Veganismo como símbolo do Arquétipo de Alteridade

May 26, 2017 | Autor: Thata Khoury | Categoria: Clinical Psychology, Veganism, Psicologia Analitica, Veganismo
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TÍTULO: O VEGANISMO COMO EXPRESSÃO DO ARQUÉTIPO DE ALTERIDADE
Resumo: Este artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre o Arquétipo de Alteridade, que se relaciona com a posição dialética da Consciência, e o Veganismo, que apesar de ser um movimento social e uma prática indvidual, neste artigo é apresentado como um símbolo que visa unir a polaridade humano/não-humano, corroborada de maneira sombria pela Consciência Patriarcal Defensiva que coloca os animais não-humanos em posição de inferioridade, justificando seu uso, comodificação, escravidão, desrespeito à sua natureza particular e consequentemente violando seu direito à vida, à liberdade e à auto-realização.
Palavras-chave: Arquétipo de Alteridade, Veganismo, Símbolo, Senciência

Símbolo, Arquétipo e o Quatérnio Arquetípico Regente
O símbolo é como um caracter ou palavra de um idioma que expressa uma linguagem; no caso, a linguagem do inconsciente. O símbolo é a forma que a psique encontra tanto para se expressar quanto para se elaborar. Ele serve à totalidade psíquica e não exclusivamente ao Ego. Sua função é unir aquilo que está separado e aqui podemos compreender "unir" como integração, essencial ao processo de individuação e separar como um acontecimento desestruturante, conflitante.
Jung (1964) se dedicou fortemente ao estudo dos símbolos tornando-os indissociáveis de sua teoria como um todo. Para ele, o símbolo é um substrato que está intimamente ligado ao observador, isto é, um símbolo possui uma extensa multiplicidade de significados dependendo de quem o observa. É ampliativo e subjetivo, diferentemente de um sinal que seria redutivo e denotativo. Veremos mais adiante a razão de podermos enxergar no Veganismo um símbolo integrativo.
Sobre os arquétipos, Jacobi (1957) infere que "os conteúdos arquetípicos são dados à estrutura psíquica do indivíduo, na forma de possibilidades, tanto como fatores biológicos como históricos" (p. 39)
Byington (2008) relembra que a expressão de um arquétipo se dá em três dimensões, que ocorrem em graus diversos na esfera psíquica consciente/inconsciente: Genética, Coletiva/Cultural e na Elaboração Simbólica individual e coletiva.
A partir dessa conceituação básica, partimos para o entendimento do Quatérnio Arquetípico Regente que, segundo Byington(2008), postula que toda elaboração simbólica passa necessariamente pela regência de quatro arquétipos e que cada um deles apresenta uma posição típica da Consciência.
Primeiramente, especialmente no início da vida, a Consciência vive em seu estado de indiferenciação, sendo coordenada apenas pelo Arquétipo Central (Self) que coordena também todos os outros a seguir. Posteriormente, sob regência do Arquétipo Matriarcal, a consciência assume um funcionamento insular, isto é, em ilhas de opostos que não se articulam entre si. É caracterizado pela sensualidade, espontaneidade, pelo desejo, pela vida vegetativa, pelo pensamento mágico que crê alterar a natureza do objeto pela vontade e pela fé, pelo subliminar e pelas emoções.
Já o Arquétipo Patriarcal relaciona-se com uma posição polarizada da Consciência, mas agora de forma sistematizada, onde os opostos relacionam-se entre si de forma elitizada, isto é, um pólo é sempre inferior ao outro com o qual o Ego não está identificado. Esse arquétipo se caracteriza pela organização, discriminação e racionalidade, em detrimento das emoções, objetividade, controle, poder e hierarquia. É o arquétipo que mais forma sombra no processo de elaboração simbólica (Byington, 2088)
Isto se dá porque a posição polarizada mantém uma oposição elitista e hierarquizada entre as polaridades, que sobrecarrega a personalidade e a cultura com o perfeccionismo e a superexigência, transformados facilmente na repressão e na consequente patologização do polo desqualificado. (p.212)

O Arquétipo de Alteridade expressa-se por meio de uma maior complexidade da consciência que passa a funcionar sistêmica e dialeticamente a serviço da totalidade psiquica. Permite uma relação mais abrangente da Consciência com a Sombra, o que favorece o processo de individuação, a humanização e a elaboração de símbolos fixados (defensivos) que dificultam a reintegração de um Self dividido, polarizado. Ao contrário da perspectiva sistêmica do Arquétipo Patriarcal que autoriza a desigualdade e o elitismo entre as polaridades, no Arquétipo de Alteridade há uma prevalência da interação democrática entre os pólos que são relacionados ao Todo (Byington, 2008).
