntese, no caso, do progresso capitalista.3 No caso em análise, do progresso capitalista. Assim, o socialismo viria de uma linha contínua do progresso capitalista. Seria seu desdobramento lógico, através da contradição (não correspondência), e sua superação, entre forma e conteúdo encarnada nas realidades das forças produtivas e relações de produção. As forças produtivas em Marx ganhariam ares da Ideia de Hegel (Althusser, 1999: 232). O desenvolvimento das forças produtivas apa-

3

Nunca é demais lembrar a crítica do jovem Lenin às tríades hegelianas: “Leyendo publicaciones marxistas, el señor Mijailovski ha topado continuamente con el ‘método dialéctico’ en la ciencia social, con el ‘pensamiento dialéctico’, siempre en la esfera de las cuestiones sociales (a la que sólo nos referimos), etc. En su simpleza espiritual (y menos mal si fuese sólo por simpleza) creyó que este método consistía en resolver todas las cuestiones sociológicas según las leyes de la tríada de Hegel. Si se hubiera fijado un poco más, por fuerza se habría convencido de lo absurdo de esta idea. Marx y Engels llamaban método dialéctico — por oposición al metafísico —, sencillamente al método científico en sociología, consistente en que la sociedad es considerada un organismo vivo en constante desarrollo (y no algo mecánicamente cohesionado y que, por lo mismo, permite toda clase de combinaciones arbitrarias de elementos sociales aislados), para cuyo estúdio es necesario hacer un análisis objetivo de las relaciones de producción, que constituyen una formación social determinada, e investigar las leyes de su funcionamiento y desarrollo”. ([1894] 1981: 171). II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

63

rece “como uma tendência universal, natural, situada aquém ou além das conjunturas históricas concretas” (Balibar, 1975b: 24). A luta de classes ganharia um papel secundário ou invisível nessa teleologia. Refletir sobre tal polêmica é um grande desafio, sobretudo numa conjuntura na qual diversas faces do desenvolvimentismo (à direita e à “esquerda”) hegemonizam o debate político e acadêmico. Essa postura também é extremamente arraigada tanto no movimento operário quanto no nível teórico. O discurso economicista dos representantes internacionais do capital lembra muito os pressupostos dessa posição. Os organismos internacionais enfatizam a adesão às novas tecnologias da informação e comunicação (TICs) assim como à chamada sociedade do conhecimento como uma necessidade quase natural para todas as nações. Devemos nos adequar a essa força irresistível que é das forças produtivas em seu caminhar. E é muito comum também pensarmos espontaneamente que as alterações no mundo social e do trabalho se dão por causa das forças produtivas, da revolução na técnica, da inovação tecnológica etc. E, finalmente, as tecnologias sendo vistas como positivas, e, no máximo, atrasadas seriam apenas as práticas sociais capitalistas que fazem “uso” delas. Essa posição da primazia das forças produtivas no desenvolvimento histórico e, mais especificamente, do modo de produção capitalista, é defendida teoricamente na contemporaneidade, por exemplo, pelo marxismo analítico de Cohen (2010). Polemizaremos rapidamente com Cohen como um exemplo recente da tese do primado das forças produtivas que pretende se colocar dentro do campo do marxismo. Em seu artigo “Forças produtivas e relações de produção”, que visa resumir sua interpretação do materialismo histórico presente em seu livro Karl Marx’s theory of history (1978), Cohen (2010: 63) afirma: [...] postulo que, para Marx a história é, fundamentalmente, o crescimento do poder produtivo humano e que formas de sociedade surgem e desaparecem conforme possibilitem e promovam ou inibam e dificultem esse crescimento”. E complementa: “as forças produtivas são as edificações e os meios utilizados no processo de produção: meios de produção, de um lado, e força de trabalho, de outro” (Cohen, 2010: 63). Cohen reconhece que as relações de produção são relações de poder econômico, “desigualmente” repartida entre os sujeitos e que recai sobre os meios de produção e força de trabalho e sua utilização. Mas como o “crescimento do poder produtivo humano” pode ser uma variável independente, que “causa” as relações de produção, se estas dizem respeito ao uso e dominação dessas forças? Voltemos às teses centrais de Cohen: 1) o nível de desenvolvimento do poder produtivo determina quais relações de produção (isto é, que tipo de estrutura econômica) proII Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

64

moveriam o poder produtivo, e 2) as relações de produção que promovem o poder produtivo prevalecem por promover o poder produtivo, segue-se que 3) o nível de desenvolvimento do poder produtivo explica a natureza da estrutura econômica (Cohen, 2010: 69, grifo nosso).

