Vazios urbanos e Patrimônio Industrial: interfaces com o ordenamento urbanístico e o patrimônio cultural

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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Denise Barcellos Pinheiro Machado

Reitor Carlos Antonio Levi da Conceição Pró-Reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças Carlos Rangel Rodrigues

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo Rachel Coutinho Marques da Silva

Decana do Centro de Letras e Artes Flora de Paoli Faria

REALIZAÇÃO Laboratório de Patrimônio Cultural e Cidades Contemporâneas – LAPA/PROURB Projeto Gráfico: Maristela Carneiro – Algo+ Soluções Editoriais Ficha Catalográfica: Eneida Oliveira Os conceitos emitodos neste livro são de inteira responsabilidade dos autores

V393 Vazios urbanos: percursos contemporâneos / Organização de Andréa de Lacerda Pessôa Borde. – Rio de Janeiro : Rio Books, 2012. 1 cd. ISBN: 978 – 85 – 61556 – 29 – 7 1. Urbanismo 2. Planejamento urbano 3. Patrimônio Cultural. 4. Renovação Urbana. I. (Borde, Andréa de Lacerda Pessôa). Org.



CDD: 307.416 6

EXPRESSÕES CONTEMPORÂNEAS DOS VAZIOS URBANOS

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Andréa de Lacerda Pessôa Borde

PROJETOS URBANÍSTICOS E VAZIOS URBANOS: REVISITANDO O TEMA

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Carmen Beatriz Silveira e Lilian Fessler Vaz

REQUALIFICAÇÃO URBANÍSTICA DAS ÁREAS PERICENTRAIS NO RIO DE JANEIRO Cristovão Fernandes Duarte

INSTRUMENTOS PARA A REINSERÇÃO IMOBILIÁRIA NAS ÁREAS CENTRAIS E PERIFERIAS

IMEDIATAS DAS GRANDES CIDADES Fernanda Furtado

TANTOS TETOS E TANTOS SEM-TETO1: Relato analítico de uma experiência de readequação de edifícios públicos ocupados. 73



Luciana Andrade

VACÂNCIA E INTERVENÇÕES NO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR - Tensões entre privatização urbana e

direito à cidade 86 Angela Gordilho Souza

A REGENERAÇÃO URBANA CONTEMPORÂNEA. Entre o espetáculo e as necessidades

socioantropológicas das cidades 122 Evelyn Furquim Werneck Lima

VAZIOS URBANOS E PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: Interfaces com o ordenamento urbanístico

e o patrimônio cultural.

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Andréa da Rosa Sampaio

VAZIOS NA PERIFERIA METROPOLITANA: Sobre a singularidade dos espaços-entre 166 José Almir Farias Filho

VAZIOS URBANOS CONTEMPORÂNEOS: Conceitos, permanências e alteridades Andréa de Lacerda Pessôa Borde

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VAZIOS URBANOS E PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: Interfaces com o ordenamento urbanístico e o patrimônio cultural. Andréa da Rosa Sampaio

Ruínas do Antigo Frigorífico da CIBRAZEM, na Área do projeto Porto Maravilha. O imóvel foi cedido à iniciativa privada, em 2008, para a construção do Aqua-Rio, mas seu destino continua incerto. Fonte: Andréa Sampaio, 2011.

Introdução A situação de sucateamento do patrimônio edificado, particularmente de notáveis bens protegidos – exemplares de patrimônio industrial arruinados – instiga a investigação sobre os processos que levam da obsolescência da edificação à condição de vazio urbano e sobre as perspectivas e

Por outro lado, a perspectiva de sediar a Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 inaugura um novo ciclo de valorização, e consequentemente, de pressões especulativas sobre a área urbana central, que confrontam as oportunidades de reabilitação do patrimônio através da aplicação de recursos públicos e privados com a vulnerabilidade do patrimônio edificado e a precariedade das condições habitacionais da população residente no antigo casario. Tamanho contraste remete aos paradoxos presentes na cidade e evidenciados na área urbana central, em função da oscilação entre ciclos de valorização e desvalorização simbólica e econômica da área que, como núcleo original da cidade, concentra a Área Central de Negócios e o Centro Histórico, e possui um acervo patrimonial correspondente ao seu status de capital durante mais de dois séculos.

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entraves para sua reabilitação. Tal situação é comum nos grandes centros urbanos brasileiros e será observada no caso da área urbana central do Rio de Janeiro, através de uma leitura sob a perspectiva de suas interfaces com o ordenamento urbanístico e com a preservação do patrimônio industrial.

Assumindo-se como premissa metodológica que “o estudo do conjunto da estrutura urbana só se concebe em sua dimensão histórica” (Panerai, 2006), a presente reflexão percorrerá o processo histórico da área central, buscando delinear as interfaces entre vazios urbanos, ordenamento urbanístico e patrimônio industrial, de modo articulado aos processos de obsolescência das edificações e do tecido urbano central. Para tanto, busca-se evidenciar os nexos entre esses processos e os impactos de projetos de reurbanização da área central, aos reflexos de legislações urbanísticas e à formação de vazios urbanos, de modo articulado à tomada de consciência do valor da área urbana central da cidade como patrimônio ambiental urbano e ao tardio reconhecimento do legado arquitetônico que viria a ser considerado como patrimônio industrial. A problematização da questão fundamenta-se em referenciais que discutem a noção de patrimônio cultural na contemporaneidade (Choay, 2001 e 2011; Meneses, 2006), definem o patrimônio industrial como bem cultural e objeto de pesquisa (Kuhl, 2010; Meneguello, 2011), analisam o percurso histórico da proteção ao patrimônio cultural de modo articulado às legislações e às intervenções urbanísticas projetadas para a cidade (Sampaio, 2006 e 2011), em referenciais que problematizam o fenômeno dos vazios urbanos centrais (Borde, 2006) e as interfaces entre vazios centrais e patrimônio cultural (Borde, 2012). Ancora-se a discussão na compreensão da cidade como bem cultural, tal como defendida por Meneses (2006) que a concebe como um artefato socialmente apropriado em três dimen-