Por fim, o Arquétipo de Totalidade que está relacionado a uma posição contemplativa da Consciência, para que não se confunda, é coordenado também pelo Arquétipo Central e estes não são sinônimos. Enquanto um finaliza um processo de elaboração, o outro é responsavel inteiramente por todas as elaborações
A posição contemplativa e o Arquétipo de Totalidade têm, por um lado, a função prática de coroar a elaboração simbólica de qualquer situação e até mesmo do processo existencial. Mas, por outro, quando percebidos em toda sua extensão simbólica, têm a virtude de nos revelar todas as coisas, incluindo nós mesmos, reunidos no Um. Através da função da sensação, somos conduzidos a uma vivência grandiosa de constatação do Todo. Pela intuição, a psique participa do infinito e da eternidade. O pensamento propicia a admiração extática diante da inteligência incomensurável da criação, e o sentimento propicia a satisfação plena de ser totalidade. (Byington, p. 242)
Veganismo, Especismo e Senciência
O Veganismo é simultaneamente um definição/conceito, um movimento social e uma prática individual diária. Neste artigo, ele é apresentado também como um símbolo, visto que carrega em si a possibilidade de unir o que está separado, isto é, a natureza animal humana e a natureza animal não-humana.
O reconhecimento dessa afinidade existencial – a senciência – entre humanos e não-humanos é simbolizado pelo Veganismo enquanto base moral para a abolição da escravidão animal, em que não-humanos são igualmente considerados como indivíduos e sujeitos de direitos, assim como humanos. A compreensão do veganismo se dá quando essa separação desestruturante e sombria – que nos afasta de nossa própria natureza animal e nos coloca em um patamar de suposta superioridade – é equalizada e nos permite ver a relação Ego-Outro sistemicamente dentro do todo, de forma dialética e democrática (Byington,2008), isto é, considerando o outro pólo (animais não-humanos) e seus interesses.
O termo veganismo foi cunhado em 1944, por Donald Watson, fundador da Vegan Society no Reino Unido. O termo inicialmente referia-se à retirada de produtos de origem animal da dieta, e somente em 1979 firmou-se a seguinte definição:
Filosofia e modo de viver que busca excluir – enquanto possível e praticável – toda forma de exploração e crueldade aos animais por comida, roupas ou qualquer outro propósito e, por extensão, promover o desenvolvimento e uso de alternativas sem animais para benefício de humanos, animais e o meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de dispensar todos os produtos feitos inteira ou parcialmente de animais. (Vegan Society, 1944)

Abaixo seguem alguns exemplos de como humanos exploram não humanos e que são práticas que o Veganismo busca abolir, substituir e ressignificar:
1. Alimentação: procriação forçada de animais confinados para abate, atendendo ao consumo das partes de seus corpos e suas secreções. (de todos os tipos: bovinos, suínos, ovinos, caprinos, galináceos, peixes, moluscos, insetos, répteis, roedores, equinos etc), ovos (diversas espécies), laticínios (diversas espécies) e mel (alimento produzido e destinado às próprias abelhas);
2. Moda: aproveita-se dos processos da indústria alimentícia e também atende a demandas primárias (animais criados exclusivamente para esse fim) para criar peças de alto valor como couro (bovinos, cobras, répteis), pelos e peles (raposas, roedores, marsupiais), penas (gansos e aves selvagens), seda (bicho-da-seda) e lã (tosquia de ovelhas).