Na citação acima vemos uma potente determinação das forças produtivas sobre as relações de produção. Vale ressaltar aqui a visão por demais mecânica e funcional das interações entre relações de produção, luta/poder entre as classes, forças produtivas. Fica nítido o esforço de automatizar as forças produtivas do processo de dominação de classe, e colocá-las como “motor” central do desenvolvimento histórico. Como grifamos, as relações de produção estariam a serviço do “poder produtivo” (geral, humano). As relações de produção, as classes presentes nelas e a própria divisão social do trabalho, seriam “servas” da produtividade geral, o grande objetivo e finalidade da história geral e humana. Trazendo para o terreno capitalista é quase como dizer que a burguesia estaria a serviço da produtividade e não o inverso, como o próprio discurso ideológico dela e da economia política o fazem parecer. Ou, num outro extremo, o proletariado precisa fazer a revolução porque a burguesia não faz “bom uso” do poder produtivo alcançado. A luta de classes seria uma espécie de disputa de gestão das forças produtivas, que caminham por si só e acabam por “escolher” quem irá lhe servir.4 Para se contrapor ao pretenso caráter “neutro” da produção capitalista, regressaremos ao debate em torno sobre o conceito de mais-valia que, como dissemos, é o grande diferenciador da teoria de Marx com a economia política clássica e as teorias econômicas burguesas. Veremos que, com a mais-valia, Marx rejeita que no capitalismo as forças produtivas e a produtividades seriam neutras e independentes das relações de produção. Ao contrário estas últimas possuiriam uma primazia no modo de produção. Essa reviravolta possibilita vislumbrar os contornos de luta de classe já presentes na produção e na sua organização. E esses elementos serão enfatizados na leitura da escola althusseriana, com a qual complementaremos a própria análise de Marx. Eis as questões: a descoberta original da teoria do valor marxista corroboraria com a primazia das forças produtivas? Ou demoliria o paradigma da “do poder produtivo geral” como atividade fora da luta de classes no capitalismo?

4

Não entraremos na tese de Cohen sobre o papel da luta de classes para não prolongar a discussão. Em seu fundamental ela não altera suas teses. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

65

A “descoberta” da mais-valia por Marx e seus impactos teóricos e políticos Para Engels, em discurso frente ao túmulo de Marx, seriam duas as descobertas do Mouro: de que toda sociedade humana repousa sobre uma base material; da mais-valia, lei específica do modo de produção capitalista. Segundo Althusser (et alii, 1979), o Marx de O capital, leitor da economia política, inaugura uma nova forma de leitura. Busca ver o que a economia política clássica (burguesa) não vê; o que esta produziu mas não consegue enxergar.5 E aí estaria sua originalidade: ler prestando atenção nos não ditos, nas lacunas, nas contradições, no que é invisível para certo paradigma. Althusser relembra a comparação que Engels, no prefácio do livro II de O capital, faz de Marx com Lavoisier: a revolução teórica de Marx, partindo da teoria do valor clássica e descobrindo a mais-valia, é semelhante à revolução na química feita por Lavoisier, ao partir da química flogística e “descobrir” o oxigênio. Ambos “desbloquearam” a ciência vendo o que seus antepassados produziram, mas não viram. Partiriam do já existente, mas o implodiriam ao “descobrir” um elemento que perturbaria todo o paradigma anterior. E em Marx essa ruptura não carregava só pretensões teóricas, mas práticas, ou seja, é teórica e política (Balibar, 1975a: 12). A leitura marxiana da economia política, “leitura sintomática”, não visa a complementaridade — uma nova economia política.6 Mas uma ruptura de problemática, como diz o subtítulo de O capital: crítica da economia política. Partindo da teoria do valor trabalho clássica, que se contrapõe às teorias econômicas que abandonaram a análise do valor (marginalismo), Marx vai desdobrá-la para equacionar o problema do excedente econômico — e sua forma peculiar dentro do modo de produção capitalista. Começa pela constatação do duplo caráter do trabalho na produção de uma mercadoria. Depois desdobra para a resolução do enigma do dinheiro e da forma de manifestação da mercadoria, rompendo com as ilusões da esfera

5

Althusser (1979a: 17-19): “Numa primeira leitura, Marx lê o discurso de seu predecessor (Smith, por exemplo) através de seu próprio discurso”. Já uma segunda demonstra que as falhas da economia política não partem de uma falta dela, interna, mas “pelo contrário, (d)aquilo que não lhe falta”. Ver o que Smith e Ricardo não viram depende de outro olhar que não carregue o não-visto interno da própria problemática clássica da economia política.

