Vedovello Camila de Lima Era das Chacinas Revista Liberdades

May 22, 2017 | Autor: Camila Vedovello | Categoria: Movimentos sociais, Violência, Chacina
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ISSN: 2175­5280

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Direitos Humanos  1  Era das Chacinas – breve discussão sobre a prática de chacinamento na era democrática  Camila de Lima Vedovello

Resumo : As chacinas se tornaram constantes em São Paulo a partir da década de 1990, coincidindo com a reabertura democrática. O espaço principal são os bairros periféricos, e os alvos tendem a ser os jovens, pardos ou negros, moradores desses bairros. Nessa perspectiva, analisamos como as chacinas inserem­se em uma lógica de atingir sujeitos considerados “perigosos” partindo de um viés permeado pelo preconceito de classe e de cor. Observamos também os possíveis agentes dessas ações violentas, buscando na historicidade a formação e o crescimento de grupos de extermínio, que têm sua gênese – como hoje conhecemos – nos chamados “Esquadrões da Morte”, surgidos durante o período da Ditadura Civil­Militar brasileira. Assim, buscamos entender o processo que levou  as  chacinas  se  tornarem,  em  São  Paulo,  uma  das  causas  da  morte  violenta  e  como  agem  os  grupos  de  extermínio  nessa prática,  tentando  desvendar  quem  são  os  vitimados  e  quem  são  os  agentes  das  chacinas.  Para  tanto,  debatemos  os  chamados Crimes  de  Maio  de  2006,  enveredando  pelas  execuções  ocorridas  na  época  e  pelas  análises  sobre  essas  execuções,  além  de debater a importância do movimento social Mães de Maio pela busca por justiça e pela punição dos executores de seus filhos e entes. Palavras­chave: Chacinas; periferia; grupos de extermínio; crimes de Maio de 2006; Mães de Maio. Abstract : The killings have become constants in Sao Paulo from the 90s, coinciding with the beginning of the democratic period. The main living space where the massacres occur are the suburbs and the targets tend to be young, brown or black, residents of these neighborhoods. In this perspective, we analyze how the killings inserted into a subject hit the people considered “dangerous” starting from a bias permeated by class and color prejudice. We also noted the possible agents of these violent actions, seeking the historicity, the formation and growth of groups of extermination that have their genesis – as we know – the so­called “Esquadrões da Morte”, emerging during the Brazilian Civil­Military Dictatorship period. We seek to understand the process that led the massacres become, in São Paulo, one of the causes of violent death and how the death squads act in this practice, trying to figure out who are the victims and  who  are  the  agents  of  the  killings.  Therefore,  we  discuss  the  so­called  Crimes  of  May  2006  embarking  by  the  executions committed at that time and the analysis of these executions, and also we discuss the importance of the social movement “Mothers of May” to the struggle for justice and punishment of the executors of his children and loved. Keywords : Massacres; Suburbs; death squads; crimes of May 2006; Mothers of May. Sumário: 1. Violentadores e violentados: gênese das chacinas e dos chacinados – 2. Crimes de Maio de 2006 – uma breve análise de uma grande chacina – Considerações finais – Referências bibliográficas. 1. Violentadores e violentados: gênese das chacinas e dos chacinados Apenas muito recentemente pesquisadores da área de Ciências Sociais se debruçaram sobre o tema da violência.[2] Michel Misse (2011,  p.  7)  relata  em  seu  livro  Crime  e  violência  no  Brasil  contemporâneo  que  somente  nos  anos  1970  os  cientistas  sociais começaram a se aproximar de temas referentes à violência,[3] sendo que, durante a década de 1970, as perspectivas de análise acabavam por relacionar diretamente a criminalidade e a violência urbana à pobreza, contribuindo para uma ampliação de visões http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=249

