Verdade e Consequências ou Stanislávski Mal Interpretado - HENRY SCHNITZLER

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SCHNITZLER, Henry. Truth and consequences, or Stanislavsky misinterpreted. In: Quarterly Journal of Speech, Vol. 40, #2, pp. 152-164. O artigo foi originalmente publicado no ano de 1954 e republicado online em 2009. Disponível em: http://nca.tandfonline.com/toc/rqjs20/40/2 http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/00335635409381963 Traduzido para fins didáticos por Laédio José Martins. Fev./Mar. 2017.

VERDADE E CONSEQUÊNCIAS, OU STANISLÁVSKI MAL INTERPRETADO Henry Schnitzler O Sistema de Stanislávski – “aquele em que você tem que ser um vaso, não é?” Essa pergunta, recentemente dirigida a mim por um estudante, é sintomática da situação lamentável que eu gostaria de discutir; situação que, ironicamente, Stanislávski previu. Pouco antes de sua morte, ele disse à sua enfermeira: “Eles vão distorcer a verdade que eu lhes ensinei ...”1 Na verdade, o fizeram. A distorção resultou em duas atitudes diametralmente opostas, ainda que interdependentes. De acordo com a primeira, o Sistema de Stanislávski é a única abordagem válida para a atuação. Ele fornece a chave mágica que abre a porta para qualquer realização criativa no teatro. É a Sagrada Escritura e, portanto, não está sujeita a questionamentos ou discussões. De acordo com a segunda atitude, o Sistema de Stanislávski é uma abordagem desastrosamente teórica da atuação. Quem professa usá-lo, prova assim que é um “intelectual” e não um artista criativo, porque o “verdadeiro” ator não precisa de teorias; Ele “apenas age”. Além disso, os métodos defendidos pelo Sistema são muito ridículos para serem levados a sério de qualquer forma.2 

Professor Assistente em Artes Teatrais no campus de Los Angeles da Universidade da Califórnia, é estudante de atuação, direção, teatro e música.) 1 David Magarshack, Stanislávski: Uma Vida [Stanislavsky: A Life] (London. 1950), p. 394. 2 Para uma expressão característica deste ponto de vista, veja Cornelia Otis Skinner, “Atores apenas agem – Ou Não ‘Tons em forma de Pêra’, Revista New York Times (13 de dezembro de 1942). Veja também Aline B. Louchheim, “Três vezes vencedora; Leora Dana, de “Ponto sem volta”, não atuou em nenhum fracasso da Broadway”, New York Times (Seção de Teatro) (30 de dezembro de 1951). Lá, é dito ao leitor que a senhorita Charlotte Perry “só queria a naturalidade e a sinceridade da atuação. Ela o ensinou a reconhecer quando você

A inter-relação dessas duas atitudes é, óbvia e infelizmente, de causa e efeito. Os auto professados discípulos de Stanislávski, ao alterarem os ensinamentos do diretor russo para o que frequentemente se torna mera caricatura, foram bem-sucedidos em tornar ridículo ou suspeito qualquer um que mencione o nome de seu mestre. Com um dogmatismo equiparado apenas com a sua arrogância, eles obstruíram qualquer avaliação ou aplicação sensata do “sistema”. A atmosfera esotérica que os discípulos se esforçaram por criar em torno de seus rarefeitos círculos provocou uma reação, especialmente entre os profissionais, que, embora inteiramente incompreensível, é tão terrível e fútil quanto a própria pose irritante de superioridade e infalibilidade dos discípulos. Stanislávski nunca se considerou infalível. Até o último dia de sua vida ele continuou revisando e esclarecendo o que ele havia escrito. Ele temia os malentendidos que provavelmente resultariam de qualquer tentativa de usar seus livros como “textos”. Ele advertiu que “... o sistema não é um traje pronto que você pode vestir e sair nele, ou um livro de receitas no qual tudo que você precisa é encontrar a página e lá está sua receita.3 Ele nunca afirmou que o que ele tinha encontrado era a única abordagem para a atuação. “Se o Sistema não te ajudar, esqueça-o”, disse ele a Stella Adler. É certo que Stanislávski acrescentou: “Mas talvez você não o use corretamente.”4 Pois ele sabia que seu método de treinamento, se distorcido, poderia fazer mais mal do que bem. Quando ele decidiu por escrever a soma total de sua experiência, ele o fez, como confessou em uma carta a Maxim Gorki, com grande relutância.5 Ele explicou, no entanto, que isso era “necessário, só porque iria colocar um fim a toda a estúpida conversa sobre o meu chamado ‘sistema’, que, na forma que é ensinado agora, estava errado. Sem a coisa de Stanislávski, sem agonizar.” A implicação é que Stanislávski se opunha à naturalidade e à sinceridade da atuação! 3 Constantin Stanislávski, A Construção da Personagem [Building a Character] (Nova Iorqe, 1949), p. 282. 4 Harold Clurman, Os anos efervencentes: A História do Group Theatre e a Década de 1930 [The Fervent Years: The Story of the Group Theatre and the Thirties] (Nova Iorque, 1945), p. 138. 5 Pode ser útil lembrar neste contexto que Stanislávski começou a desenvolver seu Sistema por volta de 1906, com a idade de quarenta e três anos; oito anos depois da fundação do Teatro de Arte de Moscou e depois de quase trinta anos de trabalho prático como ator e diretor. Cf. Constantin Stanislávski, Minha Vida na Arte (Boston, 1938), pp. 458 e ss.

simplesmente paralisa o ator.”6 Depois que foi publicado, ele ficou chocado ao perceber que o livro tinha aparentemente piorado as coisas. Vladimir Sokoloff, o notável ator, me contou de uma discussão que ele teve uma vez com Stanislávski sobre os problemas envolvidos no treinamento para o palco. Em um ponto, Sokoloff se referiu ao livro que conhecemos sob o título A preparação do Ator [An Actor Prepares]. Stanislávski reagiu bruscamente e disse: “Não mencione este livro para mim; E nunca o dê a um estudante.” Por um número considerável de anos, muitos de nós ouvimos a conversa absurda que Stanislávski queria parar, e vimos alguns dos efeitos paralisantes que ele temia. Já que não posso tratar aqui de todas as implicações do material terrivelmente volumoso que reuni, devo limitar minhas observações a algumas ilustrações pertinentes. Estas são, receio, típicas de um estado de coisas que fazem não só um estudante de primeiro ano, mas também outros que o deveriam conhecer melhor, identificar o Sistema de Stanislávski com “ter que ser um vaso”. Os exemplos que vou usar são, sem exceção, baseados em observação pessoal e não em ouvir dizer. Eu tenho que enfatizar isso porque alguns incidentes podem parecer tão incríveis para o leitor quanto eles foram para mim quando eu os experimentei. O caminho mais óbvio para contradizer as interpretações equivocadas seria citar os livros de Stanislávski. Por razões de espaço, no entanto, devo omitir muitas das citações que poderiam servir a este propósito. Percebo, com pesar, que esta omissão pode fazer das seguintes observações um tanto defasadas, uma vez que será dada mais atenção às distorções e suas consequências do que a uma apreciação dos méritos evidentes que os métodos de Stanislávski possuem. Lamento também que não seja possível descrever aqueles casos em que o uso do Sistema se baseou no bom conselho dado pelo próprio Stanislávski quando disse a Joshua Logan: “Se algo te empolga, use-o, aplique-o a vós mesmos, mas adapte-