6

Balibar (1975b: 15): “A ideia de que o marxismo poderia “resolver” as dificuldades da teoria econômica é tão absurda como a ideia de que os capitalistas poderiam utilizar a teoria marxista para gerir a acumulação de capital”. Sua descoberta central, a mais-valia, como não poderia ser diferente é vista “por excelência, [como] um conceito “anticientífico”, “especulativo”, despido de todo o valor “operatório”” (1975b: 16) para o “mainstream”. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

66

da circulação que eclipsa para seus agentes os condicionantes sociais da produção responsáveis pela criação e determinação do valor.7 Resolvendo o “problema” da circulação e da origem do dinheiro, parte para o problema da origem do capital. O capital, que é? Como se torna possível sua existência? A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias, comércio, são os pressupostos históricos sob os quais ele surge. Comércio mundial e mercado mundial inauguram no século XVI a moderna história da vida do capital. (Marx, 1997a: 267).

Ou seja, o capital existe num terreno histórico da produção de mercadorias, que pressupõe divisão do trabalho e troca: circulação. O dinheiro é a encarnação pura do valor, e sob essa forma o capital aparece. A equivalência geral do dinheiro se choca, desde o início, com barreiras tradicionais de modos de produção pré-capitalistas. Para sua ampliação precisa romper formas sociais passadas e impor sua dominação. Na circulação, no entanto, o “dinheiro como capital” se difere do dinheiro sem essa pretensão. O primeiro “pisa no palco” do mercado para se engrandecer — compra mercadoria para, depois, vender com um excedente, a mais-valia (D—M—D’). A finalidade capital (no uso de seu agente, o capitalista) não é a obtenção de uma mercadoria com valor de uso visado, mas sim mais-valor: Como portador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro torna-se capitalista. Sua pessoa, ou melhor, seu bolso, é o ponto de partida e o ponto de retorno do dinheiro. O conteúdo objetivo daquela circulação — a valorização do valor — é sua meta subjetiva, e só enquanto a apropriação crescente da riqueza abstrata é o único motivo indutor de suas operações, ele funciona como capitalista ou capital personificado, dotado de vontade e consciência. O valor de uso nunca deve ser tratado, portanto, como meta imediata do capitalismo (Marx, 1997a: 273).

Mas novamente o campo da circulação esconde segredos e contradições. Como é possível uma compra e venda gerarem mais valor, se, de acordo com a lei do valor, só é possível trocar valores iguais? “Onde há igualdade não há lucro”. As violações do capital comercial ou do roubo não geram valor, apenas mudam de mão o seu possuidor. Mas ao mesmo tempo, o capital não precisa da circulação e não é só lá que se realiza?

7

O que Marx define como fetichismo nada mais é que o apagar “no próprio resultado” (1997a: 216) os próprios processos e mediações que estão por detrás da mercadoria ou dinheiro. A forma mercadoria necessita de uma equivalência entre todos os trabalhos concretos, tornando-os abstratos e por isso gera na circulação uma independência aparente dela mesma, que escamoteia uma dependência. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

67

Então, o “capital não pode, portanto, originar-se da circulação e, tampouco, pode não originar-se da circulação. Deve, ao mesmo tempo, originar-se e não se originar dela.” (Marx, 1997a: 283). E se o dinheiro não pode se alterar a si mesmo, sem circulação, e ao mesmo tempo na circulação não há criação de valor, então a solução se dá no valor de uso da mercadoria que aparece no processo de valorização (produção de mais-valor, ou mais-valia) dentro da própria circulação (D—M—D’). É ali que a modificação deve ocorrer e impactar no valor final que é mais que o original. O capitalista precisa ir ao mercado procurar um valor de uso específico que faz “brotar” valor. E se o valor só pode ser produzido pelo trabalho socialmente determinado, essa mercadoria só pode ser a força de trabalho. Contudo, força de trabalho “solta e solteira” — e não o trabalho em si —, já expropriada de seus meios de subsistência e pronta para se vender.8 Ou seja, histórica e socialmente definida. E no jogo entre o pagamento do valor da força de trabalho (salário, ou quantidade de horas necessárias para sua própria reprodução) e o valor produzido por essa força de trabalho numa jornada (salário mais o trabalho além de sua reprodução), na esfera da produção, o capitalista consegue seu objetivo: cria um produto de maior valor que do capital investido inicialmente, adiciona valor vivo em valor morto — e tudo isso respeitando a lei do valor. O capitalismo não se diferencia pela existência da mercadoria, mas pela produção de mercadoria que visa mais-valia, de forma contínua e ampliada.9 Diz Marx ([1867] 1997a: 410): “[...] a produção de mais-valia ou a extração de mais-trabalho constitui o conteúdo e o objetivo específico da produção capitalista”. E isso precisa ser produzido historicamente o que inclui a expropriação dos trabalhadores diretos, a subordinação gradual destes à força do capital, as revoluções industriais em prol dessas novas relações de produção, a “aceitação” ideológica das formas societais geradas por esse modo de produção etc. Marx se interessa pela forma particular de organização social do trabalho que determina, qualitativamente, a formação do valor, e registra que essa forma particular implica “um antagonismo permanente, inconciliável” (Balibar, 1975b: 44): o capitalista se mantém pela busca da mais-valia, que só provém do mais-