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que acabavam por criminalizar a pobreza.[4] Um marco, no Brasil, da discussão acerca do tema da chamada violência e, mais distintamente, da violência urbana, é o trabalho de Alba Zaluar, A máquina e a revolta, de 1985, em que a autora investiga o bairro Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e chega à conclusão  de  que  se  estabelece  nas  classes  populares  uma  diferenciação  entre  os  moradores,  a  partir  das  categorizações  de “bandidos” em contraposição aos “trabalhadores”.[5] Ao falarmos sobre violência e criminalidade, muitos estudos acabam por perpassar, ou ao menos tangenciar, o que se convencionou chamar no Brasil de periferia.[6] A construção da categoria periferia se deu no Brasil em contraposição ao centro. A periferia seriam os arredores da cidade, o que está longe dos olhos, o local em que falta estrutura estatal, onde a pobreza e a violência imperam. Muitos estudos sociológicos[7] trabalhavam as periferias a partir dessa lógica descritiva já exposta, como bem colocou Marques (2005, p. 23): “(...) Os espaços periféricos representariam um conjunto desses elementos – espaços de moradia da força de trabalho responsável por  fazer  girar  a  máquina  econômica  da  metrópole,  nos  quais  não  há  presença  estatal  e  as  casas  são  autoconstruídas  em loteamentos clandestinos e irregulares”. Assim, os estudos sobre periferia, no Brasil, até muito recentemente, olhavam para o que faltava nos arredores das cidades e não para o que de fato existia. Esses estudos, como o de Kovarick[8] (1979),  mostram­se  importantes  ao  demonstrar  uma  lógica  de mercado que trabalha com uma exclusão de sujeitos a fim de fazer girar a economia nas grandes metrópoles, mas cabe ressaltar que as periferias não se encerram nessas análises. Mais recentemente, apareceram estudos que entendem a periferia como a existência de sujeitos que produzem e que se entendem como  da  periferia,  fazendo  parte  de  uma  cultura  periférica  ou,  nas  palavras  de  Tiarajú  Pablo  D’Andrea  (2013),  os  sujeitos periféricos. Para o autor, três processos foram fundamentais para que esses sujeitos se vissem com orgulho[9] (2013, p. 19): “(...) Três  processos  sociais  importantes  se  desdobraram  a  partir  de  uma  relação  com  esse  orgulho  que  se  cristalizou:  os  coletivos artísticos da periferia, o PCC e o lulismo. (...)”. Os coletivos artísticos da periferia gerariam nesses sujeitos a noção de representatividade, o PCC seria responsável pelo chamado proceder[10] e o lulismo, por um aumento do poder consumidor. Dentro dessa trajetória de ver e reconhecer­se enquanto sujeito da periferia  e  sentir  orgulho  dela,  destaca­se,  nos  anos  1990,  o  RAP,  representado  pelos  Racionais  MC’s,  que  cantam  não  só  um orgulho pautado na racialidade, mas também na territorialidade periférica.[11] Para além das inexistências das periferias, Vera da Silva Telles (2011) aborda as existências e como, entre os anos 1990 e 2000, uma “modernização urbana” atinge as periferias, trazendo consigo aparatos próprios da sociedade de consumo, além de abordar as conexões e atrelamentos entre o legal e o ilegal nesses locais (2011, p. 156): “(...) no decorrer dos anos 1990 e mais intensamente na virada dos anos 2000, as redes de saneamento e de eletricidade cobriram quase todo o espaço urbano, até seus pontos mais extremos; o mesmo pode ser dito em relação aos equipamentos de saúde e educação, sobre os quais pesa a qualidade duvidosa dos serviços prestados. E mais: houve a multiplicação nos bairros populares de programas sociais de escopo variado, embora de forma fragmentada e descontínua, e a quase onipresença de ONG’s articuladas a  redes  de  natureza  e  extensão  variada.  No  entanto,  o  mais  importante  é  a  consolidação  da  cidade  como  centro  econômico  de primeira grandeza, inteiramente conectado aos circuitos globalizados da economia, desdobrando­se na multiplicação de grandes equipamentos de consumo que atingem as regiões mais distantes das periferias pobres”. É também no decorrer dos anos 1990 que as chacinas começam a se tornar fatos recorrentes no Rio de Janeiro e em São Paulo. No momento de reabertura democrática, os assassinatos, efetuados em grande parte por policiais militares e/ou agentes de segurança do Estado, tomam os jornais e as demais mídias.[12] Os  movimentos  sociais  Mães  de  Maio  e  Rede  de  Comunidades  e  Movimentos  Contra  a  Violência  do  Rio  de  Janeiro  batizaram,

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respectivamente,  esse  momento  histórico  como  “Democracia  das  Chacinas”  e  “Era  das  Chacinas”.  Sobre  o  termo  “Era  das Chacinas”, relatam as Mães de Maio (2011, p. 2­3): “Conforme já pudemos gritar em tantos outros momentos (como em nosso livro ‘Mães de Maio – do Luto à Luta’ – Nós por nós, São Paulo, 2011), não é por outra razão que noss@s companheir@s da Rede de Comunidades e Movimentos contra a violência do Rio de Janeiro batizaram o período democrático que passamos a viver, depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, de ‘A Era  das  Chacinas’,  o  nome  mais  apropriado  para  a  fase  atual  dessa  longa  História  de  Massacres  que  nos  conforma.  Afinal,  na sequência da tão alardeada ‘abertura democrática’ e a promulgação da dita ‘Constituição Cidadã’, menos de dois anos depois, a Chacina  de  Acari  anunciaria  o  que  nos  esperava  pela  frente...  E,  de  lá  para  cá,  uma  sucessão  de  chacinas  e  massacres concentrados,  de  trabalhadores  pobres,  pretos  e  periféricos  ressurge  constantemente,  como  que  traçando  nós  e  borrões  na  já altíssima, fria e constante curva das estatísticas de homicídios cotidianos no Brasil. (...)”. Embora não citem no trecho supra, tanto as Mães de Maio quanto a Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência do Rio de Janeiro partem do pressuposto de que a Polícia[13] e os Agentes do Estado são responsáveis por parte dessas chacinas, que ocorrem, em grande medida, em bairros periféricos, atingindo, muitas vezes, pessoas a esmo. Entretanto,  não  é  a  partir  da  reabertura  democrática  que  a  Polícia  começa  a  cometer  arbitrariedades  contra  a  população.  Bruno Paes Manso (2012, p. 105) relata violações por parte da Polícia, nas periferias paulistanas, entre os anos 1950 e 1970: “Nas  periferias  dos  anos  1950,  1960  e  1970,  são  as  camadas  mais  pobres  da  sociedade  consideradas  as  mais  propensas  a comportamentos criminosos, sofrendo inúmeras violações de direitos por parte da polícia. (...)”. Sem nos estendermos demasiadamente sobre a história de comportamentos violentos por parte da polícia contra a população,[14] retornaremos ao momento em que no Rio de Janeiro se forma o chamado Esquadrão da Morte,[15] o qual, cerca de uma década depois, terá sua formação também em São Paulo. No  final  dos  anos  1950,  no  Rio  de  Janeiro,  começam  a  surgir  denúncias  de  execuções  realizadas  por  um  grupo  organizado  de policiais. Nesse grupo, como coloca Costa (1998, p. 9), destaca­se a figura do detetive Milton Le Cocq de Oliveira, que, após ser morto em uma troca de tiros com um famoso bandido do Rio, o Cara de Cavalo,[16] em 1964, dará nome à Scuderie Le Cocq. Esta iria, posteriormente, vingar a morte do detetive, matando Cara de Cavalo com mais de 100 tiros, conforme coloca a autora, sendo responsável pela execução de centenas de “suspeitos” ou bandidos no Rio. Em  São  Paulo,  o  Esquadrão  da  Morte  se  estabelece  a  partir  do  final  dos  anos  1960,  já  após  o  Golpe  Militar,[17]  e  começa efetivamente a funcionar com mais força e em conjunto com o Estado na execução[18] de “suspeitos” e “bandidos”, após o delegado Sérgio  Paranhos  Fleury  ser  chamado  para  participar  da  repressão  política,  como  expõe  Costa  (1998,  p.  25):  “(...)  O  esquadrão paulista  agiu  enquanto  grupo  independente  entre  1968  e  início  de  1969.  Após  esta  data,  mais  ou  menos  até  o  início  dos  anos setenta, ele passou a atuar em conjunto com a repressão política”. A Polícia Militar de São Paulo, como um todo, manteve­se afastada do Esquadrão da Morte paulista durante suas ações. Será, com as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), que, muito possivelmente,  parte da polícia paulista assumirá o papel de limpeza social por meio do extermínio, como explicita Caco Barcelos em seu livro Rota 66­ A História da Polícia que Mata. “(...) A fase em que a polícia militar passou a atuar exterminando em escala crescente supostos marginais da cidade de São Paulo ocorreu nos anos setenta, após o término das ações do Esquadrão da Morte chefiado pelo delegado Fleury, inicialmente através da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Eles assumiram a missão de ‘limpar a sociedade’, como meio de encobrir os seus crimes e envolvimento com traficantes de drogas” (Costa, 1998, p. 27). Bruno Paes Manso (2012, p. 131­132) exporá como a ROTA seria criada em outubro dos anos 1970 a fim de prevenir os assaltos a bancos efetuados pela guerrilha contra a Ditadura Militar e como, após o fim da existência dos grupos armados que lutavam contra a Ditadura, a prática de “abater o inimigo” terá como alvo o criminoso comum ou os suspeitos de serem criminosos.[19]