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Magarshack, Stanislávski: Uma Vida, pp. 383 e ss.

o. Não tente copiá-lo. Deixe-o fazer pensar adiante.”7 O Group Theatre, o Actors’ Studio e vários outros exemplos poderiam ser citados para mostrar como esse “pensar adiante” pode ser feito construtivamente. Os mal-entendedores também “pensaram adiante”, mas, infelizmente, nem sempre na direção certa. O que me permitiu chegar a algumas conclusões sobre qual pode ser a direção certa, foi uma experiência pessoal que eu aprecio mais do que muitas outras experiências no teatro. Tive a sorte de assistir a vinte e oito apresentações do Teatro de Arte de Moscou, entre elas Ralé [The Lower Depths], Tio Vânia [Uncle Vanya], O Jardim das Cerejeiras [The Cherry Orchard], As Três Irmãs [Three Sisters], Os Irmãos Karamazov [The Brothers Karamazov] e Hamlet. Algumas das peças mencionadas eu vi várias vezes.8 Esta experiência verdadeiramente inesquecível me fez entender, em termos mais eloquentes do que os próprios escritos de Stanislávski, o significado do chamado Sistema. Por ter assistido a sua consumação sobre o palco, diante de um público, significa reconhecer o quão correto estava Stanislávski quando ele escreveu: “A vantagem de meus conselhos para você é que eles são realistas, práticos, aplicáveis ao trabalho em questão; eles foram testados sobre o palco ao longo de décadas de experiência de atuação, e eles produzem resultados.”9 Eles certamente produziram – ou seja, no Teatro de Arte de Moscou. Vejamos o que resultou, pelo menos em alguns casos, dos conselhos de Stanislávski nos Estados Unidos. Numa aula de atuação, uma aluna estava apresentando um dos discursos de Lady Macbeth. Depois que ela terminou, seguiu-se a discussão habitual. Neste caso, seus resultados foram inconclusivos, uma vez que nenhum acordo poderia ser alcançado sobre o que exatamente a atriz tinha tentado transmitir aos seus

Joshua Logan, “Introdução”, em Stanislávski, A Construção da Personagem, p. xv. Minhas impressões são baseadas nas seguintes montagens do Teatro de Arte de Moscou: Hamlet, Ralé; O Jardim das Cerejeiras; As Três irmãs; Tio Vânia; Os Irmãos Karamazov; Violinos de Outono [Autumn Violins] (de Ilya Surgutchev); Nos portões do Reino [At the Gates of the Kingdom] (de Knut Hamsun); No aperto da vida [In the Grip of Life] (de Knut Hamsun); Até mesmo o homem sábio tropeça [Even a Wise Man Stumbles] (de Alexander Ostrovski); E uma “Noite Literária” [“Literary Evening”] composta de peças de um ato, cenas solo e seleções de várias peças. 9 Stanislávski, A Construção da Personagem, p. 239. 7 8

ouvintes. A explicação que lhe foi eventualmente pedida para fornecer também não satisfez seus colegas. Quando todos ficaram insistindo que suas intenções não haviam sido encontradas, Lady Macbeth finalmente disse: “Não me importo; Eu senti.” As implicações deste incidente, por mais insignificante que possa ser em si mesmo, toca o próprio cerne do problema, uma vez que indica as raízes das interpretações errôneas que estou tentando apontar. Um dos elementos fundamentais do teatro é descartado impaciente e desdenhosamente, nomeadamente a comunicação. O resultado não é apenas uma negação do próprio conceito de teatro, mas também uma atitude, difundida entre os mal interpretadores, que eu proponho chamar de atitude “Para-o-Inferno-Com-oPúblico”. Poder-se-ia citar numerosas passagens dos escritos de Stanislávski, todas demonstrando claramente sua preocupação ininterrupta com métodos e técnicas unicamente relacionadas à tarefa do ator de comunicar a vida interior do personagem para o público e, além disso, testemunhando a grande consciência do diretor da função criativa do público no teatro. Stanislávski não gostava do cinema “porque destrói essa comunicação direta entre o ator e o público”. Por essa mesma razão, ele considerou o filme como uma máquina que “mata o que é mais importante e mais raro em nossa arte”.10 Ele expressou seu ponto de vista numa declaração inequívoca: “O espectador, bem como o ator, é um participante ativo numa apresentação”.11 O biógrafo de Stanislávski, David Magarshack, destacou o importante papel que a comunicação desempenhou dentro do Sistema: A teoria de atuação de Stanislávski se ocupa, de modo bastante apropriado, com a elucidação dos problemas que incidem diretamente sobre os modos pelos quais o ator pode penetrar os sentimentos de seu personagem. Mas uma vez que o teatro é uma arte na qual várias pessoas estão engajadas em recriar “a vida do espírito humano” sobre o palco, não é menos importante que o ator seja capaz de comunicar os sentimentos do personagem que ele está representando. Ele deve, além disso, ser capaz de entender o que está passando nas mentes dos outros personagens da peça quando dizem algo. A transmissão do pensamento, portanto, desempenha um papel essencial na técnica do 10 11

Magarshack, Stanislávski: Uma Vida, p. 389. Stanislávski, A Construção da Personagem, p. 259.

ator, tanto mais que o público também deve ser capaz de entender o que está passando na mente dos personagens da peça, tanto quando eles dizem algo como quando estão em silêncio. Portanto, a comunicação constitui um elemento importante da psicotécnica do ator.”12

Um dos alunos de Stanislávski, M. A. Chekhov, discutindo os métodos de seu professor, escreve o seguinte: Atuar para si mesmo é mergulhar na contemplação dos próprios sentimentos e ações. É um tipo particularmente irritante de atuação para o público, uma vez que o deixa mistificado e fora dela. É o tipo favorecido por certos artistas, embora muito sinceros, que estão mais interessados em suas próprias contorções emocionais do que na cena em si.13

