Valorização do Património Cultural Subaquático de Cascais – Oeiras. O Complexo arqueológico de São Julião da Barra

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História e Sociologia

Valorização do Património Cultural Subaquático de Cascais – Oeiras. O Complexo arqueológico de São Julião da Barra JORGE FREIRE, JOSÉ ANTÓNIO BETTENCOURT, GONÇALO LOPES, BRÍGIDA BAPTISTA, JOANA BAÇO Centro de História Além-Mar, Faculdade de Ciências Socais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e Universidade dos Açores

Resumo O programa de Carta Arqueológica subaquática do litoral de Cascais/Oeiras, iniciado em 2005, aparece como uma forma de gestão da costa e do litoral a partir das evidências da cultura material existentes nesta região. Uma das particularidades deste projecto, no contexto português, é possuir como quadro teórico a análise do litoral enquanto paisagem cultural Marítima e Arqueologia Costeira. Este tipo de análise têm nos permitido identificar os elementos culturais e naturais que caracterizam a dinâmica marítima. Também nos têm possibilitado estudar o impacto que esta dinâmica teve nas continuidades, nos aspectos sociais e nas percepções cognitivas do litoral. Em 2011 e 2012, temos dado particular atenção ao complexo Arqueológico Subaquático de São Julião da Barra. O trabalho de monitorização tem nos permitido georeferenciar as intervenções realizadas entre os anos 1992 e 2005 e as descobertas de novos achados em torno da Fortaleza, reforçam a importância já conhecida deste complexo. Uma nota importante é aposta no campo da formação, em contexto de trabalho, dos alunos de mestrado da Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Nestas Jornadas do Mar, damos conta dos resultados obtidos e da metodologia seguida.

Introdução A realização da VIII edição das Jornadas do Mar, intitulada Reencontro com o Mar no Século XXI, pareceu-nos ser um tema aliciante para expormos o trabalho arqueológico subaquático realizado em torno da Fortaleza de São Julião da Barra. Sobretudo quando parte dos objectivos convergem na necessidade de conhecer e de reconhecer, valorizar, assegurar a preservação e a fruição do património cultural subaquático português. 348

O REENCONTRO COM O MAR NO SÉCULO XXI

O complexo arqueológico de São Julião da Barra é conhecido pelo impacto que teve na Expo’ 98, e pelos vários artigos científicos e de divulgação que foram editados desde a década de 90 do século passado até aos inícios do Século XXI. Não obstante a visibilidade pública e a importância académica dada ao complexo, a sustentabilidade e o desenvolvimento nem sempre foram assegurados. Entre 1976 e 2005, a zona foi alvo de recolhas não programadas, de campanhas de escavação e monitorização. A vasta diacronia dos materiais recolhidos, nem sempre devidamente registados, criam hoje dificuldades a análise arqueológica do complexo mas também a tornaram prioritária numa dupla perspectiva: gestão e estudo integrado do património cultural subaquático e protecção e monitorização dos vestígios humanos no fundo. A Arqueologia Costeira resumida de São Julião da Barra permite caracterizá-la geograficamente como um esporão rochoso, limitado a este pela praia de Carcavelos e a oeste pela praia da Torre, e cartograficamente na margem norte do Canal Norte. Este, actualmente, apresenta uma largura máxima de 500m, tendo como limite a sul o Cachopo Norte. A orografia submarina é, junto à fortaleza maioritariamente rochosa, notando-se profunda variação da morfolologia dos afloramentos. À medida que nos afastamos da linha de costa surgem depressões e fissuras, entre os afloramentos, preenchidas com areia e blocos, onde podem estar acumulados materiais arqueológicos. Toda a área tem alta energia, apresentando por isso profundas alterações sazonais na cobertura dos fundos, que variam entre fases de erosão e sedimentação. Esta região, para além da sua geografia natural, também temos relembrar a riqueza histórica que potenciou que o hinterland olisiponense tivesse uma continuidade e dinâmica milenária no que diz respeito a ocupação antrópica das margens, das rotas de navegação, das vivacidades portuárias e comerciais. É, por isso, com evidência material que a embocadura do Tejo tenha sido historicamente palco de uma intensa actividade náutica possibilitando vários contextos de naufrágio. Não obstante, a caracterização e a dispersão de cada contexto não estão, ainda, arqueologicamente determinados, carecendo de critérios de análise e interpretação individuais bem como de uma problematização crono – tipológico de conjunto. As ocorrências patrimoniais registadas em São Julião da Barra permitiram estabelecer uma zona de estudo em duas referências naturais: Ponta de Rana e Santo Amaro de Oeiras, entre as batimétricas dos 0m e dos 10m (ZH). Para terminar esta introdução, a reflexão que é proposta centra no sumário de dois anos de projecto realizado no âmbito programa de Carta Arqueológica Subaquática do Concelho de Cascais/Oeiras um dos seus objectivos. O projecto que foi estabelecido através de um Protocolo entre o CHAM, a Câmara Municipal de Cascais e

