Variação na forma Almôndega

May 29, 2017 | Autor: Sebastião Milani | Categoria: Historical Linguistics, Dialectology
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Variação na forma Almôndega 1) [aɫ'mõd gɐ]>[aw'mõdegɐ]>[aw'mõdegɐ]>[aw'mõdigɐ]>[aw'mõnikɐ], [aw'mõnikɐ]> a) [aw'mõnigɐ], [aw'mõnigɐ] b) [aw'mõkɐ]> [a'mõkɐ]> ['mõkɐ] c) [aw'mõdɾɐ] 2) [ɐ'mõdegɐ], [a'mõdegɐ]> [ɐ'mõnikɐ], [a'mõnikɐ]> [a'mõdigɐ] 3) [aɽ'mõnikɐ], [aɽ'mõnikɐ], [ah'mõnikɐ]> 3.a) [aw'mõkɐ]> [ɐɽ'mõkɐ], [aɽ'mõkɐ], [ɐr'mõkɐ]> 3.b) [aɽmõ'kĩɲɐ]> [aɽ'mõkĩɐ] 4) [aɽ'mõʤikɐ]

A palavra almôndega em português lusitano certamente não teria a vocalização muito comum no português brasileiro para o fonema /l/. Apareceu na coleta uma única pronúncia do /ɫ/ consonântico em posição pós-vocálica para esta palavra: [aɫ ′mõdegɐ]. Quando se toma essa forma como inicial, ela é bastante comum entre pessoas de muita idade, conclui-se que essa forma foi a forma implantada com a língua nesse território. O fato é que na variante caipira, e também em várias outras no Brasil o /l/ pós-vocálico é vocalizado e compõe um ditongo com a vogal que o acompanha. Assim, a forma em questão é em sua imensa maioria pronunciada com o fonema /l/ vocalizado: [aw'mõdegɐ]. A forma [aw'mõdegɐ] pode ser pronunciada com o [de] monitorado pelo informante, numa fala mais relaxada com a síncope do [de] [aɽ'mõkɐ] ou com o

abaixamento, resultando na forma de pronúncia [aw'mõdegɐ]. O passo seguinte é a centralização desse fonema em um /i/ também abaixado. Também acontece desse fonema /i/ provocar uma africação no fonema /d/, como na palavra [faʤi'gadɐ], esse é um traço que ocorre com grande frequência nessa variante de fala, mas só foi encontrado uma vez na coleta do ALINGO para a palavra almôndega: [aɽ'mõʤikɐ]. Em todas as regiões do estado encontraram-se as formas [aw'mõnikɐ] [aw'mõnikɐ], essas são formas paralelas em variação livre, relativas ao monitoramento do informante, o que fica evidenciado é a substituição do fonema /d/ oclusivo, sonoro, dental pelo fonema /n/ oclusivo, sonoro, dental e nasalizado. Em Goiás o fonema /n/ aparece quase sempre articulado como dental, por isso a frequente alofonia complementar com o fonema /d/. Isso é comum na evolução do latim para o português e continua muito eficaz nas formas de gerúndio em que muito frequentemente o fonema /d/ sofre síncope em favor da forma nasalizada anterior. A circunstância em almôndega é semelhante, pela existência do traço da nasalidade na vogal anterior ao fonema /d/, mas fato é que em Goiás a troca entre esses fonemas é muito frequente: [is'tɾelɐ mu'dãnʊ], [s'trelɐ ka'ĩnʊ], [iskure'sẽnʊ], ['fɾij ʃe'gɐhnʊ], [ʃuvis'kɐhnʊ] etc. Da forma [aw'mõdigɐ] passa-se à forma [aw'mõnikɐ], nesse caso ocorre o ensurdecimento da consoante velar. Esse fenômeno vai redundar na forma mais comum entre os goianos de nomear esse prato: [ɐɽ'mõkɐ], [aɽ'mõkɐ], [ɐr'mõkɐ]; não apareceu nas gravações transcritas a forma com a líquida glotovelarizada [ah'mõkɐ], mas ela é possível e já foi ouvida pelos participantes da pesquisa. Essa transformação

