Verdade e Felicidade

October 5, 2017 | Autor: Maria João Neves | Categoria: Philosophy
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Neves, M.J., “Verdade e Felicidade”, in Antígona nº2, Fundação María Zambrano, Velez-Málaga, Espanha, 2007. (pp.162-173)

VERDADE E FELICIDADE Maria João Neves I A Razão Medicinal Zambrano e Séneca – Convergências e Divergências

Para Zambrano, Séneca constitui um verdadeiro exemplo de como a razão pode actuar como mediadora entre uma dificuldade vital e a sua solução. Trata-se, pois, de um momento de passagem, de encontro, entre a vida e o pensamento oposta ao enfrentamento em que normalmente se encontram. “[Séneca] Es propiamente un mediador, un mediador por lo pronto, entre la vida y el pensamiento, entre ese alto logos establecido por la filosofía griega como principio de todas las cosas, y la vida humilde y menesterosa.”1 De acordo com a autora, a proposta do filósofo cordobês acolhe o sentir do povo espanhol para o qual a filosofia é algo que se aplica aos problemas concretos da vida quotidiana; filósofo é aquele que se defronta estes problemas com coragem e serenidade: “No es, pues, la filosofía un afán de saber, sino un saber resistir los azarosos vaivenes de la vida; es una forma serena, sabia de acción. Es una conducta.”2 Nestas páginas que dedica Zambrano a Séneca, a razão aparece adjectivada como “dulcificada”, “compadecida”, “medida”, “restringida”, “resignada”, “piedosa”, “maternal”, “misericordiosa”, “consoladora” e “medicinal”. O segredo da passagem entre pensamento e vida parece consistir numa diminuição da agudeza da razão que actuando assim de forma mais temperada pode assumir as questões vitais. A doutrina de Séneca consiste num conselho de aceitação, de resignação de alguma coisa contra a qual o homem sempre lutou: a sua própria finitude. Para que esta aceitação seja efectiva, o homem deve proceder do seguinte modo: 1) Tomar a vida, a sua própria e a alheia, como um empréstimo e não como uma dádiva. Desta forma a agonia da morte, seja do próprio ou de algum ente querido não deve comportar sensações de injustiça ou de desespero,

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M. Zambrano, El Pensamiento vivo de Séneca, Cátedra, Madrid, 1992, p.17. M. Zambrano, Pensamiento y poesia en la vida española,Endymion,Madrid, pp.

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uma vez que se trata, simplesmente, de saldar uma dívida que tarde ou cedo se teria de pagar. A vida deve desprezar-se3. 2) Deve desconfiar-se permanentemente da sorte, esperando apenas infortúnios e desacreditando qualquer bem aventurança. Desta forma, esperando apenas a infelicidade, nenhum desgosto nos surpreenderá4. 3) Qualquer prazer deve desprezar-se seja social seja o da convivência, seja o do espectador de teatro ou concertos, etc5. 4) Recomenda-se a “suavidade do ânimo”, sendo preferível o riso ao choro e a embriaguez, se esta ajuda a fortalecer o ânimo, à tristeza que o abate6. Os textos de Séneca, seleccionados para ilustrar estes pontos pertencem às páginas que a própria filósofa escolheu para se publicarem juntamente com os seus escritos sobre este autor, que define como sendo um “sábio à defensiva”7, em virtude do facto de não possuir, como os outros filósofos, uma ânsia de verdade, mas antes utilizar a verdade como remédio para as questões vitais. A resignação obtida através do contraste entre um padecimento particular e a muito superior escala da indigência da condição humana parece, a seu juízo, produzir uma certa forma de consolo. Zambrano compara o senequismo ao budismo dizendo que, enquanto este pretende evadir-se da cadeia geração-morte, Séneca pretende a anulação da oscilação esperança-desespero8, e consegue-o através da imposição de um horizonte de negatividade: a infelicidade está sempre garantida e o bem, ou fortuna, se advém, não merece que se confie nele demasiado. A essência da resignação é a cedência, a aceitação, o não se revoltar contra o que a vida nos proporciona, o não aspirar a mais do que se tem. Se não se permite a esperança, evitar-se-á a frustração. Para Zambrano, este suportar com estas características a vida tem dignidade, uma dignidade proveniente do silêncio. A razão senequista não pergunta, não tem nada nem ninguém a quem pedir contas, aceita desde o primeiro momento a debilidade