História e Sociologia Câmara Municipal de Oeiras. Tem contado com o apoio do CINAV, do IST, da Marina de Cascais, do Porto de Recreio de Oeiras e da DGPC. O outro objectivo que também se enquadra no espírito das Jornadas é aposta no campo da formação. O projecto contou com alunos de mestrado da Faculdade Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa que, em contexto de trabalho, tiveram contacto directo com o desenvolvimento de um projecto de Arqueologia Subaquática desde a sua implementação a divulgação. É uma aposta do CHAM onde estas jornadas se enquadram com elemento pedagógico e fundamental para o início profissional destes jovens arqueólogos.

1. Contextualização O trabalho realizado em São Julião da Barra é um exercício interpretativo entre registo e a metodologia de valorização patrimonial, mas também um confronto de dados entre a campanha de 2011/2012 e as intervenções anteriores. Efectivamente, o estudo e a monitorização pressupôs uma recensão exaustiva de toda a documentação processual, arquivada na actual Direcção-Geral do Património Cultural, e a bibliografia produzida até 2010. A análise combinada destes dados permitiu-nos criar uma partitura que compôs os momentos cruciais do complexo arqueológico entre 1976 e 2005. Assim, é observado cinco grandes períodos de intervenções: 1976-1991; 1993-1995; 1996-1998; 1999-2001; 2005. a) 1976-1991 A documentação existente deste período é residual. Resume-se aos primeiros achados declarados, em 1976, pelo Museu do Mar rei D. Carlos à capitania de Cascais (Castro, 1999, 7; Coelho, 2008, 13), e algumas notas e informações trocadas entre o Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia (MNAE) e a 1ª. Secção do Concelho Consultivo do Instituto Português do Património Cultural (IPPC) ou a Actas de reuniões desse mesmo órgão consultivo. A década de 1980 é quanto a nós um momento de tomada de consciência da importância da zona enquanto sítio arqueológico porque fundamentalmente ficou marcado por notícias da recolha furtiva, pelo achamento de vários artefactos, entre eles descoberta em Julho de 1989 de duas armaduras (Freire, Bettencourt, Fialho, 2002, 22). b) 1993-1995 À luz das recolhas efectuadas e dos eventos ocorridos entre 1976 e 1991, os trabalhos desenvolvidos em 1993-1995 junto a SJB aparecem como projecto, pioneiro e prioritário, no contexto da recente arqueologia subaquática, promovido pela Arqueonautica, Centro de Estudos, sob a responsabilidade de Francisco Alves. Os traba-

