VERGÍLIO FERREIRA E A FILOSOFIA DO SENSÍVEL EM NA TUA FACE

June 9, 2017 | Autor: Alisson da Hora | Categoria: Portuguese Literature, Teoria da literatura
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Anais do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP

ISBN: 978-85-60667-69-7

VERGÍLIO FERREIRA E A FILOSOFIA DO SENSÍVEL EM NA TUA FACE

Álisson Alves da Hora - UFPE*

1 INTRODUÇÃO Dentro do seu projeto estético-literário, o romancista Vergílio Ferreira sempre trilhou um caminho no qual o pensamento da movimentação do ser humano face ao mundo e face aos seus semelhantes esteve em primeiro lugar. O questionamento filosófico desse movimentar-se, seus conflitos e problemáticas, transparece nos seus romances como questionamentos limites dos seus personagens, inseridos quase sempre num ambiente no qual o absurdo do mundo aparece amplificado. Em Na tua face, a reflexão sobre a arte e a sensibilidade, o belo e o grotesco, seguida pelo contínuo jogo de visibilidades e invisibilidades e a percepção do mundo traz à tona, dentro do plano narrativo ferreiriano e ao seu modo particular, novos conceitos, impactos no senso comum, subvertendo os alicerces de um mundo internamente constituído. Sob o prisma do pensamento de Maurice Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção (1999) e O visível e o invisível (2007) analisamos esse romance buscando sempre demonstrar a articulação de alguns dos pressupostos do pensamento fenomenológico com o projeto literário de Vergílio Ferreira: a questão do corpo, do olhar, do invisível aos olhos e da percepção do mundo como algo agudo e caótico. De tal forma, o romance vergiliano se inscreve no que o filósofo francês denomina de filosofia do sensível. 2 NA TUA FACEEA FILOSOFIA DO SENSÍVEL COMOLITERATURA Centrado nos problemas do Homem, o Existencialismo penetra nos seus sentimentos concretos, nas suas angústias e preocupações, nas suas emoções interiores — temas particularmente aptos para um desenvolvimento literário. Atribuindo à liberdade uma potência especialmente valorizante, iremos fatalmente distinguir o Homem do animal. É nessa mesma liberdade que vamos *

Mestrando em Teoria da Literatura – Universidade Federal de Pernambuco - Bolsista de produtividade CNPq.

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encontrar os sentimentos muito explorados pelo Existencialismo, como insegurança, temor, angústia, desespero, cuidado, fracasso, revolta, náusea, esperança, fidelidade... Encerrados nas situações limites e sua vivência: o sentimento da própria inanidade, a dor, a perspectiva da morte, a comunicação com outros, a ânsia de Absoluto... Esses sentimentos nos fazem temer diante da própria existência, que podemos perder; contudo, também proporcionam uma valorização particular e responsável, graças à qual a "existência" de algum modo cria, ou desenvolve ao menos a própria essência, através de uma abertura temporal para o Mundo. Esta valorização é julgada possível por alguns nos moldes de um humanismo exclusivamente terreno; temos, neste caso, um "Existencialismo fechado", típico de Sartre e também de Merleau-Ponty. Essa fenomenologia de centrar em algo aparentemente simples aos olhos dos mais incautos: perceber, ver, sentir, vai muito mais além para Merleau-Ponty. É o que ele define como Filosofia do sensível, filosofia essa que se desenvolve como Literatura, uma vez que ela entrevê, ou desperta, uma verdade adormecida a tantos outros. Ou como podemos perceber em suas palavras: (...) — A verdade é o que o quale parece opaco, indizível, como a vida nada inspira ao homem que não é escritor. O sensível, pelo contrário, como a vida, é um tesouro sempre cheio de coisas a dizer para aquele que é filósofo (isto é, um escritor). E assim como cada um acha verdadeiro e se reencontra em si aquilo que o escrito diz da vida e dos sentimentos, (...) com efeito, o sensível nada oferece que possa ser dito se não é escritor ou filósofo, porém isso não em virtude dele ser um Em-si inefável, mas porque não se sabe o que dizer.1 (O visível e o invisível, p.228)

