VERDADE EFÉMERA E LABIRINTO DA MEMÓRIA NA HISTÓRIA DA ETERNIDADE DE J.L. BORGES

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FICHEIRO DE PROVAS REVISTA PORTUGUESA DE HUMANIDADES VOLUME 19

Verdade efémera e labirinto da memória na História da Eternidade de J. L. Borges ANA MILHAZES Faculdade de Letras da Universidade do Porto [email protected]

Abstract Jorge Luis Borges’ book A History of Eternity (1936) is a rarely commented book, when considering Borges contemplation and construction of labyrinths. This article finds a considerable relevance in this book, namely in the suggested views of the author about rhetoric and hermeneutics. Throughout the book, which is a junction of different articles from different periods, the author’s considerations about the process of understanding and the origins of rhetorical figures (focusing particularly on metaphor) brings light to what might be in the origin and what might be the motivations behind the image of the labyrinth, which undergoes his whole work. Keywords: J.L. Borges; Labyrinth, Truth; A History of Eternity; Rhetoric; Theory of metaphor.

Há uma semelhança entre todas as temáticas recorrentes de Jorge Luís Borges – o infinito, a imortalidade, a memória, a identidade, o outro (e o duplo, que é uma variante do outro): é o tempo. Por extensão, também a dimensão irmanada deste: o espaço. Na verdade, à difícil distinção dos dois, do tempo e do espaço, se deve a imagem que faz desabrochar a sua poética, que é a do labirinto (o jardim da encruzilhada). O labirinto exigirá ao leitor uma actividade de ordenação, que dá um corpo à memória. No processo, saberá recolher em si (talvez dissolvendo-os) o que para Borges são os universais, de que interessa falar – o autor escreve, no prólogo da sua Obra Poética, que faz parte dos (conservadores) que preferem a verdade à novidade1 (mesmo que a verdade seja incomensurável). Esses univer-

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BORGES; Obra poética 1923-1977, Buenos Aires, Emecé Editores, 1983, “Prólogo”,

p. 21. Revista Portuguesa de Humanidades  |  Estudos Literários, 19-2 (2015), 79-94

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sais são os seus tópicos, referidos acima. Em todo o caso, o labirinto não é novidade (nem Borges queria que o fosse: o que é dado não é para ser procurado) e tem sido estudado. Interessa-nos, agora, não a imagem isoladamente mas o que está na sua origem. Recuaremos, por isso, à História da Eternidade, obra precoce da bibliografia do autor (a primeira edição data de 1936, mas que foi, ao longo dos anos e em outras edições, combinada com textos anteriores e posteriores, que alteram substancialmente a sua leitura), que contudo transparece uma aliança entre as suas preferências e técnicas retóricas e o seu pensamento relativamente aos universais. A História da Eternidade tem interesse, desde logo, por três razões. Em primeiro lugar, trata-se de uma obra que experimenta vários géneros combinados, tal como Borges os utilizará depois: é documentação histórica, conto, ensaio e crítica, sátira e ficção. Em segundo lugar, Borges estabelece como princípio da obra o paradoxo2 – veja-se, no título, a união do fraccionado com o total, do contingente com o incomensurável, do conhecido com o incógnito, do reportável com o inefável. Depois, fala-nos de duas imagens da Eternidade: uma vertente exterior dela, o infinito, e uma vertente interior, a imortalidade. O conflito precoce de Borges com a literatura assenta no facto de este acreditar que, embora já se tenha escrito sobre tudo o que é essencial escrever, permanecem por apresentar imagens válidas do eterno. Isto é, imagens da Eternidade que sobrevivam à História3. Põe-se, então, a questão: que erros denuncia a História da eternidade, que impedem esta de se dizer a todos e de forma una e inatacável? É este o percurso de Borges, na obra que agora comentamos. Borges, para falar da História da eternidade, opera uma desconstrução da memória, mas não só uma desconstrução – opera também uma destruição da memória colectiva (porque se trata também, em parte, de uma destruição da História), na medida em que censura a ambiguidade parcial da hermenêutica, os

Na verdade, quase toda a obra, a obra ensaística e ficcional sobretudo, terá o paradoxo como fundo. Jean-Pierre Mourey, na sua análise da verdade e dos universos ficcionais na obra de Borges, considera que as figuras retóricas mais recorrentes são o oxímoro (conjugação dos contrários) e o quiasmo (construção cruzada) (MOUREY, Verité et Univers Fictionnels, Liège, Pierre Mardaga Editeur, s.d., p. 102). 3  Borges diz, num texto intitulado “La felicidad escrita”, que “supomos normalmente que a literatura já determinou as palavras essenciais e que a inovação surge apenas na forma de gramaticalismos e metáforas”. Borges, todavia, afirma o contrário, crendo que há uma recorrente sobreabundância de detalhes excessiva mas uma falta de apresentações válidas do eterno. Cf. BORGES, Jorge Luis; El Idioma de los Argentinos, Barcelona, Seix Barral, 1994, “La felicidad escrita”, p. 47 (tradução nossa). 2 