lhos realizados durante o ano de 1994 passaram pela prospecção extensiva na subzona SJB1, e no levantamento, em planta, dos 16 canhões e uma âncora em ferro, e no reconhecimento de uma segunda subzona - SJB2 - que incluía restos de cascos, pimenta e fragmentos de cerâmica, que vieram a ser identificados por Jean Paul Desroches como porcelana chinesa do período Wanli, finais do século XVI ou inícios do XVII (Alves, 1994). c) 1996-1998 O Projecto de São Julião da Barra seria novamente retomado no âmbito da criação do centro de operações de Arqueologia Subaquática (COAS)/Comissão Instaladora do Instituto Português de Arqueologia, cujo objectivo era assegurar a escavação da subzona SJB2 descoberta em 1994, para integrar o programa do Pavilhão de Portugal na EXPO’98 e preparar a infra-estrutura do futuro CNANS/ IPA (actualmente DANS/IGESPAR). Neste contexto foi realizado uma campanha de escavação durante um ano, Outubro de 1996 a Outubro de 1997, sob a co-direcção de Francisco Alves e Luís Filipe Vieira de Castro. Esta campanha resultou na escavação de duas zonas, a primeira de 80m2, que corresponde a os restos de um casco de madeira da presumível nau Nossa Senhora dos Mártires, e uma segunda zona, com 100m2, numa depressão natural do fundo rochoso que permitiu a acumulação de material arqueológico. d) 1999-2001 A intervenção nos anos de 1999-2001 em SJB2, com financiamento integral do ex-CNANS/IPA, apoio da Marina de Guerra Portuguesa e da Universidade do Texas & AM, manteve a tónica de sondagens, na recuperação de secções do casco escavado em 1996-1997 e o registo arqueográfico das peças recolhidas. No mesmo período é apresentado por Luís Filipe de Castro a primeira síntese, em forma de fichas de inquérito, da dispersão dos vestígios. Desta compilação resulta o conhecimento de 28 sítios cuja forma de georeferenciação não é para nós clara. Pese embora a ausência de metodologia sig, o inquérito realizado pelo autor do relatório, é uma ferramenta de trabalho importante na realização de uma análise profunda da paisagem marítima de São Julião da Barra. e) 2005 A campanha de 2005 teve como objectivo principal a prospecção e monitorização da área, em especial das subzonas designada de SJB28 (local onde se identificou no final dos anos 90 outro casco em madeira) e de SJB2 local de escavação da presumível Nau Nossa Senhora dos Mártires. Como resultado da prospecção realizada durante 2005, Augusto Salgado e Carlos Martins, individualizaram duas zonas coerentes, quer pela possível origem dos artefactos, quer pelo tipo achados descobertos. A primeira, na zona Sudoeste, em que os achados enO REENCONTRO COM O MAR NO SÉCULO XXI

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contrados são, segundo os autores, de origem dos Países-Baixos. A segunda, onde foram recolhidos vários fragmentos de loiça azul e branca e um pote inteiro, já tinha sido identificada em anteriores trabalhos, mas foi possível constatar que se estende mais para Sul do que anteriormente se julgou e vai, pelo menos até uma cota dos 8 metros, para Sul da piscina do forte de SJB.

2. Reavaliação dos materiais arqueológicos A reavaliação dos dados disponíveis sobre os artefactos teve como objectivo, em 2011, verificar da existência de padrões relacionáveis com os naufrágios referidos nas fontes escritas. De facto, as abordagens até à data efectuadas referem-se aos materiais atribuídos à Nossa Senhora dos Mártires (Afonso, 1998; Brigadier, 2002; Coelho, 2008), apesar de vários textos e da síntese proposta por Filipe Castro indicarem uma vasta diacronia no complexo arqueológico (Castro, 2001). O nosso estudo parte por isso destas publicações e também uma primeira análise directa de alguns materiais acessíveis na DGPC, que muito resumidamente incluímos nestas jornadas: a) As moedas constituem um bom indicador da vasta espessura cronológica do complexo SJB. As mais antigas que conseguimos identificar são portuguesas, cunhadas no reinado de D. João III (1521-1557). Surgem também moedas de D. João IV (1640-1656) e de D. João V (1707-1750). b) Entre as cerâmicas, um dos grupos mais numeroso, evidenciam-se, quantitativa e qualitativamente, as porcelanas e os potes orientais, neste caso maioritariamente recuperados numa área limitada do sítio escavada para a Expo’98. Estes materiais apresentam paralelos que os colocam nos finais do século XVI e primeiras décadas do XVII, sendo por isso relacionados com a Nossa Senhora dos Mártires (Coelho, 2008). c) Identificámos porém materiais com outras cronologias, como é exemplo o cachimbo em caulino SJB07.03, com forma atribuída a produções inglesas do período entre 1680 e 1710. Também de proveniência inglesa são várias peças de finais do século XVIII. Entre estas destacam um suporte de vareta de arma de ante-carga, uma protecção de coronha ou uma roda com a Broad arrow. As duas primeiras peças têm paralelos em materiais identificados no HMS Sirius (1790), sendo parte do mosquete “Short Land Pattern musket”, um tipo de arma muito utilizado pelas forças militares britânicas entre c. 1730 e 1793 (Stanbury, 1994, 81). A Broad arrow, que aparece na roda, era utilizada para marcar materiais e instrumentos utilizados pela Royal Navy, surgindo, por exemplo, em rodas do HMS Colossus (1796) (Morris, 1984, 71) e em cavilhas e pregos de cobre utilizadas na construção do HMS Sirius (Stanbury, 1994, 16-18 e 30).