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sões, intimamente imbricadas que atuam solidariamente: a dimensão do artefato, já que a urbanização é um produto próprio da sociedade; a dimensão do campo de forças, em cujo espaço se desenvolvem tensões e conflitos na economia, na política, na vida social, nos processos culturais, etc. e, finalmente, a dimensão das significações, que dotam de sentido e inteligibilidade o espaço. Esse discernimento contribui para a problematização da temática, que deve ser compreendida como parte do processo urbano. A reflexão tem como base pesquisas sobre as normas urbanísticas e patrimoniais vigentes na área urbana central1, nas quais se evidencia a influência que as normas de preservação têm sobre o tecido urbano e a dinâmica local. No entanto, a recorrente condição de arruinamento de bens tombados expõe a incapacidade da legislação em garantir à conservação dos bens frente à dinâmica do processo urbano. Tal situação sugere que a preservação urbana é uma questão complexa, para a qual instrumentos legais isolados de ações são insuficientes para dar conta da dinâmica urbana e não impedem o sucateamento do patrimônio, gerando vazios urbanos. Além dos reflexos da legislação urbanística, também serão observados casos em que projetos de renovação urbana baseados no arrasamento do tecido urbano tradicional, inspirados no paradigma moderno de cidade, impactaram na decadência física e econômica da área, ainda que não tenham sido implantados. Merecem destaque, projetos para a Área Portuária e para o bairro da Cidade Nova, bairros que recentemente passaram a receber investimentos após décadas de descaso. Nessas áreas há notáveis exemplares de patrimônio cultural sucateados e subutilizados, prestes a ruir, bem como casos isolados de bens restaurados.

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A compreensão dessa conjuntura sob a ótica do patrimônio cultural implica na revisão da trajetória da política de proteção dos bens culturais vigente, que reflete a evolução da noção de patrimônio cultural. Merecem particular atenção os aspectos relativos à atribuição de valor ao patrimônio industrial como bem cultural, reconhecido não só pelo valor arquitetônico, mas como herança do processo de industrialização. Verificam-se lacunas no que tange a abordagem dessa temática sob o ponto de vista adotado no presente trabalho, que reconhece a dimensão urbana do patrimônio industrial, que mais frequentemente é tratado em projetos, pesquisas e inventários como objeto arquitetônico, a partir de trabalhos monográficos sobre indústrias, experiências de intervenções em bens, frequentemente se valorizando o potencial de reconversão em novos

A perspectiva adotada considera a conservação integrada como uma premissa, a qual pressupõe a articulação da conservação com o planejamento urbano para uma abordagem do patrimônio industrial da área urbana central a partir do conceito contemporâneo de patrimônio ambiental urbano, que supera o foco no monumento isolado e contempla a qualidade ambiental da paisagem cultural socialmente construída (Castriota, 2009).

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programas, sobretudo equipamentos culturais. Tal situação não se restringe ao recorte espacial do Rio de Janeiro, mas já foi apontada por Meneguello (2011) ao circunscrever o patrimônio industrial em suas nuances como tema de pesquisa.

O patrimônio Industrial como bem cultural Primeiramente convém delinear o que se entende por patrimônio industrial e o contexto em que o mesmo emerge como tema de estudo específico no campo disciplinar da preservação do patrimônio. Kuhl (2008) ampara a conceituação de patrimônio industrial a partir da definição de arquitetura industrial, a qual compreende a “arquitetura do processo de industrialização”, ou seja, a produção arquitetônica resultante do processo de industrialização, englobando tanto edifícios destinados às atividades industriais, como aqueles construídos com materiais pré-fabricados, e os destinados ao funcionamento de meios de transportes. Os exemplares de arquitetura industrial empregam materiais de construção cuja produção passou a ser industrializada no decorrer do século XIX, a exemplo do vidro, do tijolo e do ferro fundido. A partir de então, surgem os elementos pré-fabricados, geralmente metálicos, empregados em vários tipos de construções, principalmente em pontes, viadutos e passarelas, estações e abrigos de plataforma, além de programas variados de galpões – armazéns, oficinas, matadouros, mercados – e ainda gasômetros, moinhos, entre outros. O reconhecimento do valor cultural de exemplares da arquitetura industrial como Patrimônio Industrial é uma construção conceitual recente, surgida no bojo da ampliação da noção de patrimônio cultural na década de 1960, a partir da preocupação com a perda do legado do processo da industrialização, com demolições de exemplares notáveis de arquitetura industrial, sobretudo na Inglaterra e na França, no âmbito do processo de desfuncionalização dos parques industriais

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urbanos das grandes cidades (Kuhl, 2010)2. Este movimento alcançou difusão internacional nas décadas seguintes juntamente com o processo de desfuncionalização dos parques industriais urbanos das grandes cidades que atingiria seu ápice nos anos 1970. O campo de pesquisa vem se consolidando, impulsionado pela vulnerabilidade desse patrimônio em face das transformações urbanas, já tendo se consagrado e instituído a partir de fóruns de discussão internacionais e nacionais. Os estudos realizados sobre o tema no âmbito do International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage –TICCIH foram sintetizados na Carta de Nizhny Tagil (Rússia, julho de 2003) 3. Primeiro documento de referência internacional com a finalidade de guiar a proteção e conservação do Patrimônio Industrial, a Carta traz a seguinte definição: “O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de processamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção, transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas estruturas e infra-estruturas, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de culto ou de educação”. (Carta de Nizhny Tagil, 2003) A Carta de Nizhny Tagil consolida a definição de patrimônio industrial e estabelece parâmetros para as intervenções realizadas nos sítios industriais, as quais devem ser reversíveis, devendo ser registradas todas as alterações inevitáveis, e os elementos significativos, eventualmente eliminados, devem ser inventariados e, se possível, armazenados num local seguro.