8

Pois é certo que (Marx, 1997a: 287): “A Natureza não produz de um lado possuidores de dinheiro e de mercadorias e, do outro, meros possuidores das próprias forças de trabalho. Essa relação não faz parte da história natural nem tampouco é social, comum a todos os períodos históricos. Ela mesma é evidentemente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da decadência de toda uma série de formações mais antigas da produção social.”. Capítulos à frente Marx demonstrará, através da assim chamada acumulação primitiva, o processo violento e contingente da expropriação dos meios de produção dos trabalhadores diretos, usando como exemplo a Inglaterra. E lá também comenta: “na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes” (Marx, 1997b: 358).

9

Ver acumulação ampliada do capital em Marx, 1997b). II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

68

-trabalho, do mais-produto expropriado do trabalhador assalariado;10 só se mantém perpetuando as relações capitalistas, a exploração do trabalho. Diferentemente de outros modos de produção, o excedente (mais-trabalho) não se dá por coação externa (escravidão, servidão) e através de um mais-produto palpável e separável no tempo-espaço, mas é concomitante ao processo de produção, como mostra Marx nos capítulos 5 e 8 do Livro I. O “produtivo” não existe em si, mas sob/ para uma forma social — dentro das relações de produção capitalistas. Ou seja, as forças produtivas a serviço de determinadas relações de produção capitalistas, relações estas de classes: A produção capitalista não é apenas produção de mercadoria, é essencialmente produção de mais-valia. O trabalhador produz não para si, mas para o capital. Não basta, portanto, que produza em geral. Ele tem de produzir mais-valia. Apenas é produtivo o trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital (Marx, 1997b: 138).

O capital só existe e se expande sob a condição de proletarizar as massas, subordinando-as a seu processo11 (apesar de “compradas” individualmente, na ilusão da persona jurídica) e com um impulso a diminuir o valor da força de trabalho ou ampliar o tempo que esta trabalha para si (mais-valia relativa e absoluta) — sem isso sua valorização e posterior acumulação, dentro da produção de mercadorias, não se realizam. Há uma tensão constante entre trabalho e capital: o próprio modo de produção é feito de um antagonismo, de uma luta objetiva. A mais-valia não se realiza sem uma condição sócio-histórica específica, sem produzir e reproduzir constantemente as condições para que as relações de produção desse modo de produção se tornem possíveis, inclusive revolucionando as condições técnicas e sociais para aumentar a produtividade do trabalho (primeiro por capitais individuais, depois, pela concorrência, se generalizando de forma contraditória e com resistências), não a fim de presentear a humanidade ou servir a força produtiva, mas como diz Marx, “[...] para reduzir o valor da força de trabalho, e assim encurtar parte da jornada de trabalho necessária para a reprodução desse valor (mais-valia relativa)” (1997a: 431).

10

A economia política resolve tal antagonismo colocando todas as rendas em pé de igualdade: o capitalista é apenas um poupador e o lucro algo merecido por correr riscos. Mais uma vez, toda a teoria de Marx vem desconstruir esse paradigma.

11

Não entraremos nas questões relativas ao exército de reserva e da composição orgânica do capital. Embora a primeira esteja diretamente ligada com a produção de mais-valia relativa, desvalorização da força de trabalho de alguns setores da classe trabalhadora e regulação objetiva e subjetiva do salário na luta de classes na produção, como aponta Magaline (1977, p. 79-80). E ambas se inserem nas contradições e tendências mais gerais do modo de produção capitalista. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

