Vamos ler poemas e contos africanos? Conhecendo Literaturas Africanas de Língua Portuguesa num projeto interdisciplinar de ensino

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VAMOS LER POEMAS E CONTOS AFRICANOS? Conhecendo Literaturas Africanas de Língua Portuguesa num projeto interdisciplinar de ensino Paloma de Melo Henrique Rodrigo Dias

“Deixarei o recado/ (...) Nesta língua lusa/ Que mal entendo/ E ao longo dos séculos/ (...) Saberão quem fomos” Odete Semedo

O nosso relato é uma breve apresentação de um projeto de ensino de Língua Portuguesa e Literatura que procurou considerar a aplicabilidade da lei 10639/2003 que torna obrigatória a abordagem da cultura e da história da África e dos africanos na educação escolar, durante um período de estágio de docência. O projeto foi aplicado no Centro de Cultura e Educação Pré-Vestibular Resgate Popular - curso que visa preparar alunos de baixa renda para o concurso vestibular das instituições públicas de ensino superior. Atualmente, o curso está sediado no prédio anexo da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, dispondo de duas turmas, que acolhem alunos da região metropolitana de Porto Alegre. A alternativa de desenvolver um projeto de estágio em um curso pré-vestibular pode parecer limitadora, dado a necessidade de dar ênfase aos conteúdos mais exigidos nas provas. Decidimos realizá-lo no curso, mesmo assim, com o objetivo de integrar as disciplinas de Língua Portuguesa, Literatura e Redação, bem como de Ciências Sociais e Humanas, que normalmente estão separadas. Buscamos alternativas metodológicas para que o conhecimento e a experiência desses alunos fossem valorizados, tendo em vista uma construção coletiva de conhecimento, que contemplasse não só os conteúdos exigidos nos exames seletivos, mas também

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discussões formativas que proporcionassem, para professores e alunos, condições para o desenvolvimento de reflexões sobre o nosso lugar na sociedade e sobre como podemos transformar o nosso entorno. Realizamos a prática no período de duas semanas e de doze horas/aula, no mês de junho de 2015, trabalhando exclusivamente com a turma Revolução, que conta, em média, com 25 alunos frequentes. A premissa do projeto, intitulado “Língua Portuguesa, luta, poesia e identidade nas literaturas dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)”, foi de proporcionar aos educandos o contato com textos literários de autores provenientes de países africanos também colonizados por Portugal (Angola, Cabo Verde, GuinéBissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), tendo em vista o alargamento de repertório dos alunos e a desconstrução de estereótipos da África e dos africanos – dando ênfase à heterogeneidade do continente. Acreditamos que o contato com as culturas e com a história desses países é muito importante, principalmente no que se refere às suas lutas pela emancipação, tanto no que diz respeito às independências nacionais quanto no que diz respeito à resistência e emancipação do trabalhador, do negro e da mulher. Assim, estimulamos os alunos a relacionarem os textos não só com o seu contexto de produção, mas também com suas próprias vivências, explorando as relações de alteridade possíveis. A nossa proposta de trabalho tomou como pressuposto teórico fundamental o conceito de letramento como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos para objetivos específicos (SCRIBNER, COLE, 1981 apud KLEIMAN, 1995, p. 19). Considerando que o letramento literário se trata de um “letramento singular”, conforme apontado por Souza e Cosson (2011), compartilhamos da definição de letramento literário como “[...] o processo de apropriação da literatura enquanto construção literária de sentidos” (PAULINO; COSSON, 2009, p. 67 apud SOUZA; COSSON, 2011, p. 103). A metodologia foi de aulas expositivo-dialogadas, com leitura silenciosa, discussão em grupos e socialização de leituras. O produto final consistiu na paginas.ufrgs.br/revistabemlegal

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realização de uma produção escrita dos alunos, a qual teve como intuito a reflexão linguística e crítico-social, tanto no que se refere à leitura quanto à escrita. Para dar mais organicidade ao estudo durante o projeto, produzimos uma mini apostila, que foi entregue aos alunos, composta por textos de apoio adaptados à interlocução prevista e por textos literários que foram trabalhados em aula. A primeira parte da apostila versa sobre a história e a composição étnico-cultural dos PALOP e traz os conceitos-chave “colonialismo”, “negritude”, “movimentos de libertação nacional” e “língua portuguesa nos PALOP”; a segunda, por sua vez, apresenta treze textos literários curtos (contos e poemas), de diversos autores, como “Na pele do tambor”, de Agostinho Neto, “Em que língua escrever?”, de Odete Semedo, “Grito negro”, de José Craveirinha e “Bayete”, de Noémia de Sousa. Iniciamos a realização do projeto por meio de uma abordagem explorativa, partindo do conhecimento prévio dos alunos sobre a África, ouvindo suas vozes e anotando algumas palavras-chave que indicaram no quadro. A participação foi profusa, com contribuições muito interessantes, destacando-se uma crítica à representação da África na mídia e na cultura em geral. Dando sequência ao planejamento, exibimos o curta-metragem Phatyma (2010), que apresenta os conflitos de uma menina moçambicana com o machismo reproduzido por sua família. Além dessa problemática, o vídeo aborda vários temas importantes que trabalhamos no projeto, como a questão das culturas tradicionais africanas e o choque com a modernidade, a escolarização, a questão das línguas nativas e do português nas suas variedades africanas. Esse material se propunha a apresentar uma visão da África construída pelo africano, nesse caso, representado pela voz de Phatyma, personagem criada pela autora moçambicana Paulina Chiziane – que, posteriormente, foi trabalhada com mais vagar no projeto. Além disso, o curta é eloquente ao demonstrar que a tradição pode ser transformada sem ser necessariamente adulterada, visto que a personagem se posiciona contra o aspecto

