VEGANISMO: UM SÍMBOLO DO CAMINHO PARA A TOTALIDADE

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Instituto Sedes Sapientiae Curso de Especialização Jung e Corpo

VEGANISMO: UM SÍMBOLO DO CAMINHO PARA A TOTALIDADE

Thaís Khoury de Souza

São Paulo 2016

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Thaís Khoury de Souza

VEGANISMO: UM SÍMBOLO DO CAMINHO PARA A TOTALIDADE

Monografia

apresentada

como

requisito

para

obtenção do certificado de conclusão do Curso de Especialização em Teoria Junguiana e Abordagem Corporal. Orientadora: Maria Helena R. M. Guerra

São Paulo 2016

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AGRADECIMENTOS

Agradeço imensamente à minha orientadora Maria Helena R. M. Guerra por toda a paciência e colaboração. Sua aceitação e respeito foram fundamentais para a concretização deste trabalho

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“Se pudéssemos viver uma vida feliz e saudável sem machucar os outros, por que não faríamos?” (Edgar´s Mission Farm Sanctuary, Austrália)

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RESUMO O veganismo é um tema novo e crescente na comunidade acadêmica e sua introdução na Psicologia de forma geral é ainda discreta. Neste trabalho o tema é articulado à conceitos da Psicologia Junguiana e também aborda questões corporais dos humanos e não-humanos. O trabalho consiste em explorar

os

conceitos

de

Símbolo,

Arquétipo

e

dos

estágios

de

desenvolvimento da consciência segundo a Psicologia Simbólica Junguiana aos

conceitos

de

outras

disciplinas

pertinentes

como

a

Filosofia,

Neurociências e Direito. Neste trabalho são introduzidos os conceitos de Especismo, Esquizofrenia Moral e Senciência. MÉTODO Estudo teórico por meio de revisão bibliográfica em base de dados online, consulta a livros, artigos científicos, revistas indexadas e material audiovisual. Descritores: Veganismo, Especismo, Alteridade, Totalidade

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ABSTRACT Veganism is a new subject in the academic community and its introduction in Psychology remains discreet. This work articulates veganism with Junguian Psychology concepts and body approach related to humans and non-humans bodies. It consists in exploring and articulating concepts such as Symbol, Archetype and the levels of Consciousness development acording to the Junguian Symbolic Psychology to concepts of other pertinent fields as Philosophy, Neuroscience and Law. In this work concepts as Speciesism, Moral Schizophrenia and Sentience are introducted. METHOD

Theoretical study literature review , based on online data, books, cientific articles, indexed journals and audio visual material. Key-words: Veganism, speciesism, Otherness, Totality

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................8 2. CONCEITOS PSICOLÓGICOS............................................................10 3. VEGANISMO E VEGETARIANISMO: UMA CONFUSÃO REDUTIVA............................................................................................16 4. CONSCIÊNCIA PATRIARCAL DEFENSIVA, ESQUIZOFRENIA MORAL E ESPECISMO.......................................................................21 5. RECONHECIMENTO DA SENCIÊNCIA E CONSCIÊNCIA ANIMAL E A EXPRESSÃO ARQUETÍPICA DA ALTERIDADE............................30 6. CONSCIÊNCIA DE TOTALIDADE E O VEGANISMO ABOLICIONISTA: ABRANGÊNCIA DA EMPATIA E SEU IMPACTO VISÍVEL................................................................................................37 7. DISCUSSÃO FINAL.............................................................................48 8. REFERÊNCIAS....................................................................................50

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INTRODUÇÃO O veganismo tornou-se presente em minha vida em julho de 2014. Foi um processo longo desde parar de comer carnes até preparar meu próprio desodorante sem nada de origem animal. Foi e obviamente ainda tem sido um processo profundo, que me trouxe enorme ampliação de consciência, autonomia, criatividade, conexão com meu corpo, maior clareza mental para tomar decisões considerando de que maneira elas afetam meu entorno. Após compreender internamente o assunto, acreditei que valeria o desafio de escrever sobre ele à luz da Psicologia Analítica e da abordagem corporal. Por que o veganismo como símbolo do caminho para a totalidade? Primeiramente, porque o símbolo é o elemento que une aquilo que foi ou está separado, isto é, a natureza humana e a natureza animal. E é um caminho para a totalidade, porque mobiliza inúmeros aspectos da vida Terra(ver fig. 1). Escrever sobre veganismo sob uma perspectiva psicólogica tornou-se um grande desafio, já que a maior parte da literatura sobre esse tema está centrada no Direito, na Filosofia, na Medicina, na Biologia e na Neurociência, e nos aventuraremos em algumas dessas disciplinas nos capítulos que se seguem. Falar sobre o tema veganismo implica um confronto ético, moral, emocional, o que gera na maioria das pessoas um grande incômodo. No entanto, vi na Psicologia Analítica, na Psicologia Simbólica Junguiana e na abordagem corporal uma possibilidade de acolhê-lo e aprofundá-lo. No primeiro capítulo desta monografia apresentarei os conceitos psicológicos que embasarão todo o trabalho. Este capítulo tem a função de nortear e orientar teoricamente o leitor para uma melhor compreensão dos capítulos seguintes.

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No

segundo

capítulo

tratarei

das

diferenças

cruciais

entre

vegetarianismo e veganismo, já que diversas confusões ainda ocorrem com tais conceitos. Neste capítulo exponho um breve histórico de ambos. A seguir, no terceiro capítulo, apresentarei uma articulação entre o conceito de consciência patriarcal visto no primeiro capítulo em suas expressões normais, agora explorado em suas expressões sombrias articuladas aos conceitos de propriedade, especismo e esquizofrenia moral de Gary Francione e seus desdobramentos histórico e social em nossa sociedade atual. No quarto capítulo alinharei os conceitos de senciência e seu reconhecimento ao conceito de Arquétipo de Alteridade, a fim de fornecer uma maior compreensão dos processos psícológico e moral em direção à alteridade, que engloba todos os seres sencientes. No quinto e último capítulo apresentarei a articulação entre o veganismo prático e a expressão saudável da Consiência Contemplativa, regida pelo Arquético da Totalidade, e de que maneira o veganismo se mostra como um símbolo e uma ação concreta em direção a essa posição da Consicência. Espero, com este trabalho, levar ao leitor uma possibilidade de reflexão e revisão importantes que trarão novas questões para a Psicologia como um todo, inclusive em diversos aspectos de nossa atuação clínica, já que a população vegana no mundo inteiro vem aumentando exponencialmente e é importante estarmos atualizados em relação às mudanças sociais que já estão ocorrendo e, com elas, uma nova demanda dos indivíduos. Meu propósito é criar uma canal de compreensão do Veganismo por meio de um olhar psicológico, já que não há ainda qualquer literatura significativa a respeito dentro da Psicologia como um todo.

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CAPÍTULO 1 CONCEITOS PSICOLÓGICOS Apresentarei, para efeito de localização teórica do leitor, alguns dos conceitos psicológicos que serão utilizados ao longo deste trabalho. Este capítulo servirá para expor os conceitos de Símbolo, Arquétipo, Consciência Matriarcal, Consciência Patriarcal, Consciência de Alteridade, Consciência de Totalidade. Os outros conceitos de outras disciplinas serão explicados em seus devidos capítulos. Símbolo O símbolo, é sabido, tem uma função mediadora entre consciente e inconsciente a serviço da totalidade psíquica. É sempre uma união de opostos que nos permite sintetizar conflitos e sanar incompatibilidades entre as duas instâncias (Jacobi,1957). Para Jung (1964), o símbolo é “um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além de seu significado evidente e convencional”. Isto é, inesgotável em possibilidades significativas e que dependem da intensidade de mobilização que causam em seu “produtor” ou “observador”, já que, como ele afirma, é de nossa natureza produzi-los, a exemplo dos sonhos. Byington (2008) vai um pouco além e estabelece o conceito de Símbolo Estruturante e explica que sua ampliação do conceito de símbolo incluiu as representações objetivas junto com as representações subjetivas. Para ele Símbolo, do grego syn=com + ballein = lançar, significa lançar junto e, por isso, é um conceito ideal para expressar todas as representações psíquicas e ao mesmo tempo, seguindo o prefixo syn, reunir todas as polaridades. (p.55)

Ainda afirma que os símbolos podem ter componentes mais concretos ou mais abstratos, mais objetivos ou mais subjetivos, mais coletivos ou mais pessoais, mais conscientes ou mais inconscientes, mas sempre terão componentes

11 arquetípicos e nele as polaridades estarão reunidas. (p.55)

Ao atribuir o caráter de símbolo ao veganismo proponho que ele busca sanar a oposição conflitiva entre humanos e não-humanos. O veganismo como símbolo propõe essa integração da polaridade humano-não-humano por uma via ética e moral, que, sem dúvida, é também psicológica.

Arquétipos O arquétipo é inobservável. É a potencialidade que toma forma a partir da experiência vivencial. É um vasto campo de possibilidades da experiência e do comportamento humanos que quando manifestado pelo símbolo mobiliza o indivíduo emocionalmente de maneiras diversas e pessoais. Os arquétipos são, de acordo com sua (de Jung) definição, fatores e motivos que coordenam elementos psíquicos no sentido de determinadas imagens (que devem ser denominadas arquetípicas) e isso sempre de maneira que só é reconhecível pelo efeito. Eles existem pré-conscientemente e formam provavelmente as dominantes estruturais da psique em si... Como condição a priori, os arquétipos representam o caso psíquico especial – tão familiar ao biólogo – do padrão de comportamento que confere a todos os seres vivos a sua índole específica. Assim como as manifestações desse plano biológico fundamental podem mudar no curso do desenvolvimento, assim também as do arquétipo. Visto, no entanto, de maneira empírica, o arquétipo jamais nasce dentro da esfera da vida orgânica; ele surge com a vida. Jung diz: “Se a estrutura psíquica e os seus elementos, os arquétipos, jamais nasceram, isso é uma questão de metafísica e, por isso, não pode ser respondida.” (Jacobi, p.37)

Jacobi (1957) ainda salienta que “os conteúdos arquetípicos são dados à estrutura psíquica do indivíduo, na forma de possibilidades, tanto como fatores biológicos como históricos” (p. 39) Byington (2008) acrescenta: Relembramos que, para se compreender como um arquétipo se expressa, temos que imaginá-lo a partir de três dimensões. A primeira é o componente genético.

