Variantes da Língua portuguesa como construção de uma identidade: confrontando João-Maria Vilanova e Conceição Lima

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Azzurra Rinaldi Literatura Africana de Língua Portuguesa Orientalismo e Africanidade: duas verdades contemporâneas Edward Said no seu ensaio Orientalismo escreve que Oriente é quase uma invenção europeia, porquanto a imagem que os ocidentais têm desta parte do mundo deriva dos ambientes descritos em romances exóticos, recordações de paisagens e experiências extraordinárias. Por isso, para o visitante ocidental é importante a representação que o europeu colonizador deu do Oriente desde a antiguidade. É neste sentido que o escritor coloca o termo orientalismo, ou seja, “um estilo de pensamento que se estabelece na relação entre Oriente e Ocidente”. As diferenças que resultam a partir do confronto entre as culturas ocidental e oriental são tomadas como referência pelos ocidentais para formular teorias, novelas e descrições sociais sobre o Oriente. Assim, o Oriente foi orientalizado e estereotipado. Isto não quer dizer que o Oriente não tenha diferenças em relação ao Ocidente. Se no Ocidente existem numerosas diversidades culturais também no Oriente é assim, mas o ideal de orientalismo oferece uma coerência cultural, étnica e linguística que não é real. Por exemplo ao dizer “árabe” referimo-nos a um conjunto de etnias e culturas heterogéneas (Said, 1990: 19-21), da mesma maneira que se dissermos “quero aprender a falar indiano”, nos esqucemos que na Índia existem mais de 360 línguas e dialetos (Ahmad, 2002: 240). A partir do conceito ocidental de Oriente, ou seja, orientalismo, é possível explicar a noção de Africanidade. Mia Couto explica este termo no seu artigo Que África escreve o escritor africano? Contido em Pensatempos. Africanidade deriva, afirma o autor, da ideologia colonial e é relativo à identidade africana, a qual vai à procura das suas raízes, tentando encontrar uma certa pureza. Pureza que não se manifesta na língua do colonizador, apesar do facto de serem mais ou menos próximas as maneiras de falar de um e outro povo. Este conceito de africanidade pode ser relacionado com o orientalismo, ou seja, se orientalismo oferece uma visão estereotipada do Oriente, a africanidade de Mia Couto é a visão que até o africano quer dar a si mesmo e ao mundo. E assim, a ideia de africanidade torna-se a imagem representativa de África vista através dos olhos ocidentais.

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Com a africanidade, quer-se defender uma pureza africana que não existe. Tentase encontrar uma essência africana voltando ao passado e às zonas rurais, consideradas “tradicionais”, como se a modernidade das áreas urbanas já não fosse África. O elogio dos costumes, das tradições e dos modos de ser lembram e tornam-se apenas “uma banal intenção de exotismo”, em vez de refletir pureza. (Couto, 2005: 59-63) A literatura de África tem quase sempre de responder à pergunta “quanto este autor é autenticamente africano?” Portanto, exige-se ao escritor africano o que não se exige a um escritor ocidental. Deste modo, a produção literária africana chega a ser qualquer coisa dos domínios antropológico e etnográfico (Couto, 2005: 62). O leitor ocidental quer obras que possuam algo de puro, típico e tradicional africano e, em alguns casos, espera encontrar tais elementos para poder criticar e afirmar que essa literatura nunca se tornará universal. O colonizador, quer no Oriente, quer em África, estabeleceu fronteiras entre os seres humanos separando os civilizados dos primitivos. Assim a africanidade, como o orientalismo, continua a ser um estereótipo para os ocidentais, que procuram sempre uma essência africana. Mia Couto oferece, no artigo A fronteira da cultura que também está presente em Pensatempos, o seu testemunho referindo alguns episódios que se passaram consigo, relativamente ao assunto dos estereótipos: “Um africanista numa conferência em Praga disse que o que media a africanidade era um conceito chamado «Ubuntu». E que esse conceito diz que «eu sou os outros»”.(Couto, 2005: 18-19)