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“¿Por qué olvidas tanto tu condición como la general? Nacida mortal, has concebido mortales: ser corruptible y perecedero, sujeto a tantos accidentes y enfermedades, ¿esperabas que tu frágil materia engendrase la fuerza y la inmortalidad? Tu hijo ha muerto (...) Si alguien llora a los muertos que llore también a los que no han nacido.” Séneca, “Consolación a Marcia” XI e XII, in M. Zambrano, El pensamiento vivo de Séneca, Ed. Cit., pp. 60, 61. “Lo primero, pues, a que se ha de quitar la estimación es a la vida, contándola entre las demás cosas serviles.”, Séneca, “De la tranquilidad del ánimo” Capítulo XI, in Ibid., p. 72. Note-se como este texto, seleccionado pela própria María Zambrano, parece contradizer, em certo modo, o amor à vida que caracteriza a sua filosofia. 4 “Los reveses solamente abaten al ánimo engañado por los triunfos.” Séneca “Consolación a Hélvia”, in Ibid., p. 53. “Colócate tan bajo que no puedas caer.” Séneca, “Cartas a Lucilio”, Epístola XX, in Ibid., p. 134. 5 “Quiero, pues, que llamemos bienaventurado al hombre (...) que tiene por sumo deleite el desprecio de los deleites.”, Séneca, “De la brevedad de la vida”, Capítulo IV, in Ibid., p. 99. 6 “Súfranse todas las cosas con suavidad de ánimo, siendo más humana acción reírnos de la vida que llorarla. (...) Conviene ensanchar el ánimo dándole algún ocio que aliente y dé fuerza (...) la embriaguez (no de modo a que nos anegue, sino que nos divierta) nos aligera los cuidados sacando el ánimo de su encerramiento; porque como el vino cura algunas enfermedades,así también cura la tristeza.” Séneca, “De la tranquilidad del ánimo” Capítulo XV, in Ibid., pp. 76, 77. 7 Ibid., p. 30. 8 Cf. Ibid., p. 25.

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humana e a desventura e por isso nada lhe é tão contrário como a queixa de Job9. “Porque esta resignación es un ni creer ni no creer. Es ceder, ceder ante la muerte. Ceder a ser devorado por el tiempo o por el fuego. (...) Es no querer alterar por nada el orden del mundo, por extraño que nos sea; mirarse sin rencor, haber cesado de verse y sentirse como algo que es. Es extirpar si lo ha habido, la tentación del yo, de la libertad. Es una especie de debilidad ante el cosmos; caer vencido por el sin rencor. Y Séneca llevó a su extremo, en su vacilante vida y en su serena muerte, esta resignación, esta especie de suicidio sutil que no lo parece a fuerza de serlo, pues el suicida se afirma desesperadamente, acusa y señala. La muerte senequista es la muerte del suicida que no quiere ni siquiera parecerlo, para borrar todo rastro de violencia y de protesta.”10 Nestas palavras de Zambrano fica condensada a doutrina senequista tal como a entende a autora; o suicídio discreto, a desesperança e a inibição da liberdade parecem constituir a razão medicinal alternativa à acutilante razão tradicional que obstaculiza a vida. Esta “alternativa” participa de um forte ascetismo. A própria filósofa se dá conta deste facto, no que respeita ao senequismo: “No es extraño que el estoicismo coincida hasta confundirse con el ascetismo, pues los dos son de renunciación, los dos producen el efecto de empobrecimiento en la vida y los dos renuncian sin melancolía.”11 No entanto a filósofa insiste em crer que a filosofia de Séneca é vitalista, apesar, inclusivamente, dos seus conselhos dirigidos ao suicídio, que a própria filósofa também reconhece12. Paradoxalmente, Zambrano insiste na figura de Séneca como um alimentador de esperanças e um “curandeiro”13. As propostas senequistas constituem um remédio por radicalização: comparando-se sempre com um mal maior, há que se resignar à situação que se vive, ou, tomando como pano de fundo a finitude humana, qualquer escala de valores vitais se encontra profundamente minimizada. Poder-se-ia legitimamente afirmar que a filosofia zambraniana assenta os seus alicerces no padecimento. A autora defende desde o primeiro momento que o conhecimento impassível alcançável através do entendimento já não nos serve e que há que utilizar uma outra via, a do coração, que não despreza o sentir. Como conjugar então a filosofia de Zambrano com os conselhos de carácter suicida próprios de Séneca? 9