12 A segunda é sua expressão coletiva cultural e histórica modificada e repassada de geração em geração. A terceira é senti-lo operando na elaboração simbólica individual ou coletiva do momento em questão. As três dimensões ocorrem dentro da polaridade conscienteinconsciente em graus variáveis. (p.184)

Partindo dessa perspectiva de arquétipo, introduzo os conceitos da Psicologia Simbólica Junguiana de Carlos Byington. Arquétipo Matriarcal: Sobre o Arquétipo Matriarcal, Byington descreve: O Arquétipo Matriarcal, como o arquétipo da sensualidade e da fertilidade, coordena através da posição insular todas as representações das funções estruturantes fisiológicas associadas aos sistema límbico e neuroendócrino. Ele é o arquétipo dos sentidos e da vida vegetativa. Sensações corporais de desejo, satisfação e suas disfunções pertencem à sua elaboração. Ele é tão básico e tão participante de todas as manifestações de nossos sentidos que o vivenciamos passiva e inconscientemente a maior parte do tempo. (p.183) (...) ele permeia a vida psíquica com percepções subliminares que podem depois vir a ser empregadas como se sempre estivessem estado à nossa disposição. (...) a posição insular matriarcal, devido ao seu alto grau de setorização, não tem uma articulação coerente entre os polos das polaridades, podendo facilmente entrar na simbiose e no pensamento mágico. Isso se dá porque o subjetivo e o objetivo não são cartesianamente separados, como na posição polarizada patriarcal, e por isso se confundem facilmente. (...) O pensamento mágico acredita que o Ego pode modificar a natureza do Outro em função exclusivamente do desejo, da emoção e da fé. A causalidade mágica opera com a causalidade emocional do desejo e não com a causalidade racional reflexiva baseada nas características do objeto. (p. 184/185)

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Arquétipo Patriarcal: A Consciência polarizada é regida pelo Arquétipo Patriarcal e se expressa

pela

organização,

discriminação,

categorização,

abstração,

hierarquia, isto é, há uma capacidade de raciocínio lógico e sistêmico. A posição polarizada do Arquétipo Patriarcal proporcionou um aumento extraordinário de controle da Consciência sobre o meio ambiente, a sociedade, as ideias, o corpo, as emoções e sobre todas as dimensões simbólicas de um modo geral. (...) Devido à sua vocação para a organização e o controle, o Arquétipo Patriarcal está intimamente associado ao instinto de poder (...), articula permanentemente a oposição elitista entre os polos das polaridades de todas as funções estruturantes. Este padrão estabelece ligações claramente racionais e hierarquicamente associadas, que podem ser memorizadas e empregadas no dia a dia. As relações dos polos das polaridade assim elaboradas formam sistemas lógicos de contrários, que daí por diante, passam a operar produtivamente para administrar a vida psíquica e a realidade cotidiana. (...) Ao articular hierarquicamente um polo com o outro para lidar com a realidade objetiva, a posição polarizada patriarcal grava os resultados das suas elaborações no espaço e no tempo, o que explica sua aversão à espontaneidade e o seu apreço pelas tradições frequentemente de maneira rígida e até mesmo fanática. (p.202) O Arquétipo Patriarcal é aquele que mais forma Sombra durante a elaboração simbólica. Isto se dá porque a posição polarizada mantém uma oposição elitista e hierarquizada entre as polaridades, que sobrecarrega a personalidade e a cultura com o perfeccionismo e a superexigência, transformados facilmente na repressão e na consequente patologização do polo desqualificado. (p.212)

Consciência de Alteridade: O Arquétipo de Alteridade expressa-se por meio de uma maior complexidade

da

consciência

que

passa

dialeticamente. A título de esclarecimento:

a

funcionar

sistêmica

e

14 É necessário diferenciar, porém, a perspectiva sistêmica dentro do dinamismo patriarcal daquela do dinamismo de alteridade. A perspectiva sistêmica patriarcal percebe o Todo, mas não denuncia, até mesmo encobre e endossa a desigualdade, reforçando o elitismo presente nas polaridades, enquanto que a visão sistêmica de alteridade não só reconhece o tipo de interação entre as polaridades, como enfatiza e enaltece seu relacionamento democrático, isto é, dialético, ao relacioná-las com o Todo. (p.203)

Sobre o funcionamento deste arquétipo, Byington infere que Devido a sua capacidade de interagir dialeticamente as partes entre si e com o Todo, o Arquétipo da Alteridade coordena o processo de elaboração de maneira dialética e sistêmica sempre em função da totalidade. Assim sendo, ele relaciona a Consciência e a Sombra tendo em vista os processos de individuação e humanização, buscando resgatar os símbolos fixados e reuni-los na formação da Consciência. Esta capacidade de recuperar os símbolos fixados na Sombra dá a este arquétipo a possibilidade de reintegrar o Self dividido, o que na dimensão mística é identificado com o reconhecimento do pecado, o arrependimento e a função messiânica de salvação. (p. 219)

Consciência de Totalidade: Os arquétipos da Alteridade e da Totalidade permitem conhecer e compreender o princípio da sincronicidade, que é acausal, sendo que há três princípios que regem a interação do ser humano com o mundo: o causal mágico, o causal reflexivo e o acausal (Byington, 2008). Para começar, precisamos diferenciar o Arquétipo da Totalidade do Arquétipo Central. O Arquétipo da Totalidade é um arquétipo regente e, como tal, é filiado ao Arquétipo Central, que coordena toda a dimensão simbólica. No entanto, como já foi dito, o Arquétipo da Totalidade é responsável especialmente por expressar a relação da Consciência com a completude da dimensão simbólica, ao passo que o Arquétipo Central coordena qualquer elaboração simbólica do começo ao fim através da interação de todos os arquétipos. (...) Embora o Arquétipo Central não forme as fixações, ele

15 registra as suas ocorrências e aciona a compulsão de repetição das defesas para expressá-las. (Byington, p.241) Como bem representa a mandala chinesa do tai chi , a diluição das fronteiras do Ego e o Outro cria a percepção de que um é o outro. Não se trata, porém, de simbiose do Ego com o Outro, que caracteriza a posição insular matriarcal, na qual predomina a fusão entre eles, mas sim de um estado de grande clareza de Consciência, que capta a identidade do Ego com o Outro no que eles sempre foram secretamente, e que realmente são : o Ser Universal. (...) A posição contemplativa e o Arquétipo de Totalidade têm, por um lado, a função prática de coroar a elaboração simbólica de qualquer situação e até mesmo do processo existencial. Mas, por outro, quando percebidos em toda sua extensão simbólica, têm a virtude de nos revelar todas as coisas incluindo nós mesmos, reunidos no Um. Através da função da sensação, somos conduzidos a uma vivência grandiosa de constatação do Todo. Pela intuição, a psique participa do infinito e da eternidade. O pensamento propicia a admiração extática diante da inteligência incomensurável da criação, e o sentimento propicia a satisfação plena de ser totalidade. (Byington, p. 242) Temos visto que a força da Sombra e de suas defesas é proporcional à pujança das funções normais que a elas correspondem. Por isso, a Sombra da posição contemplativa é muito intensa e ameaçadora para o Self. Ela é intensa porque seus símbolos e funções estruturantes podem abranger todo o processo de desenvolvimento, e é ameaçadora porque, como o processo caminha para o seu final, que envolve a morte, sua vivência defensiva conduz frequentemente à autodestruição. (p.247) No caso de a Consciência funcionar defensivamente na posição contemplativa, ela dá uma conotação pessimista à finalidade das tarefas do dia a dia. (...) O pensamento cético, desencorajador e, por vezes, ate mesmo cínico e conivente com a Sombra e o Mal, pode expressar um estado psicológico depressivo. (p. 251)

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CAPÍTULO 2 VEGANISMO E VEGETARIANISMO: UMA CONFUSÃO REDUTIVA

Sempre, ao longo da história da humanidade, houve pessoas que questionaram o uso e consumo de animais dotados de senciência, característica até então constatada apenas intuitivamente e que hoje já é comprovada pela neurociência. Desde a pré-história até hoje, e geralmente dentro de sistemas religiosos como o Hinduismo, Jainísmo, Budismo, Cristianismo, entre outros, o vegetarianismo servia como base ou dogma importante dessas religiões. Em parte o faziam considerando os próprios seres sencientes e seu sofrimento e em parte considerando a purificação e ascensão espiritual do corpo e da mente humana ao não se contaminar com a energia aflitiva dos abatidos. Independentemente das motivações, em diversos momentos históricos pessoas abdicaram voluntariamente do consumo de animais. Como a origem do Vegetarianismo é bastante imprecisa e antiga, me aterei mais ao conceito de vegetarianismo após ter sido cunhado em 1840. (Spencer, 2005) Também na sociedade Greco-Romana houve grupos de pessoas que se orientavam filosófica e espiritualmente pelo não consumo de animais como alimento, baseando suas refeições em vegetais, frutas, castanhas e leguminosas. Para citar alguns exemplos, Pitágoras, o mais evidente e ético filósofo em relação aos animais, era adepto de uma alimentação baseada em vegetais e tal preceito era característica central de sua escola e também entre seus seguidores. Sêneca, Porfírio e outros filósofos também seguiam uma dieta vegetal (Spencer, 2005). O vegetarianismo é frequentemente vinculado a aspectos religiosos e espirituais e à saúde, já o Veganismo refere-se à libertação animal. Há quem faça divisões didáticas como “ovo-lacto-vegetarianismo” ou “lacto-vegetarianismo”,

e

algumas

pessoas

até

mesmo

se

intitulam

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“pescetarianos”, incluindo peixe em sua alimentação, mas não vou me ater a essas diferenciações. Para efeito de entendimento, me referirei apenas como não-veganos, já que em alguma instância ainda ingerem ou utilizam produtos animais, o que é incompatível com a própria definição de veganismo. O termo veganismo foi cunhado em 1944, por Donald Watson, fundador da Vegan Society no Reino Unido. O termo inicialmente referia-se à retirada de produtos de origem animal da dieta, e somente em 1979 firmou-se a seguinte definição: Filosofia e modo de viver que busca excluir – enquanto possível e praticável – toda forma de exploração e crueldade aos animais por comida, roupas ou qualquer outro propósito; e por extensão, promover o desenvolvimento e uso de alternativas sem animais para benefício de humanos, animais e o meio ambiente. Em termos dietéticos, denota a prática de dispensar todos o produtos feitos inteira ou parcialmente de animais. (Vegan Society, 1944)