3. Cosmética: utiliza-se de insumos animais como a lanolina, cartilagens de tubarão, secreções de órgãos de animais, ossos, gordura etc., além de todos os testes realizados em animais (cães, gatos, coelhos, camundongos, porquinhos-da-índia, macacos etc.) que, ironicamente, validam a segurança para consumo humano, cuja fisiologia é bastante diversa. Além disso, trata-se de atividade extremamente torturante para os animais que, confinados, são mutilados, adoecidos propositalmente, contaminados, envenenados e, por fim, mortos.
4. Entretenimento, Tradições e Rituais: locais que usam animais selvagens, muitas vezes capturados em seu próprio habitat, para serem colocados em confinamento para diversão humana como circos (adestramento forçado), zoológicos, parques aquáticos, aquários (confinamento, solidão e privação de interações sociais próprias à sua espécie), sacrifícios de animais em rituais religiosos, charretes, rinhas, rodeios, vaquejadas, touradas, farra do boi etc,
5. Esportes e terapias: cães-guia, equoterapias, animais terapeutas, caça e pesca "esportiva" etc.
6. Trabalhos cativos: animais utilizados para tração(cavalos, burros, mulas, cães, touros, etc), montaria e policiamento (cavalos e cães), criadouros comerciais de animais de raça para guarda e companhia (matrizes de procriação).
7. Outros: zoofilia, tráfico de animais selvagens, vivissecção na educação, etc.
O que é comum a todas essas categorias é que todas elas privam esses animais de direitos básicos à vida, à liberdade e à realização de suas naturezas em função de interesses humanos que desconsideram os interesses desses não-humanos. Todas envolvem algum nível de violência/tortura física e psicológica (Confinamento, solidão, privação de interações sociais), riscos desnecessários e, principalmente, são todas atividades moralmente injustificáveis, já que os interesses fundamentais do animal deveriam prevalecer sobre os interesses espirituais, recreativos, científicos e culturais humanos.
É importante compreender que se entende por exploração, nesse contexto, qualquer forma de uso de seres sencientes, que não está necessariamente ligada à crueldade ou a causar dor. A questão da tortura, mutilação e assassinato seriam por si só abomináveis e injustificáveis, mas frequentemente entendidas como a única maneira de se explorar um ser senciente.
O ponto central do veganismo que visa à abolição da escravidão dos animais não-humanos, não é , portanto, o sofrimento em si, mas sim a utilização comodificada de suas vidas sob uma deliberada proposição de inferioridade desses animais não-humanos pautada única e exclusivamente em características aprimoradas na espécie humana (consciência, inteligência, linguagem, etc), colocando-os na base desta hierarquia e desconsiderando-os como seres que possuem direito à vida, seu mais precioso bem.
Essa falsa prerrogativa foi o que Richard D. Ryder nomeou como especismo, na década de 70, ou seja, a discriminação e preconceito contra outros por sua espécie. O especismo seria, em termos psicológicos, uma expressão sombria, fixada do Arquétipo Patriarcal, colocando no pólo inferior, a ser subjugado, rejeitado e até mesmo destruído, os animais não-humanos.
A falsa e sombria suposição de superioridade humana vem sendo sistematicamente desmantelada pela Neurociência, como podemos observar na Declaração de Cambridge sobre Consciência Humana e Animal que deixa claro que todos os mamíferos, aves e muitos animais marinhos são dotados de consciência:
A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos. (Low et al. 2012).