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Se os policiais militares paulistas começam a executar a população suspeita ou criminosa durante a Ditadura Militar, não será com o fim  do  regime  que  essa  prática  terminará.  As  práticas  violentas  apreendidas  durante  o  regime  militar  se  institucionalizarão  na corporação policial. Fato demonstrado pelos grupos de extermínio atuantes após a reabertura do regime. “O  discurso  democrático  instaurado  no  Brasil  após  1985  não  conseguiu  intervir  na  autonomia  do  funcionamento  dos  aparelhos repressivos, fazendo com que continuasse existindo, por parte desses aparelhos, a violência ilegal, como a tortura, por exemplo. Essas práticas ilegais se manifestam de forma velada através da ação de grupos militares de extermínio, das torturas sofridas pelos presos, da intimidação de civis realizada de forma violenta. Apesar de serem práticas conhecidas pela população são práticas quase ‘invisíveis’. Pois, na maioria das vezes, não há punição para os policiais que fazem desse tipo de violência uma prática” (Vedovello, 2008, p. 56). Em 1990, com a Chacina de Acari, no Rio de Janeiro, a prática de chacinamentos[20] começa a se instaurar frequentemente em diversas partes do Brasil. Em 1992, com a Chacina do Carandiru, realizada dentro de uma instituição pública, pela Tropa de Choque de  São  Paulo,  contra  presos  rebelados,  as  chacinas  chegam  a  São  Paulo  e  se  tornam  mais  e  mais  frequentes  com  o  passar  do tempo. Assim,  apenas  dois  anos  após  a  promulgação  da  Constituição  de  1988  –  a  chamada  “Constituição  Cidadã”  –  temos  a  primeira grande chacina da era democrática, com o desaparecimento forçado de 11 jovens que passavam o final de semana em um sítio em Magé, no Rio de Janeiro. Sobre o caso de Acari, Araújo (2007, p. 37) relata: “Os ‘Onze de Acari’, como ficaram conhecidos, desapareceram em Magé, em um sítio pertencente àavó de um dos desaparecidos. A maioria dos jovens morava na favela de Acari enquanto outra parte morava nas proximidades. (...). Em todas as versões que circularam nos jornais sobre o ‘Caso Acari’ consta que o grupo viajou para fugir de policiais que estavam tentando extorquir dinheiro de alguns deles que tinham envolvimento em assaltos e roubos de carga de caminhão. Segundo uma reportagem colada no caderno de Tereza os motivos do sequestro estariam ligados a drogas, assaltos e extorsão, sendo que dias antes  do  desaparecimento  dos  onze  jovens  no  sítio  em  Magé,  a  casa  de  Edméia  havia  sido  invadida  por  policiais  e  três adolescentes haviam sido sequestrados. Os policiais teriam exigido uma grande quantidade de dinheiro para pagar o resgate, caso não fosse pago matariam os três”. Araújo (2007, p. 38­43) destaca, ainda, que diversos jornais trouxeram versões diferentes para o fato do desaparecimento, surgindo hipóteses de execução realizada por policiais, até mesmo tentativa de assalto. Será nas investigações da Chacina de Vigário Geral e da Chacina da Candelária, em 1993, porém, que nomes de policiais citados no caso de Acari reaparecem, estabelecendo uma ligação entre os casos e um grupo de extermínio ligado ao 9.º Batalhão da Polícia Militar de Rocha Miranda, no Rio de Janeiro, os chamados “Cavalos Corredores”. Se no Rio de Janeiro a prática de chacinamentos na era democrática tem como ponto de partida a Chacina de Acari, em São Paulo é com uma grande chacina ocorrida dentro de uma instituição estatal – a Casa de Detenção de São Paulo –, com o Massacre do Carandiru, que se instalam os chacinamentos enquanto prática recorrente. No dia 02.10.1992, a Tropa de Choque, comandada pelo Coronel Ubiratan, adentrou o presídio para tentar conter uma rebelião. O resultado final da operação foi de 111[21] presos mortos dentro da Casa de Detenção de São Paulo. Ferreira, Machado e Machado (2012, p. 12), ao escreverem sobre o aniversário de 20 anos do Massacre do Carandiru, apontam algumas considerações do promotor de justiça militar, em denúncia oferecida contra 120 policiais militares. “Em março de 1993, o promotor de justiça militar Luiz Roque Lombardo Barbosa ofereceu denúncia contra 120 policiais militares envolvidos  no  massacre,  afirmando,  na  peça  inicial  da  ação  penal,  ter  o  episódio  se  tratado  de  ‘verdadeira  ação  bélica,  pois  os policiais militares, fortemente armados, desencadearam a maior matança já consignada mundialmente em um presídio’. De acordo com a denúncia, ‘as penas privativas de liberdade a que estavam sujeitos os detentos, transformaram­se, arbitrária e ilicitamente – em  penas  capitais  –  111  (cento  e  onze)  mortos’.  Pela  primeira  vez  no  procedimento  criminal,  afirma­se  que  a  operação  não  foi http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=249