A diferença crucial entre o vegetarianismo atual e o veganismo é que o primeiro se refere somente à alimentação do indivíduo, em geral considerando razões religiosas ou de saúde, e o segundo abrange também outros setores da vida humana, considerando eticamente se há alguma exploração animal, como seguem nos exemplos abaixo: 1. Alimentação: procriação forçada de animais confinados para abate atendendo ao consumo de carnes (de todos os tipos: bovinos, suínos, ovinos, caprinos, galináceos, peixes, moluscos, insetos, répteis, roedores, equinos etc), ovos (diversas espécies), laticínios (diversas espécies) e mel; 2. Moda: aproveita dos processos da indústria alimentícia para criar peças de alto valor como couro (Bovinos, cobras, répteis), pelos e peles (raposas, roedores, marsupiais), penas (gansos e aves selvagens), seda (bicho da seda), lã (tosquia de ovelhas), todos processos bastante cruéis com os animais escravizados; 3. Cosmética: utiliza-se de insumos animais como a lanolina, cartilagens de tubarão, secreções de órgãos de animais, ossos,

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gordura etc., além de todos os testes em animais (cães, gatos, coelhos, camundongos, porquinhos-da-índia, macacos etc.) que, ironicamente, validam a segurança para consumo humano, cuja fisiologia é completamente diversa. Outra atividade extremamente torturante para os animais que, confinados, são mutilados, adoecidos propositalmente, contaminados, envenenados e por fim, mortos. 4. Entretenimento e trabalhos pesados: locais que usam animais selvagens, muitas vezes capturados de seu próprio habitat, para serem colocados em confinamento para diversão humana como zoológicos, circos, parques aquáticos, aquários, animais utilizados para tração, montaria de policiamento, criadouros comerciais de animais de raça para guarda, companhia. A lista é imensa. 5. Esportes e terapias:, cães-guia, equoterapias, animais terapeutas, caça e pesca “esportiva” etc., que privam animais de viveram suas próprias naturezas. 6. Tradições e Rituais: sacrifícios de animais em rituais religiosos, charretes, rinhas, rodeios, vaquejadas, touradas, farra do boi etc. 7. Outros: zoofilia, tráfico de animais selvagens, vivissecção na educação. A lista de todas as atrocidades que cometemos contra o seres nãohumanos é vasta e assustadora. E certamente não pode ser desvinculada das próprias atrocidades praticadas intraespécie. Por essa razão, quando se fala em dieta vegana, o que é bastante comum entre profissionais da saúde, há uma redução da definição consolidada que justamente não se refere exclusivamente à alimentação. Por essa razão confunde-se tanto o veganismo com o vegetarianismo. A pessoa vegana é necessariamente vegetariana estrita na forma de se alimentar (termo que precisou ser adaptado, já que o termo vegetariano que serviria para definir aquele que se alimenta de vegetais, foi inadvertidamente absorvido pelos não-veganos, isto é, aqueles que ainda consomem produtos de origem animal como ovos, leite e mel – o que gera ainda mais confusão), mas uma pessoa vegetariana estrita não é

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necessariamente vegana, já que pode não comer produtos de origem animal, mas utiliza couro, seda, produtos testados em animais etc. A preocupação ética e o reconhecimento dos seres não-humanos como seres sencientes e de direitos é o que diferencia um do outro. Esse reducionismo do termo veganismo a uma dieta é o que confunde a pessoa que desconhece o assunto. O veganismo tem por ponto central – e ouso até mesmo dizer que seria um sinônimo – a libertação/abolição animal, isto é, o foco não é a dieta somente, mas toda a atitude de recusa a qualquer tipo de exploração animal, em qualquer nível. É importante compreender que se entende por exploração, nesse contexto, qualquer forma de uso de seres sencientes, questão que aprofundarei mais adiante. Por hora, deve ficar claro que exploração não está necessariamente ligada à crueldade ou a causar dor, até porque consideramos também a dor emocional e não somente a física. Portanto, aprisionar, usar para um interesse pessoal (entretenimento, companhia, experimentos etc.), privar do contato com indivíduos da mesma espécie e natureza, interferir em hábitos típicos à espécie também seriam formas de exploração/uso. A questão da tortura, mutilação e assassinato são por si só abomináveis e injustificáveis, mas frequentemente entendidas como a única maneira de se explorar um ser. O ponto central do veganismo abolicionista não é o sofrimento dos seres, mas sim seu uso, ainda que não cause dor. Isso porque se entende que tal uso ocorre porque se pressupõe a inferioridade desses seres nãohumanos, o que caracteriza o que chamamos de especismo, termo criado por Richard D. Ryder na década de 70, na Inglaterra, e serviu para dar nome ao conceito fundamental da primeira concepção ética animalista, elaborada por Humphry Primatt, músico e teólogo inglês. Em 1776, Primatt escreveu um livro, The Duty of Mercy, (...) expondo as razões pelas quais não devemos nos convencer de que evoluímos moralmente, enquanto nossas decisões de inflição de dor e morte a qualquer animal estiverem baseadas no critério da aparência de quem é a vítima de tais decisões: escravos, mulheres e animais. Primatt escreveu seu pequeno livro no ano da Revolução Americana, criticando a ética baseada na aparência. O

20 que fazemos aos animais, no seu entender, não difere do que se fazia, então, aos negros e às mulheres. (Felipe, p. 25)

O veganismo também é compreendido como uma forma de estar no mundo que visa desmantelar o especismo, isto é, “a discriminação que praticamos contra os animais, por conta de eles terem nascido em suas respectivas e não na nossa espécie animal” (Felipe, p. 26). Gary Francione, professor de direito na Rutgers University, usa frequentemente o termo Veganismo Abolicionsta. Para ele, o veganismo é a base moral do desmantelamento do preconceito de espécie.

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CAPÍTULO 3 CONSCIÊNCIA PATRIARCAL MORAL E ESPECISMO

Vivemos tempos

DEFENSIVA,

ESQUIZOFRENIA

sombrios, isso é notório. Nos desenvolvemos,

enquanto espécie, com uma imensa capacidade criativa e simultaneamente destrutiva. Percebemos a força da consciência polarizada defensivamente nas diversas dissociações que sofrem os indivíduos em nossa sociedade, sejam eles humanos ou não-humanos. Temos a dissociação corpo-mente, a dissociação moral, dissociação emocional que ocorrem devido a uma forte valorização dos atributos da consciência patriarcal em detrimento da consciência matriarcal, daí a dificuldade de se estabelecer a consciência de alteridade. Aí aprendemos a subjugar e eleger opositores em quem projetar aquilo com que não lidamos. Na medida em que aumenta o conhecimento científico diminui o grau de humanização do nosso mundo. O homem sente-se isolado no cosmo porque, já não estando envolvido com a natureza, perdeu sua “identificação emocional inconsciente” com os fenômenos naturais. E os fenômenos naturais, por sua vez, perderam aos poucos as suas implicações simbólicas. O trovão já não é a voz de um deus irado, nem o raio o seu projétil vingador. Nenhum rio abriga mais um espírito, nenhuma árvore é o princípio de vida do homem, serpente alguma encarna a sabedoria e nenhuma caverna é habitada por demônios. Pedras, plantas e animais já não têm vozes mais para falar ao homem e o homem não se dirige mais a eles na presunção de que possam entendê-lo. Acabou-se o contato com a natureza e com ele foi-se também a profunda energia emocional que esta conexão simbólica alimentava” (Jung, 1964, p. 95)

Jung já falava em quão perniciosa pode ser a perda do símbolo, justamente aquele que unifica as polaridades, e Byington (2008) aponta que Nossa espécie é a mais inventiva da evolução da vida na Terra. A força criativa do nosso sistema nervoso e da cultura acumulada e repassada de geração em geração para a Consciência coletiva foi capaz de dominar o Planeta e modificar a natureza, a

22 fauna e a flora, algo impensável para qualquer outra espécie. No entanto, junto com essa produtividade maravilhosa, temos também um poder extraordinário para praticar o Mal, que constitui nossa Sombra. Este poder é tão grande que traz o risco até mesmo de inviabilizar nossa existência. Caso isso aconteça, este Universo continuará sua experiência da criação sem a nossa participação. Fatores naturais, tais como a colisão com um cometa ou meteoro, terremotos, maremotos ou outras catástrofes podem determinar a desumanização do cosmos, mas os fatores humanos são igualmente ameaçadores. Com a diferença de dependerem diretamente de nós. Existe até mesmo o agravante de a nossa conduta predatória contribuir para desequilibrar fatalmente as forças naturais, como, por exemplo, o clima. O grande perigo que escurece o horizonte da modernidade advém da nossa própria Sombra, que se acumula de forma cada vez mais destruidora, apesar de ser relativamente compreensível e previsível. (p.15)

Talvez seja, de fato, compreensível e previsível quando observamos todo o desenvolvimento humano desde seus primórdios, entretanto não podemos crer que ainda seja justificável ou simplesmente um processo terminado sobre o qual nada podemos fazer. Se depende diretamente de nós, há algo a ser realizado no nível psíquico e concreto, individual e coletivo. Há que se buscar um caminho que nos permita uma saída para essa deficiência moral, essa kakothymia, que do grego quer dizer uma falha, uma dissonância das faculdades morais que levam à maldade (Felipe, 2014) e que põe em risco nossa existência no planeta, a existência de outros seres sencientes e do próprio planeta enquanto um organismo vivo e pulsante. Tal dissociação pode ser explicada pela polarização defensiva da Consciência, advinda da estruturação e regência do Arquétipo Patriarcal em sua expressão sombria que atua cada vez mais poderosamente em nossa sociedade. O arquétipo patriarcal constitui-se justamente a partir da capacidade de diferenciação, organização, abstração e coordenação. Tais características denotam um funcionamento hierárquico e de oposição em que um polo sempre é inferior ao outro. Também é o arquétipo que submete e exclui esse