O jurista Gary L. Francione (2013) afirma que ser senciente
significa ser do tipo de ser que é consciente da dor e do prazer; existe um "eu" que tem experiências subjetivas. Nem tudo o que está vivo é necessariamente senciente, por exemplo, que nós saibamos, as plantas, que são vivas, mas não sentem dor. As plantas não se comportam de uma maneira que indique que elas sentem dor, e elas não têm estruturas neurológicas e fisiológicas que associamos com a senciência dos animais humanos e não humanos. Além disso, a dos humanos e não humanos serve a uma função muito prática. É um sinal para que o humano ou o animal escape da fonte da dor a fim de evitar dano ou morte. Os seres sencientes usam a dor como um meio para os fins de sobrevivência. As plantas não podem usar a dor como um sinal, dessa maneira – e portanto é difícil explicar por que as plantas iriam desenvolver mecanismos para a senciência se esses mecanismos forem completamente inúteis. (pg. 42)

O reconhecimento da consciência e senciência animal e a expressão arquetípica da alteridade
Sabemos, como terapeutas corporais, o quanto o toque pode ser uma ferramenta poderosa. Um toque pode gerar sensações e emoções positivas, mas também pode gerar sentimentos negativos de invasão e desrespeito, ainda que esta não seja a intenção. O toque precisa ser autorizado pelo outro, do contrário se torna um equívoco.
Partindo do entendimento de que animais são seres sencientes, com arcabouço neurológico, psíquico e físico como nós para sentir, emitir reações e emoções, tocar um animal deveria depender da mesma autorização que pedimos para tocar um paciente. Animais não humanos comunicam, de forma facilmente observável, sua intenções e desejos.
Propõe-se alguns exercícios empáticos e de alteridade aos leitores: imaginem a agonia de estar em uma fila para ser morto sentindo todos os cheiros e sons exalados e emitidos por outros que foram mortos antes e se saber o próximo (ocorre com todos os animais de criação para abate). Imaginem um barbeiro removendo todos os pelos de seu corpo violentamente sem a sua permissão, causando-lhe cortes e ferimentos (ocorre na tosquia de ovinos). Imaginem serem forçadas a conceber um bebê contra a sua vontade, por meio de inseminação artificial e logo após seu nascimento, tê-lo roubado, não poder olhá-lo, amamentá-lo, cuidá-lo e nunca mais vê-lo novamente(ocorre com todas as vacas leiteiras para que produzam o leite que seria destinado a seus bebê e que será comodificado para humanos). Imaginem estarem presos a uma rede que os arrasta para o fundo do mar onde por longos minutos agonizam sem poder respirar até finalmente perderem a consciência (ocorre com toda a vida marinha explorada para os mais diversos fins).
Poder-se-ia criar infinitas situações que permitiriam a qualquer um com uma boa capacidade de abstração imaginar e sentir a agonia que causamos desnecessariamente a esses seres que elegemos para estar no pólo oposto àquele que consideramos digno de qualquer respeito e empatia, e que simplesmente nossa consciência polarizada defensiva dificulta o alcance. Byington (2008) diz algo a esse respeito:
(...) essa interdependência de espécies diferentes e até inimigas pode ser compreendida pela posição dialética do Arquétipo de Alteridade. A partir do conhecimento de quanto dependemos do Outro, podemos respeitá-lo e estudar melhor nossa relação. Dessa forma nos damos conta de muitas consequências sombrias e destrutivas das intervenções humanas no ecossistema causadas pelo narcisismo da posição polarizada patriarcal e da matriarcal. (p. 226)

No passado essa percepção dos animais como seres individuais e dotados de psicologia própria já havia acontecido ao se utilizar do conceito de arquétipo da Psicologia Analítica
O fato de que a teoria de Jung sobre os arquétipos poderia oferecer uma base adequada a uma perspectiva conjunta da psicologia humana e animal foi apontado, além de Hediger e Portmann, por K. Lorenz e F. Alverdes, entre outros. Lorenz fala de "esquemas congênitos", que se caracterizam pela independência de experiências com similitude formal com determinadas reações previstas no esquema congênito da vida humana. (...) Alverdes chamava de "arquétipo de pátria", "arquétipo de casa", "arquétipo de acasalamento", "arquétipo de paternidade" etc., e são igualmente formas típicas de vivências tanto na esfera animal como na humana. Representam determinadas configurações de ser, agir e reagir,cunhadas estruturalmente no "modelo originário" delas, mas não em suas manifestações isoladas. (Jacobi, 1957, p. 46)

Observamos diariamente em nossos consultórios como a impossibilidade de realização da alma (psique, aquela que anima o corpo) acarreta distúrbios severos e patologias que trazem resultados desagradáveis e desconfortáveis a quem os atua. Também outros animais não-humanos são vítimas (aos bilhões) dessa impossibilidade de realização de seus próprios propósitos da maneira como realizariam se fossem livres. E aí reside um dos maiores equívocos de nosso tempo: não reconhecer que os outros seres, com quem dividimos o planeta, também têm um propósito de alma e também possuem o desejo de realizá-lo. O que nos faz refletir se é correto reproduzir seres para serem escravos, se podemos forçar seus corpos a passar por experiências absolutamente diversas das que viveriam em um contexto de liberdade, se temos o direito de tirar a vida de seus filhotes e afastá-los de suas mães ao nascimento, enfim, tudo aquilo que no plano humano, combatemos veementemente, mas que não estendemos a eles.