Figura 2 Suporte de vareta de arma de ante-carga SJB2005.068.

Figura 3 Roda em madeira com chumaceira em liga de cobre SJB62.01.

3. Intervenção Arqueológica Sendo o objectivo principal a relocalização dos vestígios já identificados em fases anteriores, optou-se pela realização de prospecção livre, partindo dos enfiamentos definidos durante a fase de tratamento dos dados existentes na DGPC e com o apoio de dois membros da equipa - Carlos Martins e Augusto Salgado - que conhecem a área de estudo. Foram assim efectuados, em 2011, um conjunto de transectos, que cobriram as áreas mais importantes. A localização destes foi registada em GPS, com a mesma metodologia utilizada no registo de artefactos.

Figura 4 A localização dos mergulhadores e das ocorrências identificadas foram registadas com coordenadas geográficas (WGS 84, graus decimais), obtidas com um GPS da com precisão em torno aos 4m. A equipa de mergulho transportava este numa caixa estanque, que recebia o sinal dos satélites através de um cabo ligado a uma antena que se encontrava numa bóia à superfície.

Figura 1 Cachimbo em caulino SJB07.03.

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A concretização deste objectivo permitiu, em 2012, continuar a prospecção intensiva dando origem a área D, e o mapeamento fino, a partir da colocação de buchas metálicas, das áreas A e B. Promoveu-se também, a partir do Instituto Superior Técnico a realização de levantamento de prospecção geofísica com sonar de varrimento lateral.

História e Sociologia Figura 5 Os dados obtidos foram organizados em SIG, no Site Recorder 4 e no ArcMap. A cartografia base do projecto corresponde à linha de costa em formato shapefile e ao ortofotomapa. Sobre esta cartografia foram implantados todos os transectos de prospecção e as ocorrências patrimoniais localizadas. O SIG e a cartografia encontram-se no Sistema UTM, Datum WGS 84, Zona 29N.

Foram georeferenciadas 77 ocorrências. Da análise espacial sobressaem quatro áreas (Áreas A a D) com maior concentração de materiais, embora no geral se verifique uma baixa densidade na distribuição de superfície de 2011 e 2012. Área A: Na área designada em relatórios anteriores como SJB1/3 foram georeferenciados 18 canhões em ferro e 1 âncora no mesmo material. A distância máxima entre este conjunto é de 48m, entre o canhão SJB11_025, a sudeste, e o canhão SJB11_031. Além dos canhões, foram localizadas balas em ferro e 1 em pedra. As primeiras solidamente concrecionadas entre si e aos afloramentos rochosos. A segunda encaixada numa depressão na rocha, sobre blocos. Os fundos variam entre afloramentos e areia. Os trabalhos incluíram ainda a georeferenciação, por indicação do Augusto Salgado e Carlos Martins, do local onde em 2005 se recolheram três moedas. A maior parte dos canhões localizam-se sobre os afloramentos, com excepção do conjunto SJB11_024 e SJB12.

Figura 6 Pormenor dos canhões, área A, registados em 2011. Foto: Augusto Salgado.

