Valter Hugo Mãe: em busca da humanidade essencial
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Valter Hugo Mãe: em busca da humanidade essencial
O contato com a obra do escritor português nascido em Angola Valter Hugo
Mãe pode representar para os leitores brasileiros a chave de entrada para a complexidade da produção de um artista multicultural que, ao mesmo tempo em que detém uma originalidade notável, pode ser colocado num continuum com os mais criativos escritores da língua portuguesa.
Valter Hugo Mãe é escritor, mas não apenas escritor e, como vários artistas
de sua geração, ele tem se expressado em diversas linguagens artísticas. Mais conhecido no Brasil como romancista, graças à sua participação no Festival Literário de Paraty e às edições de todos os seus romances por editoras brasileiras, ele tem também se destacado em Portugal como poeta, cantor, letrista de canções, desenhista e editor.
Teve o Direito como primeira graduação e, tendo exercido a função de
advogado por pouco tempo, foi em Letras que o escritor encontrou o caminho que o tornaria conhecido. Sua trajetória literária começou a ser traçada tanto pela realização de uma pós-‐graduação em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea, quanto pela publicação, desde meados da década de 1990, de seus livros de poesia, o que lhe rendeu um primeiro prêmio de relevo no país de origem, o Almeida Garrett, conferido em 1999. Também este é o ano que marca sua adesão à área editorial no papel de editor. Foi um dos fundadores em Portugal da Quasi Edições, uma pequena editora especializada em poesia contemporânea, onde se editaram pela primeira vez em Portugal poetas brasileiros como Manoel de Barros, Caetano Veloso e Adriana Calcanhotto, ao lado de nomes já lá consagrados, como o de Ferreira Gullar. A opção de colocar lado a lado a poesia tradicional e aquela ligada à música mostra a sintonia com o contemporâneo e reflete o caminho que o próprio Valter Hugo Mãe escolheu como artista. Várias outras iniciativas editoriais receberam seus esforços desde então, estando sempre ligado ao que de mais novo e arrojado se produziu nos últimos anos.
O autor ficaria conhecido por um grande número de leitores dos países de
língua portuguesa a partir da atribuição, em 2007, do Prêmio Literário José
Saramago – que distinguiu, entre outros, Adriana Lisboa, José Luís Peixoto, Gonçalo M. Tavares e Andréa del Fuego -‐, e que ele venceu com um romance, O remorso de baltazar serapião.
José Saramago o considerou um verdadeiro tsunami literário, declarando à
época que: "Por vezes, tive a sensação de assistir a um novo parto da Língua portuguesa"1.
Tanto neste romance como em O nosso reino, O apocalipse dos
trabalhadores e A máquina de fazer espanhóis, o autor abole o uso de letras maiúsculas, grafando seu próprio nome e o nome próprio de seus personagens e lugares de sua ficção com letras minúsculas. Esta particularidade gráfica, imitada pelo próprio Saramago no conto A viagem do elefante, publicado em 2008, fez com que os quatro romances fossem nomeados pela crítica como a ‘tetralogia das minúsculas’.
O procedimento foi justificado pelo autor como um desejo de se aproximar
da oralidade, onde, naturalmente, não aparecem maiúsculas e minúsculas, e para conferir uma aceleração à escrita. A manifesta intenção do autor era colaborar para a limpeza formal do texto, numa busca pela agilização da escrita e da leitura. Neste aspecto, ele continua a senda aberta por José Saramago, que aboliu parte da pontuação tradicional em busca da aproximação com o universo da oralidade.
No caso específico da liberdade gráfica adotada por Valter Hugo Mãe, antes
dele na Literatura Portuguesa o poeta Al Berto (1948-‐1997) fez uso do recurso das minúsculas em alguns de seus poemas. Foi no exemplo dele, mas também nas palavras de outro poeta português, Ruy Belo (1933-‐1978), que Valter Hugo Mãe encontrou a justificativa para a adoção das minúsculas: "Numa dada passagem, ele diz que num poema, nenhuma palavra deve levantar a cabeça acima das outras. Levei esta imagem à letra, também por uma espécie de democracia das palavras".2 1 In http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=987685 2 In ‘As grandes minúsculas de valter hugo mãe’, artigo e entrevista, por Maria Leonor Nunes, publicada em 2010, disponível emhttp://visao.sapo.pt/as-‐ grandes-‐minusculas-‐de-‐valter-‐hugo-‐mae=f545016#ixzz3hAvAWwMh (acesso em 20 de julho de 2015).