Cf. Ibid., p. 47. Ibid., pp. 47, 48. 11 M. Zambrano, Pensamiento y poesía en la vida española, Ed. Cit. p. 71 12 “En rigor, el hombre hace renuncia de su infinitud, de su existencia. Es un suicidio ante la objetividad; deja de existir para que “lo uno”, la razón, la naturaleza, existan por completo.” Ibid., p. 64. 13 “La originalidad de Séneca se vertió en una como vaga esperanza más allá de las puertas de la muerte, una mayor apertura a la esperanza. (...) un curandero magnífico que con método sutil, flexible y exacto conduce las almas de sus discípulos y amigos por un desolado y aquietador camino.” Ibid., p. 65. 10

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Séneca defende energicamente a impassibilidade, propondo como modelo de conduta o sábio que não é afectado por nada14. Esta atitude é contrária à filosofia de Zambrano que propõe, justamente, integração daquilo que se padece, tristezas ou alegrias, na actividade filosófica, a integração dos sentimentos no exercício da filosofia. Séneca, pelo contrário, não contempla que alguma das experiências vitais se realizem através da alegria, do gozo dos sentidos, ou do sofrimento. A sua filosofia orientada no sentido de atingir a impassibilidade do ânimo, pretende que o homem não se deixe arrastar por tristezas ou alegrias, cólera ou frustração, entusiasmo ou lassidão, enfim, que não preste atenção a nenhum estímulo proveniente daquilo que lhe acontece, não ocupe o seu tempo na vivência de sentimentos e desta forma encontre, com o auxílio da razão, um estado de permanente serenidade. Mas o saber de experiência que preconiza Zambrano é um saber em que o ser humano se disponibiliza numa atitude de abertura ao desconhecido, deixando-se afectar, deixando que a experiência se configure e tome forma “naturalmente” e não de um modo previamente estabelecido. O homem está disposto a sofrer, a padecer o que a experiência lhe proporcione, coloca-se numa atitude de passividade activa15. Este deixar-se afectar implica uma disposição para correr riscos, porque existe a possibilidade de que o experienciável coloque em perigo algumas estruturas fundamentais do sujeito. Se estas vacilam é provável que se produza uma situação de desidentificação, de perda de si mesmo porque algum dos fundamentos proporcionadores da identidade foi perigosamente abalado. Não parecem, pois, possíveis de conciliar, as atitudes filosóficas de Zambrano e de Séneca, muito embora a filósofa afirme que toma para si a filosofia senequista que apelida de “medicinal”. Zambrano considera que Séneca proporciona uma maior abertura à esperança conduzindo as almas por um caminho de resignação, que, apesar da desolação, pretende atingir a serenidade. Apenas no que se refere à preocupação pelo estado de espírito do homem, pode haver, no meu ponto de vista, um encontro entre a filosofia zambraniana e a senequista. Mas a partir deste ponto comum, ambos filósofos seguem caminhos totalmente divergentes, Séneca procura a inalterabilidade do ânimo através da resignação enquanto que Zambrano pretende que o ser humano nasça completamente, quer dizer, desabroche em toda a sua magnificiência, encontrando a sua vocação e cumprindo o seu destino no desenrolar do argumento da sua vida.

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“El dolor no alcanza al sabio: su mente está despejada siempre, sin que pueda oscurecerla ningún acontecimiento. Nada le conviene mejor que el ánimo fuerte, y no puede ser fuerte su ánimo si el temor y la aflicción le blandean, le oscurecen y oprimen. Nada de esto acontecerá al sabio, ni siquiera en sus propias desgracias, sino que rechazará y verá romperse a sus pies todos los reveses de la fortuna. Constantemente conservará el mismo rostro sereno e impasible (...).” Séneca, “De la clemencia”, libro segundo, in Ibid., p. 111. “(...) “serenidad”, que es la identidad del alma humana consigo misma, sobrenadando gracias a la impasibilidad entre los estímulos de afuera. El dominio total del movimiento de las pasiones; en suma, en conseguir a costa de todo un alma invulnerable.” M. Zambrano, Pensamiento y poesía en la vida española, Ed. Cit., p. 61. 15 Cf., M. Zambrano, Hacia un saber sobre el alma, Alianza, Madrid, 1989, p. 55.