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simplesmente excessiva, mas sim ‘desastrosa’. De acordo com o promotor, não havia risco de fuga dos presos, não houve estratégia ou planejamento por parte dos comandantes e os policiais militares teriam entrado no pavilhão com animus necandi (vontade de matar)” (Ferreira, Machado, Machado, 2012, p. 12). O Massacre do Carandiru inaugura não só as chacinas paulistas da era democrática, mas traz em si a possibilidade de as práticas de chacinas ocorrerem com imensos números de vítimas. Se em 1992 tivemos 111 mortos, em 2006, nos chamados – pela mass media – “Ataques do PCC” e – pelos movimentos sociais – “Crimes de Maio de 2006”, tivemos cerca de 564 mortos. 2. Crimes de Maio de 2006 – Uma breve análise de uma grande chacina Sexta­feira, 12.05.2006, fim de semana do Dia das Mães, algo acontecia na cidade de São Paulo, tirando a metrópole de sua rotina. Os presídios paulistas se rebelaram – os jornais davam conta de mais de 70 rebeliões espalhadas pelo Estado.[22] Como rastilho de  pólvora,  espalharam­se  notícias  sobre  ataques  da  facção  criminosa  Primeiro  Comando  da  Capital  (PCC)[23]  contra  a  Polícia Militar.  As  ruas  ficaram  esvaziadas  na  capital,  baixada  e  interior.  Boatos  sobre  shoppings  e  terminais  rodoviários  com  bombas prestes a explodir espalharam a ideia de que as cidades paulistas, principalmente a cidade de São Paulo – além dos presídios –, estavam tomadas e de que era necessário recolher­se sob o signo do pânico.[24] A ONG Justiça Global, em seu documento “São Paulo sob Achaque” (2011), identifica esquemas de corrupção e de extorsão por parte da polícia[25] contra lideranças do PCC como um dos pontos fulcrais dos acontecimentos de maio de 2006. “A corrupção policial, embora pouco considerada nos estudos sobre esse tema, foi um importante fator para o estopim dos ataques do PCC. Esta conclusão consta, inclusive, de um relatório da Polícia Civil que esteve em um processo sob segredo de justiça até janeiro de 2010. Os líderes do PCC conceberam os ataques de maio em grande parte como revanche pelas extorsões praticadas pela  polícia.  Desde  2005,  os  policiais  civis  da  cidade  de  Suzano  achacavam  os  líderes  do  PCC,  interceptando  ilegalmente  as conversas telefônicas de seus familiares e cobrando propinas para não os prenderem. Em março de 2005, o enteado de Marcola, Rodrigo  Olivatto  de  Morais,  foi  sequestrado  por  policiais  civis  em  Suzano.  Ele  foi  espancado,  ameaçado,  detido  ilegalmente  na Delegacia de Suzano e liberado mediante o pagamento de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais) de resgate, efetuado pelo dito líder do PCC que, no dia em que se iniciaram os ataques de maio de 2006, avisou no DEIC: ‘(isso) não vai ficar barato’” (Justiça Global, 2011, p. 26). Depois de cerca de uma semana de ataques noticiados contra bases da Polícia Militar, ônibus incendiados, policiais mortos de um lado e “suspeitos” mortos de outro, a cidade pareceu voltar “ao normal”, incluindo­se nisso uma propalada “recuperação da ordem” por parte do governo do Estado de São Paulo, capitaneado pela figura de seu então governador, Cláudio Lembo. Os  dados,  porém,  nos  revelam  o  que  as  periferias  estavam  sentindo:  os  “Ataques  do  PCC”;  assim  chamados  pela  grande  mídia, foram respondidos por uma imensa violência, perpetrada em muitos casos por agentes estatais contra a população moradora das periferias. O Relatório sobre os Crimes de Maio de 2006, realizado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Secretaria de Direitos Humanos, da Presidência da República, assim coloca os homicídios: “Ainda que não existam números oficiais, pesquisas estimam, no período de 12 a 21 de maio de 2006, com base nos boletins de ocorrência e laudos periciais de mortes causadas por armas de fogo, um universo de 564 (quinhentas e sessenta e quatro) mortos e 110 feridos. Com relação às vítimas de homicídio, estas podem ser identificadas como civis – correspondendo a 505 (quinhentas e cinco) mortes – e agentes públicos – correspondendo a 59 (cinquenta e nove) mortes.[26] A cada morte de 1 (um) agente público, ocorreram 8,6 mortes de civis”. Portanto,  em  nove  dias,  segundo  dados  oficiais,  mais  de  500  pessoas  são  assassinadas,  para  cada  morte  de  agente  público ocorreram 8,6 mortes de civis. Os  números  sobre  os  civis  mortos  são  alarmantes  e,  atrás  de  cada  número,  há  alguém  com  uma  história  particular,  com  uma trajetória de vida e com laços consanguíneos e relações de parentesco e afetividade.