Área B: Nesta foram georeferenciados 12 canhões e quatro âncoras em ferro, em dois núcleos distintos. O núcleo sudeste é formado por 9 canhões. A distância máxima entre estes é de 15m, e estão depositados numa área com afloramentos e blocos rochosos, situada junto à linha de costa, com energia muito elevada. Os canhões mostram por isso sinais evidentes de erosão. O outro núcleo, constituído por 4 canhões e quatro âncoras em ferro, foi localizado 60m a noroeste. Os canhões encontram-se sobre rocha, junto à zona de rebentação; as âncoras estão sobre fundo rochoso, com algumas bolsas de areia. Junto aos canhões foram registadas algumas balas em chumbo, aprisionadas em fissuras nos afloramentos.

Figura 7 Pormenor dos canhões, área B, registados em 2011/2012.

Área C: corresponde à zona onde se localizaram vestígios que têm sido relacionados com o naufrágio da nau Nossa Senhora dos Mártires. Zona prioritária de intervenção, não foi possível, como previsto, relocalizar as buchas metálicas que serviram como referência base para o registo da escavação efectuada entre 1996 e 1998. Foram no entanto obtidas as posições aproximadas do casco, ainda in situ, e de uma área onde se observaram restos de madeira de um navio associados a pimenta. Em ambos os casos, o posicionamento baseou-se em indicações do Carlos Martins, uma vez que os vestígios estavam enterrados em areia. Área D: Diz respeito ao trabalho desenvolvido em 2012, inédito em relação as intervenções anteriores. Localiza-se à Este do forte na confluência com a Praia da Torre. Nesta zona foram georeferenciados quatro âncoras em ferro, 11 canhões e uma área de dispersão com destroços de uma embarcação provavelmente de época contemporânea.

Figura 8 três âncoras sobrepostas na área D.

Durante a prospecção foram localizados materiais relacionados com o contexto da área B, dois almofarizes, e da área C, expostos 75m a oeste da área escavada anteriormente. Entre estes encontram-se dois fragmentas de pratos em porcelana (SJB11_018 e SJB11_019) e três fragmentos de potes de produção asiática (SBJ11_019, SBJ11_020 e SBJ11_042). Foram recuperadas as peças SJB11_018 e SJB11_042. O prato SJB11_018 foi fabricado com pastas finas de caulino, com elementos não plásticos de grão finíssimo. Incompleto, assenta em pé baixo, em anel. A decoração, em azul de cobalto sobre esmalte branco, foi elaborada a traço azul-escuro, preenchido por aguada da mesma cor e coberta por um vidrado muito fino e transparente. O REENCONTRO COM O MAR NO SÉCULO XXI

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lhos anteriores permitiram localizar depósitos coerentes em SJB2, contendo alguns materiais em bom estado de conservação e mesmo parte do casco da presumível Nossa Senhora dos Mártires. Além disso, e numa abordagem preliminar aos outros materiais recuperados, é evidente a existência de colecções com coerência tipológica e cronológica, por vezes recuperadas em áreas delimitadas, como é o caso de um conjunto de lingotes de chumbo (Castro, 2001).

Bibliografia AFONSO, S. L. (ed.) (1998) - Nossa Senhora dos Mártires: a última viagem, Lisboa: Pavilhão de Portugal Expo 98 / Verbo. ALVES. F. (1994) São Julião da Barra. Projecto de Arqueologia Subaquática. Relatório dos trabalhos efectuados em 1994. Arqueonautica, Centro de estudo. Figura 9 Lado esquerdo, identificação de um dos almorafizes recolhidos em 2012. Lado direito, prato SJB11_018.

