VERDADE E PERSPECTIVA: A questão da verdade e o fato jornalístico.

June 3, 2017 | Autor: Wilson Gomes | Categoria: Journalism, Theory of Journalism, Media Coverage, Media theory and Research
Share Embed


Descrição do Produto

VERDADE E PERSPECTIVA A questão da verdade e o fato jornalístico1 "Contra o positivismo, que se detém no fenômeno [de que] 'há apenas fatos', eu diria: não, são justamente os fatos que não existem, mas tão somente interpretações. [...] Se a palavra 'conhecimento' tem algum sentido, o mundo é cognoscível; na verdade, entretanto, ele é diversamente interpretável, não tem um sentido por trás de si, mas inúmeros sentidos - 'perspectivismo'. São as nossas necessidades que interpretam o mundo: nossas pulsões e os seus prós e contras. Cada pulsão é uma forma de busca de domínio, cada uma tem a sua perspectiva, que gostaria de impôr como norma a todas as outras pulsões". (Friedrich Nietzsche, Nachgelassene Fragmente 1886-1887 7 [60]) Em 1991, escrevi, para a revista TEXTOS, um pequeno ensaio em que tomava como objeto de reflexão um tema pouco freqüentado pela investigação teórica: o fato jornalístico. Para a minha surpresa, aquele ensaio foi recebido com muito boa vontade por alguns colegas que se ocupam com teoria da comunicação - mais do que por suas qualidades intrínsecas (pois na verdade tratava-se de um pequeno texto que lançava algumas considerações rápidas sobre o seu objeto), creio que por causa do horizonte de questões que visitava. Naquela época, impressionava-me um paradoxo do mundo do jornalismo (não do mundo dos jornalistas, mas dos jornais e, portanto, também e principalmente da interação que envolve especialmente a nós, leitores e espectadores de jornais), a saber, a insistência dos jornais em afirmar a própria veracidade e a lamentação dos jornalistas e dos leitores/espectadores com a ausência de compromisso com a verdade que, no fundo, dominava o mundo do periodismo. Verdade afirmada, verdade que se presume negada, verdade desejada: eis a paradoxal equação. Neste contexto, julguei pudesse ser uma oportuna provocação para todos (inclusive para mim) insistir sobre a ingenuidade com que o conceito de verdade era aí formulado, enquanto supunha uma ontologia e uma teoria do conhecimento claramente insuficientes. Embora não podendo aprofundar as questões que levantava, acredito ter podido indicar algumas linhas de pensamento nas quais este conceito de verdade (e de fato) era problematizado. De lá para cá as minhas convicções a esse respeito não mudaram substancialmente. Mudou, todavia, a minha visão do campo da comunicação social no Brasil, onde circulam não uma, mas duas formas antagônicas de compreender e pensar o problema da verdade e do fato jornalísticos. Enquanto atacava a ingenuidade de uma dessas posições, vi-me, de repente, perigosamente próximo de uma outra posição com a qual, a rigor, não posso me perfilar: aquela que dissolve o conceito de verdade na idéia de perspectiva e entende o fato como um texto "aberto" à mercê de interpretações desobrigadas de prestar contas a um qualquer "sentido textual". Neste último sentido, a verdade é exilada, não por qualquer ato voluntário de trapaça moralmente condenável (como supunha o primeiro modelo), mas 1

Publicação original. GOMES, W. S.. Verdade e Perspectiva. A Questão da Verdade e O Fato Jornalístico. Textos de Cultura e Comunicação, Salvador, Ba, v. 29, p. 63-83, 1993.

porque - parafraseando Lichtenberg - o fato é só um piquenique em que a realidade entra com a matéria e o observador e/ou narrador com o sentido. Aliás, com qualquer sentido. Ao contrário, de algum modo que tentarei justificar adiante, o fato deve poder reger os parâmetros da sua própria interpretação. Ele está aí e produz os seus próprios resultados de apreensão e representação. Em outros termos, se é verdade (contra o primeiro modelo) que o fato é sempre "aberto", de qualquer sorte continua sendo um fato; o que quer dizer (contra o segundo modelo) que pode suscitar infinitas interpretações mas não consente qualquer apreensão possível. De sorte que, ainda que seja extremamente problemático o estabelecimento de qual a melhor apreensão e interpretação de um fato, deve ser de algum modo possível estabelecer que algumas dentre as apreensões e interpretações concorrentes são decididamente falsas. O que, reconheço-o, é mais fácil dizer do que provar. Seja-me permitido, aqui, apresentar algumas anotações a propósito. O objetivo que me move, dessa vez, é a intenção de recusar a alternativa que desqualifica toda e qualquer possibilidade de verdade e objetividade do fato no jornalismo e apresentar elementos para uma possível reinstauração da tensão entre perspectiva e verdade. Essa discussão transborda, obviamente, o campo do jornalismo, mesmo porque se origina no horizonte da filosofia. Mas pretende encontrar aqui um campo de provas particularmente instigante, sobretudo pela importância do fenômeno do jornalismo como elemento definidor da cultura e da socialidade contemporâneas. Observações preliminares sobre o conceito de fato O universo do jornalismo é dominado por uma convicção fundamental: as notícias, que constituem o material básico dos jornal, são mensagens textuais em que se fala de fatos. Uma convicção não apenas fundamental, mas também dotada de uma sensatez inexpugnável. O único problema de convicções desta natureza é o fato de que a sua obviedade como que a exime da necessidade de ser explicada, esclarecida. Com isso, furtase à obrigação de dar conta dos pressupostos aí implicados. Há, portanto, de se superar esta primeira barricada da obviedade. Então, deparamo-nos com duas igualmente inquebrantáveis teses sobre a natureza do jornal: a) O jornal é composto por mensagens elaboradas propositadamente, constituídas na forma de textos com os quais nos pomos em relação na leitura - as notícias; b) As notícias do jornal referem-se a dados da realidade, que se apresentam na forma de eventos ou fenômenos, com os quais é possível pôr-se em relação imediata na experiência e/ou mediata no texto - os fatos. Além de todo aparente isomorfismo das afirmações, fato e notícia são claramente considerados heterogêneos. As notícias são textos dotados de sentido que, por sua vez, falam de fatos; são objetos com os quais um sujeito (o leitor) pode entrar em comunicação ou interação lingüística (ou lingüístico-imagética, no caso do telejornal). Os fatos, em princípio, são objetos "mudos", isto é, objetos com os quais não é possível nenhuma comunicação ou interação lingüística. Entretanto, a olharmos bem, o fato envolve a sua quota de "textualidade", sendo que alguns fatos são quase apenas "textuais". Assim, as declarações e comunicados, as entrevistas e pronunciamentos quase nos dão a impressão de que a maior parte dos fatos são textos, e que os textos-notícias são textos que falam de textos - intertextos e metatextos. Todavia, é óbvio que nem qualquer texto pode virar notícia e que a atividade periodística não é literatura ou filosofia, ainda que possa incluí-los. O jornalista, o sabemos todos, é um perseguidor de fatos (ainda que na sociedade mediática nos acostumamos a vê-lo como que

perseguido pelos fatos ou por aqueles que querem virar fatos e, a partir daí, notícia). O texto que se transforma em notícia deve representar um evento ou estar incluído num acontecimento. Um fato, por conseguinte, é um complexo que inclui eventos envolvendo coisas, pessoas e textos. As suas marcas características são a atividade, a relação e a temporalidade. A atividade é evidente já da própria etimologia factum, que remonta a facio (fazer, obrar, efetuar, realizar), de onde se derivam também effectum/effectus (resultado, efeito) e effectivus (efetivo, real, atual). O fato é o resultado, a conseqüência de uma ação, aquilo que uma produção ou operação deixa para trás como seu produto ou obra. O fato, portanto, não é propriamente a ação enquanto tal (actio), movimento pelo qual algo passa do poderser ao ser, mas ação que se consuma ou realiza (actum), o repouso entendido como ápice do movimento, a sua estabilidade mínima onde este perdura. Por isso, o narrador não narra o fazer enquanto tal, puro processo e desdobramento de energia, grávido de todas as possibilidades, mas o fato, o real decorrente da realização, o real como concretude e delimitação do horizonte de possíveis pela ação, o efetivo. Mesmo no estágio atual da língua, ao fato inere o aspecto de estabilidade, de não-mais- possibilidade, ou seja, de realidade, como nas locuções "de fato" e "com efeito" onde se exprimem justamente a irrevocabilidade e o ser-definitivo por parte de algo. O conceito de fato inclui também a nota da relação; um fato, diz-se, é uma relação de coisas. Com isso, quer-se dizer que o fato pode ser pensado espacialmente como uma dimensão fechada onde entidades interagem. Em outros termos, um fato é uma conexão unitária de entidades (coisas, textos, pessoas etc.) mutuamente referidas. Isso implica que está implícito no conceito de fato um recorte voluntário (não necessariamente consciente) no continuum das interações da realidade. Só assim ele tem começo e termo, tem contornos, por mais imprecisas que possam ser essas demarcações e ainda que propriamente não conheça fim. Tem termo, ainda que possa não ter fim, enquanto de um fato pode seguir-se outro ou outros, mas aquele fato como tal pode ser identificado sem grandes problemas. Se, com efeito, é assim, o fato como relação entre entidades deve ter esse seu caráter unitário justificado. E o que o justifica? Temos que remeter-nos ao aspecto ativo do fato. Se pudermos pensar o plano da realidade como um continuum onde se sucedem movimento e repouso, ações e quietude, um fato é justamente um relevo de movimento isolado por intervalos de quietude - espaços que podem ser átimos ou uma infinidade de silêncio. Os fatos, os fatos jornalísticos em particular, são ilhas e arquipélagos cercados por quietude de todos os lados. Esta quietude pode ser até mesmo apenas uma pausa brevíssima, artifício literário do narrador que precisa repousar em alguma parte enquanto troca-se o cenário ou muda-se a página. A meu ver, uma pista pode ser dada pela teatralidade imprescindível aos fatos. Na verdade, um fato é um ato, um ato teatral, uma unidade dramática. No que tange à temporalidade evidente na idéia comum de fato, creio que, paradoxalmente, seja uma nota derivada e não primária. Ela se explica na verdade como reverberações da atividade e da relação. Em primeiro lugar quanto à atividade, onde é claro que a temporalidade é uma translação. Ou seja, a definitividade do fato, a sua efetividade, pode ser pensada em termos de coordenadas espacio-temporais (portanto, em sentido translato) como uma espécie de hiato, de destaque no tempo e/ou no espaço entre a narração e o evento. Hiato, se aqui há algum, só pode ser lógico, não porque o fato é "diferido" no