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As  pessoas  assassinadas  durante  os  Crimes  de  Maio  de  2006  acabaram  por  virar  estatísticas  sobre  violência  urbana  e  morte violenta no Estado de São Paulo. O movimento social Mães de Maio surge a partir da dor das mães e familiares das vítimas dessa onda de chacinas ocorridas durante o mês de maio de 2006 e se propõe a trazer à tona os autores das chacinas por meio da federalização dos casos.[27] É pela exposição das suas dores, por meio de atos, vigílias, passeatas, documentários, livros, que essas mães tentam retirar seus filhos e entes do lugar da não existência, para o lugar da reparação, da justiça. Adriana Vianna (s/d., p. 6), ao relatar as estratégias utilizadas pelas Mães de Acari[28] para exigir reparação, nos lembra que a retomada da dor enquanto estratégia de luta por justiça se dá para retirar esses casos da irrelevância social ou, nas palavras da autora: “As formas adotadas nos atos públicos mencionados e em inúmeros outros de teor semelhante só faz sentido se tivermos claro que há uma pré­inscrição dessas mortes no terreno da desimportância social e simbólica que se desdobra no modo pelo qual vão ser registradas, classificadas e tratadas na polícia e no judiciário. Corpos que nunca foram encontrados, como no caso de Acari e cujas pistas, de acordo com mães e militantes engajados, não foram perseguidas ou mortes que iniciaram sua carreira policial­burocrática sob  o  registro  de  ‘auto  de  resistência’,  estão  previamente  enquadrados  em  categorias  de  irrelevância  social.  Tratava­se  de ‘bandidos’, foram ‘mortes em confronto’, eram ‘traficantes’. Com isso, fala­se de uma espécie de morte previsível e rotinizada que, por um lado, teria sido procurada e tacitamente aceita por esses sujeitos e, por outro, que não merece o reconhecimento que se expressaria no esforço de investigá­las de modo que pareça exaustivo e determinado”. Assim como as Mães de Acari, as Mães de Maio buscam não só o reconhecimento de seus entes enquanto sujeitos, mas também tentam fazer que o Estado se responsabilize por essas mortes, punindo os agentes públicos responsáveis pelas execuções. Considerações finais Ao pensarmos as chacinas no Brasil e, em especial, nas metrópoles do Rio de Janeiro e de São Paulo, fica claro como, a partir da formação dos grupos denominados de Esquadrão da Morte, a prática de execução de “suspeitos” e “bandidos” enquanto forma de higienização social ou de retaliação se transforma quase como um modus operandi de grupos de agentes públicos – em grande parte, policiais. Cabe ressaltar que, em São Paulo, a formação do Esquadrão da Morte está ligada à Ditadura Civil­Militar e que, segundo  as  análises  citadas,  é  com  as  Rondas  Ostensivas  Tobias  de  Aguiar  (ROTA)  que  a  polícia  paulista  se  torna  um  agente executor. A partir da década de 1990 vemos as chacinas se colocando enquanto práticas cada vez mais rotineiras em nossa sociedade, sendo os Crimes de Maio de 2006 um marco no que tange a esse tipo de violência, pela quantidade de civis executados em um curto período de tempo, em diversas chacinas espalhadas não só pela cidade de São Paulo, mas pelo Estado inteiro. Ressaltamos  que  o  movimento  social  Mães  de  Maio  –  assim  como  as  Mães  de  Acari  e  a  Rede  de  Comunidades  e  Movimentos Contra a Violência, ambos no Rio de Janeiro – se mostra enquanto mola propulsora para a reparação e justiça social em relação a essas práticas de chacinamentos, além de escancarar como a violência policial se institui no nosso Estado Democrático de Direito: dentro  de  uma  lógica  militarizada,  de  extermínio  de  “suspeitos”  e  “bandidos”  que  têm  entre  suas  vítimas,  em  sua  maioria,  a população periférica. Referências bibliográficas Almeida, 

Angela 

Mendes 

de. 