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destaques e os vultos, esforçando-se por demonstrar quanto da nossa memória se suporta em contradições e aberrações de vária ordem4. Os arquétipos do mundo no modo como foram imaginados e engendrados pelo ser humano têm, para Borges, algo de monstruoso. É talvez confuso, de início, saber se o autor quer destruir a História da eternidade ou a própria eternidade. Mais tarde, todavia, há a acanhada admissão da exigência da eternidade para a existência do mundo, do tempo e, por extensão, da memória. O conceito que, de início, amofina e soa a equívoco corroborado sucessivamente é, depois, percebido como desejo de memória comum, denúncia perpétua da humanidade no humano. Portanto, destrói-se uma coisa para a voltar a recuperar. Porquê? Porque, um, o essencial era denunciar a eternidade como actividade de cooperação humana , dois, prová-la submetida ao poder e ao equívoco, três, recuperá-la da submissão para que ela nunca seja negada a ninguém. Dissemos já que este ensaio de Borges tem algo de paradoxal: coloca-se no tempo, numa ordem cronológica, aquilo que é independente dele, a eternidade. O autor não falará apenas de uma eternidade em séries, falará de dois modelos da eternidade. Naturalmente, discorre sobre uma eternidade de moldes ocidentais que denuncia uma bipolaridade: sem novidade, de um lado, está o realismo, do outro, o nominalismo. A oposição deve-se ao facto de a primeira eternidade, a do realismo, estar demasiado afastada do ser ao ponto do próprio descrer das suas interpretações e de a segunda, o nominalismo, enfatizar em excesso a verdade dos indivíduos em detrimento do género, que se considera convenção. De modo sintético: a primeira é demasiado generalista, a segunda, demasiado particular. Borges encontra na História da eternidade duas perspectivas oponentes, decorrendo em paralelo no tempo, e todavia apresentando-se hostis uma à outra. Deste modo, a memória – e a memória infinita em particular, i.e. a eternidade – oscila entre uma particular crença sobre o indivíduo (nominalismo) e uma particular descrença sobre ele (realismo). Esta formatação é que, para Borges, soa a disparate. Manifesta, por isso, a sua imparcialidade na defesa de qualquer uma delas (ridicularizando-as mas também desculpando-as), sugerindo uma dinâmica da oposição. Borges não quer uma eternidade bipolar mas uma eternidade bípede, com os dois pés da crença e da descrença a suportarem o monstro, em equilí-

Borges encontra, por exemplo, a origem do eterno retorno num encontro entre a astrologia e o Timeu platónico, de onde surge a ideia de que, se os períodos planetários são cíclicos, também a História Universal o será. Equivocamente, atribuiu-se a Platão esta conjectura. Borges considera-a um engano e um absurdo. (BORGES, História da Eternidade, Lisboa, Quetzal, 2012, pp. 85-6). 4 

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brio – a memória infinita tem, em Borges, algo de aberrante5. O infinito, independentemente do formato que tomar, tem uma certa malignidade, para o autor argentino. No início do seu ensaio “Avatares da Tartaruga”, escreve que “há um conceito que corrompe e transtorna os demais. Não falo do Mal, cujo império limitado é a ética; falo do infinito”.6 Naturalmente que há aqui uma supremacia irónica do infinito, mas fica, no entanto, firmada a sua dimensão perturbadora. Portanto, o infinito, em Borges, não é meramente uma realidade matemática ou do cálculo lógico, extensível ao pensamento racional, mas tem também uma dimensão emocional. De resto, Borges mostra-se, neste ensaio que agora analisamos, talvez demasiado emocional na sua contra-argumentação7. E, porventura, por isso recorre tantas vezes à censura jocosa, ao sarcasmo, à ironia, por vezes aproximando-se da injúria8. Mas tudo isto é mais ou menos perdoável se tivermos É, aliás, disso exemplo o seu conhecido texto Funes el memorioso. “Hay un concepto que es el corruptor y el desatinador de los otros. No hablo del Mal cuyo limitado imperio es la ética; hablo del infinito”. BORGES, Jorge Luis; Prosa Completa, Barcelona, Editorial Bruguera, 1980, Vol I, “Avatares de la Tortuga”, p. 199 (tradução nossa). 7  Por exemplo, o último argumento de Borges para rebater o eterno retorno, embora apoiando-se na lógica, é, na verdade, muito emocional. Pergunta-se qual seria, no caso hipotético das existências sucessivas e idênticas, a diferença entre viver num ciclo ou noutro qualquer. E responde: “Nada, para a prática – o que não prejudica o pensador. Nada, para a inteligência – o que é mais grave”. A gravidade do segundo caso deve-se não só à falta de um sentido interno, que constituiria um absurdo ontológico (já, em si, um paradoxo), mas deve-se igualmente à incoerência do pensamento humano, ao seu funcionamento, mas mais ainda à sua existência, que, afinal, não serviria para nada. Do ponto de vista da lógica, poderíamos aceitar o inútil e o absurdo. Do ponto de vista emocional, é mais difícil (BORGES, História da Eternidade, “A doutrina dos ciclos”, cap. III, p. 84). 8  Borges tem uma particular tendência para troçar dos outros. Aliás, o assunto ocupa um capítulo do livro Humor in Borges, de Réne de Costa (disponível online http:// books.google.pt/books?id=CzJaKQeUZxMC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false. Consultado a 23 de Outubro de 2014). Na História da Eternidade, percebe-se o perfil de Borges, no ensaio “A arte de injuriar”. Aí, traça-se o perfil verbal do autor – a sátira, sobretudo, encontra-se em destaque. Entre as técnicas retóricas do ridículo e da sátira encontramos uma favorita de Borges, que é a de menosprezar o oponente através de uma falsa consideração (naturalmente, temos a elocutio a denunciar o ethos: é raro o leitor que ignora a sobranceria, por vezes insolente, de Borges). Por exemplo, nos seus livros, Unamuno é don Miguel de Unamuno, Hegel é diminuído e domesticado como Federico Guillermo Hegel, Bergson é familiarmente Enrique Bergson. Da mesma forma, quase sempre contextualiza os grandes autores e pensadores na sua “vidinha” banal e quotidiana de toda a gente – há um protagonista que foi um estudante de medicina, 5  6 