tempo e no espaço, mas porque há uma "diferença" entre o fazer (que funciona na esfera da potência) onde se pode ainda intervir e o fato (na esfera do ato) onde as intervenções são impossíveis. Em segundo lugar, porque a unidade dramática de relação é vista como uma unidade temporal, como uma segmentação no continuum do tempo. E, de fato, não há como nos livrarmos desta marca de particípio passado que parece soar por detrás de factum. Creio, entretanto. que a temporalidade aqui funcione mais logicamente do que cronologicamente. O fato tem essa marca temporal porque logicamente ele é um conseqüente, uma conseqüência, o efeito. Conseqüência pode ser pensada só em face de algo precedente - no caso, em face do fazer do qual essa resulta. O que exprime a concatenação lógica de que se X segue Y, dele resultando, sequitur que X é um efeito de Y e Y é a causa de X. A cronologia chega depois, para assegurar que há uma linha de fluxo constante que inclui a X e a Y como seus momentos. De qualquer forma, a temporalidade do fato, derivada ou não, tem uma dupla caracterização que deve ser diversamente avaliada. De um lado, há a idéia de diferença entre o tempo do fato e o tempo da narração. Nesse caso, a diferença é aparente; o fato é lançado ao passado, porque este é reconhecidamente o campo daquilo que não está ao nosso alcance, do irrevogável. Mesmo porque pode-se falar de fatos presentes - que ainda que não sejam narrados podem ser testemunhados. Por outro lado, há a diferença entre o tempo do fato e o tempo das dimensões e elementos que o geraram na rede de causalidade. Nesse caso, ainda que não possamos eliminar o dado cronológico, reitero que a relação é muito mais lógica do que temporal, é muito mais entre C e D na relação linear A, B, C. D, E... do que a relação entre o antes e o agora. Enfim, há um último aspecto que deve ser considerado no conceito de fato. Último na ordem das matérias, mas não menos importante. Refiro-me a essa característica fundamental pela qual todos os resultados de um agir podem ser considerados fatos, inclusive os textos que narram fatos, numa fuga infinita para frente. Assim, um fato é tanto um texto onde transitam atos perlocucionários de toda sorte - opiniões, promessas, ordens, desejos, súplicas etc. -, quanto um texto que fala de textos, textos que narram fatos, textos que se referem a textos que narram fatos, textos que se referem a textos que se referem a textos que narram fatos ou outros textos etc. A esse ponto, a pergunta inevitável deve ser algo mais ou menos assim: o que diferencia o texto do fato? Uma pergunta mal-formulada, evidentemente. A indagação correta deve voltar-se para a compreensão daquilo que pode fazer de um texto um fato. Já disse que um texto é uma tessitura discursiva, portanto, configurada nas tramas da linguagem; um fato, por sua vez, é uma tessitura de interrelações, uma unidade dramática que inclui em sua moldura entidades interagentes. Uma tessitura discursiva (a notícia, por exemplo) pode referir-se a fatos ainda que uma grande parte das tessituras discursivas não vise produzir informações sobre o estado das coisas (fatos) mas produzir sentidos. Uma tessitura de interrelações pode incluir texto, a solo ou num conjunto dramático em que o texto é um elemento pragmático -como os comportamentos e os fenômenos - ou um elemento expressivo que, por isso mesmo, cumpre funções pragmáticas. Em suma, o texto, visto em si mesmo, é uma configuração expressiva, que produz sentidos que se referem a fatos reais, a fatos imaginários ou não se referem absolutamente a fatos. O seu efeito é o sentido. Já o texto visto como fato ou parte de um fato, não é mais apenas uma configuração expressiva, mas desenvolve essa sua potencialidade inevitável tornando-se também e sobretudo uma configuração pragmática,

um "objeto" que ao produzir sentido produz também um efeito prático, como todos os outros objetos e agentes inseridos na interrelação fatual. Assim, a notícia tem essa capacidade de ser reversível, no sentido de que pode ela mesma tornar-se fato tanto quanto o fato de que ela fala. Mas, evidentemente, ao tornar-se fato ela se transforma, tornando-se como os outros elementos do fato. O que não significa que ela perca alguma coisa; ela continua sendo expressiva e, se adquire uma função pragmática, é justamente por causa da sua função expressiva. Certamente, porém, não é a mesma coisa produzir sentido e produzir efeitos na realidade. De qualquer arte, aquilo que tem um maior número de conseqüências para a ordem das considerações a seguir é essa característica da notícia (que, de resto, aproxima o jornalista do historiador) de que os fatos a que se refere tanto podem ser textos (tessituras pragmáticoexpressivas) como eventos envolvendo coisas, pessoas e textos. Portanto, não apenas estruturas a que chamaríamos de pragmáticas, como também estruturas expressivas. E como expressão e texto supõem intérpretes e fatos supõem testemunhas, admitirmos que o fato compreende elementos expressivos significa admitir que, de algum modo, um fato é interpretado e/ou apreendido segundo uma complexa estratégia de interações que envolve também os intérpretes/testemunhas, bem como, por força, as suas competências da língua e as suas competências no que tange às categorias da percepção como patrimônio social. Como veremos mais tarde. Fato e conhecimento "Jornalismo-verdade", "a verdade doa a quem doer", "a verdade dos fatos em sua casa"... Quem, no universo dos leitores, ouvintes e espectadores de jornais jamais ouviu uma proposição dessa natureza? Essas e outras a elas semelhantes constituem um complexo de asserções estabelecidas sobre uma convicção comum acerca da natureza da notícia. Segundo esta, a notícia é uma forma de mensagem ou discurso que em princípio deve poder ser verdadeira ou falsa. De fato, o sabemos desde Aristóteles, todo discurso é semântico (isto é, dotado de sentido), mas nem todo discurso tem a ver com verdade e mentira (apenas os discursos "apofânticos", diz Aristóteles); pois bem, a notícia é uma forma de discurso apofântico ou manifestativo. Por conseqüência, o jornal representa uma forma de conhecimento e como tal pode ser avaliado. Verdade de quê? Conhecimento de quê? Do fato, lógico. A notícia se refere aos fatos, ela não passa de um conjunto de asserções acerca de fatos, por conseguinte, deve poder ser julgada a partir da sua capacidade ou não de dar a conhecer o fato, levá-lo ao conhecimento dos seus leitores/espectadores/ouvintes. A notícia é verdadeira quando diz a verdade a respeito dos fatos. Essa fórmula muito simples, exprime a convicção comum de que a verdade pode residir no discurso que é a notícia e que a verdade situa-se numa forma de adequação entre a notícia e o fato que se noticia. Todavia, quando falamos de "verdade da notícia" entendemos não uma, mas duas coisas, e isso decorre das duas dimensões da notícia, a saber, do fato de esta ser uma tessitura expressiva e do fato de esta tessitura expressiva remeter sempre a uma dimensão extratextual, ao fato. Assim, apreender uma notícia significa, em primeiro lugar, entender a notícia ou entender-se a seu respeito e, apenas em segundo lugar, apreender aquilo que é noticiado. Uma distinção metodológica importante, enquanto no primeiro caso a "verdade da notícia" é a compreensão verdadeira daquilo que a notícia é ou diz; verdade aqui é a desvelação daquilo que a notícia fala, tendo a ver, portanto, com o sentido verdadeiro do

texto. Já no segundo caso, "verdade da notícia" é a verdade daquilo que fala a notícia acerca do fato; verdade aqui é a desvelação (na notícia) daquilo que a notícia fala, tem a ver, portanto, literalmente com a verdade do texto. No primeiro caso, temos claramente configurado um problema que diz respeito à teoria da interpretação, uma questão hermenêutica. No segundo, temos uma problemática que diz respeito à teoria do conhecimento e, em parte, à teoria da ciência, um horizonte de questões de gnosiologia e epistemologia. Adiantamos já um complicador a este quebra-cabeças: e se o fato - aquilo de que fala o texto - for ele mesmo estabelecido a partir de um outro texto, como normalmente acontece nos jornais, como poderemos entender a questão da verdade da notícia, no primeiro ou no segundo sentido? A isso, voltaremos mais tarde. De qualquer forma, está claro que há uma vinculação que todos reconhecem como essencial entre conhecimento e notícia. Disso decorre a não tranqüila conseqüência de que do modo como concebermos o conhecimento e a compreensão decorrerá a nossa concepção da notícia e da verdade no jornalismo. Uma teoria da notícia postula e pressupõe, por conseguinte, uma decisão em termos de teoria do conhecimento e da interpretação. Isso admitido. não haveria como haver mais paz no território da teoria do notícia. Particularmente, pela dificuldade de trânsito entre as várias gnosiologias e hermenêuticas do pensamento ocidental. Entretanto, as coisas não são bem assim, pelo simples fato de que o conflito das teorias já está presente no campo da teoria do jornalismo, quer o admitamos ou não. E não falo da teoria sistematicamente elaborada, mas das decisões teóricas e interpretativas quotidianas, que são inevitáveis até mesmo na atividade técnica elementar e no labor diário do leitor/ouvinte/espectador e do jornalista e produtor de jornais. Nessas decisões são decididas não apenas embates teoréticos aparentemente ociosos, mas o sentido da própria atividade e a tábua dos valores que a sustenta. Portanto, uma teoria da notícia é uma forma sistemática de organização não apenas do debate no campo dos conceitos, mas também das decisões teóricas quotidianas no mundo da vida. Nesse contexto pode-se justificar a importância da discussão dos conceitos de fato e verdade das teorias relativistas da notícia. Grosso modo, estas teorias apoiam-se em modelos de conhecimento que poderíamos chamar de "construtivista" e "perspectivista". "Construtivista" é aquela posição acerca do conhecimento humano que se opõe à idéia de que o conhecimento tem a tarefa de espelhar e reproduzir a essência das coisas, que existiriam como tal fora da experiência e indiferentes a esta, afirmando, por sua vez, que o dado da experiência é organizado e constituído na própria experiência, de forma tal que no conhecimento jamais nos pomos em relação com as coisas mesmas e sim com as coisas tais quais se manifestam a nós, portanto, configuradas por formas e categorias cuja sede é o sujeito que conhece. "Perspectivista" é a posição de teoria do conhecimento segundo a qual o único discurso legítimo acerca das coisas é aquele segundo a ordem do nosso modo de conhecê-las, isto é, a partir do modo como as coisas se dispõem em face das nossas faculdades de conhecimento - não há discurso autêntico (não- teológicos ou metafísico) segundo a ordem da verdade mesma das coisas. As duas posições não podem ser meramente justapostas. Antes, pelo contrário, a maioria das posições perspectivistas fundam-se no construtivismo. Acontece que há duas formas de perspectivismo que não funcionam assim, enquanto não admitem o dado fundamental do construtivismo, a saber, a afirmação de um sujeito agente e configurante do conhecimento. Numa delas, porque o seu perspectivismo tenta combinar-se com um problemático realismo (onde a presença de um sujeito que constrói os dados da experiência deve ser considerada