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autoritário 



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juízos de valores que promovem uma repressão de forma mais acentuada às classes populares. Devemos considerar que a elite também comete crimes, mas, devido à sua classe social e ao status, a maioria deles não é julgada e muitas vezes nem denunciada. [5] Mais recentemente, Gabriel Feltran (Fronteiras de tensão. Um estudo sobre política e violência nas periferias de São Paulo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Unicamp. 2008, p. 127­140), em sua tese “Fronteiras da tensão,” esmiúça, a partir da análise da trajetória  da  família  de  Maria  e  de  seus  três  filhos,  como  nas  fronteiras  entre  a  legalidade  e  a  ilegalidade,  a  vida  de  “família trabalhadora”  pode  transitar  para  o  “mundo  do  crime”,  subvertendo  a  ordem  moral  estabelecida  e  demonstrando  como  essas categorias não são estanques. Assim, os filhos de Maria entram cedo para o mercado de trabalho, assim como também entram cedo para o crime, primeiro com o uso de drogas e, posteriormente, com assaltos e roubos de carros, fazendo que a “família trabalhadora” tentasse de diversas formas retirar seus filhos da “vida do crime”. [6]  Alguns  importantes  autores  vão,  em  análises  recentes,  contribuir  para  uma  compreensão  dos  espaços  periféricos  e  de favelização. Mike Davis (Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006), em seu livro Planeta favela, discorrerá sobre os processos de favelização ao redor do mundo, tentando mostrar como moradias precárias com grande adensamento populacional vêm crescendo nos países ditos subdesenvolvidos. Cabe lembrar que favela e periferia não são a mesma coisa, visto que podem existir favelas nos centros das grandes metrópoles, como a Favela do Moinho, em São Paulo, e a Pavão­Pavãozinho, no Rio de Janeiro, assim como podem existir bairros, creditados como periféricos, onde inexistam favelas. Outro teórico que trouxe importantes análises sobre espaços ditos próprios das classes populares foi Loïc Wacquant. Em seu livro Condenados da cidade (Os condenados da cidade – estudos sobre marginalidade avançada. Observatório IPPUR/UFRJ­FASE. Rio de  Janeiro:  Revan,  2001),  ele  analisa  os  guetos  norte­americanos,  assim  como  as  banlieue  francesas,  como  espaços  de marginalização,  ou  seja,  espaços  para  segregar  sujeitos  nas  margens  da  sociedade,  como  um  todo,  seja  essa  segregação proveniente da cor da pele ou da classe social. As análises de Wacquant perpassam a perspectiva de que o desmantelamento do Estado  de  Bem­Estar  Social,  entre  algumas  outras  causas,  geraria  o  que  o  autor  chama  de  hipergueto,  que  seriam  os  guetos amplificados, sem a organicidade e os papéis sociais definidos existentes nos guetos tradicionais. Para o autor, há possibilidades de se traçarem paralelos ente os guetos, as banlieue e as favelas e periferias brasileiras. [7] Discorrendo sobre a emergência dos debates sobre periferia no Brasil, Feltran (Gabriel de Santis. Debates no “mundo do crime”, repertórios da justiça nas periferias de São Paulo. In: Cabanes, Robert; Georges, Isabel; Rizek, Cibele; Telles, Vera da Silva (orgs.). Saídas de emergência. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 217­218) explicita: “Desde os anos 1970 até os anos 1990, o debate sobre as periferias urbanas se consolidou nas ciências sociais brasileiras. Os temas do mercado de trabalho popular, do sindicalismo e do operariado nascente nesses territórios se desdobraram por três décadas, acompanhando as transformações (radicais) da temática no período. A magnitude da migração para o Sudeste, os impactos da constituição de um proletariado urbano e suas implicações metropolitanas, bem como as idiossincrasias da família operária e as transformações na religiosidade católica em ambiente urbano, foram  temas  correntes.  A  questão  das  favelas,  as  alternativas  de  infraestrutura  urbana  e  o  déficit  habitacional  da  metrópole ocuparam intelectuais e militantes. A efervescência das mobilizações desses territórios, nos anos 1980, deslocou parte significativa do  debate  para  o  tema  dos  movimentos  sociais  urbanos  e,  na  década  seguinte,  para  a  reflexão  sobre  construção  democrática, participação e políticas públicas”. [8] O livro A espoliação urbana, de Lúcio Kovarick, é um clássico sobre a urbanização das metrópoles brasileiras. Para o autor, com a  crescente  industrialização,  há  um  também  crescente  mercado  imobiliário  que  expulsa  os  trabalhadores  das  chamadas  Vilas Operárias, forçando­os a procurar lugares mais acessíveis, criando, assim, as periferias. A questão econômica é central nas análises de Kovarick, como podemos observar nesse trecho (A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979. p. 41): “A periferia como fórmula  de  reproduzir  nas  cidades  a  força  de  trabalho  é  consequência  direta  do  tipo  de  desenvolvimento  econômico  que  se processou na sociedade brasileira das últimas décadas. Possibilitou, de um lado, altas taxas de exploração do trabalho, e de outro, forjou formas espoliativas que se dão ao nível da própria condição urbana de existência a que foi submetida a classe trabalhadora”. [9]  Boris  Fausto  (Crime  e  cotidiano.  São  Paulo:  Brasiliense,  1984.  p.  39)  relata  como  rótulos  pejorativos,  como  “vagabundos”,