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em conta a humildade do prólogo, onde o autor admite a distância em relação a algumas das suas interpretações, a sobranceria excessiva na negação de ideias basilares (“Não sei como pude comparar a ‘imóveis peças de museu’ as formas de Platão e como não compreendi, ao ler Schopenhauer e o Erígeno, que elas são vivas, poderosas e orgânicas (...). Como pude não sentir que a eternidade, ansiada com amor por tantos poetas, é um artifício esplêndido que nos livra, embora de maneira fugaz, da intolerável opressão do sucessivo?”) e tenta remediar o dito passado, conciliando-o com dois textos que melhor o ilibam de algum delito (“Acrescentei dois artigos que complementam ou rectificam o texto”).9 Todavia, o errado publica-se na mesma – mesmo com algum constrangimento associado. Cremos que o erro assumido e desvelado torna mais claro o correcto – e, depois, o labirinto de Borges é demasiado profundo para ser necessário esconder o óbvio. A reconstrução (que, como já dissemos, é também uma destruição) da História da eternidade é uma revisitação dos paradigmas do tempo e da memória. Repare-se que o autor encontra no princípio da eternidade uma actividade secreta “para deter de qualquer modo o decorrer das horas”. A eternidade decorre do desejo de querer ver morto o tempo, de querer limitar a angústia do temporal. E todavia, que mais é a vida senão a perda do tempo? “Viver é perder tempo”, e daí decorre que viver é caminhar para a eternidade.10 Mas, como víamos na distinção das vertentes da eternidade, há dois modos de viver e de caminhar para a eternidade: um foca-se (mais) na espécie ou no género, outro (mais) no indivíduo. Borges analisa autores e obras paradigmáticas de cada uma das vertentes. No caso do realismo, com ênfase na espécie, demora-se em Platão e Plotino. No caso do nominalismo, com ênfase no individual, fala do cristianismo e de teólogos cristãos.

Baltasar Espinosa – ou lhes dirige a carreira, suprimindo a autoridade das suas intenções e da crítica – o filósofo Nietzsche é, por exemplo, o filólogo Nietzsche. A respeito da falsa consideração escreve: “Um alfabeto convencional do opróbrio define também os polemistas. O título senhor, de omissão imprudente ou irregular no comércio oral dos homens, é denegridor quando o imprimem. Doutor é outra aniquilação. Mencionar os sonetos cometidos pelo doutor Lugones equivale a julgá-lo mal para sempre, a refutar cada uma das suas metáforas. À primeira aplicação de doutor, morre o semideus e fica um vão cavalheiro argentino que usa colarinhos postiços de papel e se faz barbear todos os dias e pode falecer de uma paragem das vias respiratórias” (BORGES, História da Eternidade, “A arte de injuriar”, p. 134). 9  BORGES, História da Eternidade, “História da Eternidade”, p. 9. 10  Ibidem, cap. III, p. 32.

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O primeiro e o segundo capítulos são então dedicados àquilo que Borges designa como primeira e segunda eternidades. A primeira explica o conceito de eternidade descrendo do indivíduo, acreditando num arquétipo da espécie. Por isso, o que há de eterno (de essencial) no humano é a Humanidade da mesma forma que o que existe de eterno no leão é a Leonidade e na mesa, a Mesidade. Borges formula assim o arquétipo da primeira eternidade: “Os indivíduos e as coisas existem enquanto participam da espécie que os inclui, que é a sua realidade permanente”. O primado é da espécie, o indivíduo é quase nulo. Para contra-argumentar, Borges explica que, no caso dos animais, se aceita uma essência única com alguma facilidade; o mesmo no caso dos humanos é mais custoso: “Do conceito de eterna Humanidade não espero o mesmo [que do conceito de Leonidade]: sei que o nosso eu o rejeita, e que prefere derramá-lo sem medo no eu dos outros”. É que, de acordo com o autor, a eternidade pode estar mais ou menos intuída nos animais, nos humanos parece estar menos. Mesmo alcançar o arquétipo do objecto, para o humano, é difícil. Borges mantem a ironia: “Por exemplo, a Mesidade, ou Mesa Inteligível que está nos céus: arquétipo quadrúpede que perseguem, condenados ao devaneio e à frustração, todos os marceneiros do mundo”. Mas há um parêntesis na brincadeira: “(Não posso negá-lo completamente: sem uma mesa ideal, nunca poderíamos ter chegado a mesas concretas.)”.11 O erro de Borges na análise desta primeira eternidade está em colocar a eternidade numa ordem cronológica. Na verdade, Plotino e Platão esforçaram-se por retirar ao essencial uma contingência singular, considerando que o arquétipo eterno teria de existir a priori em relação à ocorrência no tempo. Borges não compreende isto. Acredita que o arquétipo de que falam deriva de uma primeira matéria a partir da qual este se modelou. Por isso, não entende por que razão a eternidade de Plotino recolhe a Justiça, as Virtudes, o Movimento e não os erros e os estragos. Na errada percepção de Borges esta primeira eternidade condenar-nos-ia a repetir eternamente as anomalias (“essenciais”) que pretende resolver – entende que, na eternidade, existe a solução (Virtudes) e o problema (o defeito dessas Virtudes), porque deriva o arquétipo de uma primeira ocorrência na matéria. Anula, portanto, esta primeira eternidade considerando-a estática e irresolúvel.12 Ironicamente, a esta fracassada análise da eternidade alexandrina segue-se uma análise da eternidade cristã, que Borges julga ineficaz, desde logo, porque, segundo o autor, se impingem interpretações em desacordo total com o que vem