Infelizmente, há diretores que incentivam esse tipo de atuação. Um estudante uma vez me contou da verdadeira provação a que ele foi submetido ao ensaiar sob a direção de um devoto professado do Sistema de Stanislávski. Sempre que o jovem ator queria saber se havia conseguido comunicar uma determinada cena, ou um discurso, ou uma parte de tudo, recebia a resposta impaciente: “Não se preocupe com isso – apenas sinta.” Desta forma, o diretor, sem dúvida, queria aplicar a mais abusada de todas as frases, “viver o papel”. Uma vez que se espera que o ator “viva” sobre o palco e não “Atue”, tudo com o que ele tem que se preocupar é com sua experiência interior. Stanislávski alguma vez confundiu “viver o papel” com “viver”? Sua perene busca pela verdade no palco implica que ele concebeu essa verdade como sendo idêntica à verdade da vida? De modo algum. “A verdade cênica não é como a verdade na vida; ela é peculiar a si mesmo”, escreveu ele.14 Ele percebeu que no palco “é preciso fazer coisas ... que na vida real não são verdadeiras”.15 Ele sabia que isso era necessário “para que a verdade pudesse atravessar as luzes da ribalta”.16 Não a verdade para seu próprio

David Magarshack, “Introdução.” em Stanislávski sobre a Arte do Palco [Stanislavsky on the Art of the Stage] (London, 1950), p. 58. 13 M. A. Chekhov, “O Método de atuação de Stanislávski.” [“Stanislavsky's Method of Acting.”] em Atuação: Um Manual do Método de Stanislávski [Acting: A Handbook of the Stanislavsky Method], ed. Toby Cole (Nova Iorque, 1947), p.108. 14 Stanislávski, Minha Vida na Arte, p. 466. 15 Ibid,. p. 174. 16 Ibid, p. 174. 12

bem, mas a verdade a ser comunicada para o público. A comunicação, com certeza, só pode ser alcançada através de uma forma exterior. “Você deve tornar sua experiência invisível visível aos meus olhos”, escreveu Stanislávski;17 e de novo: “Sem uma forma exterior, nem a tua caracterização interior, nem o espírito da tua imagem irá alcançar o público”.18 Muito longe, na verdade, de dizer ao ator: “Apenas sinta”. Contudo, essa atitude, muito estranhamente, foi encorajada por professores cuja autoridade, em alguns casos, é fortalecida pelo fato de que eles estiveram em algum momento associados ao Teatro de Arte de Moscou. Alguns anos atrás, eu assisti a uma palestra dada por um dos instrutores na escola da falecida Madame Ouspenskaia em Los Angeles.19 Antecipando revelações, eu me sentei, bloco e lápis prontos. O que eu ouvi superou minhas expectativas mais selvagens. Entre os vários pronunciamentos que anotei literalmente, estava o seguinte: “Não queremos expressar emoções, só queremos originá-las”. Alguém pode se permitir perguntar: com que finalidade? Outra anotação foi a seguinte: “O ator não está aqui para dar, mas para receber”. Suponho que há apenas um tipo de atividade teatral onde essa filosofia, de outra forma perversa, se justifica: o teatro terapêutico. Ninguém negará suas possibilidades benéficas, especialmente em vista das experiências altamente bem-sucedidas e realizadas em nossos hospitais de veteranos.20 Sob tais circunstâncias excepcionais, pode-se perguntar se o termo “ator” ainda é aplicável em uma situação deste tipo – não está realmente aqui para dar, mas para receber, mas dificilmente no teatro. A confusão resultante deste tipo de má-interpretação tem tido consequências perturbadoras. O ator mal orientado irá agir por si mesmo, no sentido de que ele avalia sua participação em uma peça unicamente de acordo com

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Stanislávski, A Construção da Personagem, p. 267. Ibid., p. 3. 19 A palestra se deu em 29 de novembro de 1948. 20 Cf. Catherine H. Santa Maria, “Uma nova oficina: O Hospital VA” [“A New Workshop: The VA Hospital”], Jornal Teatro Educativo, III [Educational Theatre Journal, III] (Outubro de 1951), 207 e ss. Ver também J. L. Moreno. O Teatro da Espontaneidade [The Theatre of Spontaneity] (Nova Iorque, 1947). 18

o benefício pessoal que pode derivar disso. Para piorar as coisas, há diretores que se sentem encorajados a nem considerar seu próprio trabalho de outra maneira. Há alguns anos atrás, fui ocasionalmente convidado para participar das reuniões de um grupo de jovens atores que tinham acabado de começar com êxito o estabelecimento de uma companhia de repertório permanente em uma grande cidade. Um dia, uma reunião foi convocada para tratar da seguinte emergência: depois de ensaiar uma das peças de Ibsen por mais de três semanas, o diretor saiu de repente. Para justificar sua surpreendente decisão, ele explicou que não sentia vontade de montar essa peça em particular nesse momento. As repetidas tentativas de lembrar o jovem egoísta de suas obrigações para com os membros do elenco, em relação ao grupo como um todo, e em relação ao público, revelaram-se fúteis. O diretor descobrira que a peça de Ibsen não podia, no momento, contribuir para a solução de seus problemas pessoais; portanto, pra longe com ela! Depois da atitude “Para-o-Inferno-Com-o-Público”, mencionada anteriormente, agora temos a atitude “Para-o-Inferno-Com-a-Peça”. A história pode ser contada para fornecer uma variação sobre o tema ouvido na escola de Ouspenskaia, uma vez que, neste caso, o diretor obviamente não estava aqui para dar, mas para receber. Enfatizando que a comunicação é conseguida por uma forma externa, Stanislávski nunca se cansa de apontar que para atingir essa forma o ator precisa de “técnica exterior”.21 Logicamente, onde não há preocupação com a comunicação, não pode haver preocupação com a técnica exterior, seus fundamentos, fala e movimento. No entanto, o livro de Stanislávski A Construção da Personagem é dedicado quase inteiramente a uma discussão detalhada destes mesmos fundamentos que – hesita-se em proferir um truísmo como este – têm sido considerados por séculos como as pedras angulares do ofício do ator.22 Os mal entendedores, por outro lado, parecem nos dizer para usar a conhecida fala de

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Cf. Stanislávski. A Construção da Personagem. pp. 263 e ss. Ver especialmente os Capítulos I, II, III, IV, V, VII, VIII, e IX, de A Construção da Personagem.

um dos médicos de Molière: “Nós tivemos que mudar tudo isso.” 23 Eu suspeito que uma das motivações para fingir ter mudado tudo o que pode ser o desejo, talvez nem mesmo consciente, seja para esconder o diletantismo e a incompetência atrás de uma cortina de fumaça de desinformação meio digerida. Técnica exterior implica controle, um fato do qual Stanislávski estava muito consciente. Assim, ele provou mais uma vez que não confundiu “viver o papel” com “viver”. As citações a seguir de seus escritos podem servir como ilustrações: “Eu me dividi, por assim dizer, em duas personalidades. Um continuava como ator, o outro era um observador. Curiosamente, esta dualidade não só não impediu, mas na verdade promoveu meu trabalho criativo. Ela encorajou e deu ímpeto a ele”.24 “Quanto maior o comedimento e o autocontrole que o ator exerce nesse processo criativo, mais clara será a forma e o desenho de seu papel e mais poderoso seu efeito sobre o público”.25 Para enfatizar a dualidade essencial do ator, Stanislávski cita a declaração de Tommaso Salvini: “Um ator vive, chora, ri sobre o palco, mas conforme ele chora e ri ele observa suas próprias lágrimas e alegria. É essa dupla existência, esse equilíbrio entre a vida e a atuação que faz a arte.”26 A necessidade de empregar técnicas exteriores exige que o ator se torne um artesão superior. Não é necessário ressaltar que Stanislávski estava plenamente consciente da importância da artesania no teatro. “Não há arte que não exija virtuosismo”, escreveu ele; e acrescentou: Não há nenhuma medida final para a plenitude desse virtuosismo. O pintor francês Degas disse: “Se você possui cem mil francos de artesanato, gaste cinco centavos para comprar mais.” Esta necessidade pela aquisição de experiência e artesania é especialmente evidente na arte do teatro.27