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II Verdade e Felicidade Na história, ainda tão recente, do Aconselhamento Filosófico podíamos com facilidade distinguir dois grupos: aqueles que consideram que o objectivo da actividade filosófica é alcançar a Felicidade, e aqueles que se decantam pela Verdade. Se de Zambrano se trata, estaremos seguramente no segundo grupo pois é ela quem afirma: o homem respira no tempo e alimenta-se de verdade16. A problemática do tempo é muito ampla e complexa e já a abordámos noutro lugar17 neste estudo concentrar-nos-emos no assunto verdade tentando descortinar os seguintes elementos: 1. Que entende María Zambrano por verdade 2. A relação entre Verdade e Felicidade 3. A busca da verdade no Aconselhamento Filosófico Que entende María Zambrano por Verdade? María Zambrano é uma filósofa contemporânea, faleceu em 1991. No entanto, o seu pensamento tem muito mais em comum com a modernidade do que com a pós-modernidade. No enquadramento pós-moderno parece uma ingenuidade pretender que exista uma verdade universal. Segundo Vattimo, apenas podemos aspirar a um saber precário e débil pois a verdade não é una senão múltipla. Já M. Weber afirma que do mesmo modo que existe um politeísmo dos valores, existe um politeísmo da verdade. Para Rorty todas as “grandes palavras” desapareceram. De acordo com Lyotard as grandes utopias da ilustração são meras narrações sem base objectiva. Finalmente, segundo Nietzsche todas as convicções são iguais, da astronomia à astrologia, tal como todas as opiniões, as de um sábio e as de um idiota. Não existe nada permanente nem nada meta-histórico. O pensamento pós-moderno parece assim desaguar na relativização da verdade, e este relativismo pode ter consequências perigosas: se todas as crenças e opiniões valem o mesmo, então o nazismo, o fascismo, etc. estão em pé de igualdade com a democracia. Por outro lado, e parafraseando a Feyerbens, a ciência não seria mais do que uma superstição. Parece-nos ser a Verdade um assunto demasiado sério, não passível de ser relegado para uma questão de consenso. Utilizando uma expressão muito cara aos filósofos da lógica, parece-me que com o pósmodernismo acabámos por deitar fora o bebé com a água do banho… Congratula-me verificar que Zambrano é uma filósofa profundamente moderna, no sentido em que entende a verdade como nuclear ao ser humano. Cada um de nós possui uma realidade autêntica, inegável e irredutível, apesar de poder ser desconhecida: o Ser Recebido. Para Zambrano, ser consiste em guardar a palavra recebida18, no mesmo sentido do livro do Genesis, é a palavra divina que confere existência, que dá o ser. Por isso o ser não é uma

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Cf. M. Zambrano, Persona y Democracia, Anthropos, Barcelona, 1988, p. 132 Mª João Neves, Passagens ou Sobre a Possibilidade de Continuidade entre o Pensamento e a Vida na Filosofia de María Zambrano. Tese de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, Março 2002. 18 Cf., M. Zambrano, Notas de un Método, Mondadori, madrid, 1989, p. 40. 17

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pergunta, é uma resposta19, o ser é recebido20. É somente quando esta palavra divina desce às entranhas do humano que se lhe torna oculta. A partir desse momento o homem inicia o árduo e longo caminho de procurar conhecer-se a si próprio. Por este motivo, a filósofa distingue dois modos de vivência do humano radicalmente diferentes: a vivência como personagem –vivência inautêntica– e a vivência como pessoa –vivência autêntica–21 que em última instância consiste precisamente em desentranhar o ser recebido e viver a partir dele. Poderíamos então afirmar que, para Zambrano, a verdade consiste no encontro com o Ser Recibido e na vivência a partir deste. Já sabemos em que consiste a verdade, importa agora saber como é possível reconhecê-la, quais as características que permitem a sua identificação. Diz-nos Zambrano que a verdade, podemos senti-la quando existe acordo entre o tempo interior e o tempo exterior.

Esquema elaborado por María Zambrano em M-27, El ser-pensamiento, p. 5. No entender da autora é apenas na articulação destes dois focos do tempo, o interior e o exterior, que se produz o acontecimento da verdade22. Como sabemos, a vida humana, segundo Zambrano, dá-se num contínuo entrecruzar de diferentes dimensões do tempo. O foco exterior, funciona como uma barreira, pois, ao ser o meio onde o homem vive desde sempre, constitui aquilo que lhe resiste; o foco interior é um tempo que se vai revelando pouco a pouco, no entanto, este tempo interior é para Zambrano o que há de mais irredutível no homem, nenhuma fenomenologia seria capaz de o reduzir, 19 20

Ibid. p. 52. Cf., M. Zambrano, El Hombre y lo Divino, Fondo de Cultura Económica, madrid, 1993,

p. 162. 21

Vide Mª João Neves, “Pessoa ou Personagem? Uma questão ética.” In Inuaf Studia, nº 10, Loulé, 2007, pp. 53-67. 22 Cf., M. Zambrano, M-27, El ser-pensamiento, p. 5.