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inferior de seu campo de consideração, formando muita sombra e preconceitos (Byington, 2008). Reforço aqui que a Consciência Patriarcal é fundamental para o desenvolvimento da consciência; entretanto, sua expressão defensiva, fixada, sombria é, por consequência, bastante destrutiva. Quanto mais aumentou nosso poder diante da natureza, mais ativação do Arquétipo Patriarcal foi intensificada, até substituir radicalmente, em muitas culturas, a posição de dominância do Arquétipo Matriarcal. (Byington, p.203)

De tal expressão sombria e dominante é que surgem as guerras ideológicas, a ideia de distinção entre raças, gêneros e espécie. É a partir daí que também surge o preconceito, a noção de dominância do mais frágil ou do diferente. Na prática do Mal, caracterizamo-nos como uma aberração na evolução da vida, pois somos a única espécie que declara guerra a si mesma e que, por ideologia, pode determinar o genocídio dos seus opositores (Byington, p.121)

Tomo a liberdade aqui de incluir, nesses opositores, os seres nãohumanos, pelo fato de que nessa relação hierárquica foram situados deliberadamente no polo inferior, sendo vistos como se não possuíssem valor inerente, alma ou interesses, assim como o foram os escravos de todas as épocas históricas. Da mesma maneira, declara sua suposta superioridade em relação a outras espécies e usa essa justificativa para submetê-las às mais perversas práticas. Se considerarmos que a subjugação de outras espécies remonta a milhares de anos, podemos pensá-la como a raiz de um problema estrutural que enfrentamos hoje, isto é, o repertório-matriz do próprio comportamento exploratório e violento com outros humanos, vide todos os preconceitos que estão em pauta atualmente. A ideia de poder subjugar o diferente amplia-se a qualquer diferente, sejam humanos ou não-humanos.

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O conceito de especismo sofreu alterações desde que Ryder o cunhou. Diversos autores dos direitos animais o atualizaram; entretanto, a mais atual e consistente é a proposta por Gary Francione, que afirma que: O especismo não é outra coisa senão a utilização do simples pertencimento à espécie humana para justificar o estatuto de propriedade dos animais não-humanos. Similarmente, a utilização do sexo ou da raça para justificar a posse de seres humanos pode ser denominado sexismo ou racismo. (Trindade, 2013, p. 35)

Essa definição, dentre todas as outras já cunhadas por outros autores anteriormente, é a única que traz a questão da propriedade e do uso em sua elaboração. Ainda Protegemos o interesse dos humanos em não ser propriedade de outros com um mecanismo chamado direito. Em particular consideramos todo ser humano um titular daquilo que chamamos direito básico de não ser propriedade alheia. Os animais e os humanos são semelhantes, pois são sencientes. Se o interesse dos animais em não sofrer for moralmente significativo, então devemos aplicar o princípio da igual consideração e lhes estender o direito básico de não serem tratados como coisas, como nossa propriedade, a menos que haja uma razão moralmente justificável para fazermos isso. Devemos reconhecer que os animais, como os humanos, têm um interesse moralmente significativo em não sofrer de jeito nenhum como resultado de ser usado como recursos. (Francione, 1954, p. 29).

Jacobi (1957) aponta Se o arquétipo tem agora, por um lado, um aspecto dirigido para “cima”, para o mundo das imagens e das ideias, e, por outro, um aspecto orientado para ‘baixo’, para os processos biológicos da natureza – os instintos -, isso permite que também a partir da psicologia animal se estabeleçam certas relações com ele. Nada impede a suposição de que certos arquétipos apareçam já nos animais e que, portanto, se fundamentem na particularidade do sistema vivo em geral. Hoje estamos tão avançados que A. Portmann, a quem devemos uma série de interessantes trabalhos dobre esse tema, fala “de imagens originárias préformadas hereditariamente na vivência dos homens e dos animais” e registra: “...O trabalho biológico mostra,

25 no sistema nervoso central dos animais, estruturas ordenadas de maneira figurativa e que são capazes de estimular atuações típicas da espécie...” E, em seguida: “Muitos têm desaprendido a vivenciar conscientemente o caráter maravilhoso de toda organização viva...por isso, também se admiram de que o modo da vivência íntima do animal seja predestinado, ordenado e estabelecido por estruturas fixas”. (p.43)

Essa “admiração” é fruto do especismo, isto é, de nossa intencional subjugação do outro não-humano como uma coisa de menor valor que não é dotada de individualidade, de natureza, de organização e de alma (psique). A mídia tradicional exerce papel importante na consolidação e fortalecimento dessas ideias ultrapassadas e carregadas de preconceitos, com foco no lucro, mantém relações escusas com indústrias e empresas interessadas em aplicar mecanismos de entorpecimento e alienação do pensamento. É uma via que encurta a capacidade crítica da massa, propiciando não somente a polarização defensiva da consciência coletiva por meio da manutenção de estereótipos e fixidez de comportamentos sociais, como também a polarização moral, a qual Francione se refere como Esquizofrenia Moral. Nossa atitudes morais acerca dos animais são, para dizer o mínimo, esquizofrênicas. Por um lado, todos concordamos que é moralmente errado impor sofrimento desnecessário aos animai. Por outro lado, a maioria do sofrimento que impomos aos animais não pode ser considerada análoga à nossa escolha de salvar o ser humano na casa em chamas, nem, de fato, necessária em qualquer sentido dessa palavra (Francione, 2000, p. 49)

Ainda estamos dissociados moralmente, o que continua afetando nossas reações emocionais e nossa capacidade empática e de alteridade no mundo. Certamente podemos relacionar essa dissociação com a posição polarizada defensiva que Byington elucida no seguinte trecho: O domínio e a submissão da flora, da fauna e a exploração de riquezas naturais acarretaram um imenso sofrimento para o planeta, que foi acompanhado pelo desnível das classes sociais, pela escravatura, pelo colonialismo e por muitos regimes totalitários. As revoluções, as guerras e os sistemas políticos, muitos dos quais genocidas, violentaram, aleijaram e mataram

26 um número incontável de pessoas. A polaridade criatividade-destrutividade do Arquétipo Patriarcal apresenta um drama ético tão extraordinário, que exige um grande esforço conceitual para se admitir que essa polaridade exista dentro do Self e, sobretudo, que seja subordinada à ação coordenadora do Arquétipo Central. (2008, p. 211)

Mais uma vez tomo a liberdade de incluir nessa equação todo o histórico de violência contra os animais e o desnível da relação que estabelecemos com esses seres de forma deliberada e injustificável. Fala-se muito em cultura de paz, em paz entre os povos, em paz interior, mas continuamos produzindo e financiando tormentos e horrores que, ao ficarem bem distante dos olhos, dificultam qualquer conexão emocional com os fatos tais como são. Por meio da hierarquização, dos estereótipos e dos julgamentos antropocêntricos (centrados apenas nos humanos) mantemos uma conduta alienada em relação a todos os processos que envolvem aqueles que consumimos diariamente e de quem seguimos violando o direito primordial à vida, que defendemos com unhas e dentes para a nossa espécie. Como Byington (2008) sabiamente aponta, vivemos um drama ético que corrói aos poucos toda a vida do planeta. Financiamos o assassinato de bilhões de animais anualmente para servirem de comida, sustentamos empregos insalubres das pessoas responsáveis por matar esses animais, poluímos rios e mares afetando toda a vida marinha, produzimos uma quantidade enorme de lixo, excrementos e sangue que infecta os solos e a água, desmatamos florestas inteiras para produção de monoculturas que alimentam os animais que serão mortos para servirem de alimento a uma parcela elitizada da população, o que é bastante ilógico e absolutamente questionável quando há nações inteiras assoladas pela fome e desnutrição e seca. Derrubamos árvores para a construção de prédios, alterando o clima e nos mantemos alienados ao fato de que todas essas ações são frutos das escolhas diárias que fazemos sem visualizarmos que elas nos afetam direta e indiretamente e também aos outros seres e o Planeta. A destruição com a qual compactuamos consciente ou inconscientemente é a destruição que

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retorna a nós em forma de eventos catastróficos que tiram milhares de vidas, doenças fatais que matam milhões de pessoas anualmente e que poderia ser em grande parte evitadas, extinção de espécies, crimes ambientais, etc. Como resultado, vivemos em uma época com o maior número de patologias físicas e emocionais catalogadas. As piores doenças que acometem o ser humano, como cânceres, doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, depressão, entre outras, estão diretamente ligadas ao consumo de animais sencientes, corpos mortos que são compreendidos como comida. Ao dominar as forças da natureza, das quais antes dependia e/ou se sentia tão menor que as divinizava e adorava, seu poder cresceu de tal forma que ele adquiriu cada vez mais capacidade de controlar a vida e até mesmo gerar a morte, não somente por necessidade de sobrevivência, mas também como exercício de poder. É fundamental reconhecermos na pujança heroica patriarcal seu componente homicida, suicida e, em última instância, genocida, como expressão da sombra. (Byington, p.209)

E também biocida, isto é, que destrói toda forma de vida. A fixidez das tradições e da moral vigente impedem que as pessoas confrontem aquilo que lhes foi dito ser o bom e o bem, o politicamente correto. Não questionam e seguem gerando o Mal para si e para outros desenfreadamente e tentando camuflar aquilo que sabem em seu íntimo ser objetável, buscando formas ilusórias de se eximirem do erro que sabidamente cometem como Jackson assinala: Quando eram comidos os animais domesticados, isso significava matar uma criatura que foi objeto de cuidados e proteção, o que pode produzir um tipo particular de conflito e a necessidade de um ritual amenizatório. (...) A culpa e o ritual testemunham ambos a existência de certo nível de desenvolvimento da consciência. Os versos seguintes transmitem muito bem os sentimentos de culpa que rodeiam a ingestão de animais. São de um réquiem recente, improvisado para um porco da ilha grega de Tinos, onde cada família, de acordo com a tradição, mata anualmente um porco em

28 dezembro. É recitado durante a festiva degustação do porco que segue ao seu abate: Diga-me o que fiz pra você. Por que você me matou? E sujou as suas mãos com o meu sangue? Você não tem filhos? Por muito tempo, fiquei feliz, na minha lama, E nunca magoei ninguém, coitadinho. Comi de tudo que você me deu e sua recompensa foi me apunhalar. Trouxe um monte de criaturinhas ao mundo, Eu as alimentei com meu leite. Elas cresceram. E em vez de obter agradecimentos dos seus lábios, você me pegou hoje de manhã muito cedo, abriu minhas pernas e cortou-me a garganta com uma faca afiada. (Yannnissopoulou, in Eve Jackson, p. 86)

Byington afirma que “o uso de um dos polos de uma polaridade separado do polo oposto fragmenta o Ser e o aliena” (p. 47), e é exatamente o que observamos em nossa sociedade atual. Uma profunda alienação e dissociação emocional das práticas que naturalmente seriam condenadas em uma análise individual e não-programada. Pouquíssimas pessoas, em sã consciência e com algum conhecimento, teriam o impulso e a coragem de matar deliberadamente, exceto em situações absolutamente adversas e ainda assim, não seria uma garantia. Cercados de distrações que dificultam nossa conexão moral, produzimos uma Sombra que cresce incessantemente, já que a posição polarizada é a que mais cria Sombra (Byington, 2008). Dessa maneira somos estimulados aos abusos, aos supérfluos e a tudo aquilo é prejudicial e não essencial. Somos ensinados desde muito pequenos a cindir nossas emoções, a eleger inimigos e a criar todo um aparato de defesas e justificativas para ações com as quais não concordamos e não compactuamos em primeira instância, mas que acabamos por reproduzir inconscientemente como verdade até que se torne uma, ainda que parcial e incompleta, como os preconceitos, neste caso o especismo.