E de novo:

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Molière, O Médico à Força [Le Médecin Malgré Lui], II. 4; Obras completas, edição da Pléiade (Paris, s.d.), II, 132. A frase completa aplicável inteiramente ao presente assunto, diz o seguinte: “Sim, era uma vez assim; mas nós tivemos que mudar tudo isso, e nós agora estamos mantendo a medicina com um método totalmente novo.” 24 Stanislávski. A Construção da Personagem. p. 19. 25 Ibid., p. 72. 26 Ibid., p. 167. 27 Stanislávski, Minha Vida na Arte, p. 570.

...a criatividade do ator deve vir de dentro, enquanto sua voz e seu corpo permanecerem instrumentos obedientes nas mãos certas de um virtuoso. Há problemas quando um violino tem um tom falso. Não importa o quão bem o violinista sinta, ele não consegue interpretar o que sente.28

Contudo, há professores que, abusando do nome de Stanislávski, encorajam o desrespeito da técnica exterior. Em uma montagem universitária que eu assisti vários anos atrás, a menina que representava o papel principal manteve-se gritando no limite de sua voz durante toda a peça. Quando mais tarde o diretor me perguntou o que eu achara da apresentação, eu não pude deixar de mencionar os gritos irritantes e monótonos da jovem. A resposta que recebi deste orgulhoso seguidor de Stanislávski foi tão desarmante que me atordoou em silêncio: “Sim, não foi horrível?”, disse ele. Nos livros de Stanislávski, no entanto, ele poderia ter encontrado os seguintes comentários pertinentes: Não tome como seus modelos os atores que pensam que estão mostrando poder quando estão apenas berrando. Berros não são poder, são só barulho e gritos.29 Quanto aos berros enquanto tal, não há praticamente nenhum uso para eles no palco. Na grande maioria dos casos, não servem senão para enganar aqueles que não entendem de arte.30

Outro diretor, também conhecido por aderir ao método de Stanislávski, discutiu comigo sua montagem de um drama do século XIX que, frequentemente e por razões válidas, foi considerado precursor do expressionismo no teatro. Quando observei que, na minha opinião, o estilo peculiar e agitado da peça tinha sido obscurecido por um tratamento naturalista e tranquilo aplicado tanto à fala quanto ao movimento, recebi a resposta: “Eu sei, mas não quis interferir.” As duas histórias, além de revelar um desprezo generoso por detalhes incômodos como a fala e o movimento, ou seja, de técnica exterior, também implicam uma visão um tanto estranha da função do diretor no teatro. O diretor,

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Ibid., p. 70. Stanislávski, A Construção da Personagem, p. 140. 30 Ibid., p. 141. 29

ao que parece, não deve dirigir. Se os atores gritarem, deixe-os gritar! Se eles não conseguem captar o estilo da peça, não interfira! E se, como resultado de tal falta de direção, o público abandona a sua montagem, não se culpe; culpe o mau gosto do público e sua incapacidade para apreciar um teatro realmente bom. Um jovem diretor me contou uma vez alegremente e com um ar de indisfarçada superioridade que metade do público tinha deixado o teatro depois do segundo ato de sua montagem de uma peça de George Bernard Shaw. Sugeri cautelosamente que, ao invés do público, certos aspectos da apresentação poderiam ser responsabilizados pela situação embaraçosa. No decorrer da discussão que se seguiu, usei a palavra “entretenedor” [“showmanship”]. Houve um silêncio constrangedor e a expressão nos rostos ao meu redor me fez perceber que eu tinha usado um palavrão. Ao sugerir algo tão baixo como “entretenedor”, eu tinha provado sem qualquer dúvida que meus pontos de vista estavam quase a par com aqueles mantidos pelo gerente de um espetáculo burlesco.31 Uma consequência adicional da argumentação de que o diretor não deve dirigir é a noção de que ele não deve planejar sua marcação, uma vez que, ao fazêlo, ele sufocaria a criatividade do ator. Assistindo ao ensaio de uma montagem universitária, percebi com surpresa que, precisamente dois dias antes da noite de estreia, a marcação de algumas cenas não tinha sido trabalhada. Várias vezes, os atores foram obrigados a parar o ensaio, a fim de chegar a um apressado acordo sobre quais cadeiras eles iriam usar em seguida. O diretor, de modo algum um principiante inexperiente, mas um devoto do que ele pensava ser o Sistema de Stanislávski, não interferiu, mas observou com aparente satisfação a desordem criativa no palco.

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Stanislávski não foi só um excelente apresentador [“showman”], mas também estava bastante disposto a empregar o que ele mesmo considerava truques “envelhecidos” e “baratos”, contanto que contribuíssem para a eficácia de uma cena; Cf. A Gaivota dirigida por Stanislávski [The Sea Gull Produced by Stanislavsky], ed. S. D. Balukhaty, trad. David Magarshack (Londres, 1952), p. 283.

Felizmente, os próprios métodos de direção de Stanislávski podem ser estudados não apenas em alguns de seus livros, mas também em numerosas descrições reveladoras escritas quer por seus colaboradores ou por visitantes que foram autorizados a assistir aos ensaios. Enquanto este não é o lugar para analisar suas técnicas em detalhes, elas podem ser resumidas afirmando que ele planejou a marcação para suas montagens; que ele “interfere” com seus atores; que ele não só sugeriu, mas até demonstrou movimentos e gestos; em resumo, que sendo um diretor, ele dirigiu. A evolução do método de direção de Stanislávski foi de seus primórdios como um “produtor-autócrata” que praticamente transformou seus atores em fantoches32, para a abordagem que podemos estudar em seu roteiro de diretor publicado para A Gaivota [The Sea Gull]33, e finalmente, até o momento em que ele geralmente se abstém de escrever seu plano de montagem. “Isso não significa,” nos assegura Norris Houghton, “que a montagem pode seguir seu próprio curso. Durante todo o período anterior, ele teve em mente o padrão de sua peça; ele deve ter pensado todos os problemas de movimento e emoção com antecedência, se ele deve ser de alguma ajuda para os seus atores afinal. Contudo, isso tudo ele carrega em sua mente. Não há nada no papel.”34 Quão precisamente o padrão de uma montagem foi estabelecido em sua mente torna-se muito claro quando se estuda o plano de direção de Othello, que deve sua existência a circunstâncias nas quais Stanislávski foi mais uma vez obrigado a consignar suas ideias no papel.35 Longe de adotar a estranha atitude expressa pelo diretor que não queria “interferir”, Stanislávski continuamente fez exatamente isso. “Quando os ensaios são realizados no palco, o diretor está constantemente lá com os atores, ele não fica na frente. Ao longo desse período, ele parece estar apenas tentando ajudar os 32