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Ibidem, cap. I, pp. 18-9. Ibidem, cap. I, pp. 19-20.

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vinculado nos originais: “[os manuais de teologia da escolástica] desgasta[m] as Escrituras hebraicas depois de fraudulentas confirmações, onde parece que o Espírito Santo diz muito mal o que diz bem o comentador”.13 A censura jocosa mantém-se nos moldes anteriores: fala da Trindade como uma “invenção de um acto sem tempo, de um mutilado zeitloses Zeitwort, que podemos desdenhar ou venerar, mas não discutir”. A eternidade cristã, como a anterior, permanece uma aberração (a Trindade é “uma deformação que só o horror de um pesadelo conseguiu parir”) e um monstro. Genericamente, a diferença entre uma aberração e outra é que a segunda tem mais corpo que a primeira porque, naquela, Cristo não é “um mero delegado do Senhor, um acidente da História” mas um corpo divino directo – a redenção, neste caso, não se encontra apenas num arquétipo abstracto mas num ser imorredouro, que porque a morte não O mata pode morrer pelos outros.14 Pelos menos, Borges vê na segunda eternidade algo que já estava na primeira e lhe passou despercebido: que a conservação é uma perpétua criação e que, como diz, embora, no tempo, os verbos “conservar” e “criar” sejam muitas vezes contrários, no Céu, são sinónimos.15 Aparentemente, a leitura do cristianismo (e note-se que Borges é com frequência inesperadamente influenciado pelas leituras que decorrem em simultâneo com a escrita – não é raro Borges escrever que se encontra em frente à bibliografia necessária, enquanto compõe um texto) tornou possível uma certa reconciliação com a eternidade, a aberração. Isso acontece no terceiro capítulo do ensaio. Aqui, Borges concebe uma equivalência entre a eternidade e a memória: “Sabe-se que a identidade pessoal reside na memória e que a anulação desta faculdade implica a idiotia. Pode-se pensar o mesmo do Universo. Sem uma eternidade, sem um espelho delicado e secreto do que passou pelas almas, a história universal é tempo perdido, e nela a nossa história pessoal”.16

Eis que, após a crítica jocosa das eternidades da História (das estórias inventadas para ela), Borges começa a fazer a apologia da sua existência e presença, mesmo não ignorando a sua natureza impenetrável. A eternidade é uma invenção copiosa. É também uma epidemia, porque se contagia. Ressoamos saudade, enternecimento, paixão, previsão, recordação, e tudo isso ganha os contornos do intemporal. Nisso que ressoamos criamos uma síntese – uma só

Ibidem, cap. II, p. 22 Ibidem, cap. II, pp. 22-25. 15  Ibidem, cap. II, p. 30. 16  BORGES, Ibidem, cap. III, p. 32. 13  14 

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imagem para uma sucessão de acontecimentos. Como se dizia antes, a vida perde o tempo (sucessão), aproximando-se da eternidade (imagem-síntese). Por esta razão, Borges fará coincidir a eternidade com a sensação de estar morto. Não estará errado pensar que viver é aproximar-se da morte; mas porventura não estará inteiramente certo pensar que desejar a anulação do tempo é desejar a morte. “As kenningar” é um artigo incluído na História da Eternidade, que foi escrito em 1933. Faz a ligação entre o ensaio anterior e outro sobre “A Metáfora”, mas a evidência dessa ligação encontramo-la sobretudo num post-scriptum de 1962, a esse texto. Talvez Borges ainda não suspeitasse, quando escreveu o texto em 33, mas a reflexão sobre as kenningar complementa as reflexões sobre a eternidade, o infinito e a memória. É talvez porque isso se torna mais evidente, depois, que este texto passa a acompanhar o ensaio sobre a “História da eternidade”. É isso que o post-scriptum vem tornar mais explícito. A eternidade e a memória tem raízes mais profundas do que o esperado com estratégicas retóricas, estéticas e literárias. Como Borges dizia no prólogo, a mescla de textos reunidos é feita com a expectativa de que os textos, em leituras paralelas, possam rectificar algumas das suas fracassadas análises anteriores que, todavia, Borges não quis encobrir. As kenningar oferecem uma contraposição à ideia estática da imagem eterna. Borges tinha proposto a morte como identidade da eternidade, supondo que a anulação da sucessão se dava por uma síntese imóvel. As kenningar provam o contrário. Uma kenningar é uma figura retórica formada por um nome composto que substitui um nome simples, normalmente banal e concreto. É, portanto, uma operação retórica de expansão de uma realidade, que intui a estranheza fundamental dessa realidade, uma vez que demonstra a ambiguidade existencial no que temos por ordinário e banal. As kenningar desvirtuam-nos da regularidade do mundo, expondo uma “lúcida perplexidade”, princípio e graça da metafísica. Neste exercício retórico, a superioridade advém do ênfase sobre a sucessão temporal, contrariamente à ideia anteriormente veiculada por Borges, que supunha que a eternidade se afirmava como realidade superior na medida em que era capaz de anular a progressão do tempo. As kenningar opõem-se directamente à ideia estática da morte – actualizam o irresolúvel mistério do mundo, enquanto o estaticismo da morte o anula. A transformação de uma designação simples numa expressão da acção a essa designação associada – isto é, a transformação de um elemento atemporal (o mar) numa actividade que decorre numa sucessão temporal (“o caminho das velas”) – eleva a dignidade dessa realidade/ desse elemento, justamente pela propagação no tempo. Borges procura recuperar a dignidade do tempo e da sucessão, assinalando que é a própria rememoração de