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patriarcal de sua cultura sem ignorar a riqueza e a importância de sua tradição cultural – muito ligada à ancestralidade e ao imaginário animista. Após a exibição do vídeo, os educandos falaram sobre suas impressões e demos nossa contribuição discutindo a importância do filme. Na dinâmica seguinte, utilizamos uma apresentação de slides para fazer uma introdução aos países africanos a serem trabalhados por meio de imagens, buscando evidenciar a justaposição de realidades encontradas nesses países, destacando, por exemplo, a coexistência de riqueza e pobreza – o que os alunos relacionaram com a realidade brasileira. Nesta parte da atividade, exploramos mais detidamente cada um desses países, com alguns momentos mais expositivos, quando exploramos alguns dados geográficos, históricos, culturais, artísticos e linguísticos, e outros mais dialogados, pois buscamos sempre fazer com que os alunos falassem sobre suas impressões. Quanto às manifestações culturais, apresentamos principalmente obras do campo das artes plásticas, como algumas esculturas tradicionais africanas e pinturas do artista moçambicano Malangatana. Os alunos participaram bastante, relacionando dados com os de outros países, por exemplo, fazendo referência a algum filme que assistiram que se passava na África, ou mesmo indicando surpresa em relação ao desconhecimento de algumas informações. Isso deu margem ao debate acerca da questão de que, mesmo que a cultura brasileira tenha muita influência de matriz africana, sabemos muito pouco do continente e, muitas vezes, a escola, bem como os meios de informação de massa, não o valoriza suficientemente em toda a sua riqueza cultural. Buscamos, dentro do possível, não trazer informações do senso-comum e refletir acerca do que apresentamos, sempre indicando que o que levamos para o projeto foi apenas uma breve exposição de alguns aspectos que consideramos importantes acerca desses países - que possuem uma complexidade sociocultural enorme. Incentivamos, dessa forma, a pesquisa por parte dos alunos, caso tivessem interesse em algum ponto específico, dado que nós, professores de Língua Portuguesa paginas.ufrgs.br/revistabemlegal

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e Literatura, também não somos especialistas em todos esses assuntos e pesquisamos em livros, assim como na internet, vários dados para que o projeto se realizasse com sucesso. Cabe destacar, nesse sentido, a importância de projetos interdisciplinares no ensino, especialmente de Língua Portuguesa, dado que, no mundo, o uso da língua se dá por meio de situações reais, que envolvem pessoas e situações específicas, em diversos contextos, históricos, geográficos, sociais, etc., intrinsecamente integrados, e que dificilmente poderão se dissociar. O nosso projeto de estágio deu ênfase à Língua Portuguesa no que se refere à abordagem da variação linguística, destacando diferenças existentes entre a norma brasileira e a portuguesa - que, teoricamente, é a mesma utilizada por esses países africanos. Abordamos, ainda, as problemáticas das línguas em contextos sociohistóricos específicos, dado o multilinguismo característico dos países africanos, destacando a questão das línguas crioulas, das línguas maternas, das línguas segundas, os conceitos de língua oficial, língua nacional, etc., bem como discutimos assuntos referentes a políticas linguísticas, como o acesso à escolarização em determinada língua, no caso, o Português na África. Discutimos, desse modo, sobre língua, mas juntamente com todo o seu contexto social, que não se restringe à disciplina de Língua Portuguesa. Os projetos interdisciplinares, portanto, integram questões das diversas áreas de estudo, e, nesse sentido, são importantes porque neles tanto professores quanto alunos percebem que o conhecimento pode ser construído conjuntamente, de forma que todos aprendem com todos, uma vez que as informações não são estanques e sempre podem ser expandidas, de acordo com as experiências e os conhecimentos de mundo de cada um, buscando a construção do conhecimento como alternativa à reprodução de conteúdo. Depois de fazer essa introdução, damos sequência ao projeto com a leitura dos textos literários. Primeiramente, oferecemos uma breve sinopse dos textos disponíveis, que tratavam principalmente de temáticas referentes ao trabalho