69

Isso quer dizer que a produção e o próprio desenvolvimento das forças produtivas são atravessadas pela luta de classes — a postura ativa do capitalista e a posterior e constante resistência da mão de obra. A luta de classes é um processo objetivo, iniciado e formado/formador do processo produtivo. As benesses do desenvolvimento induzido pela forma particular de produção não são “democratizadas”, esse não é o objetivo. Marx, ao falar da manufatura, parte interna da seção sobre mais-valia relativa, não por acaso, aponta para uma “deformação física e espiritual” (1997a: 477) dos trabalhadores expropriados de seus meios e de seu saber sobre a produção. E claro, o interesse da economia política não é ver isso, mas sim a ampliação da produção e maior controle do capital: um desenvolvimento (capitalista, e do capital) “a custo dos trabalhadores” (idem: 478) que é velado enquanto tal. A taxa de mais-valia (proporção em que se valorizou o capital variável) não é, para Marx, um mero item contábil de produtividade do capital, um excedente quantitativo, mas o grau de exploração da força de trabalho pelo capitalista (Marx, 1997a: 332), o quanto este, através de uma justa e respeitosa (diante da lei do valor) relação mercantil, explora na forma capitalista o trabalho (assalariamento). A produção capitalista é ao mesmo tempo dominação e exploração capitalista. Não existe uma mera justaposição entre produção (geral) e exploração, entre produção e valorização-exploração. O assujeitamento do trabalhador (“tornar-se capital variável”, sua força produtiva como força do capital) que vende sua força de trabalho numa jornada precisa ser, desde o primeiro momento, um ataque organizado do capitalista para reproduzir, justificar e organizar aquela relação — contra toda e qualquer resistência.12 Pois, como afirma Marx, fala, além do Estado que o representa, o capitalista tem seu próprio código penal (1997a: 313) no chão da fábrica, seu próprio despotismo (1997a: 448), contra o risco eminente de seu valor inicial investido não voltar para seu bolso acrescido de um mais valor. Na produção da mais-valia, na produção sob a forma capitalista, há um antagonismo, a luta de classes mesma no nível material e mais elementar, que define os movimentos centrais desse modo de produção: O capital tem um único impulso vital, o impulso de valorizar-se, de criar mais-valia, de absorver com sua parte constante, os meios de produção, a maior massa possível de mais trabalho. O capital é tra-

12

Balibar (1975b: 131): “[...] a luta de classes não começa com a ‘resistência’ da classe operária à exploração sob suas diversas formas [...] mas logo com estas próprias formas [...]. há sempre antes de mais nada uma luta de classe sistemática do capital contra o proletariado, que é o motor permanente do desenvolvimento das relações de produção capitalista, e, sob este desenvolvimento, para o tornar possível, do desenvolvimento das forças produtivas, portanto das formas de organização e instrumentos de trabalho mais avançados.”

II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

70

balho morto, que apenas se reanima, à maneira dos vampiros, chupando trabalho vivo e que vive tanto mais quanto mais trabalho vivo chupa. O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista (Marx, [1867] 1997a: 347).

Seria ainda possível falar de desenvolvimento da produtividade humana, de progresso das forças produtivas rompendo relações de produção? É a economia política clássica, por Marx implodida, que se interessa em falar em produção em geral, sem tocar no fato de que, no capitalismo, toda produção, por ser valorização, é exploração dos trabalhadores e construção de “novas condições de dominação do capital sobre o trabalho” (Marx, 1997a: 478). Ao contrário, se o “desenvolvimento” das forças produtivas contrariar a produção de mais-valia e a acumulação ampliada do capital, será ela que bloqueia o desenvolvimento do modo de produção, seu impulso principal. Balibar (1975b: 113) chega a afirmar: “em cada período histórico do capitalismo, uma fração da burguesia tem tendência para dominar todas as outras, e sujeitá-las no processo de exploração e acumulação: precisamente a que representa um “progresso” nas formas de acumulação, um “progresso” no desenvolvimento da exploração”. Segundo Magaline (1977: 143), em sua visão abstrata e a-histórica da produção e dos “fatores econômicos” e sua utilidade racional num regime de trocas determinado subjetivamente, a economia política é um “disfarce da essência do modo de produção capitalista, o processo de criação de mais-valia e de apropriação do sobretrabalho”. Isso não quer dizer que esse processo não carregue contradições e crises. Afinal, o que se buscou demonstrar foi que esse desenvolvimento das forças produtivas, e do todo social, se insere num antagonismo estrutural definido pelas relações de produção, que se insere na luta de classes mais ampla e conjunturalmente diversa.

As contribuições althusserianas sobre a mais-valia e o “retorno” da luta de classes na produção Agora entramos na discussão da escola althusseriana sobre os pontos aqui levantados. Importante ressaltar que ela se insere em um embate teórico e político muito mais amplo do movimento operário e comunista internacional. As experiências históricas do socialismo na segunda metade do século XX trouxeram um questionamento quanto a essa primazia das forças produtivas — que, como visto, até hoje é muito presente. O embate sino-soviético após a morte de Stalin em 1953 reverberou no Ocidente e trouxe a necessidade de um retorno a Marx quanto a primazia ou não das forças produtivas — e a escola althusseriana se insere sobretudo nesse contexto. Diferentemente da China, o lado soviético, em plena política de coexistência pacífica e representando o revisionismo moderno, acreditava na superioridade de sua II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