um absurdo, perturbadora da relação cognoscitiva), como é o caso da experiência do empirismo britânico de Locke, Berkeley e Hume. Noutra, porque se acredita que um sujeito que sustenta as perspectivas é um resíduo violento da metafísica da substância e da estabilidade que não tem mais razão de ser postulada. Este é o caso do perspectivismo de Nietzsche e dos nietzscheanos. Além desses modelos, há o construtivismo "estilo século XIX" (do qual Nietzsche representa a forma mais radical) segundo o qual não apenas o pólo objetivo da realidade é constituído, portanto não-natural, mundo humano, onde se encontram as coordenadas do desejo e do temor humanos (Feuerbach, Freud) e da vitalidade do espírito humano (Dilthey, Nietzsche); constituída é também a consciência constituinte, por isso finita e atravessada por linhas que não controla, visitada por influências que não domina (o desejo, as decisões na esfera econômica, a linguagem, o espírito objetivo etc.). Estes modelos de pensamento se inserem numa tradição das mais respeitáveis da história da filosofia, que praticamente se confunde com esse conjunto de categorias e intenções de pensamento que chamamos de modernidade, particularmente na sua filiação kantiana. Nos nossos tempos, esta forma de pensar se apresenta de forma particularmente intensa nas hermenêuticas construtivas, que não apenas libertam o texto das suas obrigações com a intenção do autor (o que foi uma conquista do "estilo século XIX"), mas o querem desobrigar também de quaisquer homenagens ao sentido textual, em nome da liberdade da intenção do leitor e intérprete. Não há como negar a verdade desta tradição. Desde Kant, vêm- se demonstrando que só podemos falar das coisas segundo a forma como as conhecemos, e na forma como as conhecemos as coisas estão necessariamente organizadas pelas leis do nosso conhecimento. Estas leis as organizam sejam no âmbito da situação, seja no âmbito da ordenação lógica. Situação, enquanto a temporalidade e a espacialidade com que as coisas se nos apresentam não são uma propriedade das coisas mesmas, nem uma relação entre elas que se possa apreender, mas decorrem das leis da nossa apreensão sensível, que unifica uma multiplicidade de notas sensíveis em sínteses temporo-espaciais. A temporalidade e a espacialidade são os modos como a nossa percepção sintetiza dados, constituindo-os em coisas individuais sistematizadas umas em face das outras e de nós mesmos como mais uma unidade sintética. Ordenação lógica, enquanto há uma lógica da percepção, mediante a qual se esquadrinha todo o campo do perceptível e do pensável como um conjunto de unidades sintéticas, inseridas em sistemas de relações. Uma ordenação por segmentação do continuum da experiência, por classificação dos seus dados em classes e gêneros, por interações e significações (a partir das quais estabelecem-se instruções contextuais ou inferenciais) na forma do juízo. Perspectivismo e verdade Esta tradição, entretanto, sempre revelou uma dificuldade, a partir da qual mesmo o realismo ingênuo considerou-se a ela superior; a verdade, afinal, tem que tornar-se um problema em um sistema onde se perde de vista as coisas em si mesmas. De fato, se as coisas que conhecemos não são as coisas em si mesmas, pois as percebemos já organizadas e essa organização é fruto de uma intervenção espontânea do sujeito, como se pode falar de verdade? Segundo uma interpretação comum, inspirada no aristotelismo medieval, verdade é a adequação entre a coisa mesma e a nossa representação ou a nossa enunciação a seu

respeito. Mentira ou falsidade, portanto, são justamente a inadequação, a não- conformidade entre esta e a nossa representação e discurso. Como quer que entendamos esta concepção, há um elemento inquebrantável aqui presente: a afirmação de que a coisa em si mesma deve representar o metro ou parâmetro pelo qual se avalia a representação e o juízo. Mas como tomar a coisa em si como parâmetro, unidade de avaliação, se justamente o acesso à coisa em si foi desqualificado definitivamente como uma pretensão ingênua e improvável? Se a coisa é sempre coisa-referida-ao- sujeito, como haveremos de ter um critério seguro e público a partir do qual, justamente, julgar a apreensão dos sujeitos e os seus julgamentos a respeito da coisa? Estaremos condenados a um isolamento nas perspectivas, de forma que toda pretensão de verdade finde por se transformar numa atitude nostálgica da metafísica da ipseidade e da gnosiologia da indiferença entre o ser que conhece e o ser para si mesmo? Diante disso, algumas possibilidades se abrem. A primeira delas é, evidentemente, um retorno aos modelos receptivistas do conhecimento, ou na sua forma grega (com a postulação da indiferença do cognoscente para o estatuto do ser que se dá a conhecer) ou na sua forma moderna como realismo (as coisas existem em si e por si, fora e independente dos mecanismos perceptivos humanos, porém dando-se a conhecer como tal, em sua integridade, apenas nos encontramos na situação apropriada) ou como objetivismo (a subjetividade deve obedecer a um acordo ético de passividade para não intervir e alterar os dados da percepção na experiência sensível e no pensamento). Mas isto não é uma solução e sim um problema. Como responder, então, às potentes objeções que a história da modernidade acumulou contra este modelo, do empirismo e Kant até os nossos dias? A segunda alternativa bem pode ser representada pelo empirismo de David Hume. Eu a chamaria, por isso, de paradoxo humeano. Nessa posição se reconhece que o perspectivismo é imbatível em sede teórica, mas claramente insatisfatório para o mundo da vida. Não há como negar que toda mirada é mirada desde um ponto, o ponto de vista, e que a situação do observador altera a disposição das linhas do quadro - para ficarmos na metáfora da perspectiva artística. Mas por outro lado, não há como orientar a própria existência levando a sério que não conhecemos as coisas em si mesmas, que os princípios que regem as relações entre as coisas são impostos pelos sujeitos etc. O perspectivismo conduz necessariamente ao ceticismo e o ceticismo jamais produziu alguma coisa boa para o conhecimento quotidiano no mundo da vida. Por outro lado, não há como não levá-lo a sério e o ceticismo decorrente é um destino de coerência intelectual. Resta a alternativa de nos tornarmos perspectivistas teóricos e realistas práticos. O que é uma posição claramente insuficiente. Não apenas porque revela um desamparo teórico enorme, ainda que sustentado por um impressionante bom-senso argumentativo, mas porque historicamente já foi descalçada mesmo no campo teórico. Aliás, contra o paradoxo humeano é que se constrói a alternativa kantiana - que introduz o sujeito, não a solução. Por isso a tentação humeana continua a correr livre mesmo em território kantiano. A terceira alternativa seria a aceitação do relativismo perspectivista como um dado efetivo e excluir o problema da verdade alegando ser essa uma questão desprovida de sentido. Nesse caso, a reposição da questão normativa representaria uma espécie de saudade metafísica ou teológica de algo como uma "idade do ouro" do conhecimento, onde os homens conheciam ou conheceriam as coisas como elas são em si e para si mesmas. Nesse caso, expressaria uma nostalgia por uma situação onde o nosso olhar seria um olhar que se auto controla absolutamente, na medida em que vê as coisas, sabe de si mesmo, e intervém para tirar a soma entre aquilo que vê efetivamente e aquilo que é produto da intervenção das leis do

nosso olhar: uma subjetividade extremamente forte que não apenas age espontaneamente, mas o faz também de forma voluntária e auto transparente. De um sujeito dessa proporção nada sabemos e nem sequer conseguimos imaginá-lo como um sujeito dotado da finitude da consciência humana. Mas poderia ser também um olhar que vê as coisas segundo a sua própria essência, um olhar de todos os pontos de vistas, inclusive daquele das coisas em si mesmas. Mas este não seria mais o olhar humano, mas o olhar de Deus. Nesse caso, a questão normativa torna-se (parafraseando Husserl) uma questão "luciferina", uma aspiração e uma revolta de quem se rebela por não poder ser Deus. Chegaremos, daqui a pouco, aos problemas do perspectivismo assim formulado. Antes disso vamos examinar a quarta possibilidade, que consistiria na aceitação da situação perspectiva, mas pretende incluir a questão normativa apenas como um dos mecanismos internos de onde se originam as perspectivas. Nesse caso, a verdade se revela como uma das aparições da vontade de poder ou vontade de reconhecimento de uma perspectiva por todas as outras. Antes, a vontade de poder é pura vontade de verdade; tudo depende de decisões vitais pré-conscientes, de forma que fica estabelecido como verdadeiro e bom aquilo que está a favor destas decisões e falso e mau aquilo que lhe se opõe. De fato, assim é possível falar-se de um parâmetro a partir do qual julgar-se representações e juízos. Mas este parâmetro não são as coisas em si, que neste perspectivismo claramente não existem, mas decisões vitais espontâneas que precedem o surgimento da ordem perspectiva mesma. Admitida a pluralidade de formas de vida, não há portanto como negar a seguinte proposição: não há verdade, mas verdades, cujas validades são relativas ao interior das fronteiras das respectivas formas de vida. Em Nietzsche, é dele que estamos falando afinal, assume-se afinal cinicamente que a perspectiva é o parâmetro para si mesma e, sofisticamente, que a vontade de ser reconhecido é a medida de todas as coisas. Limites do perspectivismo A alternativa perspectivista, assim formulada, tem claros limites. Alguns apenas aparentes, outros verdadeiros. Primeiro, limites provenientes do construtivismo em que se funda; depois, limites próprios do relativismo que dele consegue. Contra eles é possível apresentar algumas objeções bastante consistentes. Quanto aos primeiros, a primeira objeção diz respeito à pressuposição da consciência. O construtivismo parece ser um subjetivismo no qual a consciência constitui os dados da experiência num procedimento em que se controla ao mesmo tempo em que controla o seu agir. Em nossos dias, volta-se com particular vigor teórico contra essa idéia de consciência e subjetividade fortes, típicos da modernidade. A consciência e a subjetividade modernas revigorariam, na verdade, a metafísica da substância e da estabilidade gregas, transformando-a numa metafísica da "posição": o ser é posto pelo sujeito, é tese e, enquanto tal, perdura na sua integridade em face da consciência que o constituiu. Nesse caso, perderse-ia de vista a concepção do ser como evento, como retração-concedimento, como fulguração e fugacidade. Além do mais, o próprio sujeito permaneceria como uma presença dura e estável diante do fenômeno, herdando as propriedades da antiga substância. Ainda que se reconheça como legítimos os propósitos desta crítica, não há como se evitar uma impressão de (seja-me permitida a palavra) "quixotada". Explico-me: não há como evitar aquela impressão de desgosto que decorre de imaginarmos a cavalgada de D. Quixote, de lança em riste, contra os moinhos- dragões. De fato, nem na forma kantiana do construtivismo, nem nos modelos pós-hegelianos do século XIX essa crítica atinge o seu