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Em 2011 a atualização do debate é formalizada no documento conjunto ICOMOS/TICCIH Princípios para a Conservação de Sítios, Estruturas, Áreas e Paisagens do Patrimônio Industrial , conhecido como “Princípios de Dublin”, no qual são enumeradas propostas para aprofundar o conhecimento, a proteção e a conservação do patrimônio industrial, justificadas por sua grande vulnerabilidade. O documento aponta como causas da perda desse patrimônio, a falta de

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conscientização, documentação, reconhecimento ou proteção, assim como devido a mudanças de tendências econômicas, as percepções negativas, questões ambientais ou de seu tamanho e complexidade. O mesmo documento preconiza que a conservação do patrimônio industrial construído pode contribuir para alcançar os objetivos do desenvolvimento sustentável nos níveis local, nacional e internacional, tanto nos aspectos sociais, como físicos e ambientais. (ICOMOS/ TICCIH, 2011). Embora seja notória a significação cultural de certos exemplares do patrimônio industrial na memória urbana e evidente o potencial de reconversão da arquitetura industrial subutilizada, ainda é grande o desafio pela sua preservação, tendo em vista a complexidade na defesa de sua caracterização como bem cultural, inclusive por sua diversidade tipológica, e, sobretudo devido às pressões especulativas pelos terrenos hoje localizados em zonas centrais, que são frequentemente considerados ociosos e passíveis de renovação urbana, conforme discutido por Rufinoni (2009), Kuhl (2010), entre outros. Meneguello (2011) alerta para a necessidade de se tratar o patrimônio industrial em sua dimensão urbana, uma vez que o seu desmantelamento é um problema urbano em larga escala. Não obstante os preceitos já consagrados no campo da preservação, tem se observado cada vez mais nas metrópoles brasileiras, mega-projetos que descaracterizam, ou mesmo arrasam, o patrimônio industrial, balizados pelo lucro imobiliário, e justificados por supostos benefícios à sustentabilidade ambiental. A preocupação com a perda do patrimônio industrial nesse tipo equivocado de projeto tem sido recorrentemente objeto de estudos em casos paulistanos4, mas o risco se estende a casos no Rio de Janeiro, onde se observa a vulnerabilidade dos antigos galpões da área Portuária, em função dos novos parâmetros urbanísticos, que incidem sobre imóveis não protegidos, ainda que muitos sem valor patrimonial, enquanto outros ostentam um significativo valor cultural. Essa conjuntura pode ser explicada tanto pelo incipiente reconhecimento do valor patrimonial do patrimônio industrial nas políticas de proteção, conforme será discutido adiante no âmbito da abordagem sobre a evolução da noção de patrimônio cultural, mas principalmente pela dinâmica à qual a área urbana central está sujeita. Nesse sentido, adotando-se as dimensões propostas por Meneses (2006), tratou-se do patrimônio industrial enquanto objeto de estudo em suas dimensões

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de “artefato” e de “significações”, partindo-se então para a abordagem de sua dimensão “campo de forças”, contextualizada pela dinâmica urbana, em que se discutirá a conjuntura atual da área em sua espessura histórica e a influência exercida pelo ordenamento urbanístico.

A área urbana central do Rio de Janeiro na contemporaneidade O percurso sobre o processo urbano da área urbana central do Rio de Janeiro reconhece sua espessura histórica sob um olhar contemporâneo. Verificam-se processos análogos a outros grandes centros, em que o núcleo central, mesmo servido de equipamentos urbanos e infraestrutura, vem perdendo população e atividades econômicas, tal qual o diagnóstico do Programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais5 (Brasil, 2005). O recorte espacial aqui examinado contempla a Área de Planejamento 1 (AP-1), conforme divisão administrativa do Planejamento Urbano municipal, excetuando o bairro de Santa Teresa, de uso predominantemente residencial. Trata-se, portanto, da área do núcleo urbano original (a Cidade Velha), atual centro financeiro da cidade, sua área de expansão imediata (a Cidade Nova), correspondente aos bairros Centro, Cidade Nova, Catumbi, além dos bairros portuários Saúde, Gamboa e Santo Cristo e ainda São Cristovão. Sendo simultaneamente Área Central de Negócios e Centro Histórico, convivem na área central prédios e terrenos muito valorizados, com singelos sobrados comerciais, além de vazios urbanos, nesses incluídos prédios em acelerado estado de degradação. Enquanto determinados trechos dessa área são revitalizados conforme um modelo contemporâneo de patrimonialização, com centros culturais e bens preservados, produzindo verdadeiros nichos de globalização, outros, localizados principalmente nas franjas do centro de negócios, sofrem um processo de esvaziamento – degradação e abandono – de seus bens culturais. Tal conjuntura engendra paradoxos, tratados por Guimaraens (2002), em que a verticalização e o adensamento dos espaços centrais foram, sobretudo, causa e consequência da criação de uma imagem contemporânea e histórica do centro do Rio, no âmbito da política Federal de proteção ao patrimônio. Nesse sentido, observam-se setores verticalizados aonde a legislação de preservação não atuou, ou o fez recentemente.

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Corrobora-se com o entendimento de Borde (2012) quanto ao papel estruturador dos vazios urbanos e do patrimônio edificado nos processos de formação do tecido urbano da área central. Traçando a história urbana da área central a partir da formação dos vazios urbanos, Borde (2006) estuda a conjuntura de suas diferentes causas e propõe critérios de análise e reabilitação. Já os entraves gerados pelos vazios são sublinhados em estudos realizados pelo Poder Público com a finalidade de justificar planos e projetos urbanos6, apoiados em diagnósticos que expõem o processo de deterioração físico-urbanística e de esvaziamento sócio-econômico dos bairros centrais, os entraves fundiários, a existência de áreas potencialmente renováveis e sub-utilizadas pela Indústria da Construção Civil, imóveis e áreas em processo de degradação urbanística, vazios existentes ou potenciais decorrentes da desocupação de edificações ou áreas, apontando a necessidade de desenvolvimento sócio-econômico e físico-territorial. A conjuntura de degradação é comum às franjas da área central, conforme já alertado por Santos (1986) ao discutir o modelo de urbanização em vigor, a vulnerabilidade do casario e da população residente e defender o seu potencial como patrimônio urbano. Conforme tratado em Sampaio (2006), na década de 1960, São Cristóvão e demais bairros periféricos ao centro – Catumbi, Cidade Nova, Estácio e bairros portuários, enquadravam-se numa zona típica de degradação da cidade, mas de função predominantemente industrial, levando a sua inclusão na faixa de transição que cerca a city7 (Área Central de Negócios). Estas áreas caracterizam-se pelo estado de degradação dos prédios e grande valorização dos terrenos, instalação de pequenas indústrias, artesanato, escritórios e depósitos, ou seja, usos de apoio ao centro, sendo significativa a demanda por uso de estacionamentos nessas áreas. O processo histórico que conformou essa paisagem urbana hoje considerada histórica constituiu-se por intervenções urbanizadoras, remodeladoras e renovadoras que desempenharam um papel estrutural ao dotarem a cidade de infraestruturas, particularmente, as viárias. Estas obras conformaram a morfologia urbana da cidade do Rio de Janeiro, até mesmo nos rastros deixados no tecido urbano por alguns projetos drásticos não implantados (Sampaio, 2011)8. A conjuntura política e administrativa de capital durante dois séculos desempenhou papel fundamental na conformação do acervo edificado e também no esvaziamento da área, intensi-