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Nos tornamos desumanos e incompreensivos diante do sofrimento e da crueldade. A empatia não é apreendida, já que constatamos cotidianamente a falta dela nas relações humanas mais íntimas, como as relações parentais completamente patológicas, relações de amizade e afetivas perversas, relações de trabalho com valores absolutamente distorcidos etc. A perda da dialética entre a razão patriarcal e a sensibilidade matriarcal, também nos fez embotar a capacidade empática. A intuição, unida ao afeto e à sensualidade, gera a empatia a partir da espontaneidade e da pujança matriarcal. (...) A posição insular matriarcal é extraordinariamente capaz de propiciar a empatia exatamente porque ela “respira” intimidade. É ela que melhor pode nos informar sobre o que outra pessoa está sentindo, coisa que raciocínio lógico algum tem a capacidade de fazer com a mesma eficiência. (Byington, 2008, p.191)

Mesmo com o aumento de nossa capacidade reflexiva e organizadora, ainda assim, nos colocamos no mundo como se nossas atitudes não interferissem e alterassem o todo. Jung, em O homem e seus símbolos, prospecta: O homem desenvolveu vagarosa e laboriosamente a sua consciência, num processo que levou um tempo infindável, até alcançar o estado civilizado (arbitrariamente datado de quando se inventou a escrita, mais ou menos no ano 4000 A.C). E esta evolução está longe da conclusão, pois grandes áreas da mente humana ainda estão mergulhadas em trevas. (p.23)

Como é o caso da moral humana, que ainda se encontra sufocada por toda a experiência social e cultural que faz o bem parecer o mal e o mal parecer o bem via propagandas e incentivo ao consumo daquilo que é pernicioso aos seres não-humanos, pois permanecem explorados e violentados e aos seres humanos, pois vivem suas vidas imersos em ilusões e opiniões que são reproduzidas como resultado de uma arquitetada rede que existe para garantir a fortuna de alguns em detrimento da saúde física, emocional e relacional de humanos e não-humanos.

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CAPÍTULO 4 RECONHECIMENTO DA SENCIÊNCIA E CONSCIÊNCIA ANIMAL E A EXPRESSÃO ARQUETÍPICA DA ALTERIDADE Os corpos dos animais: licença para matar Sabemos, como salienta Sonia Felipe (2014), que do mesmo modo que os direitos humanos declarados universais não chegaram de presente às mãos dos presos, dos torturados, dos escravizados, dos explorados pelo capital, das crianças, dos idosos, eles não chegarão de presente aos animais abatidos nos centros de criação e matança para consumo humano. Uma coisa é o reconhecimento de direitos para os animais, no corpo da lei. Outra, o direito chegar positivamente no corpo dos animais (p. 80)

Ainda: A invasão de privacidade não se limita a abrir a correspondência alheia, bisbilhotar no celular dos outros, em seu correio ou em suas gavetas. Ela diz respeito a não causar perturbações no corpo do outro quando ele não está buscando isso. Contentemo-nos com a manifestação do desejo de ser tocado por nós, expresso por algum animal, seja da nossa espécie ou de outra qualquer. (Felipe, p. 240)

Sabemos, como terapeutas corporais, o quanto o toque pode ser uma ferramenta poderosa. Um toque pode gerar sensações e emoções positivas, mas também pode gerar sentimentos negativos de invasão e desrespeito ainda que esta não seja a intenção. O toque precisa ser autorizado pelo outro, do contrário se torna um equívoco. Pois bem, partindo do entendimento de que animais são seres senscientes, capazes de sentir, ter emoções e sensações físicas, ou seja, indivíduos com arcabouço emocional e físico como nós, façamos um exercício empático e imaginemos a agonia dos animais de criação para abatedouros na fila da morte, as ovelhas tosquiadas violentamente sem a permissão de seus corpos, as vacas que são repetidas vezes inseminadas sem o seu querer. Imaginemos estas situações para podermos trazer à consciência aquilo que causamos desnecessariamente a esses seres, capazes de sentir todo o mal

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que lhes dirigimos em nossas ações inconscientes e dissociadas, mas impossibilitados de nos mostrar seu desagrado, por não serem dotados da mesma linguagem e expressão que nós - o que não quer dizer que não façam isso a seu modo – insistimos em ignorar. Tocar um animal deveria depender da mesma autorização que pedimos para tocar um paciente. A diversidade de seres que coabita este planeta conosco é proporcional à diversidade de naturezas que inclui cada indivíduo em cada espécie. Na natureza existe um equilíbrio que se dá a partir de uma compreensão instintiva de que tudo está relacionado e que a existência depende

de

todos

os

outros

seres.

Animais

não

se

reproduzem

indiscriminadamente em uma região superpopulosa com pouco predadores. Predadores sabem que não podem extinguir os indivíduos da espécie que predam, pois do contrário ficarão sem sustento. Byington (2008) diz algo a esse respeito: (...) essa interdependência de espécies diferentes e até inimigas pode ser compreendida pela posição dialética do Arquétipo de Alteridade. A partir do conhecimento de quanto dependemos do Outro, podemos respeitá-lo e estudar melhor nossa relação. Dessa forma nos damos conta de muitas consequências sombrias e destrutivas das intervenções humanas no ecossistema causadas pelo narcisismo da posição polarizada patriarcal e da matriarcal. (p. 226)

Observamos

diariamente

em

nossos

consultórios

como

essa

impossibilidade de realização da alma acarreta distúrbios severos e patologias que trazem resultados desagradáveis e desconfortáveis a quem os atua. Também outros animais não humanos são vítimas (aos bilhões) dessa impossibilidade de realização de seus próprios propósitos da maneira como realizariam se fossem livres. E aí reside um dos maiores equívocos de nosso tempo: não reconhecer que os outros seres, com quem dividimos o planeta, também têm um propósito de alma e também possuem o desejo de realizá-lo. O que nos faz refletir se é correto reproduzir seres para serem escravos, se podemos forçar seus corpos a reproduzirem de modo completamente diverso

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do que o fariam em um contexto de liberdade, se temos o direito de tirar a vida de seus filhotes e afastá-los ao nascimento, enfim, tudo aquilo que no plano humano, combatemos veementemente. Mesmo pensando em termos psicológicos e arquetípicos, deveríamos oferecer um olhar mais interessado à questão da senciência e das experiências psíquicas dos animais. A construção de um ninho é um processo arquetípico, tanto quanto a dança ritual das abelhas, a defesa assustada da lula ou o desdobramento do leque do pavão. Em relação a isso, Portmann declara: “...esta organização do íntimo do animal é dominado por aquele elemento formativo, cuja maneira de atuar se encontra, na psicologia humana, no arquétipo. Todo o ritual dos animais superiores1 é dotado, em alto grau, desse caráter arquetípico. Ele surge aos olhos do biólogo como uma considerável organização da vida instintiva, que garante o convívio para-individual dos companheiros de espécie, harmoniza a disposição dos parceiros e impede, pela regulação das lutas competitivas, o aniquilamento dos rivais, pernicioso à conservação da espécie. O comportamento ritual surge como uma organização para-individual importante para a conservação da espécie” (Jacobi, 1957, p. 45)

Ainda H. Hediger já havia tentado demonstrar, num importante ensaio, a efetividade dos arquétipos nos atos instintivos dos animais. O animal que vive livremente, não é “livre”, mas vive atrelado a um sistema de espaçotempo, dentro do qual sua vida se desenrola em arranjos fixos. Se é arrancado da familiaridade do seu sistema de espaço-tempo e transferido artificialmente para um “espaço” estranho, onde não se sente “em casa”, instalam-se nele graves sintomas de desenraizamento. A hierarquia biológica e social força o animal a permanecer em sua “pátria”, se não quiser perder sua capacidade de viver. “A dourada liberdade do animal – observa Hediger – é a projeção de um desejo humano”. Isso é válido desde o peixe aos vertebrados mais altamente organizados. (...) O trilhar 1

Superiores nesse contexto poderia ser compreendido com senscientes, isto é, aqueles que possuem um sistema nervoso central operante.