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estigmatizam as camadas destituídas da sociedade ao longo da história brasileira. [10] O proceder seria, em uma breve descrição, uma conduta moral que a comunidade e os seus pares esperam do sujeito. [11] Celso Frederico (Da periferia ao centro: cultura e política em tempos pós­modernos. Estudos Avançados, vol. 27, n. 79, 2013, p. 244)  lança  uma  crítica  ao  trabalho  de  Tiarajú  Pablo  D’Andrea,  ao  considerar  suas  análises  sobre  o  sujeito  periférico  demasiado otimistas e pouco consideram o que Frederico chama de colonização pelo consumo nas periferias. Para ele, as classes populares não são em si progressistas e, ao mesmo tempo em que encontramos nas periferias sujeitos e conteúdos culturais críticos e com posturas anticapitalistas, encontramos também sujeitos e conteúdos culturais reacionários, ou, nas palavras do autor, regressistas. [12] Entre as chacinas ocorridas no Brasil entre 1990 e 2015, destacamos: Chacina de Acari (1990); de Matupá (1991); Massacre do Carandiru (1992); Chacina da Candelária e Vigário Geral (1993); Alto da Bondade (1994); Corumbiara (1995); Eldorado dos Carajás (1996);  São  Gonçalo  e  da  Favela  Naval  (1997);  Alhandra  e  Maracanã  (1998);  Cavalaria  e  Vila  Prudente  (1999);  Jacareí  (2000); Caraguatatuba (2001); Castelinho, Jd. Presidente Dutra e Urso Branco (2002); Amarelinho, Via Show e Borel (2003); Unaí, Caju, Praça da Sé e Felisburgo (2004); Baixada Fluminense (2005); Crimes de Maio (2006); Jacarezinho e Complexo do Alemão (2007); Morro da Providência (2008); Canabrava (2009); Vitória da Conquista e os Crimes de Abril na Baixada Santista (2010); Praia Grande (2011); Chacina do ABC, de Saramandaia, da Aldeia Teles Pires, da Penha, Japeri, Favela da Chatuba, Várzea Paulista, os Crimes de  Junho,  Julho,  Agosto,  Setembro,  Outubro,  Novembro  e  Dezembro  em  SP  (2012),  a  Chacina  do  Jd.  Rosana,  Vila  Funerária, Chacina da Maré (2013), Chacina de Belém do Pará (2014), Chacina do Cabula (2015), Chacina do Pavilhão Nove (2015), Chacina de Manaus (2015), Chacina de Barueri e Osasco (2015). [13] Dominique Monjardet (O que faz a polícia – sociologia da força pública. São Paulo.  Edusp, 2002) nos traz um importante estudo sobre a polícia enquanto instituição, destrinchando as diversas dimensões da instituição policial, em seu livro O que faz a Polícia. [14] Em seu livro Crime e cotidiano, Boris Fausto (op. cit., p. 162­167) expõe como a violência policial era uma prática instituída no começo do século XX, embora práticas de tortura e execuções sumárias não aparecessem de forma rotineira. Já Márcia Regina da Costa (Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 60: a constituição do Esquadrão da Morte. Anais do XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambú, 1998, p. 3) irá relatar como durante os anos 1930, sob o governo de Getúlio Vargas, com a criação de uma tropa de elite chamada “Polícia Especial”, a instituição policial do Rio de Janeiro e de São Paulo passa a ter como técnica de atuação a prática de tortura e de execução. [15] Para Michel Misse (Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, vol. 8, n. 3, p. 371­385, Porto Alegre, set.­ dez. 2008), existe no Rio de Janeiro, em sua área metropolitana, assim como pode existir em outras metrópoles, um processo que o autor chama de “acumulação social da violência”, ampliador da violência ao longo das décadas precedentes. [16]  Cara  de  Cavalo  era  muito  conhecido  no  Rio  de  Janeiro,  frequentava  a  quadra  da  Mangueira,  onde  era  passista  e,  em homenagem a ele, após sua morte, o artista plástico Hélio Oiticica criou a obra “Seja Marginal, Seja Herói”. [17]  É  durante  a  Ditadura  Militar,  por  meio  do  Dec.­lei  317,  de  18.03.1967,  que  a  Polícia  Militar  será  adaptada  à  Doutrina  de Segurança Nacional e é por intermédio do Dec.­lei 667/1969 que se estabelece um sistema binário de policiamento, excluindo­se as outras guardas fardadas e instituindo­se a Polícia Militar como instituição legítima de policiamento ostensivo no Brasil. [18] Em julho de 1970, Hélio Bicudo (Meu depoimento sobre o esquadrão da morte. São Paulo: Pontifícia Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1976, p. 19) é designado como Procurador da Justiça do Estado, em São Paulo, para investigar os crimes cometidos pelo esquadrão, como relatado em seu livro Meu depoimento sobre o Esquadrão da Morte. Nesse mesmo mês e ano, a Revista Veja publica uma extensa reportagem sobre os Esquadrões da Morte, seguida de pesquisa de opinião pública, naquele momento, em que 60% dos paulistanos e 33% dos cariocas entrevistados eram favoráveis à existência do Esquadrão da Morte. [19] O jornalista Caco Barcellos (Rota 66 – a história da polícia que mata. São Paulo: Globo, 1992. p. 127­128), em seu romance policial Rota 66 – a história da polícia que mata, irá relatar como a prática de extermínio efetuada pela polícia não sofreu grandes