Ainda em termos arquetípicos, deveríamos oferecer um olhar mais interessado à questão da senciência e das experiências psíquicas dos animais.
A construção de um ninho é um processo arquetípico, tanto quanto a dança ritual das abelhas, a defesa assustada da lula ou o desdobramento do leque do pavão. Em relação a isso, Portmann declara: "...esta organização do íntimo do animal é dominado por aquele elemento formativo, cuja maneira de atuar se encontra, na psicologia humana, no arquétipo. Todo o ritual dos animais superiores é dotado, em alto grau, desse caráter arquetípico. (...)H. Hediger já havia tentado demonstrar, num importante ensaio, a efetividade dos arquétipos nos atos instintivos dos animais. O animal que vive livremente, não é "livre", mas vive atrelado a um sistema de espaço-tempo, dentro do qual sua vida se desenrola em arranjos fixos. Se é arrancado da familiaridade do seu sistema de espaço-tempo e transferido artificialmente para um "espaço" estranho, onde não se sente "em casa", instalam-se nele graves sintomas de desenraizamento. A hierarquia biológica e social força o animal a permanecer em sua "pátria", se não quiser perder sua capacidade de viver. "A dourada liberdade do animal – observa Hediger – é a projeção de um desejo humano". Isso é válido desde o peixe aos vertebrados mais altamente organizados. (...) O trilhar habitual dos animais e o movimento rítmico e ritualístico da vida quotidiana do homem são correlatos" (1957, p. 45)

Quando falamos em liberdade, podemos entendê-la então, muito mais como um estado emocional do que físico. Embora os animais estejam "atrelados" à expressão de suas atividade típicas, assim como nós, aqui falamos da liberdade de poder expressar suas atividades típicas, essa sensação de liberdade individual para exercer a própria natureza, também presente nos não humanos. É justamente o que entenderíamos no plano psíquico humano como individuação, uma busca pela expressão mais autêntica e realizada da personalidade, compreendida por Jung como "a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular", ou ainda "a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação a tudo que existe de universal, e tudo isto aliado à máxima liberdade de decisão própria". (Jung, 1972, p. 182)
Se podemos falar em aparato de consciência em seres sencientes, então precisamos definitivamente rever a ética que fundamenta nossa relação com eles, especialmente seus corpos e psicologias. A partir dessas definições, precisamos nos perguntar, especialmente dentro da Psicologia, qual é a coerência em desconsiderarmos todos os outros seres que assim como nós são capazes neurologicamente de construir consciência, sentir e responder emocionalmente, e simultaneamente lutarmos por igualdade social?
Dessa maneira, fica cada vez mais claro que, para que o desenvolvimento da consciência humana atinja verdadeiramente a posição dialética regida pelo Arquétipo de Alteridade, se faz absolutamente necessário integrar a Sombra especista que hoje projetamos nos animais e nela negamos a nossa própria natureza animal, animada. O não reconhecimento da senciência animal nos põe estagnados em relação ao desenvolvimento em direção à Totalidade, isto é, a elaboração dessa questão em termos coletivos, já que do todo, fazem parte também os animais não-humanos e ele está perturbado.