71

técnica e produtividade para vencer o capitalismo. A técnica e a organização do trabalho provinda dela pareciam neutras, e não atravessadas por disputas sóciopolíticas, pela luta de classes. E o grande fecho foi a negação soviética da luta de classes no socialismo, e sua substituição por teses humanistas ou liberais (“estado de todo o povo”). Do lado chinês, houve inicialmente uma preocupação em não pautar o desenvolvimento socioeconômico pelos critérios capitalistas. Durante um longo período as políticas econômicas visavam induzir outro modelo produtivo, através da coletivização, das comunas populares, do fim da divisão entre cidade-campo, trabalho intelectual e manual etc. A construção do socialismo vinha de uma postura mais radical frente aos legados e “progressos” capitalistas. Nesse embate, e através da experiência da revolução cultural chinesa (1966-1976), a luta de classes voltou a ser vista por muitos como o principal motor da história, atravessando inclusive a técnica e o reino das forças produtivas. O socialismo, diferente do que os soviéticos “achavam”, não se identificava com propriedade estatal (ou formalmente “de todo povo”), mas sim dizia respeito a uma alteração das relações de produção e demolição das hierarquias sociais no reino da produção e seus espectros simbólicos. A luta de classes continuava depois da tomada do poder e no socialismo, e o risco de retorno ao capitalismo era grande. A garantia do fim das classes seria na alteração radical das relações de produção capitalistas e seu conteúdo de classe: o domínio da classe operária também no solo da produção e na ideologia que a sustenta (Magaline, 1977: 40). O legado chinês encontra sintonia com a escola francesa do marxismo. Apoiando-se, corretamente, como vimos, em Marx, mostrará que o capital não é só um fator de produção a-histórico, desgarrado de relações de produção e da luta de classe, mas um processo social antagônico. Ou seja, ela pensa a produção dentro “da luta de classes material, na produção e reprodução das condições de produção” (Balibar, 1975b: 28). A mais-valia não é “simplesmente o excedente do novo valor acrescido pelo trabalho social ao valor dos meios de consumo necessários à reprodução da força de trabalho” (Balibar, 1975b: 32). Ficar nisso seria esquecer-se de perguntar, por que e como é possível o excedente num período histórico aparecer como valor? E aí somos jogados ao terreno histórico e específico do modo de produção capitalista e saímos do terreno de calculo contábil e meramente matemático, abstrato e geral. Como esse excedente, aqui valor, é produzido? O quantitativo se torna efeito das relações de produção em jogo: ele só pode ser o que é porque a força de trabalho se consumou sob uma forma capitalista, como capital variável, como valor, assim como o capital constante.13 O 13

Balibar (1975b: 34): “para cada processo de produção capitalista, os fatores da produção estão sempre já dados sob a forma de valor”, e obviamente, impulsionados a gerar mais-valor.

II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

72

fator econômico se torna um processo social de caráter antagônico, se inserindo no capitalismo na máquina de valorização-exploração: O mecanismo de produção da mais-valia, é o mecanismo das relações de produção capitalistas, quer dizer, o mecanismo que obriga o trabalhador a ultrapassar este limite inferior correspondente à sua própria reprodução e a fazer recuar indefinidamente o limite superior da sua capacidade de trabalho. É um mecanismo de exploração, quer dizer, de luta (económica) de classes. Luta do capital assegurando a extracção da mais-valia; luta dos trabalhadores preservando a sua própria subsistência (Balibar, 1975a: 80).

“Mais valia [...] é já luta de classes no processo de produção”, comenta o autor (Balibar, 1975b: 39). E, pela sua centralidade no modo de produção capitalista, o conjunto das lutas de classes é determinado em última instância pela luta “económica” de classes, a luta de classes na produção. Isto significa que as classes sociais não se colocam a favor ou contra concepções do mundo, a favor ou contra um estatuto jurídico, a favor ou contra formas de organizações políticas, a favor ou contra modos de repartição da riqueza social, a favor ou contra formas de organização da circulação de bens materiais, senão por causa da luta de classes na produção e, finalmente, com vista a esta luta. E isto porque é a luta de classes na produção que arrasta a existência material das classes, a sua “subsistência”: é a luta de classe quotidiana conduzida na produção pelo capital que faz do processo de trabalho um processo de produção de mais-valia (e portanto de lucro, que não é mais do que uma fracção), base material da existência duma classe capitalista; é a luta de classe quotidiana conduzida na produção pelos trabalhadores que assegura contra a tendência do capital para o lucro máximo as condições de trabalho e as condições materiais (sobretudo o nível dos salários) necessárias à reprodução da força de trabalho, à existência da classe operária (Balibar, 1975a: 72).