Magarshack, Stanislávski: Uma Vida. p. 174. Cf. nota 31, acima. 34 Norris Houghton, Ensaios em Moscou: Um Relato dos Métodos de Montagem no Teatro Soviético [Moscow Rehearsals: An Account of Methods of Production in the Soviet Theatre] (Nova Iorque, 1936), p. 78. 35 Cf. Stanislávski dirige Othello [Stanislavsky Produces Othello], trad. Helen Nowak (Londres, 1948). 33

atores. Ele caminha com eles sobre o palco, sussurra sugestões para atiçar sua imaginação.36 Essas sugestões estavam principalmente relacionadas com as ações físicas; nunca com os estados psicológicos ou emoções”. “Se sugerir que (o ator) faça certos movimentos e então pedir a ele para que sinta conforme ditam esses movimentos, talvez você chegue a uma combinação mais verdadeira de psicologia e ação.”37 Stanislávski estava bem ciente de que a demonstração pode ser uma ferramenta valiosa para o diretor. Pode consistir de mera sugestão: “Só uma ligeira mudança de postura e sua enorme figura de repente se transformava.”38 No entanto, a demonstração também pode tornar-se bastante explícita, como aconteceu em um ensaio de ópera onde Stanislávski mostrou aos cantores “partes do movimento.”39 Em resumo, ele nunca negou a função ativa do diretor no teatro: “A criação coletiva na arte sem uma mão finalmente dominante é impossível e o Teatro de Arte sabe disso”.40

Com o episódio a seguir, pode-se ilustrar para quais situações cômicas, até mesmo farsescas, a leitura equivocada do pensamento de Stanislávski pode conduzir. Acerca do começo dos ensaios para uma montagem da universidade, o diretor emitiu um decreto proibindo os membros do elenco de assistir a qualquer das cenas nas quais eles não apareciam de fato. Pois, se o fizessem, argumentava ele, se tornariam conscientes de participar de uma peça teatral e, consequentemente, seriam impedidos de realizar a tarefa de “viver o papel”. Anunciando esse novo procedimento, o diretor indubitavelmente sentiu que ele agira em sincera concordância com a afirmação frequentemente citada de Stanislávski: “Eu comecei a odiar o teatro no teatro”.41 No entanto, aparentemente nunca lhe ocorreu que, ao desestanislavskizar Stanislávski [by thus outStanislavskying Stanislavsky], ele transformou um princípio sólido em nonsense

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Houghton, op. cit., p. 77. Ibid., p. 74; para informações detalhadas sobre o Método de Ações Físicas, ver K. S. Stanislávski, W. Prokofiev, V. Toporkov, B. Sachawa, G. Gurjiev, Der schauspielerische Weg zur Rolle; Fuenf Aufsaetze ueber Stanislawskis “Methode der physischen Handlungen”, trad. B. Ensslen, K. Fend, K. A; Paffen (Berlim, 1952); E W. Toporkow, K.S. Stanislawski bei der Probe, trad. Karl Fend (Berlim, 1952). 38 Magarshack, Stanislávski: Uma Vida. p. 376. 39 Honghton, op. cit., p. 84. 40 Ibid., p. 79. 41 Stanislávski, Minha Vina na Arte, p. 207. 37

hilariante. Não havia necessidade desse discípulo em particular provar que ele odiava o teatro no teatro, pois, por um tour de force de rara destreza, ele tinha conseguido obliterar completamente o teatro. Além disso, se ele tivesse ouvido a voz de seu mestre mais cuidadosamente, ele teria ouvido a seguinte declaração: “Nós odiamos o teatro no teatro, adoramos o cenário sobre o palco. Essa é uma tremenda diferença.”42 Além disso, no ensaio de Stanislávski sobre Ética, ele teria encontrado uma passagem que despreza os atores que, durante o período de ensaios, não prestam atenção às cenas em que não aparecem.43 Além de perverter o pensamento de Stanislávski, os auto professados discípulos têm fomentado em seus companheiros adoradores uma atitude de arrogância que eu tive o privilégio duvidoso de observar mais de uma vez. A experiência a seguir pode novamente servir como uma ilustração. Respondendo à pergunta de um estudante relativa aos métodos de treinamento teatral na Europa, expliquei certa vez para uma turma que o Sistema de Stanislávski era pouco conhecido no exterior, uma vez que a maioria de seus livros não estavam disponíveis em traduções.44 Ao obter esta informação, o estudante observou, com uma careta que não tentou esconder: “Então a atuação na Europa deve ser bastante exterior.” Assim, o que pode ser chamado de a Grande Tradição da atuação foi arrogante e ignorantemente deixado de lado em uma frase dita por um jovem que se imaginava um seguidor de Stanislávski. Betterton e Garrick, Lekain e Talma, Rachel e Salvini, Duse e Coquelin, para não mencionar os inúmeros atores de 

Uma façanha. Em Francês no original. [N.T.] Ibid., p. 245. 43 Na pertinente passagem, Stanislávski (ridiculariza os atores “cuja atitude em relação a seu trabalho carece de compreensão a tal ponto que eles escutam durante os ensaios apenas às observações que imediatamente dizem respeito a seus próprios papéis.Cenas em que eles não aparecem são completamente negligenciados por eles.” Cf. K. S. Stanislávski, Ética [K. S. StanisIawski, Ethik], trad. Peter von Hamm (Berlim, 1950); minha tradução da passagem acima é baseada na versão alemã. Um resumo do ensaio de Stanislávski pode ser encontrado, sob o título Ética do Palco [Stage Ethics], como “Apêndice I” em Stanislávski Sobre a Arte do Palco [Stanislavsky on the Art of the Stage], pp. 287 e ss. (Ver nota 12). 44 A declaração seria errada hoje, mas estava inteiramente correta onze anos atrás, quando o incidente ocorreu [1943, portanto, uma vez que o artigo foi publicado pela primeira vez em abril de 1954. [N.T.]]. Naquela época, não existiam traduções dos escritos de Stanislávski, exceto as versões em inglês de A Preparação do Ator (1936) e Minha Vida na Arte (1938); e passagens selecionadas da autobiografia, traduzida ao Francês por Nina Gourfinkel e Leon Chancerel, e publicada com um prefácio de Jacques Copeau, sob o título, Ma Vie dans L'Art (Paris, 1934). 42