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ficado quando a Capital Federal foi transferida do Rio para Brasília em 1960. Naquela ocasião, várias instituições públicas se mudaram da cidade, deixando muitos edificações vazias, muitas das quais assim permanecem até os dias de hoje. As mudanças paradigmáticas na cidade ocorrem no período que vai do final do século XIX às duas primeiras décadas do século XX, sendo significativas para o entendimento do atual espaço urbano da cidade. A cidade deixou de ser essencialmente comercial para se transformar em centro industrial e porto agro-exportador. O centro ganha características da modernidade e os subúrbios começam a se delinear como a principal área industrial durante todo o século XX. Também é, nessa fase, que surge a zona sul como território das elites, enunciando uma configuração espacial que contrastava com o restante da cidade (Abreu, 1988). Nessa curta trajetória histórica para o entendimento das condições atuais do patrimônio industrial, cabe pontuar a lógica de localização urbana, sobretudo das indústrias e a moradia das elites, que segundo Villaça (1999), são agentes estruturadores da ocupação do espaço urbano. Os usos incômodos – habitações coletivas proletárias e os chamados usos “sujos9” – como matadouro, cocheiras, curtumes e atividades portuárias – foram sendo paulatinamente expulsos do centro em direção à periferia da cidade. Com a intensificação da industrialização também as indústrias passaram a ser consideradas uma vizinhança nociva, em especial na área central e nas localizações valorizadas pelo capital imobiliário. Enquanto que, nas áreas valorizáveis, a presença da indústria poderia acarretar a desvalorização do valor dos terrenos, nas áreas populares, sua presença facilitava o acesso ao local de trabalho. Assim, atraídas pela proximidade das indústrias, sem maiores preocupações ambientais, proliferaram-se vilas operárias e habitações coletivas em São Cristovão. A abertura da Avenida Brasil (1940-1946) trouxe consigo uma nova dinâmica urbana para a região e para os subúrbios, ocasionando a transferência de grandes indústrias instaladas na área central, sobretudo em São Cristovão, para áreas mais distantes da cidade (Sampaio, 2006).

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O patrimônio industrial da área central da cidade é hoje conformado, sobretudo, por galpões de antigas fábricas, sendo as mais antigas instaladas em São Cristovão, entre meados e o final do século XIX, armazéns portuários das antigas Docas, e notadamente armazéns portuários implantados com a extensão do Porto, na área aterrada durante a Reforma Pereira Passos10. Cabe

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destacar que o próprio processo de reestruturação do Porto no início do século XX, atendendo às novas demandas comerciais de então, ocasionou a obsolescência de alguns dos armazéns mais antigos, que ficaram afastados do cais11. Instalações ferroviárias e inúmeras instalações industriais implantadas na área portuária são remanescentes da cadeia produtiva que vigorou na região e foi sendo desfuncionalizada a partir da década de 1960. Essa paisagem urbana histórica, aparentemente agonizante, e de grande significação histórica está sendo resignificada através da reocupação de antigos galpões pela indústria criativa – escolas de samba, ateliês, escritórios de arquitetura e design, ao mesmo tempo em que é confrontada pelo projeto Porto Maravilha, através de obras viárias e uma proposta de tabula rasa em parte da área. Observa-se um risco iminente da perda desse patrimônio, diante da desproteção legal e da tendência crescente de mudanças de usos, que implicam em adaptações, demolições e construções de novas tipologias. Por outro lado, é através desse mesmo projeto estão sendo realizadas ações de valorização do patrimônio e recuperação de bens, através da aplicação de recursos advindos da operação com os CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção), conforme determinação da Lei que rege a OUC Porto Maravilha12.

O Processo Urbano e o Ordenamento Urbanístico Revisitando a evolução urbana da cidade, verifica-se um crescente papel das normas urbanísticas ao longo de sua história. Os seus primeiros mentores foram os higienistas, preocupados em controlar o modo de crescimento da cidade, com particular preocupação em relação à salubridade das habitações, ao saneamento de pântanos e à ventilação da cidade, prejudicada pelas ruas estreitas, bem como à localização dos chamados usos “sujos”, em função de suas incomodidades e estigmas. Embora as normas de meados do século XIX já tratem de usos, em termos de salubridade e incomodidades, vários destes usos somente deixaram o centro, quando expulsos pelas reformas: Pereira Passos (1903-1906) e abertura da Avenida Presidente Vargas (1ª fase na década de 1940 e alargamento da área da Cidade Nova na década de 1960). A periferia da área central e, em particular são Cristovão, recebe então a população, juntamente com seus ofícios, banidos da área central.