A alteridade, nesse caso, expressa-se pelo próprio Veganismo vivido individual e diariamente como um processo de desvelamento do que se busca ocultar acerca do seres sencientes - trabalho eficiente da mídia e do marketing que criam a ilusão do "bem-estar" animal afim de acalentar a consciência humana que intuitivamente reconhece o caráter perverso dessa relação – e por meio do Veganismo como movimento coletivo que passa a reconhecer e a lidar com essa Sombra.
A cada escolha consciente e ética que fazemos em relação aos animais não-humanos, estamos contribuindo para diminuir a Sombra construída nessa polarização defensiva da Consciência Patriarcal. O Veganismo, nesse sentido, traz uma percepção sistêmica de que ao destruir o Outro, nesse caso os seres sencientes de outras espécies, destruímos também a nós mesmos. Ao incluí-los em nosso círculo de consideração moral, também modificamos completamente nossa relação com nossa própria espécie. Talvez o Veganismo enquanto símbolo seja a expressão máxima da alteridade, pois visa oferecer uma voz consciente e desprendida de preconceitos aos seres sencientes mais desrespeitados pelos humanos no mundo todo – em prol de seus próprios interesses - e que não podem se defender ou falar por si mesmos já que sua linguagem e tentativa de demonstrar seus descontentamentos seja subjugada e rejeitada como autêntica e merecedora de atenção.
Discussão Final
Enquanto sustentarmos a idéia de que à nossa sociedade é permitido algum tipo de relativização da exploração, violência e escravidão dos Outros seres, teremos, na mesma medida, a autorização para ocorrências de violência e comodificação da vida humana, mesmo que isso seja legalmente recriminável. Isso se dá pelo fato de que psicologicamente ainda não resolvemos essa Sombra na qual colocamos outros seres numa posição inferior, isto é, a violação da vida enquanto prática aceitável por justificativas frívolas, polarizadas e elitistas não foi ainda elaborada.
Ao validarmos ou naturalizarmos algum tipo de escravidão, seja a condição nefasta a que são submetidos os animais não-humanos, seja pelo funcionamento de um sistema político e econômico cujos valores sociais e morais distorcidos submetem humanos e os impede de se realizar, somos obrigados a reconhecer inquestionavelmente que a conexão de ambos os universos - embora tenham sido polarizados - reside na mesma raiz, o especismo, a subjugação deliberada do mais vulnerável.
Libertar os animais é o próximo passo para começarmos a vislumbrar uma sociedade mais igualitária, coerente e psicologicamente saudável. Uma sociedade que não mais relativizará a violência, escravidão e comodificação da vida em nenhuma instância.
Não haverá uma resolução efetiva dos direitos humanos, sem antes revisarmos nossa atitude de condescendência e validação da exploração dos mais frágeis e inocentes, sejam eles humanos ou não humanos, que não foram considerados dialeticamente, como requer o desenvolvimento da consciência sob a regência do Arquétipo de Alteridade.
Uma reflexão mais apuradas sobre a vida dos seres sencientes, tanto livres quanto escravizados, nos traz luz à compreensão de sua natureza individual, personalidade e organizações coletivas, isto é, eles são indivíduos com caminhos próprios. Tal afirmação deveria ser o suficiente para nunca mais perturbarmos sua existência, na mesma medida em que tal perturbação é absolutamente desnecessária à manutenção da humana. Não precisamos nos alimentar de seus corpos – a ciência médica conta hoje com incontáveis estudos demonstrando que animais e suas secreções não são necessários nutricionalmente -, não precisamos vestir suas carcaças, não precisamos de suas secreções para nosso embelezamento, não necessitamos de sua força com tantas máquinas e tecnologias que fomos capazes de criar, não precisamos de sua agonia para nossa diversão e dessa maneira nos autorizamos também a aprimorar, exercitar e expressar autenticamente nossa criatividade sem que dependamos do infortúnio de outros para solucionarmos os problemas inerentes à nossa configuração social.
Aquilo a que chamamos de consciência civilizada não tem cessado de afastar-se dos nossos instintos básicos. Mas nem por isso os instintos desapareceram: apenas perderam contato com a consciência, sendo obrigados a afirmar-se através de sintomas físicos (no caso de uma neurose) ou por meio de incidentes de vários tipos, como humores inexplicáveis, esquecimentos inesperados ou lapsos de palavra.