33 habitual dos animais e o movimento rítmico e ritualístico da vida quotidiana do homem são correlatos” (1957, p. 45)

Quando falamos em liberdade, podemos entendê-la então, muito mais como um estado emocional. Embora os animais estejam “atrelados” à expressão de suas atividade típicas, assim como nós, aqui falamos da liberdade de poder expressar suas atividades típicas, essa sensação de liberdade individual para exercer a própria natureza, também presente nos não-humanos. É justamente o que entenderíamos no plano psíquico humano como individuação, uma busca pela expressão mais autêntica e realizada da personalidade. Personalidade é a realização máxima da índole inata e específica de um ser vivo em particular. Personalidade é a obra a que se chega pela máxima coragem de viver, pela afirmação absoluta do ser individual, e pela adaptação, a mais perfeita possível, a tudo que existe de universal, e tudo isto aliado à máxima liberdade de decisão própria. (Jung, 1972, p. 182)

Para compreender isto, retomarei o conceito de senciência de maneira mais aprofundada. Para Sonia Felipe (2014), é formada a partir de dois outros termos, consciência e sensibilidade; sensciência designa a condição mental, afetiva, emocional e consciente de todos os animais. (...) A sensciência, portanto, não é privilégio dos humanos. Todos os animais a possuem, sem exceção, do polvo ao humano, passando pelas aves, pelos mamíferos, vertebrados e invertebrados. Isso ficou definido na Declaração de Cambridge sobre a Consciência Humana e Animal, proclamada em julho de 2012 na Inglaterra, e assinada por renomados cientistas de cinco especialidades da neurociência, na presença do físico Stephen Hawkins. (p. 28)

Nas neurociências, Philip Low, o redator da Declaração de Cambridge sobre Consciência Humana e Animal, afirma que todos os mamíferos, aves e muitos animais marinhos são dotados de consciência:

A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os

34 substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos. (in: http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnC onsciousness.pdf)

E para Francione(1954): Ser sensciente significa ser do tipo de ser que é consciente da dor e do prazer; existe um “eu” que tem experiências subjetivas. Nem tudo o que está vivo é necessariamente sensciente, por exemplo, que nós saibamos, as plantas, que são vivas, mas não sentem dor. As plantas não se comportam de uma maneira que indique que elas sentem dor, e elas não têm estruturas neurológicas e fisiológicas que associamos com a sensciência dos animais humanos e nãohumanos. Além disso, a dos humanos e nãohumanos serve a uma função muito prática. É um sinal para que o humano ou o animal escape da fonte da dor a fim de evitar dano ou morte. Os seres senscientes usam a dor como um meio para os fins de sobrevivência. As plantas não podem usar a dor como um sinal, dessa maneira – e portanto é difícil explicar por que as plantas iriam desenvolver mecanismos para a senciência se esses mecanismos forem completamente inúteis. (pg. 42)

No passado essa percepção dos animais como seres individuais e dotados de psicologia própria já havia acontecido ao se utilizar do conceito de arquétipo da Psicologia Analítica O fato de que a teoria de Jung sobre os arquétipos poderia oferecer uma base adequada a uma perspectiva conjunta da psicologia humana e animal foi apontado, além de Hediger e Portmann, por K. Lorenz e F. Alverdes, entre outros. Lorenz fala de “esquemas congênitos”, que se caracterizam pela independência de experiências com similitude formal com determinadas reações previstas no esquema congênito da vida humana. (...) Alverdes chamava de “arquétipo de pátria”, “arquétipo de casa”, “arquétipo de acasalamento”, “arquétipo de paternidade” etc., e são igualmente

35 formas típicas de vivências tanto na esfera animal como na humana. Representam determinadas configurações de ser, agir e reagir, cunhadas estruturalmente no “modelo originário” delas, mas não em suas manifestações isoladas. (Jacobi, 1957, p. 46)

Se podemos falar em aparato de consciência em seres sencientes, então precisamos definitivamente rever a ética em relação ao que fazemos a eles. A partir dessas definições, precisamos nos perguntar, especialmente dentro da Psicologia, se ao desconsiderarmos os outros seres que assim como nós são capazes neurologicamente de construir consciência, sentir e responder emocionalmente, se não estamos também perpetuando a desigualdade entre humanos por razões moralmente injustificáveis. Sonia Felipe (2014) explicita muito bem essa ideia no seguinte trecho: Não haverá, de fato, uma defesa genuína dos direitos humanos enquanto não houver um resgate radical da nossa história milenar de violência contra os animais não humanos. Enquanto não pararmos de usar os corpos dos outros animais para obter deles benefício para nós, não pararemos de julgar que temos o direito de usar os corpos dos outros humanos para obter deles benefício para nós. Somos todos, igualmente, animais. O modelo de interação que empregamos contra os interesses animais viola o direito desse animal de estar em vida com liberdade para expressar sua singularidade e obter a defesa dos direitos fundamentais à vida singular. Simples assim. Por outro lado, não haverá uma defesa genuína dos direitos animais se não for uma defesa dos direitos fundamentais, tidos erroneamente, como exclusivos dos humanos. Os animais de todas as espécies são tão senscientes e capazes de sofrimento e tormento quando aprisionados, manejados e abatidos, quanto nós o somos. E nós o somos justamente por termos essa mesma natureza animada, animal e sensciente. (p. 42)

Este estado de coisas explica o estranho sentimento de impotência que envolve tanta gente nas sociedades ocidentais. São pessoas que começaram a perceber que as dificuldades com que nos defrontamos são de ordem moral, e que as tentativas para resolvêlas através de uma política de acumulação de armas nucleares ou uma “competição” econômica está trazendo poucos resultados, já que é uma faca de dois gumes. Muitos de nós, agora, compreendemos que seria bem mais eficiente o emprego de recursos morais

36 e intelectuais, que nos poderiam imunizar psiquicamente contra a infecção que se alastra, cada vez mais. Todas as tentativas, até agora, revelaram-se singularmente ineficientes e assim hão de permanecer enquanto estivermos tentando nos convencer – a nós e ao mundo – de que apenas eles (nossos oponentes) é que estão errados. Seria bem melhor fazermos um esforço sério para reconhecermos nossa própria “sombra” e sua nefasta atividade. Se pudéssemos ver esta sombra (o lado escuro e tenebroso da nossa natureza) ficaríamos imunizados contra qualquer infecção e contágio moral e intelectual. No ponto em estão as coisas, estamos predispostos a qualquer infecção já que, na verdade, estamos agindo da mesma forma por que eles agem, apenas com a desvantagem adicional de estarmos impedidos de ver ou querer entender o que nós mesmos fazemos. (Jung, p. 85)

Dessa maneira, fica cada vez mais claro que para que o desenvolvimento da consciência humana atinja a posição de Alteridade, precisamos com urgência integrar a Sombra que hoje projetamos nos animais e nela negamos a nossa própria natureza animal, animada. O não reconhecimento da senciência animal nos põe estagnados em relação ao desenvolvimento na direção da Totalidade, já que o todo, que inclui esses animais, está perturbado. A alteridade, nesse caso, expressa-se no próprio Veganismo vivido diariamente como um processo. A cada escolha consciente e ética que fazemos, estamos contribuindo para diminuir a Sombra construída na polarização defensiva da consciência. O Veganismo, nesse sentido, traz uma percepção sistêmica de que ao destruir o Outro, nesse caso os seres sencientes de outras espécies, destruímos também a nós mesmos. Ao incluílos em nosso círculo de consideração moral, também modificamos completamente nossa relação com tudo ao nosso redor que hoje os escraviza desnecessariamente. Talvez o veganismo enquanto símbolo seja a expressão máxima de alteridade que podemos atingir enquanto espécie neste momento.

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CAPÍTULO 5 CONSCIÊNCIA DE TOTALIDADE E O VEGANISMO ABOLICIONISTA: ABRANGÊNCIA DA EMPATIA E SEU IMPACTO VISÍVEL Chegamos à última e mais almejada posição da consciência, isto é, aquela em que o Todo vai ser percebido pela posição contemplativa, incluindo aqui todos os componentes de luz e de sombra. É o momento em que um período da elaboração simbólica se finda, o que não significa que ela se esgota, pois no dinamismo da vida logo outra elaboração tem início. Quando falamos em Totalidade, logo nos remetemos erroneamente a algo ideal, talvez até mesmo utópico; porém, como toda “meta”, norteia o percurso, oferece uma força diretriz que conduz o próprio desenvolvimento da consciência e, por consequência, da sociedade em direção à continuação da elaboração e à busca de integração. O vislumbre da totalidade, ou seja, da interconexão entre tudo o que existe na realidade objetiva e subjetiva, transforma a própria percepção do Ego, fornecendo uma perspectiva não mais polarizada. Quando os opostos se integram, é possível contemplá-los como um todo indivisível a partir de um ponto de vista dialético, que inclui as expressões dos opostos no mesmo nível de importância. A posição contemplativa e o Arquétipo da Totalidade encerram a elaboração simbólica porque, ao se esgotar teoricamente a produtividade dos significados pelo relacionamento entre as polaridades na posição dialética, a Consciência exerce a abstração máxima em direção à totalidade através do exercício da contemplação. Trata-se de uma posição unitária porque nela as diferenças das polaridades Ego-Outro e OutroOutro se esmaecem e os polos voltam a se reunir dentro do Todo, como a mandala do tai chi ilustra de modo tão significativo. (Byington, 2008, p. 164)

Quando a consciência resolve as pendências da Sombra, o processo de elaboração acaba e a integração libera energia psíquica que antes se direcionava a outras questões. Tal energia se torna disponível para ser criativamente utilizada. O Veganismo como um símbolo do caminho para a totalidade se dá a partir do exercício de reconhecimento do Outro não-

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humano integrando-o à dimensão do Todo psíquico que deve ser considerado, ouvido, permitido. Nessa dimensão, a percepção da conexão entre tudo inclui também os outros seres sencientes, e na prática não é uma utopia, e sim, uma realidade mundial crescente exponencialmente. O veganismo é uma forma concreta, palpável e relativamente simples de ampliar o senso de Alteridade e por consequência vivenciar encontros com a posição contemplativa da consciência. Para ilustrar tal relação apresentarei um esquema abaixo, utilizandome de um significativo símbolo da totalidade, a forma mandálica, que tem como núcleo o veganismo enquanto práxis diária e no entorno seus reflexos diretos e indiretos, senciocêntricos e antropocêntricos, conscientes ou inconscientes, a longo prazo e a curto prazo, internos e externos.