Para Althusser a tese da primazia das relações de produção significa que estas tem o papel determinante “com base e nos limites objetivos fixados pelas forças produtivas existentes” (1999: 229). O termo base não é primazia. Althusser o ressalta para não cair no subjetivismo ou humanismo (centralidade do “fator humano” no desenvolvimento histórico). As relações de produção não existem no vazio, mas em uma unidade com as forças produtivas.14 Afinal, é o paradigma das forças produtivas que

14

Balibar (1975b: 134-139) concorda completamente, afirmando ser um erro crasso pensar a tese da primazia das relações de produção como autonomia total das relações de produção, como oposto do primado das forças produtivas. Para qualquer materialista, há a existência de matéria-prima II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

73

se limita a explicar o desenvolvimento histórico de acordo com um só dos elementos do modo de produção. Mas estas forças produtivas tem um caráter sócio-histórico e “[...] só podem funcionar em e sob suas relações de produção” (Althusser, 1999: 44). São as relações de produção que desempenham o papel determinante. E essas relações de produção, no capitalismo, se identificam com as relações de exploração capitalista, relações já de luta de classes, e não apenas na repartição técnica dos meios e excedentes entre agentes e não agentes produtivos. A identidade entre produção e valorização faz com que relações de produção capitalista sejam ao mesmo tempo “as próprias relações de exploração capitalista” (Althusser, 1999: 53). Não há como separar um do outro, assim como um valor de troca precisa se encarnar em produto de trabalho concreto e útil. Concretamente isso quer dizer que o processo de produção no capitalismo está sob o domínio, sempre-já, da máquina de valorização-acumulação do capital, que é um processo de luta de classes na produção: todos os elementos da produção, os meios de produção, a força de trabalho, a divisão social do trabalho, através da produção se tornam capital e se voltam para a acumulação ampliada do capital (reinvestimento da mais-valia para mais mais-valia). A produção dos valores de uso, nesse modo de produção, “[...] garantem, ao mesmo tempo, inexoravelmente, a exploração da força de trabalho pelo capital.” (Althusser, 1999: 56). O modo de produção é ao mesmo tempo de produção, exploração e dominação num mesmo e só ato condensado e reproduzido de forma ampliada. Há uma subordinação dos meios de produção e da força de trabalho, ou seja, das forças produtivas, para realizarem de forma sempre progressiva e constante a mais-valia. A produção não tem por fim a satisfação das necessidades sociais, humanas, mas por meio destas alcança seu principal fim e objetivo: extorquir mais-valia. Não existe uma preocupação, sem se pensar nas relações de produção, em poder produtivo humano: aliás, o grande desejo do capital é não passar pela produção, e se autovalorizar, como ficticiamente ocorre hoje no sistema financeiro e com suas bolhas (D—D’). Althusser (1999: 57) conclui: Tudo que se passa em uma formação social capitalista, inclusive as formas da repressão do Estado de que ela é acompanhada, está enraizado na base material das relações de produção capitalistas que são as relações da exploração capitalista e em um sistema de exploração em que a própria produção está subordinada à exploração e, portanto, à produção ampliada do capital.

na natureza, por exemplo, antes mesmo de processos de trabalho. No entanto, as relações de produção explicam e comandam a unidade das duas num modo de produção porque essa matéria-prima só é tomada enquanto tal sob uma forma social de produção particular. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

74

Antes de ocorrer a organização da classe operária, sindical e politicamente, a luta de classes já existe no ato da produção:15 ela é uma força estruturante das próprias classes e suas movimentações, tendo na produção uma esfera objetiva e primeira para ocorrer. A distribuição de postos de trabalho, a organização do ato da produção, multas ou bônus salariais são o que Althusser chama de “surda luta de classes” (1999: 62). Ou de “extrema complexidade das formas, inconscientes e conscientes” da luta de classes (1999: 65). Não se resume a violência, até porque o trabalhador vai voluntariamente procurar trabalho para sobreviver. A luta de classes política está enraizada na luta de classes econômica, contra e pela a exploração e a ampliação do capital, que se faz necessariamente sob a forma de produção burguesa, sua divisão “técnica” do trabalho, seus formatos tecnológicos. Sendo assim, a revolução não é apenas uma mudança jurídica da propriedade, ou melhor, técnica, mas o revolucionamento das próprias condições de produção. Pois as relações de produção não são nem jurídicas nem técnicas, mas relações de classe, na luta de classes (Althusser, 1999: 69).

Considerações finais Depois de tudo, concorda-se com Magaline (1977: 9) que resume bem a pretensão da polêmica analisada por este artigo: [...] o desenvolvimento das forças produtivas é consequência e materialização das relações de produção por meio da luta de classes, e que a luta de classes na produção [...] é um momento determinante da reprodução das próprias relações de produção capitalista.

