“Ver um mundo num grão de areia”: Indícios da elaboração narrativa em psicoterapia

July 4, 2017 | Autor: David Dias Neto | Categoria: Psychotherapy and Counseling, Assimilation
Share Embed


Descrição do Produto

812

“Ver um mundo num grão de areia”: Indícios da elaboração narrativa em psicoterapia David D. Neto 1,2, Telmo M. Baptista1 & Kim Dent-Brown 2 1

Faculdade de Psicologia, Universidade de Lisboa 2 ScHARR, University of Sheffield

Na sua prática, os psicoterapeutas procuram estar atentos a sinais que os pacientes dão, quer no conteúdo quer na forma das suas narrativas. Nomeadamente, quanto ao modo como integram os significados elaborados em psicoterapia (e.g., intervenções, elaborações de acontecimentos ou vivências). Embora sendo tão comum, a sistematização e explicitação deste processo têm sido negligenciadas, possivelmente devido à complexidade e quantidade de variáveis envolvidas. Estas características, no entanto, tornam o estudo deste tema particularmente indicado para metodologias qualitativas. Nesta investigação pretende-se compreender o processo de assimilação através do estabelecimento de índices narrativos. O estudo é uma análise transversal de sessões de psicoterapia de pacientes adultos com depressão. Serão apresentados resultados da análise e, através de exemplos, ilustrados os índices. A importância destes índices na compreensão da assimilação e implicações em termos de avaliação e intervenção serão discutidos. Pretende-se que estes índices possam constituir orientadores da intervenção clínica. Palavras-chave: Índices narrativos, assimilação, investigação de processo.

1. INTRODUÇÃO A investigação em psicoterapia tem-se vindo a focar crescentemente no processo psicoterapêutico em si. A investigação de processo atende aos aspectos e elementos da terapia que podem constituir ingredientes relevantes do processo de mudança. Ou seja, o “como”, o “porquê” e o “quando” da mudança. Desta forma, a investigação de processo pode servir para reduzir o fosso entre a prática clínica e investigação. Mais do que prescrever as intervenções eficazes, aponta para quais os elementos inerentes à prática clínica que a tornam eficaz. A presente investigação centra-se no processo de assimilação ao longo da terapia e este processo será estudado através marcadores clínicos que se designam por “índices narrativos”. A ideia é, através de pistas dadas pelo paciente, sistematizar o modo como integra os significados facilitados em sessão. Significados esses que terão impacto no modo como percepciona, sente e se relaciona consigo e com as pessoas relevantes para si.

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

813

Narrativa e índices narrativos A ideia de compreender fenómenos complexos através de manifestações num nível micro não é nova. Gottman (e.g., Gottman & Levenson, 1992) observou que a presença de elementos, como desprezo, nas interacções do casal era preditivo de separação no futuro. Gosling e colaboradores (Gosling, Ko, Morris, & Mannarelli, 2002) sugeriram que julgamentos sobre elementos dos quartos ou escritórios estavam associados a traços de personalidade. Ambady e Rosenthal (1992) notaram que a observação de “fatias” de quatro ou cinco minutos de comportamento era preditivo de resultados objectivos em áreas da psicologia social e clínica. Finalmente, em medicina, árvores de decisão, baseadas em índices simples têm sido usadas para identificar síndromes específicos (Goldman & Kirtane, 2003). Em psicoterapia, esta atenção ao modo como o paciente conta a sua história, constitui muitas vezes a base do que se pode chamar intuição clínica. Por vezes o paciente pode usar uma expressão menos comum, outras vezes omitir um determinado tema, ou dar uma entoação não concordante, ou ainda pode falar de modo surpreendentemente desarticulado. Essa atenção às pistas do paciente, subjacente à responsividade do terapeuta, permanece largamente o produto da intuição ou experiência do terapeuta. No entanto a abordagem sistemática deste manancial de informação não explorado pode ser bastante útil para a investigação em psicologia clínica. Seguindo o repto de Brunner (1986): “The only way to proceed, then, is to plunge directly into that feature of language whose psychological substrate one wishes to investigate and to discover through what psychological processes it is realized” (p. 87). A utilização destes índices depende no entanto de uma concepção nãoestruturalista da linguagem. Ou seja, caso a linguagem seja vista como um código para representar conceitos abstractos é difícil pensar no modo como a pessoa narra como sendo algo mais do que a aplicação aleatória de linguagem abstracta. Se, por outro lado, a linguagem for concebida no contexto da comunicação interpessoal, como sendo mais do que um código, a narrativa da pessoa é composta por sinais contextualmente convencionados e dependentes da intenção de cada um. Neste caso, o modo como a pessoa narra é tão relevante como as palavras que emite. Esta perspectiva é defendida por autores como Vygotsky (1986) e Bakhtin e colaboradores (e.g., Bakhtin, 1981/2003; Vološinov, 1929/2003). Vygotsky (1986) defende que o pensamento (verbal) resulta da Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