Fig. 1 Abolição da Escravidão Animal (criação e selvagens)

Sustentabili dade Econômica

Reavaliação do consumo de água

Aumento do Potencial Criativo

Recuperação de águas, solos e ar

Veganismo Revisão de Valores e Tradições

Conservação de Florestas

Ampliação da Consciência

Erradicação da Fome no Mundo Aumento da Empatia

Recuperação do Clima e ecossistemas

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Implicações senciocêntricas

A libertação dos animais de criação e selvagens é o ponto vital do veganismo, pois é ao mesmo tempo objetivo e efeito central da e na prática diária individual e no movimento coletivo. O entendimento é de que os indivíduos de outras espécies precisam fazer parte do círculo de consideração moral dos humanos e devem ter direitos garantidos de não serem explorados, independentemente dos benefícios que venham a trazer para os humanos. Tal posicionamento se dá pelo fato de que, além de destruirmos o bem mais precioso desses seres, que é sua própria vida no nível senciocêntrico, ainda geramos, no nível antropocêntrico, dezenas de problemas relacionados ao meio ambiente, saúde humana, alienação social e dissociação emocional, que também os afeta diretamente e a nós por consequência. O objetivo é que sendo o ser humano mais uma dentre todas as espécies no planeta, não há justificativa moral para que se coloque num polo de superioridade absolutamente parcial e questionável em relação a todos os viventes que aqui estão e que não têm por objetivo final nos servir de nenhuma forma. São indivíduos com seus próprios propósitos e, saindo da ótica antropocêntrica e partindo para a sensiocêntrica, encontramos um ponto de nivelamento mais justo e que nos permite tanto uma evolução moral quanto uma ampliação da consciência. Enquanto sustentarmos a ideia de que à nossa sociedade é permitido algum tipo de relativização da exploração e escravização dos Outros seres, teremos, na mesma medida, a autorização para haver, ainda hoje, humanos escravos e violentados diariamente, mesmo que isso seja proibido entre nossa espécie. Isso se dá pelo fato de que psicologicamente ainda não resolvemos essa Sombra na qual colocamos outros seres numa posição inferior; a questão da violação da vida por justificativas parciais, polarizadas e elitistas não foi ainda resolvida. Enquanto houver algum tipo de escravidão permitida, haverá a autorização para todas as que já existem. Seja a vida de sofrimento e privação dos animais humanos, seja pelo funcionamento desse

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sistema político, econômico, de valores sociais e morais distorcidos, que aprisiona humanos e os impede de se realizar. Libertar os animais é o próximo passo para começarmos a vislumbrar uma sociedade mais igualitária e cooperativa. Uma sociedade que abolirá todo tipo de escravidão e condenará suas relativizações. Não haverá uma resolução efetiva dos direitos humanos, sem antes revisarmos nossa atitude de condescendência e validação da exploração dos mais frágeis, dos mais vulneráveis e inocentes e que principalmente não ocuparam esse lugar por escolha, não houve uma consideração dialética da importância de suas vidas para eles mesmos, como acontece em todos os casos de escravidão e exploração de que já tivemos notícia. Uma reflexão mais apuradas sobre a vida dos seres sencientes, tanto livres quanto escravizados, nos traz luz à compreensão de sua natureza individual, personalidade e organizações coletivas, isto é, eles são indivíduos com caminhos próprios. Tal afirmação deveria ser o suficiente para nunca mais perturbarmos sua existência na mesma medida em que não precisamos ter a nossa própria perturbada. Animais de criação, além de viverem uma vida miserável, escravizada e agonizante do início ao fim do processo até seu assassinato, também custam ao Planeta e à sociedade problemas diretamente ligados à sua existência. Existência essa que é causada pela ação deliberada, insensata e irrefletida do ser humano ao reproduzi-los artificialmente. Por exemplo, milhões e milhões de litros de água são desperdiçados juntamente com a vida de bilhões de seres inocentes para se obter leite. Sem água não há vida no planeta. É uma condição sine qua non, assim como a luz do sol. E no entanto somos envolvidos por campanhas do governo e levados a crer que, na escassez, os banhos, a lavagem da calçada e a torneira aberta ao escovar os dentes são o grande problema e que com essas pequenas atitudes e o uso “responsável da água” conseguiríamos ter água para todos. O que não é falado porém, já que não é do interesse de quem ganha com isso, é que toda a exploração animal realizada pela indústria pecuária (carnes, ovos, laticínios) no mundo todo são as maiores desperdiçadoras e poluidoras de água sistemáticas do planeta. Felipe (2014) conta:

41 Em 2008-2009, o Brasil extraiu 29 milhões de toneladas de leite de vaca. Em 2014, a expectativa é de extração de 35 milhões de toneladas. Tanto leite! Tão pouca água! Para cada kilo de leite extraído de uma vaca foi preciso dar ao animal, em média, 8,5 litros de água. Um manancial de água é gasto todo dia no Brasil para abastecer ou hidratar os corpos das vacas usadas para extração de leite. Quanto maior a produção de leite em um região, maior o desvio de água potável, dos mananciais regionais para o rebanho feminino bovino. Mas o consumidor de laticínio jamais vê esses dados escritos na etiqueta desse produtos. (...) Leite não é algo inocente, quando se pensa em escassez de água. Estudiosos do assunto estimam que para processar um litro de leite em suas diferentes formas laticínicas são necessários 868 litros de água. (p. 221) Não há mais água para manter a produção de leite. Não precisamos de leite para viver e para ter saúde. Todos os nutrientes presentes no leite podem ser obtidos de alimentos vegetais. Mas precisamos de água para hidratar nosso corpo, para fazer sua limpeza interna e externa, para cozinhar, para limpar a casa e lavar as roupas. Não se limpa tudo isso com leite. E o leite leva toda a água. Mas ninguém vê a água devorada pelo leite ao comer seus manjares feitos com laticínios. (p. 224)

A poluição de rios e lençóis freáticos por excrementos e sangue também não é computada nas campanhas de consumo consciente. Em uma notícia de 2012, da Secretaria da Agricultura do Rio Grande do Sul, encontramos os seguintes dados: Para manter saudável uma vaca leiteira, com cerca de 400 a 500 Kg, produzindo regularmente e se reproduzindo, são necessários cerca de 62 a 65 litros de água-dia. 1 Kg de carne bovina consome 15 mil litros de água. O mesmo quilo de carne de suínos, precisa 5 mil litros; de frango, 3.500 litros. Para obter 1 kg de arroz, precisamos 1.900 litros de

42 água. Um quilo de soja consome, para ser produzido, 1.650 litros de água. Em termos de exigência hídrica, a planta mais econômica é a batata, que necessita de 133 litros para cada quilo de alimento. Na piscicultura, o sistema mais econômico é o de recirculação de água, com descargas diárias que variam de 2% a, no máximo, 10%, estando o mais comum entre 2 5%. Nesta situação, são necessários de 38 a 76 litros de água/kg de peixe, considerando a reutilização. Quando os produtos agrícolas são preparados para o consumo, aumenta a demanda por água: 1 hamburger, antes de ser colocado num sanduíche, já consumiu 2.400 litros d’água... Um kg de trigo ou de cevada precisam de 1.300 litros até chegarem ao armazém. Gastam, em média, 1.000 litros para serem, obtidos: 1 litro de leite, 1 kg de café. Já um litro de suco de maçã exige 960 litros d’água. Um pouco menos, 900 litros são necessários para colocarmos no processo de consumo 1 quilo de milho ou 1 litro de vinho... Então, não há como negar: utilizar água para irrigar lavouras, pastagens, pomares, hortas, viveiros, criar peixes, é, na atualidade, uma responsabilidade ambiental muito séria. A água é o insumo vital, decisivo, definitivo. (Zonin,2012)

Chega a ser impressionante que uma notícia como essa seja publicada sem questionarmos o que estamos fazendo. É como se estivéssemos vendo um crime acontecer, mas simplesmente corrêssemos em direção à segurança de nossa casa como se nada tivéssemos presenciado. É incrível que sejamos capazes de saber de fatos como esses sem conectarmos com o fato de que esses

dados

são

resultado

das

escolhas

diárias

que

fazemos

desconsiderando os animais sencientes, o planeta e a nós mesmos. Fica nítido que o senso de Alteridade é embotado e forjado pela alienação das massas, já que é uma via dupla em que a destruição que geramos retorna rápida e diretamente a nós. A contaminação da água e dos solos por biocidas no cultivo de grãos destinados à pecuária também é um problema sobre o qual campanha alguma fala. Os animais eleitos como produto de consumo são envenenados juntamente com o solo e água utilizados para criar aquilo que os alimenta e

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que novamente retorna doente e envenenado à terra, uma equação em que um único elemento é o que não deveria existir, isto é, o animal explorado. Outros elementos que também não deveriam existir se desejamos viver em um mundo mais pacífico são a ganância e a insistência humanas num caminho visivelmente destrutivo que poderá ocasionar a destruição da própria espécie humana. O Planeta segue sem nós. A emissão de gás metano na atmosfera pela pecuária também não é tema de campanha para que os cidadãos simplesmente deixem de comer carne, inclusive por ela ser absolutamente dispensável para a nutrição humana adequada. Não é interessante do ponto de vista financeiro. Estima-se que no mundo as fermentações entéricas dos rebanhos produzam de 160 a 200 milhões de toneladas de metano por ano. O total de CH4 emitido pela pecuária (fermentação ruminal e dejetos) corresponde a 35-40% do total de metano antrópico emitido (Steinfeld e outros, 2006). Conforme suscitado por Crutzen e outros (1986), das fontes de metano entéricas, os rebanhos de corte e tração participam com 50%, o rebanho leiteiro com 19% e ovinos com 9% da produção. (Freitas; Araldi, 2011)

Os animais selvagens, capturados de seu habitat, são afastados de suas famílias para serem confinados em espaços dezenas de vezes menores do que disporiam livres na natureza com a finalidade de entreter humanos. Muitas vezes são usadas suas peles, penas, pelos, couros, em festas como Carnaval e a própria indústria da moda. São contrabandeados e vendidos a colecionadores, enfim, uma realidade totalmente objetável quando aplicamos a empatia e nos colocamos nesse lugar, o lugar do escravo. Gary Francione em uma palestra para o Vegetarian Summerfest 2015 nos Estados Unidos, cujo título é “Veganismo: o imperativo moral”, enfatiza que todos concordamos que escravidão humana é errada. Ele afirma que um escravo não é uma pessoa, já que uma pessoa tem valor inerente/intrínseco. Um escravo tem apenas o valor extrínseco/externo de uma coisa, o que o torna é uma propriedade.