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alterações, nem foi combatida pelos chefes de Estado, sejam eles da época da ditadura ou do regime democrático: “Nosso Banco de Dados também mostra que a violência da Polícia Militar não sofre grande influência e nem pode ser explicada somente por uma circunstância  de  quem  está  no  comando  político  do  Estado.  Durante  os  anos  do  regime  militar,  os  governadores  Abreu  Sodré  e Paulo Egídio Martins sempre apoiaram em público ações enérgicas da PM durante o policiamento. O mais notório incentivador foi o engenheiro  Paulo  Salim  Maluf,  que  governou  São  Paulo  de  79  a  82.  Nesse  período,  os  policiais  militares  passaram  a  matar  em média uma pessoa a cada trinta horas, aproximadamente trezentas por ano. (...) A partir de 1990 se observa um grande incentivo aos homens da ROTA, que ganharam equipamentos e carros novos. (...) A violência dos matadores bateu todos os recordes. Em 1991, mais de mil suspeitos foram mortos, média de três vítimas por dia. Em 92, nos cinco primeiros meses, passaram a matar quase quatro por dia. (...)”. [20]  Ângela  Mendes  de  Almeida  (Estado  autoritário  e  violência  institucional.  Disponível  em:  [http://www.ovp­ sp.org/debate_teorico/debate_amendes_almeida.pdf])  descreve  como  se  dão  as  práticas  de  chacinas,  muitas  delas  com  policiais envolvidos enquanto agentes: “(...) Atuando sempre em equipe de dois, ou de quatro, disfarçados com ‘toucas ninja’, alguns vestidos com  trajes  civis,  outros  semifardados,  às  vezes  com  auxílio  de  civis,  entram  em  uma  favela  ou  comunidade  e  executam sumariamente algumas pessoas. Essas execuções são sempre feitas em locais públicos – praças, bares – e com a calma suscitada pela confiança de ter a polícia do seu lado: verificam se todas as vítimas estão bem mortas, se não estão, aplicam novos tiros, e saem calmamente. (...)”.  Tatiana  Merlino,  na  reportagem  “Em  cada  batalhão  da  PM  tem  um  grupo  de  extermínio,”  para  a  Revista Caros Amigos, relata como essa prática da execução é institucionalizada nos batalhões paulistas. [21] Alguns relatos dão conta de que o número de mortos poderia ser mais que o dobro do número oficial. [22] No dia 21.05.2006, nove dias após o começo do conflito, o jornal O Estado de São Paulo traz em seu Caderno Metrópole o número de 73 presídios paulistas rebelados, e o jornal Folha de São Paulo divulga nesse mesmo dia, em seu Caderno Cotidiano, o número de 82 rebeliões em presídios. [23]  A  primeira  grande  demonstração  de  força  do  PCC  ocorreu  em  2001,  quando  29  presídios  paulistas  se  rebelaram,  sob  o comando  da  facção.  Segundo  Biondi  (Junto  e  misturado:  imanência  e  transcendência  no  PCC.  Dissertação  (Mestrado  em Antropologia Social). UFSCar. 2009, p. 46): “A ‘megarrebelião’ de 2001 foi a primeira grande ação do Primeiro Comando da Capital (PCC), cujo nascimento e crescimento ocorreram silenciosa e imperceptivelmente para a grande maioria da população do Estado. (...)”. [24] Paulo Arantes faz uma avaliação sobre a construção do pânico durante os ataques de maio de 2006, em seu texto Duas vezes pânico na cidade. [25] A corrupção policial não é, de modo algum, uma ideia brasileira. William Foote White, em seu livro Sociedade de esquina, ao traçar  uma  etnografia  das  relações  sociais  urbanas,  existentes  em  Conerville,  descreve  as  relações  entre  policiais  e  gângsteres, ressaltando as relações mercantis presentes entre a atividade policial e o jogo de números. Foote White, inclusive, nos mostra como era existente uma lógica de porcentagem que revelava o quão corrupto ou não um policial poderia ser, assim existiam os “tiras 25%”; “tiras 50%” e os “tiras 100%”, esses incorruptíveis. Sobre a corrupção policial, nos anos 1940, nos Estados Unidos, extrai­se do livro de White (Sociedade de esquina. A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 14): “Os tiras são subornados. Eles chamam isso de ‘salário sindical’. O patrulheiro recebe cinco dólares por mês de cada loja que vende  jogos  de  números  em  sua  área  de  ronda.  Os  policiais  civis  recebem  o  mesmo,  mas  podem  andar  em  qualquer  lugar  de Cornerville. Eles dividem o território entre si. Entram em diferentes folhas de pagamento e dividem o suborno. (...)”. [26] Grifos dos redatores do Relatório. [27] Em seu livro Do luto à luta (São Paulo: Giramundo Artes Gráficas, 2011. p. 20), o Movimento Mães de Maio assim se define: “O movimento Mães de Maio é uma rede de Mães, Familiares e Amig@s de vítimas da violência do Estado Brasileiro (principalmente da Polícia),  formado  aqui  no  estado  de  São  Paulo  a  partir  dos  famigerados  Crimes  de  Maio  de  2006.  Foi  a  partir  da  Dor  e  do  Luto

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gerado pela perda de noss@s filh@s, familiares e amig@s que nos encontramos, nos reunimos e passamos a caminhar juntas”. [28] As Mães de Acari se configuram também enquanto um movimento social, formado por mães e familiares dos desaparecidos na Chacina de Acari, ocorrida no Rio de Janeiro, em 1990. Camila de Lima Vedovello Mestre em Ciências Sociais (Unesp­Marília). Professora da Rede Pública Estadual (SEE­SP). Coordenadora  Adjunta do Grupo de Estudos sobre Ciências Criminais e Direitos Humanos (IBCCrim).

Rua Onze de Agosto, 52 ­ 2º andar ­ Centro ­ São Paulo ­ SP ­ 01018­010 ­ (11) 3111­1040

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