814

internalização do discurso social. A linguagem, tal como outros processos mentais, é concebida como um processo cultural internalizado (Wertsch & Tulviste, 1992). Desta forma o significado é algo de partilhado inter-subjectivamente e a linguagem é sempre um acto de pensamento. Por outras palavras, não há nada de passivo na emissão e recepção de uma mensagem, nem há mensagem para além dos significados socialmente partilhados. Bakhtin e colaboradores (e.g., Bakhtin, 1981/2003; Vološinov,1929/2003) aprofundam estas ideias em três dimensões. Primeiro, associando a noção de significado com a de ideologia (culturalmente partilhada). Segundo, caracterizando a linguagem como diálogo (mesmo a escrita ou “pensada”) e, como tal, tendo sempre um autor, um destinatário e um contexto social (Bakhtin, 1963/2003; Leiman, 2004). Finalmente, o significado está presente no estilo. Bakhtin (1953/2003) chega a propor que a noção de género pode ser aplicada ao discurso quotidiano. Por género, entenda-se o conjunto de convenções específicas sobre a forma que determina o discurso de uma pessoa em diferentes situações (num bar ou no emprego) ou intenções (vender algo ou buscar reasseguramento) Uma vantagem de conceber a linguagem e a narrativa desta forma é que podemos pensar na terapia como um diálogo num género particular. Podemos pensar na narrativa do paciente como indo para além do que este diz. Podemos pensar na intervenção indo para além do que o terapeuta faz e incluindo elementos que nunca se tornam explícitos. Podemos pensar na mudança como sendo a elaboração destes significados e temos um meio para estudar este processo de elaboração.

Assimilação em Psicoterapia O conceito de assimilação deve o seu uso, em psicologia, a Jean Piaget (e.g. Piaget & Inhelder, 1966). Nesta perspectiva assimilação é o processo de tratamento da informação de forma a esta se integrar numa estrutura ou esquema pré-existente. Assimilação relaciona-se com o conceito de acomodação, que se refere à mudança da estrutura ou esquema para integrar a realidade. Na investigação actual, em psicoterapia, os dois conceitos são indissociáveis. Em psicoterapia, o modelo mais estudado de assimilação é o modelo de Stiles e colaboradores (e.g., Stiles, 2001; 2002; 2006). Estes autores sugerem que a assimilação de experiências problemáticas é crucial para a ocorrência de mudança em terapia. Este modelo define como experiências problemáticas qualquer pensamento, impulso, Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

815

comportamento ou emoção que está associado a sofrimento e algum grau de dissonância. O processo é descrito em oito estádios, como apresentado na Tabela 1. Desde a sua primeira formulação que este modelo tem sido concebido como um modelo transteórico, o que é útil na compreensão da mudança em terapias de orientações diferentes (Shapiro, Barkham, Reynolds, Hardy & Stiles, 1992). Dentro desta perspectiva, intervenções exploratórias e prescritivas, que têm pesos diferentes em diferentes tipos de terapias, são concebidas como agindo em estádios diferentes.