O homem gosta de acreditar-se senhor da sua alma. Mas enquanto for incapaz de controlar seus humores e emoções, ou de tornar-se consciente das inúmeras maneiras secretas pelas quais os fatores inconsciente se insinuam nos seus projetos e decisões, certamente não é seu próprio dono. Estes fatores inconscientes devem sua existência à autonomia dos arquétipos. O homem moderno, para não ver esta cisão do seu ser, protege-se com um sistema de "compartilhamentos". Certos aspectos da sua vida exterior e do seu comportamento são conservados em gavetas separadas e nunca confrontados uns com os outros. (...) Este é um aspecto da mente "cultural" moderna que merece nossa atenção. Revela um alarmante grau de dissociação e confusão psicológica. (Jung,1964, p. 83)

Jung sabiamente reconhecia que o grau de dissociação psicológica que vivemos até hoje enquanto sociedade não nos emanciparia. A prevalência de aspectos sombrios em nossa cultura geram resultados práticos negativos em nossa sociedade e em nossa formação como indivíduos já que acabamos por nos pautar em valores preconceituosos como o especismo, em distorções como a alienação, os apegos à estruturas e funcionamentos obsoletos e disfuncionais, as patologias físicas e mentais, à autodestruição e as guerras sem um confrontamento desses conflitos ou qualquer questionamento sobre seus efeitos.
O homem, como um eficiente produtor de símbolos, cria soluções para amenizar essa tensão das polaridades e o símbolos estão nascendo a todo instante na tentativa de unir o que uma polarização defensiva separa. Desta maneira, o Veganismo surge simultaneamente como um símbolo e uma prática que se propõe também a unir aquilo que esquizofrenicamente separamos, isto é, a importância da vida dos animais para eles da importância que nossa vida tem para nós, como se fossem coisas diferentes.
O reconhecimento da senciência como ponto de partida para nossa ética no mundo confronta nosso suposto status de superioridade em relação a outras espécies que coabitam este planeta conosco e nos põe num dilema ético sobre as justificativas morais que seguimos inventando para perpetuar essa diferença e como ela também nos afeta psíquica e fisicamente, seja pela dissociação emocional que somos forçados a viver, seja pelos efeitos em nossa saúde físíca (as 15 principais e mais letais doenças humanas estão ligadas ao consumo de animais) ou pelos efeitos morais que relativizam conceitos bastante objetivos em nossa sociedade, tornando-a caótica, elitista, predatória e desigual.
O Veganismo, sob um olhar do desenvolvimento da consciência humana a respeito dos corpos dos animais sencientes e do preconceito de espécie evoca igualmente os desafios clínicos a serem enfrentados com a demanda crescente que se anuncia de pacientes veganos. Será preciso conhecer este conjunto de conceitos que designam o lugar psíquico de onde partem, suas problemáticas intrínsecas à vivência do Veganismo, os preconceitos que sofrem por parte de familiares, no ambiente de trabalho, entre amigos e até mesmo as mudanças corporais que acompanham todo o processo de tornar-se vegano em um mundo não-vegano e fixado em uma consciência polarizada a ser reavaliada.

Referências
BYINGTON, Carlos A. B.. Psicologia simbólica junguiana.1.ed.São Paulo: Linear B, 2008.
FRANCIONE, Gary.1954. Introdução aos direitos animais: seu filho ou seu cachorro? .Tradução de Regina Rheda. Campinas: Editora Unicamp, 2013.
JACOBI, Jolande.1957. Complexo,Arquétipo e Símbolo na Psicologia de C. G. Jung. 9.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1990.
JUNG. C. G. 1972.O desenvolvimento da personalidade. 11. ed. Petrópolis. Editora Vozes, 2011.
JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 3.ed.Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1964.
LOW et al.. The Cambridge Declaration on Consciousness. Cambridge, UK, 2012. Disponível em: . Acesso em: 19.09.2015.
Vegan Society. Disponível em: . Acesso em: 19.09.2015.

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