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um tempo fora dele que nos dá a perplexidade da “estranheza fundamental”, que é a raiz da metafísica.17 Neste ensaio, intui-se a atribuição de uma responsabilidade à retórica relativamente à origem do pensamento metafísico, como há também a tentativa de demonstrar que é no tempo, na expressão do tempo e sobre o tempo, que tomamos a percepção da grandeza do que hipoteticamente se encontra além do tempo. Há também a insinuação de que são os jogos retóricos e as experiências literárias que desencadeiam a percepção metafísica – não, segundo o autor, sem algum humor (“A sua própria bastardia pode corresponder a um antigo humor, a galhofas de hiperbóreos homenzarrões”18). Todavia, as kenningar não são meramente figuras de oratória, são efeito de uma procura do mistério – do elementar e do incerto. As kenningar têm ligações à perífrase, à sinédoque, à metonímia e à metáfora. Contudo, no post-scriptum de 1962, Borges explica que as figuras retóricas ligadas às kenningar não são principiantes delas, não são o seu propósito mas o seu meio. Os tropos foram, segundo o autor, descobertas tardias da literatura – temos, por isso, um entendimento da matéria e da estética como meio, enquanto o fim se liga à forma, ao fundamental, ao ambíguo, ao perplexante. “As kenningar, no princípio, não foram metafóricas”, escreve Borges; foram, sim, manifestação de relações mais profundas sobre o obscuro, o mistério, e entre realidades dissemelhantes.19 O encanto das kenningar encontra-se na memória gráfica que evocam de realidades simples: a “delícia dos corvos” é o guerreiro, “o querido alimentador dos lobos” é o machado, o “país dos anéis de ouro” é a mão, a “perdição das árvores” é o fogo, a “água das espadas” é o sangue, etc.20 Estas transformações implicam um ênfase no modo – a surpresa está mais no como acontece do que no que aconteça. Ora, isto implica uma atenção sobre as ligações dos existentes. É também isto que Borges vai destacar na metáfora, porque existe nela uma força anímica, fazendo ver e ensinando de modo mais célere e fácil. No texto sobre “A metáfora”, o autor vai esclarecer que nem todas as metáforas sobrevivem com a mesma graça e que algumas se tornam simplesmente sinónimos de artimanha verbal e de inutilidade. Recua até Aristóteles (Retórica) para esclarecer que a metáfora com real valor continua a ser aquela que, como escreveu o areopagita, “surge da intuição de uma analogia entre coisas disse-

BORGES, História da Eternidade, “As kenningar”, p. 61. Ibidem, p. 60. 19  Ibidem, p. 63. 20  Ibidem, pp. 48-54. 17  18 

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melhantes”21. Por isso é que elas são obsessivamente as mesmas: as estrelas e os olhos, a mulher e a flor, o tempo e a água, a velhice e o entardecer, o sono e a morte. Aquilo que elas invocam é o mistério da ligação, o ambíguo, o eterno. Neste sentido, não se esgota o número de metáforas possíveis por mais reescritas que possam ser: “os modos de indicar ou insinuar estas secretas simpatias dos conceitos tornam-se de facto ilimitados”. O que Borges recolhe do exercício retórico da metáfora é que “às vezes, a unidade essencial é menos aparente que os aspectos diferenciais”.22 Mas ela está lá – e é isso que a metáfora recruta: a unidade essencial, o eterno das ligações. A memória gráfica denunciada por certas técnicas retóricas aproxima-nos do essencial, do universal, do eterno. Em todo o caso, mesmo que os modos de expressar o eterno não se esgotem, convém ressalvar que as ligações, embora sejam essencialmente as mesmas, não apontam para uma eterna repetição. Borges aborda este problema a partir de uma ideia que lhe é muito próxima, que é a do Eterno Retorno. No texto intitulado “A doutrina dos ciclos”, Borges vai recorrer mais à lógica e à matemática, mas nem por isso abandonando a estética. O problema em debate é a natureza do eterno, que é determinista e irresolúvel (eterno retorno) ou reinventável e promissor (infinito matemático derivado de Georg Cantor). Começa, então, por considerar a possibilidade de repetição num mundo com um número de átomos finito. Apresenta um primeiro exercício que considera um universo imponderável, imperceptível e parco, composto apenas por dez átomos, cujo número de alterações possíveis, até ao Retorno, é 3 628 800. Ora, em dois gramas de hidrogénio existem mais do que um bilhão de biliões de átomos. Formulando um cálculo igual ao anterior para o caso de um universo de dois gramas de hidrogénio – cálculo que Borges não faz – chegamos ao número desmedido. Mas o desmedido não é o infinito e, porventura, no universo dos dois gramas de hidrogénio, a Regressão surge, ainda que bastante longínqua.23 O objectivo da teoria do eterno retorno e dos seus difusores, como Nietzsche, é provar que as alterações da matéria, embora muito numerosas, desmedidas e imponderáveis, não são infinitas. Borges reclama Georg Cantor e a sua teoria dos conjuntos para provar o contrário: “Cantor destrói o fundamento da tese de Nietzsche. Afirma a perfeita infinidade do número de pontos do Universo”. As alterações do eterno, quer prová-lo Borges, não são apenas desmedidas, mas são infinitas. Cantor consegue prová-lo através de uma simples divisão em duas séries de um determinado valor numérico. Ora, num conjunto infinito, as séries