alvo. A não ser que alguém insista em pensar o fato de que o sujeito da experiência constitui os dados desta mesma experiência como uma espécie de uma intervenção voluntária de uma consciência que se controla neste seu agir. Com efeito, não há nada de voluntário neste fato. Não é que a experiência exista primeiro e depois organize os seus dados. A experiência é atividade formadora, ordenante, organizadora de dados. Experimentar é apreender sistematizando os dados da realidade. Não se trata de voluntariedade, mas de espontaneidade; ou seja, trata-se de atividade, não de atividade precedida de projeto e acompanhada de reflexão e decisão. Sem falarmos no século XIX, onde, à luz da crítica hegeliana à filosofia moral de Kant, o construtivismo é sempre uma construção do sujeito construído por uma outra ordem de coisas. A segunda objeção que se volta contra o construtivismo é um pouco mais séria. Na verdade, atinge mais duramente o modelo do século XIX. De fato, se os modelos de conhecimento do século XIX têm uma clara vantagem sobre a Filosofia da Consciência do século XVIII vantagem que decorre da sua herança hegeliana - essa consiste na sua tematização da finitude da consciência. É verdade que o homem continua em seu papel ativo de sujeito constituinte da realidade que, portanto, deixa de ser realidade natural para ser realidade humanizada, mundo histórico. Entretanto, a consciência conserva consigo, em seu ato constituinte, as marcas da sua inscrição em uma ordem objetiva que, de algum modo, a determina. Para Humboldt, essa ordem é a linguagem e as suas estruturas de ordenação do pensamento e classificação do mundo, nas quais os indivíduos singulares, em seu exercício de apreensão/constituição dos objetos, podem, de fato, apreender algo como objeto. Para Feuerbach, esta ordem é o horizonte das possibilidades do gênero em face da percepção reflexiva das limitações individuais. Para Marx, a consciência inscreve-se na ordem da economia política, isto é, no âmbito das decisões que concernem à produção material da vida. Para Dilthey, a ordem da inscrição da consciência é a vida tornada história, objetivada nos sistemas das formas sociais, das línguas, da civilização etc. e organizada em conexões teleológicas. Para Freud, o exercício privado e individual da consciência se inscreve no horizonte da própria história privada, no cruzamento de seus desejos e realidades, nos fragmentos da sua incontrolável memória. Em sendo assim, a questão normativa assume aqui uma feição ainda mais complicada que na Filosofia da Consciência. A inscrição da consciência em ordens prevenientes, torna o interesse normativo - isto é, o interesse cognoscitivo - enquanto exercício dessa mesma consciência, uma coisa extremamente tensa. Uma tensão que não diz respeito apenas ao conhecimento da realidade (como na Filosofia da Consciência), mas agora também ao conhecimento de si e do outro homem. Com efeito, o problema dessa vez não é simplesmente a perda da unidade de mensuração ou parâmetro resultante da eterna fuga para longe da "coisa em si", mas sobretudo a perda da instância capaz de mensuração, a desqualificação do avaliador e juiz. Ao indefinido distanciar-se da "coisa em si" da Filosofia da Consciência, acrescenta-se agora o infinito distanciar-se da consciência de si mesma. Como pode avaliar uma consciência interessada ou dominada por ordens que determinam a sua própria avaliação, condicionam o seu próprio juízo. Como diz Nietzsche, a consciência torna-se a voz do rebanho e nada mais. Claro, a maioria dos pensadores não se davam conta ou não aceitavam essa conseqüência do próprio pensamento. As soluções apresentadas, entretanto, são na sua maioria contraditórias ou cínicas. Marx e Freud, por exemplo, continuam afirmando a possibilidade de um discurso verdadeiro, mesmo havendo postulado com radicalidade a finitude da consciência,

sem dar-se conta de que dessa posição deriva necessariamente o seguinte paradoxo: ou as consciências são finitas e a verdade incontrolável, ou a verdade é possível e as consciência não são tão finitas assim, ou, enfim, as consciências são finitas, mas nem todas. Não há como evitar a impressão de que a terceira opção tenha sido a preferida. Assim, todas as consciências são perpassadas pelos interesses econômicos e todos os discursos podem ser visitados pela ideologia, menos a consciência e o discurso de Marx e Engels, imunes a tais padecimentos pela "cientificidade" das próprias posições. Do mesmo modo, todos os discursos e consciências são atravessados por linhas pulsionais incontroláveis pela consciência mesma, menos o discurso e a consciência dos analistas, salvos pela profilática científica. Ou, então, tanto economistas-políticos quanto analistas são capazes de, mesmo sujeitos ao interessamento econômico e à economia libidinal, isentarem-se voluntariamente dessas injunções, para constituírem interpretações verdadeiras acerca do mundo, de si mesmos e dos outros. De que modo? e com que justificativa? restam, todavia, perguntas suspensas, perigosamente oscilantes entre um paradoxal realismo (além do mais "cientificista") e um construtivismo incoerente. Por outro lado, a tensão torna-se uma hipótese de suspeição hermenêutica em face dos discursos dos outros. Como a consciência alheia é também submetida a essa determinação por outras ordens, disso se deriva claramente que a verdade do discurso dos outros não está naquilo que eles dizem, mas na relação complicada entre aquilo que é dito explicitamente e aquilo que implicitamente está presente neste dizer como visitação de uma instância preveniente. Se entendermos o discurso como expressão, portanto como texto, haveremos de admitir que a verdade do texto não está nem na intenção do autor, nem no seu sentido textual, mas naquilo que "visita" a ordem textual como a sua "sombra". Assim, o explícito no texto torna-se fragmentos de sentidos, indícios e rastros de uma verdade que está além dele. O texto se transforma numa coleção de pistas e sintomas que remetem sempre para uma fonte de sentido, a ordem onde se inscreve a consciência e que a determina. Esta ordem não silencia na letra do texto, mas é elusa, quer dizer, é calada enquanto nome, enquanto não eliminada como presença. O interlocutor, no caso o leitor, torna-se um intérprete, um cuidadoso hermeneuta à cata de pistas e instruções que lhe permitam indicar naquilo que é patente as marcas de um sentido latente. A interpretação torna-se uma atividade agônica, desconfiada, que incessantemente vai do texto à sua origem de sentido (reconstruindo abdutivamente a partir do dito uma ordem silenciosa de interesses ou uma ordenação quieta de sentido), ao seu pré-texto/contexto, e dessa ordem preveniente aos textos que a refletem. Epistemologicamente sustentam as suas leis pelo exemplo do texto e explicam os textos pelas suas leis, numa perigosa proximidade com o círculo vicioso. A esse ponto não se pode mais garantir se estamos diante de uma crítica da razão ou de um hiper-racionalismo. As reservas quanto a esta posição dizem respeito a dois pontos. Em primeiro lugar, enquanto faz conviver, sem justificativas satisfatórias, uma radical teoria da finitude da consciência com uma teoria da verdade entendida como faculdade de crítica. Não há como eliminar a impressão de que estes autores transformem a relação entre realismo e construtivismo numa relação entre uma questão de direito e uma questão de fato, como no argumento a seguir: i) de direito, o conhecimento deveria se regular pelas coisas em si mesmas, já que são as coisas o termo do conhecimento; ii) de fato, porém, isso não acontece porque e quando uma instância preveniente de constrições submete a consciência à sua ordem; iii) por conseqüência, a consciência perde a possibilidade de uma abordagem das coisas em si mesmas e de submeter-se à sua regulação; iv) portanto, é preciso instaurar

práticas terapêuticas que possibilitem a emancipação da consciência dessa ordem de injunções, deste elemento perturbador, para que a relação de direito possa tornar-se também uma relação de fato. Desse modo, retornamos ao realismo ingênuo e expomo-nos a toda a tradição de críticas que a ele se tem feito - de forma muito sensata, aliás. Em segundo lugar, a desconfiança interpretativa necessária à "terapia" e à "profilaxia" do exercício da consciência gera uma espécie de "desperdício" interpretativo assaz indesejável. Numa hermenêutica da suspeita não há vácuo, não há gratuidade, não há acaso. Como o sentido real nunca é evidente, é mais prudente, então, partir do pressuposto que tudo pode ter sentido, mesmo aquilo que aparentemente é pausa, gratuidade e casualidade. Toda e qualquer coisa pode fazer sentido. Uma hermenêutica dessa natureza é uma atividade tão tensa e enervante quanto a situação de um caçador encurralado à noite por um animal selvagem que, de arma em punho e não sabendo onde está a fera e nem de que fera se trata, atira em tudo o que se move na esperança de que o seu alvo seja atingido. Os caçadores de sentido, desperdiçam munição interpretativa com os seus jogos abdutivos onde os sentidos textuais nada significam. Uma hermenêutica do sentido oculto é, a rigor, mais uso do que interpretação dos textos. Nesse caso, a verdade ou está perdida pelas veredas da interpretação ou torna- se praticamente um botim "esotérico" de uma razão forte in terra caeccorum. Enfim, há objeções que atingem todo perspectivismo, mesmo na sua forma nãoconstrutivista. A primeira delas é uma velha objeção que sempre pode ser apresentada com grandes chances de sucesso contra qualquer negação da possibilidade de verdade, que consiste em demonstrar a sua contraditoriedade. E aqui não importa se o perspectivismo negue a possibilidade do parâmetro objetivo do julgamento (a coisa em si mesma) ou se transforme a verdade num dos elementos da perspectiva (não há verdade, mas verdades). É claro que há diferença entre as duas situações - no primeiro caso a verdade de um julgamento é indeterminável pela inacessibilidade do parâmetro de juízo e, no segundo, torna-se verdade aquilo que numa perspectiva é decidido como tal, a perspectiva constitui parâmetro para os seus próprios juízos. Em comum o fato de que a verdade, em sentido público e universal, é perdida de vista. Em seu lugar, a incerteza pelo fato de nunca saber se se alcançou ou não a verdade (na primeira posição), ou o contentamento com uma verdade privada (na segunda posição). A primeira posição parece encaminhar-se para o ceticismo, a segunda encaminha-se certamente para o relativismo (do ponto de vista do conceito de verdade privada) e/ou para o niilismo (do ponto de vista do conceito de verdade pública). Vamos supor que diante de uma notícia qualquer alguém afirme: a) a sua verdade ou falsidade são de qualquer forma indetermináveis porque não temos o fato como um parâmetro a partir do qual avaliá-la. Não o temos, não apenas porque a notícia pode falar de coisas que nós não podemos experimentar diretamente (a guerra na Iugoslávia, p. ex.), mas sobretudo porque mesmo na percepção direta a nossa experiência intervém de forma a constituir os seus dados, segmentando espontaneamente uma unidade dramática no contínuo dos eventos, valorando implicitamente os seus elementos, fazendo entrar em jogo os conhecimentos anteriores da testemunha, a trama dos próprios desejos e dos próprios interesses sociais na organização dos seus materiais etc., de forma que o presumido "fato em si mesmo" não está ao nosso alcance quando o percebemos tão pouco quanto quando o enunciamos. Contra um tal ceticismo há apenas um argumento: é estranho e mesmo contraditório que o cético sustente a impossibilidade de estabelecer a verdade acerca dos fatos, quando o fato de