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porque a própria vida humana é caminho para dentro, para o seu foco último, atravessando sucessivos tempos interiores. Por consequência, mesmo sabendo que tempo e liberdade são inseparáveis na vida humana, é fundamental aprender a conjugá-los. O homem tem que conhecer o seu próprio tempo e em vez de se submeter a ele, descobrir o modo de transitar por ele de forma a convertê-lo em caminho de liberdade. O tempo é por natureza devorador23, e é preciso aprender a fazer dele um caminho, a não nos deixarmos submergir no seu labirinto, padecendoo simplesmente. A experiência da verdade corresponde ao 3º estádio da fenomenologia da forma-sonho em que o princípio está informado pelo fim24. Nesta situação, pratica-se uma acção transcendente que vai no sentido da realização da pessoa, i.e. que corresponde a uma actualização do ser recebido.

A relação entre verdade e felicidade Quando Sócrates diz que uma vida sem reflexão não merece ser vivida, provavelmente tem como pano de fundo precisamente a relação entre verdade e felicidade. O que nos leva à interrogação, será possível a felicidade sem verdade? Alguns dizeres populares afirmam precisamente o contrário: “a ignorância é felicidade”, ou “olhos que não vêem coração que não sente”. Algumas práticas sociais parecem concordar com esta afirmação e até mesmo algumas canções dos tops musicais da actualidade a reiteram. Já em Matrix, essa versão cibernética da Alegoria da Caverna de Platão, à figura do traidor a escolha apresenta-se entre uma vida maravilhosa mas sonhada ou uma vida, com todas as suas adversidades, mas real. No núcleo de todo o argumento parece estar a ânsia de realidade que subjaz a todo o ser humano. Esta temática preocupou os filósofos desde sempre, recordemos de novo como Platão se empenha em distinguir o sonho da realidade: “– Ora pois! Aquele que, ao contrário deste, entende que existe o belo em si e é capaz de o contemplar, na sua essência e nas coisas em que tem participação, e sabe que as coisas não se identificam com ele, nem ele com as coisas – uma pessoa assim parece-te viver em sonho ou na realidade?”25 Existe uma certa qualidade que somente se pode predicar de uma viva vivida em verdade que é independente da natureza da mesma. Quer dizer, independentemente do percurso de vida ser feliz ou infeliz, a vivência dessa vida em verdade parece ser primordial. Para Zambrano, sem dúvida que assim é pois a verdade constitui-se em alimento da vida do homem, de tal maneira que uma existência sem verdade, uma existência como personagem e não como pessoa, é uma existência alienada e corresponde a um des-viver-se. 23

Cf., M. Zambrano, El hombre y lo divino, Ed. Cit., pp. 48, 49. Para uma explicação pormenorizada da Fenomenologia do Sonho de María Zambrano e da sua aplicação à vida ver Mª João Neves, “Al Encuentro del Ser Recibido. La Fenomenología del Sueño de María Zambrano en el Asesoramiento Ético y Filosófico.” (no prelo). 25 Platão, República, 476d 24

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Não é pois, possível, ser feliz na mentira. A mentira não alimenta, a verdade sim. A verdade constitui o alimento da alma e, como diz o evangelho, nem só de pão vive o homem…