A evocação da poesia e de dois poetas como disparadores desta que seria
uma das características de parte da obra do autor, refletem a importância que a poesia tem em toda a obra em romance de Valter Hugo Mãe: seja nas epígrafes a cada uma das obras, seja durante as narrativas, a poesia e a menção a poetas é constante e enriquece o tecido narrativo.
O uso de minúsculas foi sendo gradualmente abandonado pelo autor ao
longo de A máquina de fazer espanhóis, onde exatamente uma figura relacionada à poesia de Fernando Pessoa, o Esteves (de “Tabacaria), aparece como personagem. Nos dois romances seguintes, A desumanização e O filho de mil homens, as maiúsculas foram retomadas.
O que permanece como um fio condutor de toda a obra de Valter Hugo Mãe
é seu pendor para a busca de uma humanidade essencial em seu elenco de personagens, seres muitas vezes dominados por circunstâncias difíceis ou incontornáveis, diante das quais saem engrandecidos devido a seu crescimento pessoal, à sua maturidade e a seu posicionamento diante da realidade que os oprime ou não lhes concede a plenitude que terminam por alcançar devido a seus próprios méritos.
Os afetos têm lugar especial na obra do autor: o amor desenvolvido pelo
velho viúvo que se relaciona com seus companheiros de asilo em A máquina de fazer espanhóis ou a adoção do menino órfão por Crisóstomo, o homem de quarenta anos que se viu só no mundo, em O filho de mil homens, são vistos de maneira poética e com uma linguagem que é capaz de decifrar os labirintos da dúvida e dos anseios humanos por algo transcendente.
Também em toda a obra de Valter Hugo Mãe, Portugal é uma presença forte.
Seja mencionado especificamente, como em O nosso reino ou A máquina de fazer espanhois ou não, como em O filho de mil homens, as características sociais que aparecem nas obras apontam para a sociedade portuguesa de maneira inequívoca. A sociedade é desvelada pelas ações das personagens e vista de forma por vezes impiedosa. Toda a solidariedade do autor, grande e transbordante, é para com suas personagens, por vezes presas em situações sociais difíceis de serem resolvidas, com dramas que beiram o insolúvel. A nota de esperança e fé na capacidade humana está sempre presente. Não há questões fáceis, nem soluções milagrosas, há um caminho
muitas vezes difícil e doloroso, mas premiado pela vitória da inteireza pessoal que vence o aparentemente invencível.
De um modo geral, todas as obras de Valter Hugo Mãe apresentam uma
estreita relação com a tradição literária ocidental, especialmente a portuguesa dos séculos passados. Ao começar qualquer um dos romances, o leitor se vê diante de intertextos com vários outros romances e poemas. A multiplicidade de referências, realizadas com cuidado para que nada fique muito aparente e não prejudique a leitura mais ligeira também se pode fazer da obra, aponta para um projeto de escrita consciente e em consonância com o melhor que sua geração vem produzindo.
A circunstância biográfica do nascimento em Angola às vésperas do
desmantelamento do antigo Império Português, desaparecido em 1975, na sequência da Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974, que pôs fim a uma ditadura de quase cinquenta anos em Portugal, não deve ser desprezada. Como outros autores bastante significativos na literatura contemporânea portuguesa, como Dulce Maria Cardoso e Gonçalo M. Tavares, o nascimento na antiga colônia indica o pertencimento a uma família transplantada para África, participante do projeto colonial em algum nível, e que voltou a Portugal para reconstruir a vida. Nos três autores, este fator biográfico conduz a algumas das obras mais instigantes da contemporaneidade, na medida em que reflete sobre Portugal com um duplo olhar: de dentro, mas parcialmente condicionado por uma visão construída em outro continente.
Na obra de Valter Hugo Mãe esta amplitude de visão de mundo se reflete
numa descrição de sociedade por vezes crua, mas precisa e na afirmação da grandeza de sua humanidade feita de papel, capaz de dar resposta aos desafios de viver em comunidade e conseguir realizar-‐se de maneira plena. Susana Ramos Ventura
Susana Ramos Ventura é doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela USP (2006), com tese sobre os romances de Mia Couto e José Saramago. Ensaísta e professora, é também autora dos livros Convite à navegação: uma conversa sobre literatura portuguesa (São Paulo: Peirópolis, 2012) e O tambor africano e outros contos dos países africanos de língua portuguesa (São Paulo: Volta e Meia, 2013). Pesquisadora ligada ao Centro de Literaturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa (CLEPUL) e ao Centro de Pesquisas sobre os Mundos Ibéricos Contemporâneos (CRIMIC), da Sorbonne (Paris IV).
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