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explorado, ao racismo, ao machismo e à identidade africana, para que a turma se dividisse em seis grupos, de acordo com os seus interesses de temas. Foi realizada, pois, a leitura silenciosa dos textos selecionados seguida de discussão nos pequenos grupos. Além disso, os alunos tiveram de responder, oralmente, algumas questões. A primeira, “Do que você gostou ou não gostou no(s) texto(s)?”, foi proposta para que os alunos dessem as suas impressões gerais quanto ao tema trazido no texto; a segunda, “Qual foi o ponto que mais chamou a sua atenção?”, serviu para que os alunos indicassem e/ou lessem um trecho do texto que consideraram interessante; a terceira e a quarta pergunta, “Você recomendaria o(s) texto(s) para alguém?” e “Qual o principal argumento que você usaria para convencer alguém a ler o(s) texto(s)?”, serviriam de base para a produção final do projeto. Depois disso, houve uma socialização das leituras dos grupos com toda a turma, na qual demonstraram uma leitura bastante fruída. Como compreendemos que o ensino de língua portuguesa deve se pautar na formação de pessoas capacitadas a ler, compreender, discutir criticamente e escrever textos de qualidade, a atividade final do projeto foi, portanto, uma produção escrita. Reservamos dois períodos para que os alunos escrevessem a primeira versão do texto, que foi uma recomendação de leitura dos textos lidos em aula, visando o público do blog do curso como interlocutores. A recomendação de leitura deveria contemplar uma breve apresentação do(s) texto(s) escolhido(s) pelos alunos, a visão ou a concepção de África observada no(s) texto(s) e os motivos pelos quais o autor indicaria a leitura do conto ou do(s) poema(s) a um visitante do blog. Desse modo, a etapa seguinte compreendeu a escrita e também possíveis reescritas dos textos produzidos pelos alunos. Reconhecemos, portanto, que para que os alunos compreendessem a escrita como algo de grande relevância na sociedade, seria importante que utilizassem a mesma não como uma exigência formal do ambiente escolar, mas como uma ferramenta de uso social, dado que escrevemos com um propósito e para alguém em paginas.ufrgs.br/revistabemlegal

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específico – não para o professor, com finalidade de correção. Além disso, buscamos, com a reescrita dos textos, que os estudantes percebessem como a produção escrita que circula na sociedade não é sempre dada como algo acabado e perfeito, mas como um processo de construção de sentido, que acontece por meio da reflexão sobre o próprio texto. Propusemos, então, a elaboração de uma revista digital com os textos literários, os textos de apoio e os textos de recomendação dos alunos sobre os textos de literaturas africanas de língua portuguesa. Devido à rotatividade de frequência dos alunos nas aulas, nem todos realizaram a produção escrita ou a reescrita dos textos. A grande maioria dos alunos que escreveu o texto compreendeu bem a proposta e a realizou com sucesso, principalmente os que a reescreveram. Houve, contudo, algumas discrepâncias quanto ao cumprimento da proposta de escrita, devido à heterogeneidade do nível escolar dos alunos. Como o nosso período de estágio não foi suficiente para trabalhar minuciosamente essas dificuldades de escrita, passamos os dados para os professores que trabalham durante o ano letivo com os alunos. Mesmo assim, consideramos que o estágio cumpriu com a nossa intenção inicial, possibilitando um ensino de língua portuguesa que não só levou em conta as necessidades dos estudantes quanto ao uso da língua, mas também uma concepção de discurso enquanto fenômeno eminentemente ideológico, constituído por meio da interação verbal concreta, inserida na história, na cultura e na interação social. Além disso, de acordo com os Referenciais Curriculares do RS (2009), buscamos formar um conjunto de conhecimentos sobre a língua e a literatura que permitisse uma reinterpretação do modo como a nossa sociedade se organiza, enfocando a história, as relações de poder e a busca por um discurso crítico próprio, como constantes nos usos sociais da língua.

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Referências

CHIZIANE, Paulina; CHAVES, Luiz. Phatyma. [curta metragem]. Produção de AfricaMakiya Produções, direção de Luiz Chaves. Moçambique, 2010. 09 min.49s. Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2015.

KLEIMAN, Angela. “Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola”. In: KLEIMAN, Angela (Org.), Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL. Referencial Curricular: lições do Rio

Grande.

Volume

I.

Porto

Alegre,

2009.

Disponível

em

Acesso em: 14 dez. 2015.

SOUZA, R. J.; COSSON, R. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula. In: UNESP. Pró-Reitoria de Graduação. Caderno de formação: formação de professores didática dos conteúdos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2015.

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ANEXO

Apostila

disponível

em:

https://plone.ufrgs.br/revistabemlegal/edicao-atual/16-

vamos-ler-poemas-e-contos-africanos-apostila/at_download/file

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Paloma de Melo Henrique Estuda Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul com ênfase em Língua Portuguesa, Língua Espanhola e suas Respectivas Literaturas. Graduou-se em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra (Portugal) quando foi bolsista do Programa de Licenciaturas Internacionais da CAPES. Atua como educadora em projetos de ensino interdisciplinares para a aprendizagem de Língua Portuguesa em escolas da rede pública por meio do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) UFRGS/CAPES.

Rodrigo Dias Licenciando em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor de Literatura no Centro de Educação e Cultura Pré-Vestibular Resgate Popular e bolsista PIBIC CNPq-UFRGS na área de Literatura Brasileira.

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