O autor conta ainda que um entrevistador, numa outra conferência, lhe perguntou o que significava para ele ser africano, ao que o escritor respondeu “E para si, o que é ser europeu?” (Couto, 2005: 18) No caso das literaturas africanas de língua portuguesa como é que emerge esta africanidade? E, sobretudo, está sempre presente? Ocorreria antes falar de qual é o nível de africanidade que se quer atingir: exotismo, realismo mágico, linguagem particular. Cada autor africano pode trazer consigo uma gota de africanismo que pode aparecer

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apenas nas descrições de personagens ou no cheiro da fruta local desconhecida dos ocidentais. Aqui será analisada a africanidade do ponto de vista linguístico. Serão apresentados dois autores contrastantes: um angolano, João-Maria Vilanova e a outra santomense, Conceição Lima. O primeiro tem muito a ver com a criação de uma identidade angolana e por isso usa uma linguagem bem complexa e desenvolve temáticas relativas à colonização da Angola. A outra, pelo contrário, tende para um certo cosmopolitismo. Fala de África e das suas paisagens, mas não tem que ver com uma crítica efectuada a uma determinada condição. Na sua lírica, segundo Helder Macedo, tudo o que se pode definir como africano, até a “ilha” (termo que aparece com uma grande frequência) representa sentimentos e sensações e lembranças. João-Maria Vilanova usa na sua poesia e nos contos um português que se aproxima da fala das pessoas angolanas e não só, porquanto aparecem também personagens que falam à maneira de Viseu, como na poesia Os colonos do dinheiro falam e falam, com construções frásicas complexas e palavras em quimbundo que simulam a oralidade. Conceição Lima exprime-se seguindo o padrão europeu. É importante dizer que o primeiro é branco e português de nascença, e no entanto a segunda é preta e originária de São Tomé e Príncipe, mas que atualmente vive em Inglaterra. Isto é fundamental do ponto de vista da identidade. Na “angolanidade” do estilo de Vilanova, pode-se inferir uma forte vontade de ser angolano, o que efetivamente, não acontece. João-Maria Vilanova é pseudónimo e alter-ego do juiz João Guilherme Fernandes de Freitas. Portanto o forte sentimento de identidade, que carateriza o estilo do autor, deve-se à criação de uma personalidade outra do português João de Freitas que encarna no autor Vilanova angolano. Pelo contrário Conceição Lima não tem que demostrar ser santomense, ela nasceu ali e é preta. A sua tendência cosmopolita deve-se á sua formação no estrangeiro, em Inglaterra, e às suas viagens que fazem dela uma verdadeira cidadã do mundo. Confrontam-se aqui dois textos dos dois autores. O primeiro é o conto O abutre de Vilanova contido no livro Os contos de Ukamba Kimba.

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“Vavó esse dia igual sempre ela tá levantando espiam as estrelas inda no cêu alto os dedos cacimbosos os dedos da nêvoa kutikulavam teimosos a mulumba dos morros e aí a velha começa cantando água limpa da dizanga na sanga”.

Este trecho já de si de difícil compreensão pela construção da linguagem rica de variantes angolanas e palavras em quimbundo torna-se ainda mais complexo pela falta de pontuação. O leitor que domine o português terá uma grande dificuldade de compreensão e ainda que consiga entender o sentido da obra talvez nunca atinja o seu sentido mais profundo, ou, pelo menos, encontrará sempre no texto algo não perceptível. Completamente diferente é a poesia de Conceição Lima, por exemplo, Três verdades contemporâneas, incluídas em O país de Akendengué:

Creio no invisível Creio na levitação das bruxas Creio em vampiros Porque os há

A escolha desta lírica deve-se ao facto de ser breve, mas também porque inclui nos seus versos elementos mágicos. Em uma leitura superficial os elementos que aparecem podem ser ligados a uma certa africanidade, mas a verdade é que estas representações existem mesmo no imaginário ocidental. O leitor europeu ou americano, com as devidas bases linguísticas, consegue compreender sem dificuldade o texto, a estrutura, as imagens e as palavras (deixando de lado a sua interpretação). A autora em lugar de “bruxas” poderia ter usado o termo piadô-zána (que no crioulo santomense significa “vidente”) para marcar uma africanidade, ou melhor uma identidade santomense, mas a sua escolha foi escrever em português. Os dois autores são de gerações diferentes, o Vilanova escrevia antes da independência das colónias, enquanto Conceição Lima é uma autora contemporânea. Portanto é também preciso dizer que a identidade manifestada pelo poeta é devida ao contexto histórico em que vivia. Onde se buscava uma identidade diferente do colonizador e se queria criar e despertar uma consciência nacional.