BORGES, História da Eternidade, “A metáfora”, p. 66. Ibidem, p. 69. 23  BORGES, História da Eternidade, “A doutrina dos ciclos”, cap. I, pp. 72-3. 21 

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podem estabelecer-se, mesmo sem conhecermos a totalidade dos valores que nele se incluem. Nesta divisão por séries ou conjuntos, percebemos que a parte é igual ao todo (por exemplo, o conjunto de números naturais é infinito, mas é possível demonstrar que os ímpares são tantos como os pares: 1-2; 3-4; 5-6, etc). Isto permite concluir que a parte, nestas altitudes da numeração, não é menos copiosa que o todo – e o mesmo é dizer que “a quantidade precisa de pontos que há no Universo é a que existe num metro, ou num decímetro, ou na mais profunda trajetória estelar”. Tal deve-se ao facto de podermos sempre intercalar mais um ponto entre dois pontos, em número infinito.24 Ora, tendo o infinito dos números, temos também o infinito das combinações, anulando assim a repetição e o retorno – Borges diz mesmo vencendo-se “a necessidade de um Regresso” (itálico nosso), sugerindo que a ideia do Infinito se substitui à do Retorno sem prejuízos para a superação do fim. Eis a vitória do Infinito sobre o Desmedido: “O contacto do belo jogo de Cantor com o belo jogo de Zaratustra é mortal para Zaratrusta” 25. A História da eternidade, que o autor vem explicando como uma exasperada tentativa de anular o tempo parcial e finito, vê-se recuperada não num determinismo irresolúvel e adverso do Retorno mas num infinito reinventável e auspicioso – o criador supera o mecânico (e de novo se encontra aquela ideia da irmanação dos verbos “criar” e “conversar”, agora mais esclarecida26).

Ibidem, cap. I, p. 74. Borges diz intencionalmente “mortal para Zaratrusta” e não “mortal para Nietzsche”, pois não ignora que o Nietzsche helenista conheceu e troçou da tese pitagórica da repetição cíclica da História. A mortalidade atribuída por Borges atinge somente o profeta Zaratrusta. E por que razão Nietzsche conspira, na sua obra, uma morte para o profeta? Borges sugere uma hipótese, à frente: “Nietzsche queria homens capazes de aguentar a imortalidade”. Borges traz Nietzsche para a frente de combate mas, em parte, para ilibá-lo de qualquer “culpa” – Nietzsche retomou a doutrina grega da repetição cíclica para a definhar, provando que não há nada de optimista e promissor no eterno retorno; este é somente recessivo e tormentoso: “Procurou a ideia mais horrível do Universo e propô-la ao deleite dos homens. O optimista frouxo costuma imaginar que é nietzschiano; Nietzsche enfrenta-o com os círculos do eterno retorno e cospe-o assim da sua boca” (BORGES, História da Eternidade, “A doutrina dos ciclos”, cap. I e II, pp. 75-80). Repare-se também que aquilo de que Borges acusa Nietzsche – enganar o leitor (“Atuou não sem uma certa perfídia: primeiro precavê-nos contra a ideia de uma força infinita (...) e a seguir generosamente concede que o tempo é infinito” – é também o que Borges faz nesta História da Eternidade, começando por negar a Eternidade e o Infinito para depois os recuperar sem possibilidade de contra-argumentação (uma vez que, ao longo da obra, já a fez) (Ibidem, p. 82). 26  vd. supra p. 6. 24  25 

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Santo Agostinho para rebater a ideia da repetição geral (que porventura poderá ser apontada nos Actos dos Apóstolos III:21, onde se fala “dos tempos da restauração de tudo”) apresenta dois motivos: um deles é a “aparatosa inutilidade desse círculo vicioso”, o outro, “o escárnio de que o Logos morra como um profeta na Cruz, em funções intermináveis”. Para voltar ao infinito e ao desmedido, ajuda-nos o primeiro motivo, na medida em que figura a repetição como um círculo. Ao nível gráfico, enquanto o retorno se compromete com o círculo, o infinito compromete-se com a linha – o primeiro fecha a figura, a segunda desconhece o limite inicial e o limite final27. Isto é importante para chegarmos ao labirinto de Borges e à sua latente representação gráfica. Mas terminemos o que há a dizer sobre a natureza da eternidade. “O tempo circular”, o outro texto incluído por Borges que procura rectificar os anteriores, nega a hipótese astrológica do eterno retorno, de acordo com a qual a astrologia rege os ciclos da História (atribuída a Platão), nega também a hipótese algébrica (utilizada por Nietzsche), e apresenta um terceiro modo do eterno retorno, porventura melhor aceite, uma vez que defende círculos similares, mas não idênticos. Para defender este terceiro modo, cita Marco Aurélio: “(...) lembra-te de que ninguém perde outra vida senão a que vive agora nem vive outra senão a que perde. O termo mais longo e o mais breve portanto são iguais. O presente é de todos; morrer é perder o presente, que é um lapso de tempo brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois a ninguém podem tirar o que ele não tem. Lembra-te de que todas as coisas giram e voltam a girar pelas mesma órbitas e que para o espectador é igual vê-la um século ou dois ou infinitamente”.28