que das notícias não se possa afirmar se são verdadeiras ou falsas é por ele tido como definitivamente verdadeiro. Assim, há pelo menos um fato de que se deve poder estabelecer a verdade, o fato de que as notícias têm a sua verdade indeterminável. É inútil o estratagema de que se pode lançar mão na tentativa de escapar do dilema, afirmando que na proposição cética se fala de notícias enquanto na objeção fala-se de fatos, porque podemos adaptar semanticamente o reparo lógico que fazemos, a saber, do seguinte modo: é contraditório que devamos aceitar como verdadeira uma declaração acerca da notícia quando declaramos a impossibilidade da verdade e/ou falsidade de qualquer declaração - suposto, como é óbvio, que a notícia é uma forma de declaração como todas as outras. Assim, o cético descobre-se um não-cético quanto ao ceticismo e, por conseguinte, se quer a vitória do seu ceticismo, um radical defensor do não-ceticismo. O que é elementar. Mas há ainda a posição relativista que afirmaria de uma notícia qualquer: b) a sua verdade ou falsidade são relativas, enquanto serão sempre verdade-para-alguém ou falsidade-paraalguém, visto que o parâmetro para a sua avaliação exige um olhar em perspectiva e é dado dentro do horizonte da perspectiva onde o avaliador se situa. Mesmo porque assim como seria inútil buscar um ponto de vista que não seja vista desde um ponto, seria inútil tentar sair da perspectiva em busca de uma fantasmagórica objetividade. Para onde quer que nos "movamos" em busca do universal e público a perspectiva move-se conosco e se refaz; mesmo se dela "sairmos" será sempre para uma outra perspectiva. Contra o relativismo só podemos demonstrar a não- relatividade da posição segundo a qual a verdade é relativa. O argumento é o mesmo apresentado contra o ceticismo e visa simplesmente mostrar como o relativista é obrigado a negar a própria posição, portanto a afirmar aquilo que nega, ao sustentar pelo menos uma verdade absoluta (pública e universal): a verdade pública de que não há verdade pública, o absoluto princípio segundo o qual tudo é relativo. A última objeção contra o perspectivismo na verdade se apresentou em todas as objeções até aqui formuladas. Trata-se de um reparo que se refere a uma conseqüência problemática do perspectivismo. Digo problemática, não simplesmente perigosa. Um pensamento não pode ser rejeitado porque suas conseqüências são perigosas, mas pode, no mínimo, ser reparado, se as suas opiniões são problemáticas e ser negado, se levam ao absurdo. O sério limite do perspectivismo consiste no fato de que aceitas as suas premissas com relação ao problema da verdade e falsidade dos enunciados a respeito dos fatos, isto é, das notícias, não há como negar a perda de toda dimensão crítica. Não temos mais critérios para distinguir entre interpretação e uso, entre a má-fé tornada notícia e a tentativa honesta de narrar os fatos, entre uma boa e uma má interpretação de eventos. Porque evidentemente não se trata apenas da impossibilidade de detectar- se a verdade, como também, reciprocamente, de identificar a mentira como mentira. O que não agride apenas o bom senso formado segundo a lógica (como na objeção anterior); também às regras mínimas da convivência a partir da comunicação. A comunicação mesma, se não chega a tornar-se impossível (é de se esperar que alguém eventualmente diga a verdade, portanto, comunique lealmente), no mínimo torna-se infernal. E como ela precisa regular-se sobre parâmetros públicos, isto é, abertos à compreensão intersubjetiva, e estes parâmetros são indiferentes ao par verdade-falsidade, ela finda por inventar-se outros parâmetros, como nos cálculos de ganho da atual retórica eleitoral.

Para um conceito perspectivista de verdade Estamos diante de um paradoxo. De um lado o perspectivismo, em princípio, parece muito bem fundado e dificilmente refutável em suas grandes linhas. Conhecer é, efetivamente, construir, organizar e interpretar e não apenas espelhar ou refletir os dados da experiência. Por outro lado o perspectivismo parece nos conduzir para uma conseqüência pouco sensata, a negação da possibilidade de aferição da verdade ou falsidade de uma proposição, por conseguinte, para a descartabilidade do conceito de verdade. Acontece que a descartabilidade do conceito de verdade não apenas traz consigo conseqüências problemáticas para o perspectivismo - a autocontraditoriedade lógica, a perda da possibilidade da crítica etc. -, mas é facilmente refutável. Basta um pouco de bom senso argumentativo para que percebamos que apenas retoricamente o conceito de verdade (poderia mesmo dizer "de verdade absoluta", se não corresse o risco de tautologia) deixa-se abater de fato pelas objeções céticas ou relativistas. Com efeito, a possibilidade de qualificar as proposições acerca do estado do mundo do ponto de vista da sua verdade ou falsidade parece ser antes de tudo uma exigência pragmática da interação comunicativa. Em princípio, as pessoas devem ser capazes de dizer a verdade sobre as coisas e os seus discursos devem poder ser aceitos como tal. O perspectivista objetaria que, na verdade, eu estaria aqui confundindo sentido e validade que são exigências pragmáticas efetivas - com verdade. Uma proposição deve ter sentido (deve ser semântica) e ser válida (pretende valer contra qualquer outra que se lhe oponha real ou virtualmente), mas não existira dentre as regras pragmáticas a exigência de qualquer coisa como verdade e mentira. Ao que respondo que é verdade que algumas proposições precisam apenas de validade e sentido - Aristóteles foi o primeiro a reconhecê-lo - mas há um certo tipo de proposição que retira sentido e validade da possibilidade normativa, isto é, da possibilidade de ser verdadeira ou falsa. Estas proposições são aquelas que pretendem referir-se à realidade, aos fatos internos e externos, a uma entidade que, de algum modo, habita o discurso mas é extra-discursiva de princípio. E todo mundo pode reconhecer que a proposição "dá-me um beijo" tem exigências pragmáticas (também semânticas e, no caso, materiais) diferentes da proposição "Maria beijou João" ou "eu vi Maria beijando João". No primeiro caso temos sentido e validade mas, a rigor, não temos manifestação ou enunciação, portanto não temos verdade ou mentira. No segundo, temos sentido e validade, mas não há como negar que se deve poder dizer se, efetivamente, Maria beijou João e se alguém viu isso. Claro, posso sempre tomar a expressão "Maria beijou João" no mesmo sentido que a expressão "Valha-me Deus!", mas isso só prova o que Aristóteles dizia, que todos os discursos são semânticos (mas só alguns apofânticos) [1] e não que em circunstâncias normais não é importante saber o que efetivamente ocorreu com Maria e João. Caso contrário não há mais como distinguir uma declaração que se refere à realidade de uma descrição acerca de um mundo imaginado ou imaginável. Não há, pois, como refutar o conceito de verdade. Nem mesmo recorrendo aos procedimentos da "ciência lingüística" nietzscheana segundo a qual a verdade é um hábito mental, um vício herdado de incorretas posturas lingüístico-culturais da nossa civilização. Isso prova, no máximo, que este é um forte hábito de pensamento, não que seja falso. Nem mesmo pode-se dizer que o ceticismo e relativismo são refutáveis apenas admitidos os princípios lógicos de não-contradição, de identidade e do terceiro excluído do modo de raciocínio ocidental (o modus ponens: se p, então q; mas p, logo q), que são justamente

aquilo que se quer refutar como dotado de força absoluta ao se rejeitar o conceito de verdade. Nesse caso, podemos apenas indicar que os princípios lógicos são antes de tudo princípios que regulam o sentido das proposições, e que uma vez negados nega-se também o sentido de qualquer proposição, até mesmo da proposição que nega qualquer sentido. O que é ainda mais fortemente autocontraditório que a negação da possibilidade da verdade. Mas não precisamos ir tão longe. Afinal, trata-se de compreender esta conseqüência implícita do perspectivismo e não de refutar um irracionalismo qualquer. Uma conseqüência que, desde Hume e Kant, pelo menos, vem sendo experimentada como um escândalo do pensamento crítico. A primeira pergunta deve ser, portanto, se esta conseqüência do perspectivismo deve necessariamente ser pressuposta. Nesse caso, precisamos nos questionar sobre as razões específicas pelas quais o perspectivismo não parece combinar com um conceito (forte) de verdade. A resposta parece-me bastante evidente. Pareceria, de fato, que o conceito de verdade choca-se contra um dos muros fundamentais do arcabouço do perspectivismo: a oposição entre "coisa em si" e "coisa para nós", entre noumenon e fenômeno. Para que um enunciado acerca da realidade pudesse ser considerado verdadeiro ou falso seria necessário que conhecêssemos a realidade em si mesma, mas a realidade em si mesma é, por definição, incognoscível. Seria possível contornar esta dificuldade? Penso que há, pelo menos, boas pistas para uma tentativa de solução, portanto de introdução do problema normativo no perspectivismo. a) o absoluto e o relativo Partamos do seguinte pressuposto inegável: uma grande parte dos discursos quotidianos (os discursos apofânticos) tem sempre embutida uma pretensão de que aquilo que nela se diz é verdadeiro: pretensão de verdade. Mas quais são as condições necessárias e indispensáveis para que existam discursos semânticos apofânticos, discursos com sentido e pretensão de verdade ao mesmo tempo? A condição mínima para a semiose, para a significação, como ensina Peirce, é a comunicação: a possibilidade de que algo esteja em referimento a outra coisa sob certo aspecto ou capacidade para um intérprete possível. Assim, estão enumerados os requisitos mínimos da significação (e da argumentação): i) signos ou unidades mínimas de referibilidade, ii) aquilo a que os signos remetem e que por necessidade está "ausente" materialiter da ação significante (é, portanto, sob este aspecto, extra- sígnico), e iii) comunidade real de significação/comunicação na qual se inscreve a iv) regra ideal da interpretação. Mas a semanticidade é a situação fundamental dos discursos, de modo que deve poder ser desdobrada em várias formas específicas: o discurso poiético (que visa produzir "paixões" ou efeitos de sentido) ou outras formas de discurso (a ordem, a súplica) que visam produzir re-ações e, enfim, o discurso apofântico (enunciativo ou manifestativo), que visa produzir conhecimento a respeito da realidade. A condição mínima para a "apófanse" é a significação, com fins cognoscitivos. Assim, os requisitos mínimos da declaração são os mesmos da significação, mas a condição cognoscitiva exige que o "remetimento" seja agora controlado por um outro princípio, uma deontologia da informação. O trânsito significativo não visa produzir paixões d'alma, como nos discursos poiéticos, ou efeitos de comportamentos, como na súplica, mas noções acerca de algo. Com isso, entretanto, não se renuncia à soleira mínima da significação: o conhecimento não é possível a não ser no contexto da comunidade da comunicação mediada