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Não importam quais características externas ou internas se tenha, um ser humano escravo não tem valor senão aquele que outros o atribuem. Portanto, se escravidão humana é errado, é igualmente errado propor uma escravidão humanitária a outros seres, como por exemplo “jaulas maiores” ou “massagem no gado”, pois ainda serão propriedade e tudo o que será feito em nome de seu “bem-estar” só servirá para que aumente seu valor extrínseco e o lucro que pode proporcionar ao explorador, e não por serem considerados moralmente seres de direito à vida. Esta permanece condenada. Ao libertar esses animais, garante-se o equilíbrio dos ecossistemas que habitam e do qual participam ativamente junto aos outros membros de sua espécie. Não é mais sustentável, nem moral e nem ambientalmente, essa postura de que já que não se pode fazer tudo, que os animais fiquem com nada. (Felipe, 2014). Não há mais espaço dentro do desenvolvimento da consciência humana em direção à Alteridade para a manutenção de posturas egoístas e irresponsáveis em relação aos outros seres e ao planeta. Não é mais possível acreditar que a mudança não dependa diretamente de nós e do nosso papel social como cidadãos do mundo e participantes do coletivo. Implicações Antropocêntricas Questões físicas e psicológicas individuais e da sociedade As inúmeras pesquisas em saúde humana demonstram há bastante tempo a relação direta entre consumo de proteínas e gorduras animais e as principais doenças da atualidade, como cânceres, cardiopatias e problemas coronários, diabetes, obesidade etc. Diversos médicos ao redor do mundo como o Dr. Michael Greger2 e Dr. John McDougall3, apenas para citar alguns,

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Dr. Michael Greger M.D. é médico clínico geral especializado em nutrição clínica,

escritor e orador internacionalmente reconhecido sobre nutrição, segurança alimentar e saúde pública. Membro fundador da American College of Lifestyle Medicine. Atualmente é diretor de saúde pública da Humane Society dos Estados Unidos. Dr. Greger é diplomado pela Cornell University School of Agriculture e pela Tufts University School of Medicine. É também mantenedor do site www.nutritionfacts.org voltado ao

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que vêm adotando a dieta vegetariana estrita para reverter e curar doenças com bastante sucesso e embasamento científco. Embora não seja o foco do Veganismo, os seres humanos são profundamente beneficiados ao deixarem de ingerir produtos animalizados e ao inserirem mais alimentos vegetais como base da alimentação. Sabemos, como terapeutas corporais, que o corpo reage ao se retirar aquilo que o sobrecarrega e inserir aquilo que o alivia, seja concretamente ou emocionalmente, portanto não há qualquer perda para a saúde humana ao se adotar o Veganismo como prática diária. Como pudemos ver no capítulo anterior, a Consciência de Alteridade propicia um aumento ou desembotamento da empatia, já que seu funcionamento traz a dialética para o plano da consciência, já que o Arquétipo da Alteridade é o arquétipo com maior capacidade de sentir e perceber tanto o sofrimento quanto as necessidades do Outro, neste caso, dos animais nãohumanos. Se há uma maior integração da Consciência com a aproximação dialética de um Arquétipo que tradicionalmente foi inferiorizado em nossa cultura, i.e, o Arquétipo Matriarcal, então podemos concluir que há consequentemente uma ampliação da consciência em direção ao todo, o que do ponto de vista psicológico corresponde ao avanço no próprio processo pessoal de individuação. Talvez essa seja uma constatação das mais óbvias, já que ao expandir a percepção em relação a outros seres também expandimos a nossa própria percepção do todo, isto é, caminhamos de maneira mais consciente à contemplação da totalidade em que todos os opostos têm sua expressão válidas, isto é, humano e não-humanos como terráqueos, habitantes da Terra e não mais como polos opostos, numa relação sombria e injusta.

compartilhamento de vídeos educativos sobre súde humana baseado nas pesquisas mais atuais em nutrição vegetariana estrita sem fins lucrativos. 3

Dr. John McDougall M.D. é médico especialista em nutrição há mais de trinta anos, diplomado pela Michigan State University’s College of Human Medicine, estudioso, escritor e orador sobre os efeitos da nutrição em doenças que ensina seus pacientes a obterem saúde a partir da alimentação vegetariana estrita.

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Certamente, a ampliação da consciência é um forte estímulo ao potencial criativo humano. Sem a exploração animal, os humanos têm a oportunidade de experimentar o próprio potencial criativo na resolução de problemas e assuntos humanos. Exemplos práticos: substituição dos ovos e outros materiais em receitas, substituições de produtos de couro por materiais sintéticos em vestimentas e calçados, a lã sintética, as peles sintéticas, a gelatina de agar-agar, os remédios testados de formas alternativas que não usam animais (já que nem mesmo são modelos confiáveis e, em última instância, os humanos serão as cobaias finais), na educação a vivissecção substituída por modelos artificiais idênticos, terapias humanas que não usem animais como objeto terapêutico e que podem ser sanadas por outras técnicas estimulantes com humanos etc. O prolongamento desse modelo econômico atual demanda mais recursos do que o Planeta pode suportar, como já vimos, e por essa razão a mudança de mentalidade, a revisão de valores e tradições também surgem com a prática do veganismo. Há um redirecionamento do foco ao que se atribui valor. Nesse sentido, quando o ser humano busca soluções não animalizadas para seus problemas o foco passa a ser sua própria capacidade criativa, cooperativa e colaborativa, e não mais o uso que poderia fazer dos corpos dos animais. Nesse sentido vislumbraríamos a tal sustentabilidade econômica de que tanto falamos, mas que pouco conhecemos ou aplicamos em nossas escolhas, especialmente nossas escolhas alimentares que sustentam toda essa engrenagem doente e destrutiva. Sobre a ilusória ideia de que o homem “conquistou a natureza”, Jung (1964) comenta: Esta expressão é um simples slogan, pois esta pretensa conquista nos oprime com o fenômeno natural da superpopulação e ainda acrescenta aos nossos problemas uma incapacidade psicológica total para realizarmos os acordos políticos que se fazem necessários. Continuamos a achar natural que homens briguem e lutem com o objetivo de afirmar cada um a sua superioridade sobre o outro. Como pensar, então, em “conquista da natureza”?

47 Como toda mudança deve, forçosamente, começar em alguma parte, será o indivíduo isoladamente que terá de tentar e experimentar levá-la avante. Esta mudança só pode principiar, realmente, em um só indivíduo; poderá ser qualquer um de nós. Ninguém tem o direito de ficar olhando à sua volta, à espera de que alguma outra pessoa faça aquilo que ele mesmo não está disposto a fazer. (p.101)

Esses “acordos políticos” podem ser pensados aqui como acordos internos implícitos na decisão moral relacionada ao Veganismo e já não parte mais de um único indivíduo ou qualquer um de nós, mas de muitos indivíduos, de todos nós. O Self Planetário nos chama para um passo adiante em nossa própria história, que jamais foi desconectada da história de todo o Planeta e de seus habitantes que vieram antes de nós. Experimentar a Totalidade é reverenciar a vida, contemplá-la, ser um com ela não mais pela simbiose, mas pela nítida percepção de que toda a existência é afetada por nós e nos afeta. Assim podemos corrigir as polarizações sombrias que criamos e que aprisionam a nós e aos Outros em nosso entorno, sejam humanos ou nãohumanos. Na Totalidade, essa diferenciação é dissolvida e o direito à vida e à livre expressão podem ser contemplados.

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DISCUSSÃO FINAL

Aquilo a que chamamos de consciência civilizada não tem cessado de afastar-se dos nossos instintos básicos. Mas nem por isso os instintos desapareceram: apenas perderam contato com a consciência, sendo obrigados a afirmar-se através de sintomas físicos (no caso de uma neurose) ou por meio de incidentes de vários tipos, como humores inexplicáveis, esquecimentos inesperados ou lapsos de palavra. O homem gosta de acreditar-se senhor da sua alma. Mas enquanto for incapaz de controlar seus humores e emoções, ou de tornar-se consciente das inúmeras maneiras secretas pelas quais os fatores inconsciente se insinuam nos seus projetos e decisões, certamente não é seu próprio dono. Estes fatores inconscientes devem sua existência à autonomia dos arquétipos. O homem moderno, para não ver esta cisão do seu ser, protege-se com um sistema de “compartilhamentos”. Certos aspectos da sua vida exterior e do seu comportamento são conservados em gavetas separadas e nunca confrontados uns com os outros. (...) Este é um aspecto da mente “cultural” moderna que merece nossa atenção. Revela um alarmante grau de dissociação e confusão psicológica. (Jung,1964, p. 83)

Jung sabiamente reconhecia que o grau de dissociação psicológica que vivemos até hoje enquanto sociedade não nos emanciparia. A prevalência de aspectos sombrios dos Arquétipos na vida humana nos permite ver reflexos comportamentais que geram resultados práticos e negativos em nossa sociedade, como o especismo, a alienação, os apegos a estruturas e funcionamentos obsoletos e disfuncionais, as patologias físicas e mentais, a destruição e as guerras. O homem, como um eficiente produtor de símbolos, cria soluções para amenizar essa tensão das polaridades e o símbolos estão nascendo a todo instante na tentativa de unir o que uma polarização defensiva separa. Desta maneira, o Veganismo surge simultaneamente como um símbolo e uma prática que se propõe também a unir aquilo que esquizofrenicamente separamos, isto é, a importância da vida do animais para eles da importância

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que nossa vida tem para nós como algo diferente, o que a senciência vem comprovar que não é. Isso muda nosso status de superioridade em relação a eles e nos põe num confronto ético sobre que justificativas morais temos para perpetuar essa diferença e como ela também nos afeta psíquica e fisicamente. Embora o recorte do trabalho seja focado em introduzir o tema do veganismo sob um olhar do desenvolvimento da consciência humana à respeito dos corpos dos animais sencientes primariamente, fica evidente também os desafios clínicos a serem enfrentados com a demanda crescente qe se anuncia de pacientes veganos, isto é, será preciso conhecer este conjunto de conceitos que designam o lugar psíquico de onde partem, suas problematicas intrínsecas à vivência do veganismo, os preconceitos que sofrem por parte de familiares, no ambiente de trabalho, entre amigos em um mundo não-vegano e até mesmo as mudanças corporais que acompanham todo o processo. Certamente, aspectos que poderão ser explorados futuramente em outros trabalhos.

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