nossos dias que são incapazes de ler os escritos de Stanislávski – todos são “bastante exteriores”, já que esses presuntos miseráveis nunca foram iluminados pelo sistema! Sabe-se, por outro lado, que Stanislávski estudou com empenho as conquistas e os métodos dos grandes atores do passado, com essa humilde consciência dos valores tradicionais tão característicos da maioria dos reformadores.45 Os mal interpretadores, e não Stanislávski, também devem ser responsabilizados pela noção de que o Sistema é realmente aquele “em que você tem que ser um vaso”. Estudantes confusos vieram a mim perguntando por que lhes foi pedido por instrutores professando ensinar o método de Stanislávski para “serem” uma fatia de pão, uma maçaneta, um sorvete com refrigerante, uma chaleira e o que mais. Aqueles que não vieram foram presumivelmente convencidos de que eles tinham agora se juntado às fileiras dos iniciados. Uma vez eu vi um trabalho escrito como uma atribuição para uma aula de teatro e começava com as palavras: “Eu sou um geleira.” Eu não me aventurei mais naquele ensaio, embora eu não tenho dúvida de que teria sido recompensado por revelações fascinantes sobre os antecedentes da família da geleira, as visões políticas e a vida sexual. Não há nada nos escritos de Stanislávski – pelo menos na medida em que estes estão disponíveis em inglês, alemão ou francês – para apoiar essa macaquice perniciosa. A conhecida passagem de A Preparação do Ator, onde um dos alunos de “Tortsov” é convidado a “viver a vida de uma árvore” é, acima de tudo, um exemplo isolado;46 em segundo lugar, o contexto deixa claro que este exercício é usado simplesmente como um estimulante para a imaginação ou, para usar a

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Sobre o conhecimento e o interesse de Stanislávski pelos escritos de Luigi Riccoboni, Francesco Riccoboni, Talma, Clairon, Dumésnil, Eckhof e Iffland, ver Magarshack, Stanislávski: Uma Vida, p. 336 e ss.; o mesmo autor, em sua “Introdução” de Stanislávski Sobre a Arte do Palco, p. 86, enfatiza que “Stanislávski sempre alegou que seu sistema foi baseado em suas observações dos métodos de grandes atores”. 46 Stanislávski, A Preparação do Ator (Nova Iorque, 1936), pp. 61 e ss.

terminologia do Sistema, como uma alavanca para o mágico “se” de Stanislávski; por fim, a árvore, afinal, é uma coisa viva e não um objeto inanimado.47 Tais métodos, evidentes por seu próprio absurdo, fizeram mais do que qualquer outra coisa para desacreditar o Sistema de Stanislávski e expô-lo ao ridículo. Seja uma árvore, seja um trenó, Seja um carretel roxo de linha, Seja uma tempestade, um pedaço de fita, Um trem de metrô, um espaço vazio...

Estas linhas foram rabiscadas por Danny Kaye em uma danceteria de Nova Iorque há mais de dez anos atrás. A revista Time, citando-as em uma história sobre o célebre comediante, observou por meio de explicação que a canção era uma suposta brincadeira ao Sistema de Stanislávski, no qual os estudantes de teatro eram ensinados a fazer esse tipo de coisa. Essa noção dos métodos educacionais de Stanislávski era, de qualquer modo, tida como certa por Sylvia Kaye, que escreveu a letra, uma vez que ela escolheu como seu persuasivo título simplesmente o nome “Stanislávski”.48 Investigar se o próprio Stanislávski não poderia ter fornecido algumas das razões para as más interpretações que tentei indicar exigiria um estudo separado. Certos aspectos de sua teoria foram, de fato, criticados por diversos motivos e, em alguns casos, essa crítica tem se justificado. No entanto, há uma diferença entre

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É significativo achar que os seguidores sérios de Stanislávski estão refutando experiências errôneas ao longo destas linhas. Em um recente manual alemão de atuação, reconhecidamente baseado no Sistema de Stanislávski, o exemplo da árvore é discutido, apontado por um comentário de que não significa uma tentativa de “retratar uma árvore”. “Nós decididamente refutamos qualquer tipo de humanização da natureza. Também não representamos animais. Tais caminhos errôneos, com certeza, foram seguidos em algum dos estúdios de Stanislávski” (Ottofritz Gaillard, O Livro de Stanislávski Alemão: Livro de notas sobre atuação depois do Sistema de Stanislávski [Das deutsche Stanislawsky-Buch: Lehrbuch der Schauspielkunst nach dem Stanislawski-System], Berlim, 1946), p. 104. (minha tradução). O falecido Charles Dullin, discutindo o valor das imagens de animais para o desenvolvimento do ritmo corporal, adverte futuros professores: “Não permita que o aluno imite o gato, mas incentive-o a traduzir as imagens por uma plástica humana” [“Ne pas laisser l'éléve imiter le chat mais l'inciter à traduire les images par une plastique humaine”]; cf. Charles Dullin, Lembranças e Notas de trabalho de um Ator [Souvenirs et Notes de Travail d'un Acteur] (Paris, 1946), p. 118. 48 Time, (11 de março de 1946), p. 66.

uma análise séria, por um lado, e um feitiço de encantamento ou uma ridículamente irresponsável de outro.49 Ainda há outras circunstâncias que facilitaram a deturpação e o malentendido. Uma vez que os fatos pertinentes não são em geral conhecidos, pode ser útil examiná-los brevemente. A fonte primária para qualquer estudo das ideias de Stanislávski é, naturalmente, seus escritos. Estamos lendo o que ele queria que lêssemos? Receio que não estejamos, pois, seus livros foram apresentados ao público de língua inglesa num estado um tanto duvidoso pelo qual os tradutores, editores e Editoras devem compartilhar a culpa. Uma revisão superficial dos casos mais evidentes deve bastar. Stanislávski começou a escrever sua autobiografia, Minha Vida na Arte, durante sua estada nos Estados Unidos em 1923. Apressado por um contrato com sua Editora [norte-]americana, ele completou o livro dentro de alguns meses e sob condições que o levaram a relatar a um amigo: “...Eu sou forçado a escrever coisas que não teria escrito em circunstâncias normais.”50 Seu biógrafo nos conta que ele “... passou mais de um ano sobre sua edição russa e tão completamente revisada que quando foi publicada em 1925, era praticamente uma obra diferente.” 51 O que alguns de nós temos lido, portanto, não é o que o próprio Stanislávski considerou a versão final de sua autobiografia. A Preparação do Ator,52 o mais lido e usado dos livros de Stanislávski, é um mero fragmento. Além disso, a obra completa, publicada na Rússia após a Em sua “Introdução” a Stanislávski Sobre a Arte do Palco, Magarshack observa (p.86): “O principal erro dos críticos de Stanislávski é atribuir-lhe uma rigidez de método que ele mesmo denunciou. Isto é principalmente devido aos seguidores de Stanislávski que, ao ensinar seu sistema, não podiam ver a madeira para as árvores. Mas é injusto prender Stanislávski aos erros de seus seguidores, a quem ele mesmo repetidamente condenou”. Para uma crítica séria do Sistema, ver Theodore Komisarjevsky, Eu e o Teatro [Myself and the Theatre] (Nova Iorque, 1930), pp. 134 e ss. Nicolas Evreinoff, História do Teatro Russo [Histoire du Théâtre Russe] (Paris, 1947), pp. 3066 e ss; Edwin Duerr, “Stanislávski e a Ideia” [“Stanislavsky and the Idea”] em Estudos do Discurso e do Teatro [Studies in Speech and Drama], em Honra de Alexander M. Drummond (Ítaca, N. I., 1944), pp. 31 e ss. 50 Magarshack, Stanislávski. Uma vida, p. 367. 51 Ibid., p. 368. Incapaz de ler russo, congratulei-me com a oportunidade de verificar esta afirmação examinando a tradução alemã recentemente publicada da versão final da autobiografia de Stanislávski, Minha Vida na Arte [Mein Leben in der Kunst], trad. Klaus Roose (Berlim, 1951); comparado a Minha Vida na Arte [My Life in Art], é de fato “uma obra diferente”. 52 Ver nota 46. 49