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A leitura da conjuntura atual à luz do processo histórico do ordenamento urbanístico revela uma sucessão de legislações urbanísticas que redefiniu o zoneamento e as áreas de conservação urbana, explicitando conflitos de interesses, expressos tanto em projetos urbanos como nas normas urbanísticas. Essa sobreposição de instrumentos normativos não impediu a decadência física nem a vacância dos edifícios protegidos como patrimônio cultural. Em muitos casos, as restrições normativas conduzem ao esvaziamento, que somadas aos entraves fundiários praticamente cristalizaram alguns vazios urbanos dessa área e dificultam sua reabilitação (Sampaio, 2006 e 2011). Em Sampaio (2006), revisitando o percurso histórico da cidade, verifica-se um papel crescente da regulação urbanística a partir do início do século XX. Identificou-se a coexistência de diferentes modelos normativos vigentes na cidade desde as normas urbanísticas precursoras, e a passagem do planejamento urbano geral – o zoneamento – para um planejamento descentralizado, pautado em normas locais. Verificou-se um leque de normas que equacionam o modelo de ocupação, balizadas em parâmetros urbanísticos ora indutores, ora restritivos, em relação ao adensamento e transformação de usos. A partir dos anos 20, com o processo de industrialização do país, o Rio de Janeiro, então capital da república, passa a sofrer grandes transformações em seu espaço urbano devido não só ao crescimento populacional, como para acomodar a atividade industrial, sendo já observada a formação do mercado imobiliário. Como a área mais regulada da cidade, o centro foi sucessivamente objeto de normas urbanísticas, desde o primeiro zoneamento da cidade (1924), até a sua consolidação no Código de Obras do Distrito Federal (1937)13, que vigorou por três décadas, e foi substituído pelo zoneamento de molde funcionalista da década de 1970, acrescido de normas patrimoniais a partir da década de 1980, posteriormente ampliadas na década de 90. Na maior parte das vezes, a legislação, pulverizada em decretos, limitou-se a referendar os caminhos espontâneos do crescimento da cidade e as tendências já existentes, além de concretizar as expectativas de grupos ligados ao setor da construção civil.

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Os princípios Modernistas orientaram projetos urbanos a partir da década de 1940 até a década de 1970 no Rio de Janeiro. Além disso, os regulamentos de zoneamento de 1970 e 1976 eram pautados na segregação funcional, preconizando um centro monofuncional, através da restrição do uso residencial na área central, apesar da presença significativa de moradias em sobrados tra-

Essa sobreposição normativa havia configurado o núcleo do espaço urbano central como a parte mais verticalizada da cidade. A condenação desse modelo de urbanização predatório veio na década de 1980 com a implementação das Áreas de Preservação Urbana14, quando se verificou a transição da proteção da escala arquitetônica para urbana. Até então, somente os bens culturais mais notáveis eram protegidos através de atos de tombamento.

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dicionais e de exemplares de habitação multifamiliar localizados na periferia do núcleo central, nos bairros do Catumbi, Rio Comprido e Cidade Nova.

A partir da década de 1980, com a instituição do órgão de tutela municipal e legislação competende, a preservação passa a ser política urbana com a designação de Áreas de Preservação, que estancaram o processo de renovação urbana que vinha destruindo parcelas significativas do tecido urbano mais antigo da cidade, ali situados exemplares arquitetônicos que atualmente seriam considerados incontestes bens culturais15. Essa tendência se intensifica a partir da década de 1990, quando se ampliou a área preservada e a quantidade de imóveis tombados e preservados, conforme apresentado em Sampaio (2011). Atualmente, o regime normativo vigente conjuga a legislação local com uma grande parte preservada pelas APACs e trechos onde ainda vigora o regulamento de Zoneamento do Decreto 322/ 1976. Com a finalidade de promover a revitalização da área, a Lei nº 2.236/ 1994, conhecida como Lei do Centro, foi formulada como AEIU – Área de Especial Interesse Urbanístico, em caráter transitório, aguardando a edição de um PEU. Essa lei permite usos mistos, em particular habitacionais, uso que havia sido limitado na área central desde 1970, em detrimento das cristalizações residenciais existentes, particularmente na região portuária. A repercussão da intenção da Lei do Centro em restabelecer a mistura de usos com a volta da função residencial ainda é lenta, ocorrendo alguns empreendimentos isolados recentes. A mais recente legislação local incidente no recorte espacial resulta da Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha, aprovada pela Lei Complementar no101/2009. Apesar da delimitação estabelecida como AEIU para a área portuária, sua influência extrapola seus limites, dada a magnitude de suas propostas viárias e dos novos parâmetros urbanísticos, que propõem o adensamento a partir de gabaritos elevados. Infere-se que a configuração espacial atual é um legado de um processo urbano que conjugou projetos e normas urbanísticas, pautados na urbanização e reurbanização de áreas, num processo análogo aquele apontado por Harvey (1992) como “destruição criativa”, que explicaria

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os impasses do projeto de modernidade – como poderia ser criado um novo mundo sem destruir boa parte do existente? Esta expressão englobaria a preocupação significativa com a remodelação das cidades, de caráter, sobretudo, higienista, evidenciada ao longo do século XIX. Nela se enquadram, por exemplo, a reforma de Paris, que se tornou paradigma para outras em vários lugares, inclusive a reforma de Pereira Passos (1906), no Rio de Janeiro. A noção de progresso vinculada ao modelo de cidade teve seu ápice no movimento modernista. A cidade modernista imbrica projeto e norma, preconiza a monumentalização da construção – em especial a habitação social – a segregação das atividades, o isolamento das formas arquitetônicas e a condenação das formas passadas (PANERAI, 1996). Assim sendo, o completo arrasamento de extensas áreas da cidade, em operações de tábula rasa, foram defendidas pelos urbanistas filiados ao Movimento Moderno e colocados em prática nas cidades ocidentais16. Verifica-se uma série de projetos para a área central do Rio nesses moldes, sendo alguns tão drásticos que deixaram rastros mesmo quando não implementados. Decadência, desvalorização e degradação das propriedades e do espaço público, além de espaços subutilizados são algumas das consequências recorrentes que ameaçam a população residente nessas áreas condenadas a ser varridas do mapa. Destacam-se os casos do projeto da Avenida Norte-sul17, discutido por Sampaio (2011), que gerou repercussão, mesmo sem ser implantado, na área portuária e no sopé do Morro da Conceição e uma série de projetos na área da Cidade Nova, que redesenharam o antigo tecido urbano, destruindo a Praça XI e arrasando extensas áreas, deixando parte do casario, que ainda é um reduto habitacional de uso misto. Tais projetos foram concebidos sob a prevalente lógica do funcionamento do sistema viário, resolvendo ligações metropolitanas, sem preocupação com a escala local. Menor vitalidade econômica e menor coesão social em função do destino incerto dessas áreas, têm acelerado a deterioração causada pela condenação daqueles quarteirões, cujas edificações acabam abandonadas por seus proprietários, levando a deterioração física, a subutilização dos espaços e sua ocupação informal dos imóveis. Tais reflexos discutidos por Sampaio (2011) para a área sob impacto da Avenida Norte-sul, podem ser generalizados para outros casos, como da área da Cidade Nova. Embora estas áreas tenham sido reconhecidas como patrimônio cultural no final da década de 1980 e início de 1990, atualmente a maioria dos sobrados antigos

A trajetória da proteção ao patrimônio cultural

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encontra-se em péssimo estado de conservação e abriga atividades impróprias, particularmente estacionamento e armazenamento.