Tabela 1 Estádios da Assimilação (Traduzido de Stiles, 2001) 0- Excluído

4- Compreensão/Insight

1- Pensamentos indesejados

5- Elaboração

2- Consciência vaga/Emergência

6- Solução de problema

3- Identificação do problema/Clarificação

7- Mestria

O processo de assimilação é compreendido, tendo subjacente a noção de “comunidade de vozes” (e.g., Stiles, Honos-Webb, & Lani, 1999). De acordo com esta perspectiva, o self é composto por múltiplas vozes (Stiles et al., 2006; Stiles, Osatuke, Glick, & Mackay, 2004) que têm um papel de agentes em termos do discurso e da acção. As vozes são traços de experiências passadas e têm diferentes graus de integração na comunidade de vozes. Desta forma, a assimilação é a integração de uma voz, previamente excluída, na comunidade de vozes. Isto é conseguido através do estabelecimento de uma “ponte de significado” que é o estabelecimento de comunicação entre duas vozes através de um elemento comum de significado como uma teoria ou uma narrativa (Brinegar, Salvi, Stiles, & Greenberg, 2006). Este modelo tem um considerável apoio empírico (e.g., Detert, Llewellyn, Hardy, Barkham, & Stiles, 2006; Osatuke, Humphreys, Glick, Graff-Reed, Mack, & Stiles, 2005; Stiles, 2001; Williams, Stiles, & Shapiro, 1999), no entanto a sua concepção de assimilação é criticável. Por exemplo, embora a definição de estádio seja bastante flexível (e.g., Stiles, 2006), ainda assim mantém-se a descrição linear e o enquadramento das vozes nesses mesmos estádios. No entanto, duas observações vão contra a ideia de estádio. Primeiro, a observação da natureza não contínua da assimilação e, segundo, a proeminência do estádio quatro (Detert et al., 2006) em Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

816

termos do resultado da terapia. Adicionalmente, a ideia de estágio pode ser redutora da compreensão da assimilação. Para ilustrar isto, pode-se considerar o exemplo da evolução humana. Podemos ver a evolução humana como um processo que decorre por estádios: homo ergaster > homo heidelbergensis > homo sapiens (Johanson & Edgar, 1996). No entanto, isto não nos permitiria considerar outros percursos da evolução nem compreender profundamente o fenómeno. Por exemplo a evolução pode ser vista como um fenómeno contínuo, afectado por factores como a taxa de mutações, pressões do ambiente ou outras espécies. Certos factores como o isolamento ou catástrofes podem contribuir para a uniformização das espécies (e desta forma a ilusão de estádio). Mas estes factores não são obrigatórios e outros factores “mais” contínuos podem desempenhar um papel mais preponderante no futuro da espécie. A aplicação destas ideias à assimilação sugere a necessidade de pensar novamente a assimilação de uma forma mais assente em observações.

O presente estudo Esta abordagem da assimilação adopta a visão deste processo enquanto um processo narrativo. Esta perspectiva permite compreender os índices não como subprodutos de um processo abstracto, mas como o processo em si e enquadra-se dentro das investigações que observam o impacto da terapia em termos da narrativa (e.g., Baptista, 2000) na medida em que, através dos índices, podemos compreender o impacto de outros factores na assimilação. Neste estudo, pretende-se analisar os dados (i.e., transcrições de sessões) de forma ascendente. Procura-se compreender o processo de assimilação e, simultaneamente, como este entendimento emergiu. Por outras palavras, como conceber a assimilação e como sinalizá-la, através do conteúdo e da forma da narrativa. Apresentam-se como objectivos desta investigação os seguintes: descrever e analisar os possíveis modos de assimilação em sessões individuais de psicoterapia; identificar e definir os índices de assimilação ou seus sub-elementos; estabelecer índices que permitam descriminar assimilação de outros processos envolvidos na mudança. Procura-se que uma compreensão contextualizada da assimilação se traduza em resultados que sejam relevantes para os clínicos. Os índices podem ser usados como sinais de processo, o que poderá aumentar o grau de exactidão e relevância da avaliação e fornecer indicadores de intervenção que são sensíveis ao contexto e ao tempo. Por Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

817

outras palavras, os índices poderão constituir-se como uma sistematização do que terapeutas, em maior ou menor grau, intuitivamente usam na sua intervenção.

2. MÉTODO O presente estudo é uma análise transversal de sessões de psicoterapia. Cada sessão foi recolhida de um paciente diferente, entre a primeira e a 15ª sessão. Este limite é escolhido porque, embora a maior parte da mudança sintomática ocorra dentro das primeiras oito sessões, assume-se que mudanças estruturais demorem mais tempo a ocorrer (Barkham et al., 2006; Kopta et al., 1994).