para o ensurdecimento ou para a sonorização foi encontrada em larga escala na coleta: para o ensurdecimento nas formas [sa'bugʊ]> [sa'bukʊ], [mũgu'za]> [mũkũ'za]> [mũku'za]> [muku'za], ['kɔsegɐs]>['kɔsekɐs]>['kɔskɐ], para sonorização nas formas ['kɾinɐ]> ['gɾinɐ], [kɐh'bɔtɐ]> [gɐh'bɔtɐ]. Da forma [aw'mõkɐ] passou-se à forma [aɽ'mõkɐ]. O fato interessante é que somente na variante caipira se tem a possibilidade alofônica entre a semiconsoante [w] e o retroflexo [ɽ] em coda de sílaba. Considerando outras formas recorrentes da língua como ['gaɽfʊ] para a forma hipercorrigida ['gawfʊ] e como [maɽmi'tɛkɪs] para a forma hipercorrigida [mawmi'tɛkɪs] ou ['kawsɐ] para a forma ['kaɽsɐ] etc, pode-se com certeza afirmar que esta alofonia é muito produtiva nessa variante da língua brasileira. Deve-se ressaltar que nas outras variantes da fala dos brasileiros isso não acontece. Então na fala regional goiana a forma mais recorrente para se referir a esse prato típico da comida brasileira é [aɽ'mõkɐ]. Essa forma ainda passa por duas outras transformações, a monotongação, que gera a forma [aw'mõkɐ]>[a'mõkɐ], e por fim a aférese do fonema vocálico átono pré-tônico desapoiado /a/, que gera a forma também muito recorrente [a'mõkɐ]>['mõkɐ]. ['mõkɐ] é uma referência a bolinha de carne conservada na gordura de porco e frita ou cosida quando se quer consumir. Esse recurso de conservação foi usado, durante séculos quando não se tinha geladeira, para se ter por um longo tempo a carne do porco fresca, para poder consumi-la quando fosse necessária. No geral quando as pessoas querem demonstrar como a forma é falada na

intimidade das famílias elas usam no diminutivo: [aɽmõ'kĩɲɐ]> [aɽmõ'kĩɐ]> [mõ'kĩɲɐ]> [mõ'kĩɐ] e ouviu-se uma vez, mas não ficou gravado, [mõ'kĩ]. Assim sendo, na intimidade essas são as formas de nomear essa comida típica dos brasileiros, que ganhou muita importância na vida dos goianos, devido ao modo de conservar a carne no passado, não muito distante, quando não se tinha eletricidade e refrigeradores.

Conclusão A conclusão a que se chega é que existe uma regularidade de formas e de ocorrência de formas em todo o estado de Goiás que aponta para uma identidade linguística e uma caracterização linguística do povo goiano. As entrevistas com informantes de todas as idades e níveis escolares apresentaram as mesmas formas lexicais para todas as perguntas. A variação lexical de resposta, quando ocorria, foi fato em todos os pontos de coleta. A variação fonética que ocorre na pronúncia está vinculada predominantemente, quase totalmente, ao grau de escolaridade, porque as formas lexicais são as mesmas. Algumas perguntas tiveram como resposta, em todo o estado, um mesmo léxico, em outras mais de um léxico, porém, certos léxicos muito típicos, sempre ocorreram em todos os pontos. Podem-se apontar pinguela, tramela, chuva de molhar bobo, granito (no lugar de granizo), casamento da raposa (para quando ocorre chuva e sol ao mesmo tempo), [sa'bukʊ] para sabugo, [aɽ'mõkɐ] para almôndega, [ãsi'adɐ] e [ãsi'adʊ] para pessoa que comeu demais etc. Do ponto de vista fonético, encontraram-se as mesmas ocorrências fonéticas em

todos os pontos de coleta. Em alguns pontos foram encontradas variantes para certos fonemas em pessoas com mais idade, como é o caso do /R/ pós-vocálico que, nas regiões noroeste e norte do estado, apresentou, entre pessoas de mais de quarenta anos, a forma gloto-velarizada /R/- [h]. Na coleta do ALINGO, nenhum informante com menos de 40 anos produziu essa variante, ao contrário, em muitos casos percebeu-se um forte monitoramento para a produção da forma retroflexa /ɽ/, considerada como identidade da origem goiana ou da opção pela identidade goiana do falante. Ficaram também evidentes na coleta que as mudanças morfológicas que são produzidas no léxico são as mesmas em todo o estado. Neste texto, apontaram-se algumas dessas ocorrências com uns poucos léxicos, mas se poderia verificar essa regularidade na fala dos goianos em qualquer outro léxico ocorrido como resposta para o inquérito. Assim, os morfemas classificatórios de gênero e a derivação sufixal de grau diminutivo apontam para transformações morfológicas idênticas em todo o estado. Não se está apresentando análise sintática nesse texto, mas a coleta contemplou o registro de narrativas espontâneas dos informantes. Futuramente, não muito distante, pretende-se desenvolver uma análise de dados sintáticos a partir de diferentes narrativas que foram coletadas em muitos pontos. Esse será um trabalho mais complexo do que se pode afirmar somente de ouvir as entrevistas e de ter participado como entrevistador, mas, mesmo sendo apenas uma observação empírica, o que se percebeu é a ocorrência dos mesmos traços e os mesmos fatos sintáticos por todo o estado.

A história política, econômica e social do estado de Goiás gera a expectativa de uma regularidade no modo de fala, no vocabulário e na variante linguística. A pesquisa para o ALINGO apresentou o fato da existência de uma característica universal para todo o estado. Podem-se levantar dados fonéticos, fonológicos, lexicais e morfológicos como se fez aqui, a partir das análises já feitas, mas não se tem dúvida que uma análise dos hábitos sintáticos corroborará essa conclusão, de que o estado de Goiás já tem uma característica própria de fala, inclusive empiricamente identificável ouvindo as pessoas conversar livremente.

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