por signos e pela interpretação de signos. Nesse caso, como deve ser aqui pensado o "ausente" referido pelo signo? Como aquilo do qual justamente se pretende obter noções, conhecimento. O "estar por alguma coisa", da definição de signo, significa a distinção entre o signo e aquilo que no signo faz-se significar. E este "aquilo que no signo faz-se significar" é, para dizê-lo da maneira mais geral, um conteúdo da nossa experiência, mais especificamente da experiência comum da comunidade de intérpretes. Nesse caso, de algum modo, mediante a referência nos referimos, em última instância, a dados de fato, ao mundo real que, por conseguinte, tem algo de absoluto. Mas o que significa isto? Uma reintrodução da chamada "falácia do referente" (isto é, da falácia segundo a qual o significado de uma proposição é a coisa em si mesma no mundo) no discurso apofântico quando ela já foi mostrada falsa na semiose? Não. Apenas a constatação de que há uma pressuposição incontestável do mundo real em toda apófase: os homens podem falar de significados, mas normalmente falam sobre os fatos, ainda que este "falar sobre" seja essencialmente mediado. Devo a Apel a percepção de que há que se postular inevitavelmente duas coisas a esse respeito: a) o termo e meta da apofânse, o real, só pode ser pensado como algo constituído perceptiva e linguisticamente (tese perspectivista); b) o termo e meta da apófase, o real, deve poder ser pensado como aquilo que de algum modo é absoluto e indiferente ao nosso conhecimento (tese dogmática). É verdade que apenas o discurso (sobre as coisas) segundo a ordem do nosso conhecimento das coisas, que é sempre intervenção organizadora e não mera recepção passiva de um conjunto de dados definitivos, é um discurso sensato - a tradição pós-cartesiana o demonstrou abundantemente. Se com isso se desqualifica o discurso (sobre as coisas) segundo a ordem da verdade mesma das coisas, não se segue daí, porém, que não se possa supor as coisas como existentes em si mesmas "fora" do ato de conhecimento. É o equilíbrio complicado entre estas duas teses que verificamos nos perspectivismos cuidadosos de Locke, de Hume e de Kant. É a sua negação que finda no idealismo de Berkeley e Hegel. Não se reintroduz, com isso, o ponto de vista "do real para si", apenas se reconhece um dado fundamental de qualquer perspectiva: o ponto de vista é um limite (insuperável, aliás) e uma condição de possibilidade da visão, não uma condição de possibilidade da existência. Por isso, justamente, Kant separa a coisa para si mesma (existente) e a coisa disposta diante de nós organizada. Assim, ou nós assumimos que as coisas existem por si sós ou admitimos que as criamos enquanto tais a cada nossa visada: ou o perspectivismo prudente, ou o idealismo. A postulação da coisa em si não se dá, de princípio, no discurso segundo a ordem do nosso conhecimento, mas numa reflexão que "corrige" a disposição do conhecimento com uma ponderação logicamente fundada (assim como o arquiteto e mesmo o homem comum naturalmente "corrige", na sua relação com as coisas, os condicionamentos da perspectiva, indo além deles). Não se trata ainda de conhecimento: a coisa em si mesma é a coisa com que nos pomos em relação, só que fazendo abstração da ordem e das leis do nosso conhecimento; a coisa para nós é a coisa com que nos pomos em relação, só que situados num discurso que (coerentemente) só reconhece a validade da ordem do nosso conhecimento. Desse modo, os conceitos de "coisa em si" e de "coisa para nós", não podem ser opostos porque não são comensuráveis, emergem de dois procedimentos diversos de

consideração: a "coisa em si" só pode emergir se nós desligarmos, por arbítrio da lógica, o discurso segundo a ordem do conhecimento; a "coisa para nós" só pode emergir fora desse âmbito do "experimento lógico" se nos introduzirmos no conseqüente discurso segundo a ordem das percepções. Digo "por arbítrio da lógica" porque à situação onde podemos falar da coisa considerada em si mesma se chega através de procedimentos ilativos cuja única sustentação está justamente no fato de que se apoiam em mecanismos lógicos. A esses procedimentos recorrem, por exemplo, John Locke na afirmação da existência da substância e Immanuel Kant na postulação da "coisa em si", segundo uma mesma atitude básica: repugna à razão a idéia de que o nosso conhecimento crie ex nihilo os dados da experiência, parecendo mais razoável supor que as coisas primeiro existam, de forma ainda a ser precisada, para depois serem conhecidas. Os fenomenólogos, a partir obviamente de Husserl, vão falar aqui de uma Ur-thesis, ou seja, de que a existência do mundo funciona como uma tese originária, indemonstrável mas ao mesmo tempo imbatível, pressuposto absoluto de todas as atividades intencionais. Em assim sendo, a contraposição kantiana entre fenômeno e noumenon não peca por falsidade, mas por uma defecção que, eu diria, é sobretudo semântica - como se vê nas críticas que contra ela se move, de Hegel a Husserl. Ela finda por criar a completamente falsa impressão de que os incomensuráveis possam vir a ser comparados. A "coisa para nós" e a "coisa em si" são incomensuráveis porque não há qualquer ordem de discurso em que possam conviver e, portanto, contrapor-se. Cada uma pertence a uma ordem que, por necessidade, suspende a outra para existir. Uma "coisa para nós" é a coisa considerada segundo a sua relação conosco, portanto, a coisa mesma quando o nosso conhecimento é tomado como um sistema de referências. Uma "coisa em si" é a coisa considerada sem que se tome a nós como referência, portanto a coisa mesma suposta sem um sistema de referências. Quando Kant, na trilha dos empiristas, opõe "coisa para nós" vs. "coisa em si" comete um razoável engano. Só assim ele poderia ter criado esta peculiar e autocontraditória entidade de pensamento que é "a coisa em si incognoscível". Na verdade, as duas ordens funcionam de modo diferente: na ordem do conhecimento obviamente a coisa é percebida e pensada; na ordem absoluta a que se chega mediante ilações razoáveis a coisa não pode, obviamente ser pensada ou percebida (não se trata disso aqui), mas postulada, suposta. Uma coisa em si incognoscível só é possível através de um defeito argumentativo, que aplica à "ordem absoluta" as propriedades da "ordem do conhecimento". A coisa em si mesma considerada (no caso, postulada) não é nem incognoscível, nem cognoscível, a cognoscibilidade não lhe inere. b) o realismo crítico perspectivista Mas o que se ganha com a refutação da idéia de "coisa em si incognoscível"? A possibilidade de refutar ao mesmo tempo um perspectivismo idealista, cético e/ou relativista sem que se precise optar pelo dogmatismo ou realismo ingênuo. De fato, a coisa mesma, tarefa e meta do conhecimento, é atingida no ato de conhecer, é ela mesma e não uma outra coisa que deve ser conhecida; num processo de conhecimento realizado a coisa mesma é conhecida. Por outro lado, esta coisa mesma, que é meta do conhecimento, não é uma qualquer criação da experiência, mas a coisa enquanto tal e não há outra além dela. É bem verdade (e o perspectivismo nos ensinou isso) que o nosso conhecimento intervém sobre as coisas de algum modo "alterando-as", mas alterar aqui significa organizar, fazê-las

existir como pólo de uma relação cujo outro correlato somos nós. É bem verdade que a intervenção humana (nunca do indivíduo singular, porém) sobre o continuum da percepção, segmentando, classificando e pertinentizando não é uma intervenção de pouca monta, pois as coisas passam a se constituir para uma comunidade de sentido apenas depois dessa intervenção. O que é possível porque a realidade nos aparece sob a forma de um "continuum" em que não há nem pode haver indivíduos em sentido absoluto; como diz Peirce, à luz de Aristóteles, a realidade é um contínuo que nada na indeterminação. Mesmo assim, as coisas e fatos que nos aparecem na comunidade de sentido de que fazemos parte são para nós as coisas e fatos mesmos, meta e tarefa do conhecimento, e outras coisas não há. Tanto é verdade que, ainda que não abandonemos a tese de que a comunidade de sentido media absolutamente a nossa relação com o mundo - isso não significando uma mera ponte entre dois mundos preexistentes, mas uma correlação em que ambos se constituem -, de que esta é a condição de que algo para nós venha a ser mundo, ainda assim, este mundo-horizonte total de coisas e fatos não é um sistema de aparições fátuas ante o nosso aparato cognoscitivo, mas as coisas e fatos mesmos que podemos conhecer. Por outro lado, mesmo sem postular uma "coisa (e fato) em si incognoscível", deve-se admitir que o mundo mediado pela comunidade de sentido possui uma sua inércia. O que quer dizer que ele conserva uma espécie de autonomia, de independência do nosso conhecimento. O indivíduo não tem jamais a liberdade de decidir que aquilo que os outros percebem como esta unidade do continuum perceptivo "azul" seja, de fato, "verde"; se o fizer -e estiver em condições normais de percepção - ou os outros todos estão enganados ou ele será desqualificado em seu julgamento. O que quer dizer que aquilo que a comunidade de sentido aceitou como entidade real, destacando do "fundo" contínuo natural, é ao mesmo tempo "naturalizado" para os indivíduos daquela comunidade. Portanto, o que há para ser conhecido não é o continuum, mas as unidades-coisas ou unidades dramáticas (fatos), cuja medida superam a medida do conhecimento como exercício privado. Há, assim, um sentido natural das coisas e fatos, mas não deve ser entendido como o faz qualquer realismo ingênuo - os fatos e as coisas existiriam por si só indiferentes à experiência humana -, mas sim no sentido de que a diferença humana (o fato de que a presença do homem altera os dados da experiência) não significa que em cada ato perceptivo o indivíduo põe-se como construtor da realidade. Caso contrário terão razão aqueles que - diz-se - ironizavam Berkeley contando que ele às vezes voltava-se bruscamente para trás para ver se conseguia flagrar a realidade antes que o espírito tivesse tido tempo de produzí-la. Os atos perceptivos singulares, na verdade, refazem percursos já instituídos por uma comunidade de sentido, experimentando as suas classificações, pertinentizações etc. como fossem coisas naturais. Como de fato o são, porque esta é a única natureza com que temos a ver. Assim, o perspectivismo não parece incompatível como um realismo cuidadoso, crítico, no qual se sustenta, com bastante plausibilidade, que há um sentido "natural" das coisas (que na verdade é um sentido "ideal", decidido por uma comunidade de sentido), algo como um sentido textual. O conhecimento atual é, portanto, sempre limitado a um contexto instituído de sentido, que se caracteriza pela sua validade intersubjetiva que supera qualquer acordo voluntário, sendo na prática indiferente ao conhecimento pontual. Essa sua inércia é que provocou a idéia de "indiferença" com que desde o mundo grego se descreve o conhecimento e que a modernidade demonstrou ser falso. Tratou-se de uma espécie de hipostatização do sentido dado como válido e vinculante publicamente, apenas porque não