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Para fazer um confronto com autores do mesmo tempo, toma-se em consideração Conceição Lima e a sua colega Olinda Beja. Esta última é igualmente santomense, crescida em Portugal e atualmente a viver na Suíça. A autora volta pela primeira vez à sua ilha natal só depois de trinta e sete anos. O seu romance 15 dias de regresso conta a história do seu retorno às raízes e da sua “reafricanização”. Obviamente, nem tudo o que está escrito no livro é verdade, claramente é uma história de ficção, mas contém traços autobiográficos. Na poesia Dádiva de Olinda Beja encontram-se muitas marcas crioulas que vão dos nomes das frutas aos rituais mágicos:

Trago-te aromas de água Frutos de gentes pele escura Gotículas de seiva vidas capinadas Oquês barrentos emprenhados De pau-canela e cajamanga Trago-te aromas de corpo-alma Rituais de puíta e Danço-Congo Insónias tropicais. [...]

Esta poesia está no livro Água crioula. Armindo Vaz de Almeida, autor da nota de apresentação, refere que a coletânea é um caderno dedicado à terra de origem, às gentes, às coisas do torrão natal. De facto, na criação do ambiente que transporta o leitor para a ilha estão presentes palavras em crioulo, como é possível notar na poesia acima citada. Portanto, apesar de escreverem na mesma época, as duas escritoras diferenciam-se. Olinda Beja escreve de uma maneira mais “africana” sem deixar dúvidas sobre a sua origem. Em conclusão, a literatura africana é bem mais vária e diversificada do que sugerem os estereótipos ocidentais. O problema da divulgação das obras e das traduções é que alimenta a ideia de que este tipo de literatura é pouco rica.

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Portugal encontra-se numa posição de vantagem, sobretudo em relação à facilidade de fruição de livros que pertencem à literatura africana de expressão portuguesa, já que as obras se encontram com bastante frequência em várias livrarias. Em Itália, por exemplo, a situação é diferente, porque é um país que não foi colonizador, pelo que todas as obras de literatura africana têm de ser traduzidas e se tornam difíceis de encontrar. A pouca circulação das obras alimenta os estereótipos de duas maneiras: por um lado, a tendência das editoras e de quem possui os direitos de autor faz com que os textos comercializados mantenham aquelas ideias de orientalismo e africanidade, por outro, a limitada tradução de textos devida à falta de interesse comercial e atenção pelos leitores estimula a crença de que África, assim como o Oriente não tenham uma literatura notável como a de Tolstoi ou Dostoievski. A tradução é um meio para que as obras literárias possam ser lidas em todos os cantos do mundo, mas enquanto uma literatura mantiver a etiqueta de “marginal” ela nunca circulará e por isso, restringindo o conjunto, as literaturas africanas de língua portuguesa estarão apenas disponíveis para os “poucos” que dominem esta língua.

Referências Ahmad, Aijaz, Linhagens do Presente, Boitempo, São Paulo, 2002. Beja, Olinda, Água Crioula, Pé de Página, Coimbra, 2007 Couto, Mia, Pensatempos, Caminho, Lisboa, 2005 Louceiro Clenir, Ferreira Emília e Cruz Elizabeth Ceita Vera, 7 Vozes: Léxico coloquial do português luso-afro-brasileiro, Lidel. Edições Técnicas, Lisboa, 1997 Lima, Conceição, O País de Akendenguê, Caminho, Lisboa, 2012 Said, Edward W., Orientalismo, Libertarias, Madrid, 1990. Vilanova, João-Maria, Os Contos de Ukamba Kimba, Nóssomos, Vila Nova Cerveria, 2013.

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