morte de Stanislávski em 1938, ou seja, dois anos depois de A Preparação do Ator, tem um título totalmente diferente, a saber, O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: O Trabalho Sobre Si Mesmo no Processo Criador das Vivências [Actor and Self: Personal Work in the Creative Process of Re-Living].53 O texto é quase três vezes mais extenso do que o livro que temos lido sob o título A Preparação do Ator. No prefácio, Stanislávski esboça seu planejado tratado de atuação, que consistiria em três partes. Ele enfatiza que o presente volume trata simplesmente do trabalho preparatório do ator e não dos problemas de ensaio e apresentação. Quanto a esta limitação obviamente muito importante, até mesmo o título incorreto da versão disponível em inglês deveria fornecer uma pista, uma vez que se lê A PREPARAÇÃO do Ator, e não A ATUAÇÃO do Ator. Estou convencido de que muitas das atuais más interpretações do Sistema de Stanislávski foram causadas pelo fracasso, por parte dos leitores excessivamente zelosos, em perceber o significado dessa distinção. Se tomarmos a primeira parte do trabalho de Stanislávski, numa versão incompleta dele, como representando todo o Sistema, estamos limitados a entender erroneamente todo o padrão cuidadosamente planejado por seu criador. Hipnotizado pelo que Stanislávski tinha a dizer sobre o trabalho preparatório do ator, que naturalmente não diz respeito aos problemas da apresentação, os alunos são iludidos a estar preocupados com o “Si”, ao passo que negligenciam a importantíssima relação entre ator e público. Portanto, acredita-se que a comunicação e seus fundamentos, a técnica exterior, sejam irrelevantes. Esta noção, embora inteiramente ausente do pensamento de Stanislávski, teve consequências sombrias e é em grande parte responsável pela deturpação de seu Sistema. Indicativo da confusão resultante são atitudes como a do instrutor que afirma que “Nós não queremos expressar 53

A versão final autêntica está disponível em alemão com o título: O Segredo da Atuação Bem Sucedida [Das Geheimnis des schauspielerischen Erfolges], trad. Alexandra Meyenburg (Zurique, s.d.). Se os direitos puderem ser liberados, ele poderá eventualmente estar disponível numa versão em inglês preparada pelo Sr. John W. Volkoff, Berkeley, Califórnia, que teve a gentileza de colocar à minha disposição não apenas uma cópia escrita de sua tradução, mas também numerosas notas que ajudaram a esclarecer os problemas envolvidos.

emoções, só queremos originá-las”; do diretor que diz ao ator: “Apenas sinta”; e a correspondente atitude da atriz que “não se importa” se a emoção que ela tentou transmitir atingiu seu público já que ela “sentiu”. Parte do material que Stanislávski queria incluir nos restantes dois volumes de seu tratado foi publicado nos Estados Unidos sob o título A Construção da Personagem.54 Tendo em conta a importância deste material, verificamos com pesar que os métodos editoriais empregados na sua publicação deixaram muito a desejar. Além de uma ligeira referência na “Nota Explicativa” do tradutor, no sentido de que a tarefa editorial “consistiu principalmente em escolher entre as várias versões dos capítulos que lhes haviam chegado”,55 não recebemos qualquer informação sobre as fontes exatas do Conteúdo do livro. Indicativo de uma surpreendente falta de cuidado editorial é o capítulo chamado “Rumo a uma Ética do Teatro”.56 Este se torna uma interpretação incompleta dos vários rascunhos para um ensaio com o título Ética, que Stanislávski começou a escrever em 1908 e sobre o qual ele ainda estava trabalhando durante sua última doença em 1938. De acordo com os editores russos, o ensaio foi originalmente concebido como um capítulo de O Trabalho do Ator Sobre Si mesmo. No entanto, Stanislávski considerou-o tão importante que ele decidiu removê-lo de seu tratado sobre a atuação e tratar do assunto em um livro separado.57 Outra publicação disponível em inglês, Stanislávski Sobre a Arte do Palco, apesar de editada pelo biógrafo de Stanislávski, David Magarshack, não é inteiramente confiável.58 Acima de tudo, o autor das principais partes do livro, intitulado “O Sistema e os Métodos da Arte Criativa” [“The System and Methods of Creative Art”] e “Cinco Ensaios de ‘Werther’” [“Five Rehearsals of ‘Werther’”] respectivamente, não é, como esta publição faria acreditar,

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Ver nota 3. Stanislávski, A Construção da Personagem, p. ix. 56 Ibid., pp. 242 e ss. 57 Anuário do Teatro de Arte de Moscou, 1944, (Moscou, 1946), I, 25 ss. Uma tradução alemã do ensaio completo está agora disponível; Ver nota 43. 58 Ver nota 12. 55