mais o experimentamos como cultura e sim como "natura". Apenas sobre esta instituição de validade é que é possível estabelecer-se qualquer consenso e qualquer imagem unitária da realidade, qualquer acordo universal sobre os significados e sobre a interpretação do mundo.. Disso deriva uma concepção que distingue o conhecimento, tomado em sentido abstrato, do qual se diz justamente que constitui a realidade, do conhecimento em sentido estrito, o resultado atual de um processo de conhecimento posto em ato por um indivíduo qualquer. Porque deste último deve-se dizer que enquanto tal (isto é, enquanto volta-se para conhecer as coisas e fatos) é finito e possivelmente não-definitivo. Finito porque em linha de princípio é falível. Não-definitivo porque a sua falibilidade provoca-lhe em princípio um risco de incompletude. O nosso conhecimento atual organiza os dados da experiência, mas os fatos e coisas reais não necessariamente coincidem com o que deles se pensa atualmente. O real não coincide com o que atualmente é conhecido. Caso contrário, por que as pessoas se engajariam num esforço de alcançar uma imagem unitária (e verdadeira) da realidade? Caso contrário, como entender os "outros" da comunidade de sentido, os não-aindacodificados que estão sempre a abrir brechas nos códigos da significação comum [2]? É bem verdade que sem o olhar de um intérprete o fato existe apenas como matéria asignificativa (não é um fato); mas é também verdade que a interpretação não faz do fato o que bem quer de forma que o mesmo fato em duas interpretações tornar-se-ia, a rigor, dois fatos. Porque um dado fato é interessante é que ele é capaz de suscitar interpretações diferentes, mas é por ele que nos interessamos e não pelas interpretações. Afinal, se apenas a interpretação legitimasse o fato, por que deveria ainda interessar-me por ele, quando já tenho as interpretações? Não há Kant ou Nietzsche que elimine a inércia e a "dureza" (a não-maleabidade, a não- ductibilidade exaustiva) da realidade diante de nós. Mas a cognoscibilidade das coisas mesmas implica uma conseqüência fundamental a esse respeito: as coisas e fatos são autônomos em face do nosso conhecimento em ato (ou atual), mas são cognoscíveis, abertos à possibilidade de virem a ser conhecidas. Por isso deve ser possível, em linha de princípio, alcançar-se uma interpretação unitária tanto dos significados quanto do mundo, portanto, o estabelecimento da verdade e falsidade de um enunciado sobre coisas e fatos. Ora, então retornamos à verdade? Sim, e sem sairmos do perspectivismo. Estamos tratando, obviamente, da verdade das proposições, o que significa referir-se à capacidade das proposições de "desvelarem", "desocultarem" ou "celarem" e "esconderem" as coisas e fatos de que falam. Verdadeiros, portanto, são os enunciados que descrevem as coisas e fatos e, assim, mostram, revelam como eles são. O perspectivismo nos ensinou que é impossível aceitar um conceito de verdade em que para ser verdadeiro o enunciado descritivo devesse descrever os fatos em si mesmos a prescindir de qualquer conhecimento possível destes, os fatos absolutamente em sua indiferença completa ao conhecimento. O realismo crítico perspectivista (que aqui é tomado em sentido peirceano e não no sentido popperiano) ensina que o enunciado descritivo deve poder descrever a realidade assim como a podemos conhecer, instituída numa comunidade de sentido. Aqui semiose e apófase encontram-se novamente. A apreensão de um objeto se dá acionando-se um processo de semiose ilimitada, como ensinou Peirce, no qual um signo é interpretado por outro signo num remetimento sem termo; entretanto, as passagens de um "nó" (para usar o termo de Umberto Eco) a outro são controladas por regras de conexão

legitimadas, validadas pela nossa história cultural, que é a nossa história do sentido. São essas e não outras. Mas o mesmo se dá na descrição de fatos. Um fato é, de certa forma, um organismo ou um sistema de relações internas que vemos porque já previamente as aceitamos. Este organismo é suficientemente frouxo e exige numa medida tão grande a cooperação da testemunha que o processo da semiose ilimitada que a sustenta concede às testemunhas a liberdade de estabelecer um imenso número de associações possíveis e uma variedade enorme de interpretações (resta, entretanto, ver-se para cada caso o conjunto de regras pragmáticas pelas quais o fato autoriza a colaboração de uma testemunha para autorizar e pôr em funcionamento o seu "sentido"). Entretanto, a sua inércia, instituída pela história cultural, de algum modo controla autoritariamente os possíveis percursos de sentido. É possível fazer com que um fato "diga" muitas coisas, é possível interpretá-lo de várias maneiras e, em alguns casos, num número potencialmente infinito de modos; o que não é possível e, sobretudo, não se pode fazer com legitimidade, é fazê-lo "dizer" o que não diz, interpretá-lo de qualquer sorte. A interpretação tem limites e estes limites são dados pela autonomia outorgada do fato. "Autonomia outorgada" sim, porém, de qualquer forma, autonomia, porque quem a outorga não sou eu. Como o espírito objetivo hegeliano, aqui a espiritualidade humana experimentase como objetividade, exterioridade, a liberdade como natureza e constrição. O que significa que as gramáticas dos jogos lingüísticos (para usar a feliz expressão de Wittgenstein) que regulam leituras e interpretações são por nós aprendidas dogmaticamente como regras da compreensão do mundo e da ação. Nesse dogma originário é que se estabelecem os nossos hábitos lógicos e epistemológicos mediante os quais nos voltamos para a realidade e a reconhecemos. Assim, o fato é percebido/interpretado segundo uma estratégia complicada de interações que necessariamente há de envolver também as testemunhas-intérpretes e à sua competência semiósica ou seja, à sua capacidade de (enquanto indivíduos inculturados e socializados) conhecimento do patrimônio público semiósico, dentre as quais as categorias perceptivas como instituições inerentes à comunidade de sentido. Esse patrimônio semiósico, no qual e com o qual cada testemunha-intérprete age e conhece, não é apenas um conjunto de regras de articulação e sentido (a língua e a lógica), mas também uma enciclopédia ou o complexo histórico dos percursos inferenciais que se constituiu através da prática das regras de articulação e sentido, as instituições sociais que tais regulamentações produziram e a história das interpretações precedentes dos fatos, inclusive das recorrências análogas ao fato que se está testemunhando. Portanto, apreender um fato significa interpretá-lo, mas interpretar significa reagir diante do fato entendido como mundo; a interpretação, de qualquer sorte, como diz Umberto Eco, não é produzida pela estrutura da mente humana, mas pela realidade construída pela semiose. Se a proposição verdadeira é aquela cujo conteúdo corresponde aos fatos, significa então que "corresponder" aqui deve ser entendido como adequar-se à realidade em sua naturalidade instituída, àquilo que o conhecimento (em sentido geral) determinou como realidade. Por outro lado, como o nosso conhecimento atual e pontual é falível, conhecer os fatos significa apreender, mediante todos os critérios e instrumentos a que nosso conhecimento pode recorrer, aqueles dados que reconhecemos como realidade. Portanto, não há como negar dois pressupostos: a) os julgamentos que constituem os enunciados podem ser confrontados (e corrigidos) com uma natureza (instituída) que está diante de nós inerte e absoluta; b) um processo de investigação ou entendimento deve ser em princípio

capaz de alcançar um acordo último sobre a interpretação dos fatos, sobre aquilo que para nós deve afinal ser aceito como efetivo. A verdade deve ser entendida, portanto, como uma interpretação última virtual acerca das coisas, dos fatos, em suma, do mundo. Essa interpretação última deve poder ser atingida pelos atos singulares de conhecimento e manifestada nos enunciados. Nem sempre o é, porém. De qualquer forma, ela deve necessariamente ser pressuposta uma vez admitida uma instituição de sentido válida publicamente. A dificuldade é que como o parâmetro é a comunidade de sentido e esta não existe como mais uma coisa inerte da realidade, ela não pode funcionar tampouco como a "coisa absoluta" do realismo ingênuo, um protocolo claro e imediato dado "a priori " de modo que seria sempre muito nítido o que é verdadeiro e o que é falso. A virtualidade da interpretação última significa que ela é sempre possível, mas a sua determinação é sempre "ideal", ou seja, funda-se na comunidade de sentido, que não existe em parte alguma como coisa dada, mas revela-se apenas na constrição exercida sobre os conhecedores e significadores pontuais. Assim, a verdade deve ser entendida como a interpretação última a que se chegaria numa argumentação sobre a qual pode exercitar-se a coerção da comunidade de sentido. Essa comunidade ideal de sentido não precisa concretizar-se numa comunidade real de argumentação a cada vez (embora às vezes seja exatamente esse o caso), mas precisa sempre funcionar como horizonte normativo e regulativo para cada indivíduo singular ao conhecer ou significar. Como diz Petrucciani, comentando Apel, propor uma tese como verdadeira significa asserir que não apenas uma comunidade real, determinada e pontual de comunicação e sentido deveria aceitá-la como tal, mas que uma comunidade ideal e ilimitada de argumentantes deveria outorgar-lhe o seu consentimento fundado. Como esse acordo nem sempre é detectável, em princípio toda verdade empírica deve ser considerada como falível e revisável. Essa falibilidade, deve pressupor, portanto, um "sentido próprio" do fato. Assim, se um fato é "aberto", de qualquer forma tem o seu sentido próprio, pode suscitar infinitas leituras e interpretações, mas não autoriza a todas. Como esse sentido próprio é mais uma tarefa do que um dado pronto, torna-se problemático estabelecer qual a melhor interpretação de um fato, embora seja de qualquer modo possível dizer quais são as interpretações erradas e mentirosas. O que seria, portanto, uma notícia verdadeira? Aquela sobre a qual deve ser possível um acordo universal realizado por uma comunidade ilimitada da comunicação. Dito de outra forma: aquela que de algum modo alcança o sentido próprio de um fato, portanto conformando-se nos limites dos percursos interpretativos dogmaticamente instituídos por uma comunidade de sentido. Para autores como Apel ou Habermas, disso deve emergir uma ética das relações argumentativas que concretizam a comunidade ilimitada da comunicação. Para Popper e o racionalismo crítico popperiano (Hans Albert, p. ex.) decorre uma epistemologia falibilista. Para Eco, a defesa do sentido literal e o estabelecimento de limites da interpretação. Chegamos, assim, ao termo de um percurso e ao começo de outro horizonte de problemas. Parece plausível agora a legitimidade do conceito de verdade e a possibilidade, em princípio, de esta ser alcançada pelas nossas proposições acerca dos fatos. Tudo isso a partir da idéia de sentido próprio instituído dos fatos. Ao mesmo tempo, entretanto, introduz-se a discussão sobre como se pode intervir voluntariamente, na interpretação e na apreensão, para aproximá-los do sentido próprio de um fato. A questão dos procedimentos voluntários