A busca da verdade no Aconselhamento Filosófico María Zambrano pretende alargar o horizonte filosófico para lá da fronteira da racionalidade, para lá desta ilha de claridade, embrenhando-se nos territórios de penumbra, sombra, e até mesmo escuridão. Considera que razão e coração devem trabalhar juntos para alcançar a verdade, e que a razão é uma razão criadora, poética, que permite ao homem reinventar-se à medida que se vai descobrindo. Como já dissemos anteriormente, para Zambrano, a verdade é o alimento da alma humana, é preciso que o homem se conheça a si próprio e actue em concordância com o seu ser recebido. O método de aconselhamento filosófico RVP© (Raciovitalismo Poético), para o qual me inspirei na filosofia de María Zambrano, busca a verdade da pessoa inteira, não apenas a verdade racional. A pessoa inteira inclui as suas aspirações mais profundas, aquilo que ainda não é mas que está em vias de ser, aquilo que já deixou de ser… Percebo-me como ser constitutivamente inacabado e actuo em consequência. Não há que ficar atado a padrões de conduta que já não fazem sentido, por muito que o tenham feito no passado, há que estar atento ao novo eu que a cada momento nasce. Para o conseguir, há que ouvir cada uma das instâncias da pessoa, não deixar nenhuma desatendida. Esta escuta atenta das diferentes instâncias da pessoa assume uma importância crucial pois uma coisa é o reconhecimento de um problema, outra a sua percepção e outra ainda a sua vivência. Deixar desatendida alguma destas dimensões vai contribuir para uma abordagem falseada da realidade, que é justamente aquilo que se pretende evitar. Segundo Zambrano, a primeira vez que o homem pergunta pelo estado da sua vida, esta pergunta apresenta-se sob a forma que queixa. É a queixa de Job que angustiado e perplexo procura entender o seu destino; pergunta pelas razões que não encontra, que justifiquem tão enorme desdita que lhe aparece sob a forma de punição de uma falta, que não crê ter cometido. Diz Zambrano que quem assim se queixa, pede razões nada menos que à divindade. Mas a pergunta filosófica tem um teor completamente diferente, já não está dirigida a Deus, é uma pergunta quase retórica pois não espera nenhuma resposta senão aquela que o próprio que a formulou encontre. Nestas condições, o homem conta apenas consigo próprio, considera-se capaz de decifrar por si mesmo, com o auxílio da razão, os enigmas que se lhe deparam. Para Zambrano, a confiança na razão surge aliada à solidão humana, por um lado, e, por outro, ao silêncio da alma, quer dizer, ao esforço por ignorar emoções e sentimentos, na esperança de que a razão revelasse o mundo e encontrasse a verdade. Mas a pergunta filosófica segue o seu percurso e se Tales, o primeiro filósofo, começa por renunciar à queixa, esquecendo-se de si próprio, do conflito que cada homem transporta consigo devido ao

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esquecimento do seu ser26, a pergunta deixa agora de ser sobre o ser das coisas e passa a ser sobre o que me acontece a mim “¿Qué me pasa?”. Se pretendo um saber que me esclareça acerca das coisas que me acontecem, isto é, das coisas que se padecem, estas só são acessíveis no terreno da subjectividade. Procura-se um autor, um responsável: “o que foi que eu fiz?” ou “o que foi que me fizeram?”, e um sentido para essas coisas que se padecem. A partir de agora a filosofia não pode mais renunciar ao âmbito dos sentidos, como tão pouco pode prescindir da actividade teórica; as funções do humano terão de actuar em conjunto abrindo passagens entre as diferentes áreas consideradas tantas vezes incompatíveis. Husserl, na sua Ideia da Fenomenologia, distingue o pensamento filosófico que define como ocupado com as questões relativas à possibilidade do conhecimento, do “pensamento natural”, categoria em que inclui o pensamento da ciência bem como o da vida, despreocupados ambos daquela questão27. Zambrano estabelece uma distinção radical entre o conhecimento das “coisas da vida” e o conhecimento das “coisas da natureza” baseada não só numa diferença de pergunta, mas também em algo muito mais subtil, a saber, uma diferença de tom, e diz-nos que a filosofia a partir de Heidegger retrocede da pergunta pelo ser das coisas à pergunta “acerca do ser que por elas se pergunta”. A filosofia ocupar-se-á então já não das condições de possibilidade do conhecimento seja ele científico ou mundano, mas antes deste ser “um alguém” que pergunta. Agora, recupera-se a pergunta de Job, aquela queixa primordial que se deixou abandonada pelo conhecimento da natureza. O ser do homem volta a ser aquilo que, por problemático, requer uma investigação. Zambrano partirá então da via aberta por Ortega que estabelece a vida como realidade radical, e ocupar-se-á desta especificidade do humano que consiste em preocupar-se com o seu quehacer. Mas se quer saber o que fazer o homem terá primeiramente que conhecer-se a si próprio, porque a sua natureza oculta-selhe constantemente. Assim, o objectivo da filosofia zambraniana será conhecer o ser do homem, i.e. aceder ao ser recebido. Se se entende o ser recebido como a verdade última do ser humano, todo o empenho do método de aconselhamento filosófico RVP© consiste em facultar este acesso mas, e sobretudo, propiciar a vivência a partir daí, quer dizer, a vivência da pessoa em autenticidade.

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Cf., M. Zambrano, “Apuntes sobre la acción de la filosofía”, La Torre, San Juan de Porto Rico, año IV, nº15-16, Julio-Diciembre, 1956, p. 559. 27 Cf. Husserl, A ideia da fenomenologia, Edições 70, Lisboa, 1990.

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