2.1 Participantes Pacientes adultos com depressão e terapeutas do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa foram convidados a participar neste estudo. Como se trata de uma análise transversal, o paciente poderia não estar deprimido no momento da gravação. Desta forma, o critério de inclusão foi avaliado pelo terapeuta, considerando a sua avaliação no início da terapia. Dado que esta investigação se situa no domínio da investigação de processo e como o objectivo é a compreensão do processo de assimilação, não se especificou uma orientação em particular (McLeod, 2003). Presume-se que a assimilação ocorra em qualquer processo terapêutico bem sucedido (Shapiro et al., 1992). Como o estudo se foca nos aspectos narrativos, pacientes com deficits cognitivos ou síndromes psicóticos foram excluídos. Outro critério de exclusão foi a presença de Perturbação de Personalidade. Este critério foi incluído porque o objectivo desta investigação implica a observação de mudança durante o período de observação do estudo. Pacientes com Perturbação da Personalidade usualmente requerem intervenções mais prolongadas e a mudança ocorre tipicamente de modo mais lento (e.g., Beck & Freeman, 1990). As sessões foram gravadas de vários terapeutas, nenhum dos quais é autor desta investigação. Todos os terapeutas que participaram neste estudo, ou estão em formação em psicoterapia ou já terminaram e têm mais de três anos de experiência clínica.

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

818

2.2 Procedimentos A narrativa é o objecto deste estudo, pelo que as sessões foram gravadas, transcritas e posteriormente codificadas usando o Atlas Ti. Todos os dados confidenciais foram omitidos nas transcrições, para garantir a confidencialidade. A análise foi realizada usando a Grounded Theory (Strauss & Corbin, 1998) devido ao objectivo de ancorar a conceptualização nas narrativas dos pacientes. Duas questões guiaram a análise: de que forma é que esta pessoa está a elaborar os significados que emergiram em sessão? E, o que é que na narrativa é indicativo de assimilação ou dos seus sub-elementos? Estas considerações deixam depreender que se trata de uma aplicação modesta da Grounded Theory, no sentido em que várias considerações se fazem relativamente à assimilação e porque o seu objectivo explícito é de encontrar na narrativa elementos que se consideram existir. Adicionalmente, como se deseja que os índices tenham aplicação prática, pretende-se que estes tenham um nível de interpretação mais reduzido e que sejam generalizáveis a outros pacientes.

3. RESULTADOS Apresentam-se os resultados da análise realizada até ao momento. A análise das sessões procura responder às duas questões referidas na secção dos procedimentos. A primeira questão traduz-se na identificação de segmentos que sejam indicativos desta elaboração e a segunda, na tradução desses elementos em índices. Considere-se, por exemplo, o seguinte excerto:

P- Hoje até… até estou bem, mas o dia também está a ajudar. Ahhh… porque... ahhh… principalmente sábado, não foi muito fácil para mim porque… tive um dia assim um bocado complicado. O domingo foi... foi bom, porque estive na casa dos meus pais e... ahhh... e foi bom estar... estar lá. Mas… não tem sido assim muito fácil... ahhh... ultimamente, porque... parece que tem acontecido sempre umas atrás das outras (ri-se) entre aspas... ahhh, na sexta feira tive uma reunião com OMITIDO por causa da questão da casa... ahhh… da insonorização e tudo... daquilo tudo e... [...] Logo quero que aquilo... ahhh... seja mais tranquilo. Mas isto claro que não é nada bom, não é? Isto deixou-me assim... (p2, 4)

Esta paciente começa a sessão a fazer o relato da semana, começando por contar os eventos positivos e negativos que lhe aconteceram (O [...] refere-se a uma secção da narrativa excluída e que consiste numa sucessão de acontecimentos). Este relato é pouco

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

819

indicativo de elaboração e é difícil extrair índices de algo supostamente neutro que é o relato do dia ou semana que passou. No entanto, a forma como a pessoa conta a sua história mostra-se claramente reveladora. Os acontecimentos são contados de forma não reflectida e ela situa-se neles como tendo sido sujeita a eles. As expressões salientas a negrito acentuam esta ideia. No decorrer da sessão, a paciente consegue elaborar isto, ainda que de forma incipiente:

P- [...] É... Ainda existe outra coisa, que é o... ahhh... que é o receio de... ahhh... ficar sem grande capacidade de... de acção e de reagir a... ahhh... [...] é... eu sinto que... se... se ficar triste... ahhh... ou pelo menos até certo ponto, e embora isto não seja muito mensurável, não é? que, então esse é que não me vai mesmo acontecer, porque... sinto que... que tenho, neste momento, estou a ter muito pouco controlo sobre as coisas. E eu sei que o controlo é uma coisa que... que... que me vinca e que tem muito a ver comigo. [...] Está a me fazer pensar que... “Então, mas do que é... do que é que eu estou à espera! Quando eu começar a trabalhar, quando eu não sei quê, é que vou tratar disto”. Claro que há muitas coisas que eu tenho... que eu estou dependente de receber, para as fazer - como por exemplo ir à segurança social. Porque vou ter de pagar muito dinheiro. Mas há outras que não! Ahhh e essas outras eu não estou a conseguir fazê-las. (p2, 32)

O primeiro excerto mostra assim a importância de atender ao modo como a pessoa se expressa, mesmo quando não está a reflectir sobre o sucedido. Este, e outros exemplos, levaram a incluir, no contexto da análise, índices que são relativos ao modo como a pessoa se expressa, nos segmentos que não correspondem a elaborações. Esses índices gerais foram designados por índices de conteúdo. Relativamente às secções em que os pacientes elaboram sobre o sucedido

P- Esta noite (ri-se), foi complicada. Não foi... não tem nada ver com o serviço, mas teve a ver com a relação que eu tenho mantido e... não sei se fui eu que bati no fundo, se foi aquilo que bateu no fundo. Sei que... ahhh... Percebe-se que a atitude era intolerável para mim... não consegui deixar passar uma série de coisas. Considerava, um... muitas vezes, por ir relevar e ontem achei pronto que não podia relevar. (...) Ahhh, ahhh... Fui até onde queri... até um determinado limite. Até um determinado ponto, naquilo que queria, depois recuei e consegui avançar. E... T- O que é que queria? P- Queria pôr um termo aquilo tudo, porque achava que não... que não tenho que mudar os outros, mas também não tenho que me sujeitar a coisas que não... que gosto menos. É que não gosto, é que gosto menos. E por isso acabei por recuar, porque não... não conseguia o próprio levar avante as coisas. Isso, para mim, foi terrível ontem, foi muito mau. (p5, 9-11)

Um elemento que se surge é a falta de envolvimento ou distonia com que fala sobre o assunto. Por exemplo, ri-se antes de referir que a noite foi complicada, substitui o “queria” por uma expressão menos dependente da sua vontade e globalmente há várias hesitações que podem sugerir que há alguma ambivalência ou pouco à-vontade que poderá ser relativo ao sucedido ou ao falar sobre o assunto com alguém. Por outro

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

820

lado a relação é referida de maneira pouco envolvida (e.g., “a relação que eu tenho mantido” ou “aquilo”), o que interessante tendo em conta o sofrimento que sente. Mas como é que podemos traduzir estas ideias em índices? Estes significados parecem ser salientes, mas a sua constituição como índices levanta algumas questões. A tradução directa da proposição em índice(s) é inviável, já que dificilmente seria aplicável a outras pessoas. O uso idiossincrático da linguagem dificilmente se manifestaria desta forma noutra pessoa, mesmo se o mesmo processo estivesse em causa. Alternativamente, poderá pensar-se em códigos para elementos particulares. Por exemplo, considere-se “a relação que eu tenho mantido”. Uma codificação de nível abstractamente elevado como “relação descrita de forma desligada”, implica demasiada interpretação para poder ser útil. Uma codificação de nível abstractamente inferior, como “uso do nominal de particípio para descrever acções presentes” ou “verbosidade” seria claramente aplicável a demasiados contextos para ser útil. A considerações sobre o nível em que os índices se devem situar tem permeado a análise. Os índices identificados até ao momento situam-se num nível intermédio entre codificações demasiado abstractas ou demasiado concretas. De seguida encontram-se alguns exemplos de índices que foram desenvolvidos até à presente data:

I Detalhar o Corpo P- Ahhh (...). Eu, na semana passada, quando saí daqui, disse que já tinha conseguido localizar... e situava no estômago. Ahhh... (p5, 94) IM Mudei SOE P- Exacto(...) Eu mudei mesmo. Porque eu senti que mudei. E que me sinto muito bem mesmo. (p4, 155) IS Não sei o que significa P- Pois. Hum. Não sei... não sei muito bem, ahhh... não sei muito bem o que é que isto significa ou que... ou o que é que isto me quererá dizer. (p2, 20)

Uma classe de índices que parece ser interessante, mas que cuja articulação com o restante sistema de índices permanece por clarificar é a resposta imediata a intervenção do terapeuta. Aqui observa-se uma interessante diferenciação de respostas, como mostram os seguintes exemplos:

IT Admissão da possibilidade MAS P- Sim. Sim é. Pois, mas antes disso dos alicerces ou da... ou do medo de... (...) de... da psicopatologia mesmo. É... Ainda existe outra coisa, que é o... (p2, 32) Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

821

IT Concordância enfática com o terapeuta P- Percebe, isso ele percebe, perfeitamente... (p4, 251)

À medida que os índices têm sido criados surgiu, como seria de esperar, ligações entre os mesmos. No entanto, essas ligações são mais de carácter semântico ou temático que processual. Optou-se então por explicitar essa emergência, procurando fazer duas codificações de segundo nível. A primeira, relativa a esta codificação por temas de índices (e.g., se se referem a uma dimensão emocional), que será usada para facilitar a codificação e a segunda relativamente a processos que os índices indiciam (e.g., se se referem a evitamento).

4. DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Os resultados apresentados aqui situam-se numa fase inicial da análise. Ainda assim observaram-se alguns dados importantes. Por um lado, constata-se que é nas secções da narrativa em que há elaboração que é possível extrair mais índices. Por outro lado, o modo como a pessoa relata, nas secções de pouca elaboração, é também indicativo do modo como a pessoa assimila esses acontecimentos. Isto vai ao encontro das reflexões sobre a linguagem referidas na introdução. Ou seja, a pessoa expressa aquilo que se pode designar por ideologias, mesmo quando não as relata. Ao encontro desta ideia encontra-se a separação entre uma codificação dos índices por temas e por sub-processos ou elementos. Índices que se refiram a conteúdos diferentes podem representar níveis, processos ou elementos da assimilação semelhantes. Por exemplo, um eventual índice “IV Não pensar deliberado” pode corresponder ao mesmo sub-processo de assimilação de “II Identificar vulnerabilidade”, embora esteja na mesma meta-categoria temática que “IV Não consigo pensar” (e que poderá indiciar outro sub-processo). Finalmente a resposta ao terapeuta parece ser digna de particular atenção, o que não é de estranhar tendo em conta o carácter dialógico da linguagem e narrativa. Admitindo que o terapeuta tem uma ideologia e a veicula, directa ou indirectamente na sua intervenção, a resposta do paciente é indiciadora da recepção desta mesma ideologia. Note-se que aqui ideologia não se refere a convicções do terapeuta que são impingidas, mas antes a valores de nível mais geral. Por exemplo, quando o terapeuta valida ou reflecte empaticamente algo, mostra uma postura de aceitação da pessoa que Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

822

tem em frente. Essa aceitação pode ser estranha ao paciente que pode adoptar uma postura crítica face a si mesmo. Do mesmo modo, uma intervenção pode simultaneamente passar estas ideologias. Por exemplo, quando um terapeuta sistémico recorre a comunicação circular, assume e veicula que há diferentes perspectivas que são viáveis relativamente a uma situação. Um membro do casal pode simplesmente não entender o pedido ou este pedido pode em si mesmo ser útil na elaboração do funcionamento do casal.