Ignorando a moralidade do excerto, Borges recolhe dele duas coisas: uma, a exaltação do presente e a negação do passado e do futuro, senão como forças para o desejo e exercício do presente; outra, a negação da novidade, sugerindo uma estrutura análoga nos diferentes momentos e ciclos. A negação da novidade remete para uma existência única da experiência humana (todos os seres humanos vivem a mesma vida), logo, escreve Borges, “a História Universal é a de um só homem”. Borges quer aqui chegar para poder dizer o seguinte: o eterno retorno possível tem de estar associado com a analogia, não com a identidade. Pese embora, para Cantor, cada ponto seja “já” o final de uma infinita subdivisão – da mesma forma que, em determinado cálculo, uma fracção é o limite de outra fracção. Por exemplo, 1/2 é o final de uma infinita divisão que origina fracções com 51/100, 101/200, 201/400, 401/800, etc. 28  BORGES, História da Eternidade, “O tempo circular”, pp. 88-9. 27 

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Reconfortantemente, a analogia, uma aproximação humana que se deve a um indeterminismo no meio de leis29, perpetua o que há; e isto, de resto, significa que, por vezes, o carácter analógico da existência nos livra da torpeza irrevogável: “em tempos de auge a conjectura de que a existência do Homem é uma quantidade constante e invariável pode entristecer ou irritar; em tempos que declinam (como este), é a promessa de que nenhum opróbio, nenhuma calamidade nem nenhum ditador poderá empobrecer-nos”.30

A eternidade é conservadora ao mesmo tempo que é criadora, e a experiência de cada um é singular ao mesmo tempo que é análoga à do outro. O erro que Borges declara, no prólogo, está portanto rectificado: a eternidade que o autor julgou ser um determinismo irresolúvel é um infinito reinventável. Voltemos ao labirinto. O percurso que o leitor é obrigado a fazer para que os textos encontrem conexão, esperemos ter tornado claro, não é meramente um percurso exterior pelos conceitos mas um percurso interior pelos equívocos das ideias, dos pensadores e, sobretudo, do próprio Borges. O que deve ser admirável para o leitor é a profundidade das relações e não a superficialidade delas, isto é, como elas se dão e não que elas existam. Por isso é que Borges desvaloriza as relações superficiais – demasiado superficiais, para ele – da intertextualidade (recorde-se o quanto desconsidera a obviedade da relação do Ulisses de Joyce e com a Odisseia de Homero31). O ênfase de certas obras na superficialidade das relações não invalida as qualidades delas, mas enfraquece-as; sobretudo, porque prejudica a profundidade possível das suas leituras.32 No labirinto de Borges há sempre uma preferência para o latente em comparação com o patente, para o submerso face ao demasiado à tona. Neste sentido, exige-se ao leitor que construa um “corpo de memória”, porque o labirinto é um labirinto interior, não para experienciar de cima (superficialmente) mas por dentro (em submersão). No prólogo à sua obra poética, Borges diz ter aplicado, na sua obra, o que poderia ter chamado

“(...) o número de percepções, de emoções, de pensamentos, de vicissitudes humanas é limitado e antes da morte o esgotaremos” (BORGES, História da Eternidade, “O tempo circular”, p. 90). 30  Ibidem. 31  BORGES, História da Eternidade, “A arte de injuriar”, p. 130. 32  Estas ideias continuam a ser exploradas nos três restantes textos da obra, “Os tradutores de As Mil e Uma Noites”, “A aproximação a Almotasim” e “A arte de injuriar”, que não são aqui explorados pela maior pertinência dos anteriores para o tema e pela falta de espaço. 29 

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a “estética de Berkeley”, posto que aplica na literatura aquilo que Berkeley aplicou à realidade: “El sabor de la manzana (declara Berkeley) está en el contacto de la fruta con el paladar, no en la fruta misma; análogamente (diría yo) la poesía está en el comercio del poema con el lector, no en la serie de símbolos que registran las páginas de un libro. Lo esencial es el hecho estético, el thrill, la modificación física que suscita cada lectura”.33