O “marxismo” das forças produtivas permanece, pois, numa problemática não-marxista. Segundo o mesmo Magaline, (1977: 26) a dita autonomia das forças produtivas é como uma forma de “fetichismo do capital” presente na problemática da economia política clássica: dissimula relações de classe como técnicas ou “naturais”. Althusser chama, em resumo, a primazia das forças produtivas de “ideologia economicista-tecnicista-jurídica-humanista-burguesa do trabalho” (1999: 69). Ou seja, um desvio teórico e político que não condiz com a principal descoberta de Marx: a mais-valia, e em seu lugar criando falsas polêmicas e soluções (a técnica, o homem, as reformas legais etc.).

15 Althusser (1980: 14): “a luta de classes [...] é consubstancial à sociedade capitalista: começou com ela, foi a burguesia que a conduziu desde seus primórdios [...] contra um proletariado então desarmado.”. Ou (1979: 27): “a luta de classes e a existência das classes são uma só e mesma coisa.” Visão muito diversa do restante das ciências sociais clássicas, como aponta Garcia (2011). Aqui a luta de classes é o ponto de partida, um fato objetivo, e não uma possibilidade a partir de motivações individuais e organização política das classes; etapa posterior à formação (para-si) das classes. II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

75

O conceito de mais-valia carrega consigo desde sua “descoberta” a compreensão de que no modo de produção capitalista a produção é em todos os sentidos valorização de capital e exploração do trabalho concomitantemente; que é efeito de uma luta entre as classes no seio das relações de produção pela extorsão constante e ampliada de mais-valia e a resistência da classe operária. E a escola althusseriana nos ajuda a ressaltar essa importante tese. A mais-valia - entendida como processo social antagônico - se situa no núcleo da existência do próprio modo de produção, que depende desta para sua continuidade, ampliação ou derrocada. Não trazer à tona essa primazia das relações de produção em meio à luta, presente no próprio Marx, é abrir a porta da teoria de marxista para uma ingênua teleologia onde as forças produtivas, puras, são o “sujeito” (a-histórico) da história humana. Não existe assim reprodução (contraditória) capitalista autônoma em relação à luta de classes (Magaline, 1977: 109). O debate de suma importância sobre a luta de classes, classes e a formação das classes no seio de um modo de produção e formação social concreta requereria muito mais aprofundamento. E este, especialmente, foi um grande esforço da escola althusseriana no âmbito do materialismo histórico. Também seria possível trazer temáticas como: “subdesenvolvimento”, “atraso” das forças produtivas, imperialismo etc. No entanto, espera-se que essa reflexão sobre a mais-valia tenha apontado diferenças e discordâncias que fazem da teoria de Marx uma teoria revolucionária no tocante ao valor, colaborando assim para a continuidade do estudo mais amplo de sua obra de acordo com sua originalidade.

Referências ALTHUSSER, L. Apresentação de Louis Althusser. In: HARNECKER, M. Os conceitos elementares do materialismo histórico. São Paulo: Global, 1983. ---- . Posições 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978. ---- . Sobre a reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999. ALTHUSSER, L.; Balibar, E.; ESTABLET, R. Ler O capital. v. II. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ALTHUSSER, L.; RANCIERE, J.; MACHEREY, P. Ler O capital. v. I. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. BALIBAR, É. Cinco estudos do materialismo histórico. v. I. Lisboa: Editorial Presença, 1975a. ----. Cinco estudos do materialismo histórico. v. II. Lisboa: Editorial Presença, 1975b. COHEN, G. Forças produtivas e relações de produção. Crítica Marxista, n. 31, São Paulo, 2010, p. 63-82.

II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

76

GARCIA, T. C. O primado das relações de produção uma contribuição de Althusser e Balibar para dilemas atuais. Anais do 35º Encontro Anual da Anpocs. v. 1. São Paulo: Anpocs, 2011. . LENIN, V. I. Quienes son los “amigos del pueblo” y como luchan contra los socialdemocratas. In: LENIN, V. I. Obras completas. Tomo 1. Moscou: Editorial Progreso, 1981 [1894]. MAGALINE, A. D. Luta de classes e desvalorização do capital. Lisboa: Moraes, 1977. MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1977 [1859]. ---- . O capital: crítica da economia política. Livro Primeiro. Tomo I. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997a [1867]. ----. O capital: crítica da economia política. Livro Primeiro. Tomo II. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997b [1867]. MOTTA, Luiz Eduardo. A favor de Althusser: revolução e ruptura na teoria marxista. Rio de Janeiro: Faperj, 2014.

II Encontro Internacional Teoria do Valor Trabalho e Ciências Sociais | 2nd International Conference on Labor Theory of Value and Social Sciences Grupo de Estudos e Pesquisa sobre o Trabalho, Universidade de Brasília | Group for Study and Research on Labor, University of Brasilia 16-17 de outubro de 2014 | October 16-17, 2014

77

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.