Nas abas, a decoração estaria organizada em painéis. O fundo é preenchido por um painel polilobado, com banda decorada, dividida com cabeças de ruyi, sendo o tema central ocupado com gamos. Esta peça pode por ser integrada na kraak-porselain, tendo numerosos paralelos nos materiais localizados anteriormente em São Julião da Barra (Coelho, 2008), ou em vários naufrágios do mesmo período – por exemplo, no San Augustín (Califórnia – 1595), no San Diego (Filipinas – 1600), que transportava cerca de 200 peças com este tema (Desroches, 1998) ou na Nossa Senhora da Luz (Faial – 1615) (Bettencourt, 2005-2006). Por seu lado, o pequeno fragmento de pote SJB11_042 foi fabricado em pasta de cor bege. Apresenta, em relevo, parte da decoração, coberta com vidrado amarelo e verde. Trata-se por isso de parte de um pote Tradescant, produção presente nos materiais da primeira fase de estudo (Coelho, 2008), entre a carga transportada no San Diego (Dupoizat, 1994) ou na Nossa Senhora da Luz (Bettencourt, 2005-2006), tal como se referiu para a porcelana. As características da peça SJB11_020, observadas em mergulho, são atribuídas aos potes Martaban, que oferecem pastas de cor cinzenta escura, coberta por vidrado espesso castanho-escuro ou preto, uma das produções mais representadas entre os materiais da Nossa Senhora dos Mártires ou nos naufrágios acima referidos.

Conclusão A problemática com a qual iremos concluir a nossa reflexão diz respeito à abordagem metodológica ao complexo arqueológico. De facto, a “sobreposição” de naufrágios na área, documentada nas fontes escritas e pelos materiais analisados, dificulta a interpretação dos depósitos, renunciando totalmente a noção de “cápsula do tempo” que tem sido atribuída a contextos subaquáticos. A interpretação de tais contextos, marcados pela acumulação de restos diversos, obriga a um mapeamento fino dos vestígios, que permita depois avaliar os processos de formação e distinguir, numa segunda fase, os materiais relacionados com vários eventos históricos. Este objectivo é ainda mais difícil de atingir em contextos costeiros de baixa profundidade, com alta energia, marcados por dinâmicas sedimentares e pela deslocação horizontal e vertical dos materiais mais leves, com baixa densidade. De facto, os materiais tendem a entrar no registo geológico, comportando-se como os sedimentos até atingir estratos estáveis, no limite de acção da ondulação, ou a se acumularem em zonas do fundo com características muito específicas (como as fissuras entre afloramentos ou junto à base dos obstáculos). A interpretação do registo arqueológico de São Julião da Barra não deixa porém de ser um exercício importante, até porque os traba352

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BETTENCOURT, J. (2005-2006) – “Os vestígios da nau Nossa Senhora da Luz: resultados dos trabalhos arqueológicos”, Arquipélago – História, 2ª série, IX-X, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, pp. 231-273. CASTRO, F. (1999) – Projecto SJB2. Relatório dos Trabalhos Efectuados em 1999. College Station. CASTRO, F. (2000) - Pewter Plates from São Julião da Barra. College Station. COELHO, I. P. (2008) - A cerâmica oriental da carreira da índia no contexto da carga de uma nau – a presumível nossa senhora dos mártires. Tese de Mestrado. Faculdade Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. Publishing. DESROCHES, J. P., (1998) – Cerâmicas Orientais e porcelanas, in Nossa Senhora dos Mártires. A última viagem. Lisboa: Pavilhão de Portugal/Expo98 e Editorial Verbo, pp. 229-251. DUPOIZAT, M. (1994) – Les jarres asiatiques en grès, in Le San diego. Un trésor sous la mer, Paris: Éditions Carré, pp. 222-250. FREIRE, J., BETTENCOURT e FIALHO, A. (2012) – ProCASC - Estudo, valorização e monitorização do complexo Arqueológico Subaquático de São Julião da Barra/Carcavelos – relatório dos trabalhos de 2011- CHAM e Câmara Municipal de Cascais. SARA R. B. (2002) - The Artifact Assemblage From the Pepper Wreck: An Early Seventeenth Century Portuguese East-Indiaman That Wrecked in the Tagus River, Tese de Mestrado apresentada na Texas A&M. MORRIS, R. (1984) – Ferrous clib concretion on small guns, IJNA, 13.1, pp. 65-94. STANBURY, M.(1994) - HMS Sirius 1790: an illustrated catalogue of artefacts recovered from the wreck site at Norfolk Island, Special publication (Australasian Institute for Maritime Archaeology), nº. 7, Adelaide: Australasian Institute for Maritime Archaeology.

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