A conjuntura atual da área urbana central foi brevemente discutida anteriormente a partir de seu ordenamento urbanístico. Busca-se, na sequência, estabelecer nexos entre seu processo urbano e a tomada de consciência do valor cultural do patrimônio urbano, o que permitirá elucidar questões como a perda de bens culturais e o estado degradado de certos conjuntos urbanos, como parte das escolhas normativas do urbanismo e do planejamento urbano. Nesse sentido, busca-se pontuar os conceitos que convergiram para o amadurecimento da proteção ao patrimônio cultural, aí incluindo a tomada de consciência quanto o valor cultural do patrimônio industrial. Cabe primeiramente lembrar que os instrumentos de proteção ao patrimônio cultural tem como finalidade impedir sua destruição, pautados em moldes que podem ser denominados como uma “retórica da perda”18, sendo frequentemente aplicados emergencialmente para impedir a destruição dos bens. Tal condição faz parte da gênese do campo disciplinar, que conforme argumento de Choay (2001) surge na contramão do urbanismo, no século XIX, então propulsor de reformas urbanas que arrasaram o tecido urbano histórico de Paris e Viena. O deslocamento conceitual do patrimônio cultural corresponde à passagem da noção de Monumento histórico,segundo a qual foram selecionados ícones artísticos e históricos a preservar sob a ótica de cidade-monumento, para uma noção ampliada de bens culturais inscritos na ótica de cidade-documento, em que se enfatiza a construção da história urbana. O panorama brasileiro da política federal é discutido por Fonseca (1997), Santanna (2000) Castriota (2009) e Bonduki (2010). Já a evolução da política de proteção na área central do Rio de Janeiro foi tratada anteriormente por Sampaio (2006 e 2011). Emerge contemporaneamente uma abordagem do patrimônio cultural cada vez mais interdisciplinar, na qual a preservação do patrimônio cultural passa a ser problematizada como fato social, sob uma perspectiva de cidade como artefato cultural, conforme argumentos de Meneses

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(2006). Essa ampliação conceitual é reflexo das interfaces estabelecidas, sobretudo a partir da década de 1970, com campos que tratam da cidade e da sociedade, além da Arquitetura e Urbanismo: Economia, Direito, Sociologia, Antropologia, História, Meio Ambiente. Choay (2001) discute a ampliação do objeto patrimonial num panorama internacional, tecendo críticas ao excesso de patrimonialização, fenômeno ainda distante no caso brasileiro, onde as políticas de preservação não conseguem abarcar o universo de bens a proteger. Tendo sido capital por dois séculos, o centro histórico do Rio de janeiro guarda marcos construídos, referenciais não só da história local, mas da cidade e da Nação. O reconhecimento de alguns desses marcos como patrimônio cultural ocorreu em diferentes momentos, de acordo com noção de patrimônio então prevalente. Neste sentido, revisitar a história conceitual da proteção ao patrimônio nesta cidade, corresponde por rebatimento, a história em nível Nacional. Resumidamente, pode-se dizer que o patrimônio foi primeiramente valorizado por seus aspectos artísticos e históricos, como Monumento Nacional, assumindo posteriormente a noção mais abrangente de patrimônio cultural, que contempla bens arquitetônicos e sítios dotados de significação cultural. Embora a proteção ao patrimônio estivesse regulada em nível Nacional, desde 1937, somente em 1965 houve os primeiros tombamentos no nível local, então Estado da Guanabara, passando a ser praticada como política urbana na década de 80, com a instituição do órgão de tutela municipal e a legislação competente. A partir de então, além das áreas de preservação, houve uma série de tombamentos em nível municipal e estadual, de acordo com critérios menos elitistas, preconizados a partir da Carta de Veneza (1964). Apesar da gênese da noção de patrimônio urbano já ter emergido na década de 1930 na Itália, com os estudos de Giovannoni19, a noção brasileira de patrimônio era então referenciada em valores nacionais, prevalecendo a herança colonial representada pela arquitetura monumental, especialmente edifícios religiosos de estilo colonial barroco, além da arquitetura neoclássica. A noção de Patrimônio então vigente era aquela preconizada pelo CIAM na Carta de Atenas (1933): o tecido urbano denso e insalubre deveria ser erradicado e somente os monumentos excepcionais poderiam permanecer como testemunhos do passado, desde que não fossem obstáculos para o progresso.

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Como paradoxo, no caso brasileiro, a arquitetura moderna também se enquadraria no valor excepcional previsto na norma federal de 1937 que rege o Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-

A partir da década de 1970 emerge internacionalmente uma visão crítica ao desenvolvimentismo e ao negativo impacto das demandas contemporâneas sobre o meio ambiente e áreas históricas. Essa temática foi incorporada nas Cartas Patrimoniais, sobretudo na Recomendação de Nairobi (UNESCO, 1976), relativa à proteção dos conjuntos históricos tradicionais e ao seu papel na vida contemporânea21. A integração com o planejamento urbano é defendida na Declaração de Amsterdam (1975), através do conceito de Conservação Integrada.

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nal20. Isso se explica no fato da proteção do patrimônio cultural brasileiro ter sido, desde o seu início em meados da década de 1930, formulada e administrada pelos expoentes do Modernismo.

No Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, somente no final da década de 70 foi delineada uma política de preservação de áreas históricas com o projeto Corredor Cultural, já incorporando a mudança de paradigma de patrimônio cultural. Só então grande parte dos conjuntos urbanos da área central do Rio de Janeiro construídos entre o final do século XIX e início do XX, filiados ao estilo eclético, teve seu valor patrimonial reconhecido. Sendo a valorização do patrimônio operada primeiramente através de uma visão do urbanista Modernista, a arquitetura eclética, aí incluída a arquitetura industrial, era desvalorizada como linguagem arquitetônica pelos arquitetos modernistas e tampouco era considerado de interesse para o Patrimônio Nacional, exceto nos casos de valor histórico. A ênfase na revalorização do passado e na patrimonialização dos sítios históricos nasce a partir da década de 80, quando emerge um culto à memória, com o consumo de formas culturais históricas, fenômeno que pode ser inscrito no paradigma do Pós-modernismo (HARVEY, 1992; JEUDY, 2005). Na década de 1990, seguindo o modelo da Globalização, o enfoque cultural incorpora a revitalização urbana, orientada pela lógica da dinamização econômica, valorização imobiliária e controle social, que transforma a cidade histórica em cidade-atração, conforme observa Sant’anna (2004). Nesses moldes, houve diversas experiências de intervenções e salvaguarda em áreas de interesse histórico/ cultural tanto no Brasil22, como no cenário internacional. Esse tipo de intervenção vem priorizando a visibilidade das centralidades, como acontece também no Rio de Janeiro. Recentemente os critérios de preservação urbana vêm sendo questionados, tanto pela ótica neoliberal desregulacionista, como pela ótica preservacionista. O embate do desenvolvimento versus preservação acirra-se, particularmente, nas áreas valorizadas pelo mercado imobiliário, como tem ocorrido recentemente na área central por conta do projeto Porto Maravilha.

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Embora não haja consenso entre o discurso e a prática dos diferentes agentes, atualmente se defende uma visão de potencial de intervenção sobre o patrimônio, que aponta para uma noção mais dinâmica, transpondo a ideia da preservação para a da conservação daquelas características ”que apresentem uma significação cultural”. Desta forma, trabalha-se tanto com a preservação – a restrição das alterações – como com a ideia de conservação, quando se refere à inevitabilidade da mudança e à sua gestão (CASTRIOTA, 2009).

A tomada de consciência do valor do patrimônio industrial Muitos dos estudos sobre o Patrimônio industrial no país se concentram na região sudeste, sobretudo em São Paulo, naturalmente por ser o berço da industrialização e abrigar um rico acervo. Muitos desses enfatizam aspectos arquitetônicos da arquitetura industrial, notadamente arquitetura de ferro e ferroviária, bem como sua preservação (Kuhl, 2008). Meneguello (2011) discute as dificuldades e avanços na conformação do campo de pesquisa na área e relaciona os Bens tombados em nível nacional e estadual paulista, citando ainda, no nível internacional, os bens protegidos na listagem de Patrimônio Mundial, que podem ser caracterizados como patrimônio industrial. Cabe destacar a partir das considerações da autora, o restrito número de bens tombados em nível federal no país, enquadrados como patrimônio industrial, nos quais estão incluídos os engenhos. No Brasil e particularmente, no Rio de Janeiro, observa-se a tomada de consciência do valor cultural – notadamente histórico – de exemplares de patrimônio industrial através de atos de tombamento, a partir de meados da década de 1960, em nível estadual23, e da década de 1980, em nível municipal24, consoantes com a ampliação tipológica e cronológica do objeto patrimonial, segundo critérios preconizados a partir da Carta de Veneza (1964). Já em termos de tombamentos federais que podem ser caracterizados como patrimônio industrial, na cidade do Rio de janeiro, verificam-se somente três bens até o momento, sendo o primeiro fora do recorte espacial da pesquisa – o Hangar de Zepelins em Santa Cruz (1998). Os demais tombamentos são mais recentes: Estação Ferroviária D. Pedro II (Federal, 2008 – Municipal1996) e Armazém das Docas D. Pedro (Federal provisório, 2012).

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Cabe destaque o avanço em relação à formação de uma memória ferroviária, conforme pode ser observados na atenção especial ao tema em inventários (INEPAC) e tombamentos que, no entanto, só evitam as demolições e descaracterizações, mas não asseguram o bom estado de conservação. Um passo importante na formalização dessa memória foi tomado na regulamentação da extinção da Rede Ferroviária Federal, através da Lei 11.483/ 2007, delegando ao IPHAN a tutela, o inventário e a preservação dos bens relacionados ao Transporte Ferroviário da extinta RRFSA. Ao menos se terá o conhecimento sistematizado desses bens, para que se possa buscar recursos para a sua preservação. Grande parte do patrimônio industrial carioca constitui o patrimônio ambiental urbano da Região Portuária, que foi objeto do projeto de conservação urbana conhecido como SAGAS25, que contou com participação popular, e resultou na criação de uma Área de Preservação Ambiental – APA – em 1987, que regulamenta a preservação do casario mais antigo e alguns armazéns. Exemplares de arquitetura industrial notáveis como o Moinho Fluminense e o Antigo Trapiche Modesto Leal foram tombados individualmente em nível municipal em 1986. No entanto, os armazéns portuários só vieram a ser protegidos no ano 2000, quando parte do conjunto foi tombado pelo Decreto Municipal nº 19.002 de 05/10/00. Esse tombamento não protegeu todo o conjunto que seria objeto de área de preservação, e que se encontra atualmente vulnerável às pressões de renovação do Porto Maravilha. Inclui-se nesse caso o antigo armazém da CIBRAZEM, anteriormente um frigorífico, que foi objeto de projeto de intervenção para a instalação do AquaRio, ainda de destino incerto, mas cuja proposta resultaria em grande descaracterização da tipologia do armazém, com prejuízos para o conjunto urbano. O tardio reconhecimento do patrimônio industrial e sua incipiente proteção acarretaram a perda de muitos exemplares significativos, enquanto outros foram mutilados e parcialmente preservados. Entre os lamentáveis exemplos, merece destaque a demolição do antigo Mercado Municipal, na década de 1960, para a passagem do viaduto da perimetral. Da imponente arquitetura de ferro de influência Art-Nouveau, restou somente um torreão, onde funciona o Restaurante Albamar, tombado em nível estadual em 1983. Cabe mencionar ainda o caso da Garage Pagani – galpão projetado por Antonio Virzi na Cidade Nova, em 1921, tombado em nível estadual e municipal. Resta somente a fachada e ínfima