para que se possa corrigir e/ou melhorar os enunciados que visam propiciar conhecimento sobre os fatos da realidade ou, na linguagem do século XIX, a questão da crítica. Porque quando se postula que o sentido próprio de um fato é vinculado à comunidade de sentido, ao mesmo tempo sustenta-se que a discussão sobre a verdade da notícia não pode satisfazer-se com uma discussão sobre a apreensão espontânea do fato. Esta apreensão, que é sempre uma interpretação, é o resultado do processo através do qual a testemunha, posta diante do sistema de relações que é o fato, o preenche (satura, em linguagem fenomenológica) com um significado. É preciso encaminhar a discussão para um outro patamar, no nível daquele tipo de apreensão e interpretação que resulta de uma atividade metalingüística, portanto reflexiva, capaz de descrever e de explicar por quais razões formais um fato determinado produz determinada resposta. Por detrás disso, a motivação óbvia de que o homem não apenas percebe, mas além disso raciocina, pensa, sobre o que percebe, sendo capaz, nesse ato, de exercitar uma intervenção (falsificadora ou crítica) sobre aquilo que apreende, para ocultar ou para manifestar. Daí a necessidade da crítica, não apenas para a) corrigir eventuais defeitos da apreensão, como também para b) libertar as interpretações da sua unilateralidade pela argumentação desprovida de coações à luz da comunidade ilimitada da comunicação e c) desmascarar as distorções voluntariamente inseridas no âmbito da interpretação. A entrada nessa questão - que deixaremos para outra oportunidade - implica, na verdade, em refazer os passos de três grandes debates do pensamento contemporâneo. O primeiro deles, nos anos ao redor da segunda grande guerra mundial, consistiu num debate epistemológico entre o falibilismo de Karl Popper e o verificacionismo do Círculo de Viena. Depois, no curso dos anos sessenta, o debate metodológico entre a crítica da ideologia defendida por Habermas e a ontologia hermenêutica de Gadamer. Enfim, o debate ainda aberto (na verdade uma batalha unilateral) onde Umberto Eco, em defesa do sentido textual, insurge-se contra a hermenêutica desconstrutivista, representada particularmente por Derrida. Nos contentemos, por enquanto, em insistir sobre os "direitos" do fato diante da interpretação, decorrente da autonomia de sentido instituído. O que equivale a insistir em que os percursos interpretativos são apenas potencialmente infinitos. Na verdade, são intersubjetivamente limitados, socialmente codificados. Não há apenas fatos; não há tãosomente interpretações. Há verdade e há perspectiva. O importante é não perder de vista a tensão da convivência destes dois termos imprescindíveis. Verdade na perspectiva, não verdade da perspectiva. NOTA [1] No segundo livro do Organon, Sobre a interpretação (17a), Aristóteles afirma: "Toda locução [lógos] tem um significado [semantikós], ainda que não natural [órganon], mas, como afirmamos, instituído [káta synthéken]. Por conseguinte, nem toda locução é uma enunciação [apophantikós), só o sendo a locução em que há verdade ou falsidade, o que não sucede em todos os casos. Assim, uma súplica é uma enunciação, mas não é nem verdadeira, nem falsa". Traduzida mais literalmente a primeira parte, teríamos: "Todo discurso (oração, proposição) é, então, semântico (significativo), não de forma natural, mas

segundo instituição. Mas nem todo discurso é apofântico (manifestativo); só aquele em que há verdade ou falsidade". Nesse caso é mais clara a distinção entre lógos semantikós e lógos apophantikós. O horizonte da afirmação de Aristóteles é a relação (não meramente verbal) entre sujeito e predicado, que, segundo ele, inclui análise (diáiresis) e síntese (synthesis). Estas duas operações podem desvelar ou vedar o acesso à realidade das coisas, portanto, serem verdadeiras ou falsas. O que vale tanto para a afirmação (katáphasis) quanto para a negação (apóphasis). Já o tipo de oração a que inerem análise e síntese é chamada de apophantikós, entendendo ele que tanto na operação sintética quanto na analítica há sempre manifestação, declaração a respeito do estado das coisas. No curso do texto falarei de apófase como a operação propositiva que possibilita o discurso apofântico e não no sentido da apóphasis ou operação sintética negativa. [2] Cf. a esse propósito W. GOMES, "Metáforas da diferença: a questão do inteiramente outro a partir da teoria da realidade como construção". In: Trans/Form/Ação, 15 (1992): 131-148. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AA.VV. Hermeneutik und Ideologiekritik, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1971. ALBERT, Hans Tratado da razão crítica (trad. Idalina Silva et al.), Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1976. --- "Die angebliche Paradoxie des konsequenten Fallibilismus und die Ansprüche der Transzendentalpragmatik". In: Zeitschrift für philosophische Forschung, 41 (1987): 421428. APEL, Karl-Otto Transformation der Philosophie, 2 vols. Frankfurt am Main: Suhrkamp 1973. --- Der Denkweg von Charles Sanders Peirce. Eine Einführung in den amerikanischen Pragmatismus, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1975. --- "C.S. Peirce and the Post-Tarskian Problem of an Adequate Explication of the Meaning of Truth: Towards a Transcendental-Pragmatic Theory of Truth". In: The Monist, 63 (1980): 386-407. --- "Three Dimensions of Understanding Meaning in Analytic Philosophy: Linguistic Conventions, Intentions and Reference of the Things". In: Philosophy and Social Criticism, 1980: 227-240.

--- "Lässt sich ethische Vernunft von strategischer Zweckrationalität unterscheiden? Zum Problem der Rationalität sozialer Kommunikation und Interaktion". In: Archivio di Filosofia, 51 (1983): 375-434. ARISTOTELES, Organon: 1. Categorias; 2. Periérmeneias, Lisboa: Guimarães 1985. AUSTIN, John L. Sentido e percepção (trad. Armando M. de Oliveira), São Paulo: Martins Fontes 1993. BERKELEY, George Tratado sobre os princípios do conhecimento humano (trad. Antonio Sérgio), São Paulo: Nova Cultural , 1989. COSERIU, Eugenio Die Geschichte der Sprachphilosophie von der Antike bis zur Gegenwart. Eine Uebersicht. Vol. I., Tübingen: Günter Narr Verlag 1975. ECO, Umberto Opera aperta. Forma e indeterminazione nelle poetiche contemporanee, Milano: Bompiani 1967. --- I limiti dell'interpretazione, Milano: Bompiani 1990. GADAMER, Hans-Georg Wahrheit und Methode, Tübingen: J.C.B. Mohr, 1960. GENRO FILHO, Adelmo O segredo da pirâmide. Para uma teoria marxista do jornalismo, Porto Alegre: Ortiz 1988 GOMES, Wilson "Fato e interesse. O fato jornalístico como problema". In: Textos 26 (1991):24-32. HABERMAS, Jürgen Dialética e Hermenêutica. Para a crítica da hermenêutica de Gadamer.(Trad. Alvaro Valls), Porto Alegre: L&PM, 1987. HUME, David Investigação acerca do entendimento humano (trad. ali.), São Paulo: Nova Cultural 1989.

Anoar Aiex et

HUSSERL, Edmund Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge, Martinus Nijhoff: Den Haag 1950. --- Formale und transzendentale Logik, Halle 1929.

--- Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie, Vol. 1, Halle 1913. KANT, Immanuel Crítica da razão pura (trad. de Valério Rohden e Udo Moosburger), São Paulo: Abril Cultural 1983. LOCKE, John Ensaio acerca do entendimento humano (trad. Anoar Aiex), São Paulo: Nova Cultural 1988. MARQUES, António "Sujeito e perspectivismo". In: F. NIETZSCHE, Sujeito e Perspectivismo. Selecção de textos de Nietzsche sobre teoria do conhecimento, Lisboa: Dom Quixote 1989: 11- 62. MOORE, George E. Philosophical Papers, London: George Allen & Unwin 1959. NIETZSCHE, Friedrich Jenseits von Gut und Böse / Zur Genealogie der Moral Sämtliche Werke (ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari), vol. 5, München/Berlin/New York: Dtv/De Gruyter 1980. --- Nachgelassene Fragmente 1885-1889 - 1. Teil: 1885-1889 Sämtliche Werke (ed. Giorgio Colli e Mazzino Montinari), vol 12, München/Berlin/New York: Dtv/De Gruyter 1980. PEIRCE, Charles S. Semiotica (ed. Massimo Bonfantini et al.), Milano: Bompiani 1980. PETRUCCIANI, Stefano Etica dell'argomentazione. Ragione, scienza e prassi nel pensiero di Karl-Otto Apel, Genova: Marietti 1988. POPPER, Karl Logica della scoperta scientifica, Torino: Einaudi, 1970. RUBIM, Antonio A. C. "Teoria e jornalismo: Palavras ao vento". 33-37.

In: Textos, 26 (1991):

VATTIMO, Gianni Al di là del soggetto. Nietzsche, Heidegger e l'ermeneutica, Milano: Feltrinelli 1981.

--- Il soggetto e la maschera. Nietzsche e il problema della liberazione, Milano: Bompiani 1983. WITTGENSTEIN, Della certezza (trad. de Mario Trinchero), Torino: Einaudi 1978.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.