Stanislávski, mas a cantora K. Antarova, que baseou seu livro nas notas tomadas durante sua participação nas aulas de atuação de Stanislávski entre 1918 e 1922, e durante os ensaios para a montagem do estúdio de Stanislávski da ópera de Massenet. Não só o nome da autora foi omitido, mas também dois capítulos inteiros, um deles contendo uma vívida descrição dos métodos de trabalho de Stanislávski.59 A triste conclusão é que nem os tradutores, nem os editores, nem as Editoras facilitaram para que seguíssemos a linha de raciocínio de Stanislávski. Além disso, como já indicado anteriormente, o próprio Stanislávski às vezes também não é muito útil. Seus livros contêm inconsistências ocasionais e aplicações enigmáticas de termos estéticos e psicológicos. Por certo, seu biógrafo nos conta que “ele frequentemente mudou suas ideias sobre a importância de certos elementos de seu sistema.”60 No entanto, as suposições básicas sobre as quais ele baseou seus métodos são sólidas. Na verdade, o Sistema não é nem uma revelação, nem um absurdo. Conforme observou Norris Houghton, ele é “realmente só uma codificação consciente de ideias sobre a atuação, as quais sempre foram propriedade da maioria dos bons atores de todos os países, saibam eles ou não”.61 Mesmo Theodore Komisarjevsky, que refuta completamente o Sistema, escreveu: ...Quaisquer que sejam os erros que Stanislávski tenha conduzido para suas teorias, ele ainda assim por meio de seu sistema estabeleceu a pedra fundamental para a construção futura de uma verdadeira expressão interior da arte do palco e erigiu certos marcos que todo ator genuíno tem que seguir, se ele não quer ser um mero palhaço fazedor de caretas.62 Além da “Introdução” de David Magarshack, que fornece uma excelente avaliação de todo o Sistema, material adicional está incluído em dois Apêndices; o primeiro é um resumo do ensaio de Stanislávski sobre Ética (ver nota 43); o segundo, composto por trechos das reminiscências de N. Gorchakov, um dos diretores do Teatro de Arte de Moscou, sob o título Melodrama: Uma Improvisação de Stanislávski [Melodrama: A Stanislavsky Improvisation]. O livro de K. Antarova está disponível em alemão sob o título Trabalho de estúdio com Stanislávski: Trinta conversas sobre o sistema e os elementos do trabalho criativo e cinco conversas sobre o trabalho e a ópera “Werther” de Massenet [Studioarbeit mit Stanislawski: Dreissig Gespraeche ueber System und Elemente schoepferischer Arbeit und fuenf Gespraeche ueber die Arbeit und der Oper "Werther" von Massenet], trad. Peter von Hamm (Berlim, 1950). 60 Magarshack, Stanislávski: Uma Vida, p. 380. 61 Houghton, op. cit., p. 57. 62 Citado por Magarshack, em sua “Introdução” em Stanislávski Sobre a Arte do Palco, p. 84. 59

Durante uma palestra demonstração dada na recente Conferência da Seção do Sul da Califórnia da Associação Americana de Teatro Educacional[Conference of the Southern California Section of the American Educational Theatre Association], alguns dos participantes foram convidados a improvisar uma cena Subindo a plataforma, um dos atores voluntários, o presidente de um departamento de arte dramática em uma distinta instituição de ensino superior, virou para o público com a piada: “Qual é o meu universo anterior, será que eu posso eu ser o próprio Stanislávski nisso?” Uma risada ruidosa foi a resposta a essa observação irreverente. Pode-se questionar, no entanto, se é realmente divertido ver o nome de um artista tão eminente e consequente quanto Constantin Stanislávski primeiro transformar-se em motivo de chacota para o benefício do risinho de clientes de clubes noturnos; e então ser tomado como deixa para uma boa gargalhada provinda de uma plateia composta de professores de arte dramática. Devemos permitir que reações como essas se tornem as consequências da verdade de Stanislávski? Devemos permitir que essa seja a carreira da memória de Stanislávski nos Estados Unidos? “Uma boa ideia, mal apresentada, morre por um longo tempo”, escreveu ele.63 Sua boa ideia foi tão mal apresentada que parece estar moribunda. No entanto, não devemos permitir que ela morra sob as mãos ocupadas de seus mal interpretadores. Stanislávski tornou-se na verdade, como disse Michael Redgrave, “o tema de uma discussão tão violenta, de uma adoração mística, de uma antipatia totalmente irracional ou de uma elevada indiferença suspeitosa, que é difícil fazer com que as pessoas olhem para os fatos do caso”.64

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Stanislávski, Minha Vida na Arte, p. 438. Michael Redgrave, “O Mito Stanislávski” [“The Stanislavsky Myth”], em Atores sobre Atuação: As Teorias, Técnicas e Práticas dos Grandes Atores de Todos os Tempos como Dito em suas Próprias Palavras [Actors on Acting: The Theories, Techniques, and Practices of the Great Actors of All Times as Told in Their Own Words], ed. Toby Cole e Helen Krich Chinoy (Neova Iorque, 1949), p. 386.

Poucos dias antes da morte de Stanislávski, um dos diretores do Teatro de Arte foi até sua casa para perguntar sobre sua saúde. A porta do quarto estava aberta e o visitante viu Stanislávski sentado em sua cama, amparado em travesseiros altos. Seus olhos estavam fechados e, respirando pesadamente, soltou algumas frases. Isto é o que o visitante ouviu: “Silêncio! Eu não acredito! Não consigo ouvir suas palavras! Repita isso!”65 Assim, como que num último esforço, Stanislávski tentou resumir sua crença artística: “Não acredito!”– sua busca persistente pela verdade e sinceridade na atuação; “Não consigo ouvir suas palavras!” – sua incansável preocupação com a comunicação e seus fundamentos, a técnica exterior; “Repita!” – sua devoção fanática ao trabalho, trabalho e mais trabalho. Estes, de modo geral, são os elementos fundamentais do sistema de Stanislávski. Estes são os fatos do caso. Embora eles tenham se tornado obscurecidos pelas infelizes consequências da persistente má interpretação, nós dificilmente podemos nos permitir ignorar sua simples verdade.

AS INOVAÇÕES DE MACREADY COMO PRODUTOR

Mas mais do que isso, tanto a produção bem como a estrela devem transmitir a ideia de uma unidade completa. A precisão dos detalhes nos cenários e figurinos, as apresentações cuidadosamente ensaiadas por toda a companhia, incluindo os atores extras, o escurecimento das luzes quando o clima e a atmosfera exigiam, estas foram as inovações de Macready como produtor. Por mais estrela que fosse, ele era artista o suficiente para perceber que o maior efeito tinha sido perdido por seus grandes predecessores que estavam contentes se suas próprias atuações como estrelas trouxessem aplausos histéricos. Como artista, Macready sentia que a função do teatro era a instrução moral. Para implementar essa função em Macbeth, ele concentrou-se na criação de um universo de esplendor real e

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Magarshack, Stanislávski: Uma Vida, p. 403.

bárbaro que o arqui-inimigo cair em desgraça pode ser o mais impressionante. Para ser mais convincente, ele além disso também tentou humanizar os personagens, pois, como um dos críticos da época Vitoriana declarou, “Um assunto para voltar ao coração e à alma dos homens deve ser de natureza doméstica”. Finalmente, para assegurar que os corações e as almas pudessem ser movimentados, ele fez livre uso (embora não tão livremente quanto muitos de seus sucessores) da mecânica do teatro – efeitos sonoros, música, pintura e luz. Se isso parece um lugar comum teatral, devemos lembrar que Garrick e Kean se contentavam em atuar com quaisquer figurinos e cenários que estivessem disponíveis, que a atenção de Kemble à precisão histórica na produção dificilmente chegou a ensaiar os atores extras, e que os experimentos de encenação de Madame Vestris ficaram na maior parte confinados à comédia de costumes. Em sua ênfase constante sobre a necessidade da unidade na produção, Macready prenunciou o encenador moderno. Alan S. Dormer, “A Montagem de Macbeth, de Macready” [“Macready’s Production of Macbeth”], RTD [QJS], XXXIII (1947), 181.

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