Repare-se que o “corpo de memória”, isto é, uma certa corporeidade gráfica do pensamento não está muito longe da modificação física (sublinhado nosso) e da (re)criação de uma memória com corpo. O labirinto, em Borges, é muito mais formatado pelo estado psicológico e pela disposição cognitiva da pessoa que o atravessa (e do leitor que o vai encarnar). Por isso é que o maior dos labirintos é o deserto aberto34. Borges escreveu: “o labirinto ideal seria um caminho recto e desimpedido com um comprimento de cem passos onde o extravio se produzisse devido a uma razão psicológica”35. O maior labirinto é a linha sem início e sem fim, o círculo (não fechado mas) com o centro em todo o lado e a circunferência em lado nenhum36. Esse é o maior labirinto porque é esse o labirinto irresolúvel – o que depende do peregrinador mais que do lugar da peregrinação. Borges pode ter subentendido, no seu labirinto, a exigência de uma arte da memória, na medida em que pressupõe uma técnica de ordenação – aquilo que se apresenta como labirinto é o que requer uma ordenação e essa ordenação é, no fim, uma tentativa de remissão do tempo fragmentado. O labirinto exige uma ordenação das ideias, ao mesmo tempo que exige um espaço para as ideias. E exige espaço porque a memória é um corpo – só um corpo pode chamar um outro: o corpo físico do peregrino. Tudo isto é, de resto, conhecido do orador ideal de Cícero: a ordem traz clareza à memória; é preciso criar lugares para recolherem as imagens; o que ocupa um lugar é um corpo e, como tal, tem dimensão física. A leitura em Borges

33  BORGES; Obra poética 1923-1977, Buenos Aires, Emecé Editores, 1983, “prólogo”, p. 21. O sublinhado é nosso. 34  No conto “História dos dois reis e dos dois labirintos” conta-se o abandono de um dos reis num “labirinto melhor”, “onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem fatigantes galerias a percorrer, nem muros que te vedem o passo”: é o deserto. Cf. BORGES, Jorge Luis; Prosa Completa, Barcelona, Editorial Bruguera, 1980, Vol. II, “Los dos reyes y los dos laberintos”, pp. 100-01. 35  apud MARTÍNEZ, Guillermo; Borges e a Matemática, Porto, Ambar, 2006, p. 45. 36  Esta imagem é recorrente em Borges. Encontra-a o autor no Discours de Métaphysique e em La Monadologie, de Leibniz.

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permanece uma exigência da entrega do leitor a si mesmo. Por isso o seu cenário, o seu labirinto, caracteriza-se pelo absurdo do minimalismo – mas o absurdo é o início, não o fim. Como diz Cícero, a memória, como as restantes partes da retórica, não criam nada no sujeito, antes fazem fluir e desenvolver algo que já está no sujeito. O labirinto ornamentado pelo leitor é dele somente. Por isso é que ele aparece, de início, seco, quase inexistente, demasiado visível, claro, para que a compreensão possa ser líquida. O minimalismo gráfico do labirinto apela ao sentido mais perspicaz, para o orador ideal de Cícero: a visão. Talvez a relação com os outros sentidos prejudicasse o despojamento e a neutralidade.37 Assim, resolveu Borges a sua juvenal angústia sobre a inexistência de uma imagem da eternidade, da verdade e da solução do labirinto, inatacável – o coração de cada um abre-se com poucas chaves, e não servem as mesmas para todos. E uma chave poderá sempre abrir uma porta onde está outra porta. Escreve Borges, no seu conto “O fio da fábula”: “o fio que nos libertar de um labirinto colocar-nos há noutro, que é, na verdade, sempre o mesmo: o do tempo, o da angústia do parcial”. Podemos encontrar o fio, permanecendo a sensação de voltar a perdê-lo. “O fio perdeu-se, o labirinto perdeu-se também. Agora nem mesmo sabemos se nos rodeia um labirinto, um secreto cosmos ou um caos imponderável. O nosso mais grato dever é imaginar que há um labirinto e um fio. Nunca daremos com o fio; talvez o encontremos e o percamos num acto de fé, numa cadência, no sonho, nas palavras que se chamam filosofia ou na mera e simples felicidade”.38

O fio, encontra-mo-lo na fé, na imaginação, no pensamento penetrante, na pureza da alegria, nos nossos e nos erros dos outros. Seja como for, os livros não têm uma felicidade menos efémera que a vida real39. Aquele que sobreviver ao deserto, à recta infinita, ao círculo com o centro em todo o lado, ao labirinto, esse, livra-se da morte. Esse é talvez aquele que reúne em si toda a memória, aquele que alcança uma omnipresente interioridade. “Glória Àquele que não morre”40. Um pequenino e inibido cristão floresce, por vezes, em Borges: “[o rosto de Cristo]

CÍCERO, De Oratore, 2.350-60. BORGES, Os Conjurados, Matosinhos, QuidNovi, s.d., “O fio da fábula”, p. 55. 39  BORGES; El Idioma de los Argentinos, “La felicidad escrita”, p. 47. 40  BORGES, “Los dos reyes y los dos laberintos”. 37 

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Não o vejo e continuarei / a procurá-lo até ao dia derradeiro/ dos meus passos pela terra”41. Referências Borges, Jorge Luís (1983). Obra poética 1923-1977. Buenos Aires: Emecé Editores. Borges, Jorge Luís (2012) História da Eternidade. Lisboa: Quetzal. Borges, Jorge Luís (1994). El Idioma de los Argentinos. Barcelona: Seix Barral. Borges, Jorge Luis (1980). Prosa Completa. Barcelona: Editorial Bruguera. Borges, Jorge Luís (s.d.). Os Conjurados. Matosinhos: QuidNovi. Cícero, (2001). On the Ideal Orator. Oxford: Oxford University Press. Martínez, Guillermo (2006). Borges e a Matemática. Porto: Ambar. Mourey (s.d.). Verité et Univers Fictionnels. Liège: Pierre Mardaga Editeur.

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BORGES, Os Conjurados, “Cristo na Cruz”, p. 9.

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