O processo de identificação dos índices e enquadramento conceptual dos mesmos ainda decorre. A par deste processo serão realizados um conjunto de procedimentos que têm como finalidade validar este procedimento. Por um lado a análise será supervisionada pelo segundo e terceiro autores. Poder-se-à ainda realizar uma auditoria externa no sentido de reforçar esta validação por pares. Depois de realizada a análise, será construído um manual do sistema de índices que poderá ser usado para outras pessoas codificarem sessões de terapia. Este manual será usado num segundo estudo, que não foi descrito aqui, mas que constituirá a aplicação do sistema de índices a processos terapêuticos completos. Poder-se-ão realizar as análises de fiabilidade inter-cotadores deste tipo de análise. Concorrentemente a este procedimento, um segundo investigador irá analisar as mesmas sessões usando a Assimilation of Problematic Experiences Scale (APES; Honos-Webb, Surko, & Stiles, 1998). A APES é uma escala de codificação de oito níveis que avalia o grau de assimilação em transcrições de sessões de terapia. Esta avaliação segue o enquadramento da assimilação descrito na introdução. O Beck Depression Inventory (BDI; Beck et al., 1961) também foi aplicado e poderá fornecer uma indicador indirecto dos resultados da assimilação. Estes dois procedimentos procuram validar o sistema de índices através da triangulação com um sistema já estabelecido e com uma medida de resultado dada directamente pelo paciente.

5. CONCLUSÕES O título deste artigo é um verso de um poema de William Blake intitulado Augúrios da Inocência. Este título remete para a apreciação da complexidade e beleza dos detalhes a um nível micro, pela comparação com um nível macro. A atenção aos

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

823

detalhes abre a possibilidade de acedermos a mundos, que de outra forma não podíamos aceder. A apreciação dos grãos de areia em psicoterapia pode em si abrir a descoberta de novos mundos nas pessoas que recorrem à psicoterapia. O atender às suas expressões, às palavras inusitadas, às entoações e às conotações é tão relevante como as interpretações e conceptualizações que fazemos. Esta investigação procura ser uma primeira sistematização deste atender, embora tenhamos consciência da complexidade envolvida e que muito fica por explorar. Encaramos, no entanto, esta procura destes sinais como uma fonte de satisfação na procura de entender a realidade dos pacientes.

AGRADECIMENTOS Este trabalho é realizado no contexto de um programa doutoral suportado por uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/36831/2007)

CONTACTO PARA CORRESPONDÊNCIA David Neto e-mail: [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Ambady, N., & Rosenthal, R. (1992). Thin slices of expressive behaviour as predictors of interpersonal consequences: A meta-analysis. Psychological Bulletin, 3(3), 256-274. Bakhtin, M. M. (1981/2003). The dialogical imagination. In P. Morris (Ed.), The Bakhtin reader: Selected writings of Bakhtin, Medvev, Vološinov. London: Arnold. Bakhtin, M. M. (1963/2003). Problems of Dostoevsky’ poetics. In P. Morris (Ed.), The Bakhtin reader: Selected writings of Bakhtin, Medvev, Vološinov. London: Arnold. Bakhtin, M. M. (1953/2003). Speech genres and other late essays. In P. Morris (Ed.), The Bakhtin reader: Selected writings of Bakhtin, Medvev, Vološinov. London: Arnold. Baptista, T. M. (2000). The effectiveness of psychotherapy in changing life’s narratives. Dissertação de Doutoramento em Psicologia, Universidade de Lisboa, Lisboa.

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

824

Barkham, M., Connell, J., Stiles, W. B., Miles, J. N. V., Margison, F., Evans, C., & Mellor-Clark, J. (2006). Dose-effect relations and responsive regulation of treatment duration: The good enough level. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 74(1), 160-167. Beck, A. T., & Freeman, A. (1990). Cognitive therapy of personality disorders. New York: The Guilford Press. Beck, A. T., Ward, C. H. Mendelson, M., Mock, J., & Erbaugh, J. (1961). An inventory for measuring depression. Archives of General Psychiatry, 4, 561-571. Brinegar, M. G., Salvi, L. M., Stiles, W. B., & Greenberg, L. S. (2006). Building a meaning

bridge:

Therapeutic

progress

from

problem

formulation

to

understanding. Journal of Counselling Psychology, 53(2), 165-180. Brunner, J. (1986). Actual minds, possible worlds. Cambridge: Harvard University Press Detert, N. B., Llewelyn, S., Hardy, G. E., Barkham, M., & Stiles, W. B. (2006). Assimilation in good- and poor-outcome cases of very brief psychotherapy for mild depression: An initial comparison. Psychotherapy Research, 16(4), 393407. Goldman, L., & Kirtane, A. J. (2003). Triage of patients with acute chest pain and possible cardiac ischemia: The elusive search for diagnostic perfection. Annals of Internal Medicine, 139(12), 987-996. Gosling, S. D., Ko, S. J., Morris, M. E., & Mannarelli, T. (2002). A room with a cue: Personality judgments based on offices and bedrooms. Journal of Personality and Social Psychology, 82(3), 379-398. Gottman, J. M., & Levenson, R. W. (1992). Marital processes predictive of later dissolution: Behavior, physiology and health. Journal of Personality and Social Psychology, 63(2), 221-233. Honos-Webb, L., Surko, M., & Stiles, W. B. (1998). Manual for rating assimilation in psychotherapy. Manual não Publicado, Department of Psychology, Miami University, Oxford, Ohio. Johanson, D. C., & Edgar, B. (1996). From Lucy to language. London: Weidenfeld Nicolson. Kopta, S. M., Howard, K. I., Lowry, J. L., & Beutler, L. E. (1994). Patterns of Symptomatic Recovery in Psychotherapy. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 62(5), 1009-1016. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

825

Leiman, M. (2004). Dialogical sequence analysis. In H. Hermans & G. Dimaggio (Eds.), The dialogical self in psychotherapy. Hove: Brunner-Routledge. McLeod, J. (2003). Doing counselling research. London: Sage Publications. Osatuke, K., Humphreys, C. L., Glick, M. J., Graff-Reed, R. L., Mack, L. M., & Stiles, W. B. (2005). Vocal manifestations of internal multiplicity: Mary’s voices. Psychology and Psychotherapy: Theory, research and Practice, 78, 21-44. Piaget, J., & Inhelder, B. (1966). The psychology of the child. London: Routledge & Kegan Paul. Shapiro, D. A., Barkham, M., Reynolds, S., Hardy, G., & Stiles, W. B. (1992). Prescriptive and Exploratory psychotherapies: Towards an integration based on the assimilation model. Journal of Psychotherapy Integration, 2(4), 253-272. Stiles, W. B. (2006). Assimilation and the process of outcome: Introduction to a special section. Psychotherapy Research, 16(4), 389-392. Stiles, W. B. (2002). Assimilation of problematic experiences. In J. C. Norcross (Ed.), Psychotherapy Relationships that work. Oxford: University Press. Stiles, W. B. (2001). Assimilation of problematic experiences. Psychotherapy, 38(4), 462-465. Stiles, W. B., Leiman, M., Shapiro, D. A., Hardy, G. E., Barkham, M., Detert, N. B., & Llewelyn, S. P. (2006). What does the first exchange tell? Dialogical sequence analysis and assimilation in brief therapy. Psychotherapy Research, 16(4), 408421 Stiles, W. B., Honos-Webb, L., & Lani, J. A. (1999). Some functions of narrative in the assimilation of problematic experiences. Journal of Clinical Psychology, 55(10), 1213-1226. Stiles, W. B., Osatuke, K., Glick, M. J., & Mackay, H. C. (2004). Encounters between internal voices generate emotion: An elaboration of the assimilation model. In H. Hermans & G. Dimaggio (Eds.), The dialogical self in psychotherapy. Hove: Brunner-Routledge. Strauss, A., & Corbin, J. (1998). Basics of qualitative research: Techniques and procedures for developing Grounded Theory. Thousand Oaks: Sage. Vološinov, V. N. (1929/2003). Marxism and the philosophy of language. In P. Morris (Ed.), The Bakhtin reader: Selected writings of Bakhtin, Medvev, Vološinov. London: Arnold. Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

826

Vygotsky, L. S. (1986). Thought and language. Cambridge, MIT Press Wertsch, J. V., & Tulviste, P. (1992). L. S. Vygotsky and cotemporary developmental psychology. Developmental Psychology, 28(4), 548-557. Williams, J. M., Stiles, W. B., & Shapiro, D. A. (1999). Cognitive mechanisms in the avoidance of painful and dangerous thoughts: Elaborating the assimilation model. Cognitive Therapy and Research, 23(3), 285-306.

Actas do VII Simpósio Nacional de Investigação em Psicologia Universidade do Minho, Portugal, 4 a 6 de Fevereiro de 2010

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.