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parte da estrutura do telhado desse que é um dos poucos exemplares remanescentes dos projetados pelo arquiteto italiano, que contava com a parceria do artífice Pagani, autor das magníficas serralherias peculiares às suas obras, o que pode explicar a singularidade dos ornatos encontrados na fachada da Garage. A dupla proteção não assegurou a conservação dessa singular edificação, em meio a conjuntura urbana de decadência física da Cidade Nova, dadas as incertezas de arrasamentos propostos em vários projetos urbanos, conforme mencionado anteriormente. Experiências de recuperação e reconversão do patrimônio industrial em novos usos tem sido cada vez mais frequentes no Brasil e no exterior, chamando atenção para o seu potencial na reabilitação de vazios urbanos, com a implantação de novos equipamentos urbanos. Nos anos 80 surgem as primeiras reconversões de edifícios industriais para novos usos, entre as quais se destacam o Museu D’Orsay, em Paris e a reconversão do antigo mercado de Convent Garden, em Londres. No Brasil, destaca-se o projeto pioneiro de Lina Bo Bardi para a reconversão da antiga fábrica de tambores dos Irmãos Mauser em SESC Pompéia, em São Paulo. Na mesma época Vittorio Gregotti propunha a paradigmática reconversão da extensa área da fábrica da Pirelli em La Bicocca, Milão. Projetos contemporâneos cada vez mais espetaculares, pautados no contraste do antigo com o novo, convertem antigas e ociosas edificações em equipamentos culturais, trazendo à tona o debate em torno da cidade-atração a partir de equipamentos culturais. Podem ser citados os projetos da Tate Modern em Londres (antiga Bankside Power Station, do escritório suíço “Herzog & deMeuron”, vencedor do concurso internacional realizado em 1995); para o antigo Matadouro Legazpi de Madrid (projeto dos arquitetos Artur Franco e Fabrice Van Tesslaar, 2009); para a reconversão de antiga fábrica em extensão do MACRO – Museu de Arte Contemporânea da Cidade de Roma (projeto de Odile Decq e Benoit Cornette, 2001-2011).

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Na área central do Rio despontam alguns projetos de recuperação de patrimônio industrial com a recuperação de antigos galpões e reconversão em equipamentos culturais, entre os quais se destacam o pioneiro projeto do Galpão da Cidadania, no Armazém das Docas de D. Pedro e os recentes projetos da “Fábrica de espetáculos” do Teatro Municipal no galpão tombado Armazéns Paranapanema26, e de recuperação dos Galpões da Gamboa, ainda sem programa definido, ambos no contexto do Projeto Porto Maravilha. Merece destaque a instalação de artistas na antiga Fábrica de chocolates Bhering, em Santo Cristo, que exerceu pressão para a sua preservação, em 2012.

Apesar das iniciativas de preservação emergentes, as dificuldades e entraves ainda tornam um desafio a compatibilização da demanda de modernização da área central com a conservação de seu patrimônio ambiental urbano, sem o comprometimento de sua identidade – sua paisagem e seus habitantes. No caso da Área Portuária e do bairro de São Cristovão, entende-se que suas identidades sejam constituídas pela ambiência de espaço da industrialização, com galpões e residências proletárias, muitos dos quais ameaçados pelos parâmetros urbanísticos propostos pelo Projeto Porto Maravilha.

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E afinal, quais as perspectivas?

Em panorama sobre a atuação do Programa Monumenta em nível nacional, Bonduki (2010) traça uma análise que pode ser transposta à conjuntura atual dos sítios históricos brasileiros, segundo a qual os núcleos históricos “...não são ruínas arqueológicas, mas lugares vivos, onde habita uma população com necessidades contemporâneas, que podem e devem ser atendidas no território urbano como um todo, inclusive nas áreas protegidas”. Encontra-se ressonância das preocupações com o futuro do patrimônio urbano da área central, em particular de seu significativo patrimônio industrial, no argumento de Choay (2011), que enfatiza, em tom de manifesto, a necessidade de uma tomada de consciência das ameaças que pesam sobre a identidade humana. A autora convida seus leitores a travar um combate em prol do patrimônio, a partir de três frentes de luta: a) educação e formação; b) utilização ética de nossas heranças edificadas; c) participação coletiva na produção de um patrimônio vivo. Através da discussão aqui levantada, e sobretudo pelos paradoxos vivenciados pelo patrimônio urbano da área central, percebe-se que há um longo caminho a ser trilhado, e que as frentes apontadas por Choay (2011) podem ser norteadoras no sentido de reforçar o papel ancorador do patrimônio nas dimensões sociais e morfológicas do espaço urbano. No entanto, voltando ao argumento de Meneses (2006), a conservação urabana não se limita às dimensões de artefato e simbólicas, mas são definidas, sobretudo, no campo de forças, pela gestão urbana. Nesse sentido, a reflexão sobre a complexa dinâmica da área urbana central da cidade aqui desenvolvida, a partir da síntese de seu processo urbano, tendo como fio condutor marcos nor-

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mativos e transformações espaciais, bem como as mudanças de paradigmas da preservação do patrimônio, pode ser esclarecedora a respeito das conjunturas políticas e sociais engendradas no ordenamento urbanístico e nos projetos urbanos passados. Não adianta a preservação por legislação específica – só no papel, são necessárias ações de reabilitação urbana no sentido abrangente e não somente de valorização imobiliária. Acredita-se no potencial de resignificação urbana do patrimônio industrial como força indutora para alcançar a conservação integrada. Para tanto, é necessário sistematizar o reconhecimento dos bens a partir de inventários e incluir o patrimônio industrial nas políticas de proteção, evitando que seja apagada da memória urbana essa importante etapa da história das cidades.

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