Vergílio Ferreira acaba fazendo ao longo de sua obra (e principalmente após Aparição) esse direcionamento à percepção da sensibilidade, criando espaços ficcionais nos quais vem à tona as atitudes humanas frente às situações-limite. É significativo que tais situações acabam intrinsecamente ligadas às reflexões sobre a arte e sua recepção, notadamente a pintura, como ressalta José Rodrigues de Paiva (2007) ecoando as observações de Luís Mourão, apontando uma “questão da pintura” em Vergílio Ferreira, que segundo Paiva no diz: Efetivamente assim é em termos de protagonização diegética, o que não significa que a pintura como tema ou simplesmente como motivo temático se restrinja a estes dois romances [Cântico final e Na tua face] ou neles se concentre. Já em Apelo da noite (narrativa anteriora Cântico final, embora publicada depois desta) a pintura ocupa um lugar privilegiado no contexto da discussão que ali se trava sobre a função da arte na sociedade, colocados em oposição os defensores da pintura comprometida com o histórico-ideológico

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e os que vêem nela a pura e transcendente realização estética, em valor absoluto capaz de justificar uma existência. (PAIVA, 2007: 572)

Essa “justificativa da existência” margeia a discussão encetada por Vergílio Ferreira em Na tua face, uma vez que ultrapassa deveras a reflexão já exaustivamente analisada pelos críticos presente no romance, que é a que se debruça sobre o Belo e o Grotesco. A filosofia do sensível ferreiriana pode ser compreendida neste romance a partir de um pensamento emitido por Daniel, o médico e pintor, quando ele, em devaneio, reflete sobre os nomes dos seus filhos: (...) O Lucrécio e a Luzia - são nomes horríveis, não é? mas foi ela que mos impôs. E eu não disse nada, quase nada, tudo é tão indiferente. Também isso vinha ao encontro de uma ideia que não sei bem, deixa-me pensar. O feio, o horrível. Onde é que estão? Porque são uma invenção nossa, a Natureza estáse perfeitamente nas tintas. Ou é imensamente generosa como Deus e na generosidade cabe tudo. Ou é estúpida como o que simplesmente existe e não tem estética nenhuma ou a estupidez de a acompanhar. A estética do que existe é só existir”.

Esse absoluto da existência é questionado por sua filha, posteriormente fotógrafa de motivos grotescos, que lhe sacudirá em seus pensamentos: (...) Foi quando instantânea a Luz me interrompe muito grave — Não há real nenhum muito séria intensa, que estranha essa filha. Quando era miúda, ela dizia tu perguntaste-me uma vez porque é que eu gostava de ver no espelho as imagens da rua, eu olhava a rua e olhava-a depois no espelho e havia uma diferença e não sabia o porquê. (...) (p.71-72).

À referência a Platão, obviamente ao “Mito da caverna”, de espelhos e sombras, contrapõe Vergílio Ferreira a ideia da visibilidade e da invisibilidade: o que é plausível, tangível, ou não, percorre, ao lado das questões estéticas que o romance discute. Como isso se materializa — ou não se presencia — em julgamentos de valores que constroem o conceito de Belo ou Feio. Daniel, o médico-pintor, detentor do direito de administrar o pharmakon, remédio que cura e veneno que mata, casa-se com Ângela a que estuda os clássicos, e tem os filhos, Lucrécio e Luzia. Para minimizar a feiúra dos nomes que sua esposa lhes deu (o menino, obviamente por suas leituras clássicas, a homenagem vai para o autor do De rerum natura; a menina homenageia a sua bisavó que morreu cega) coloca-lhes apelidos carinhosos: Luc e Luz. Dessa forma, temos uma lembrança, nos dois filhos do médico, à luz, elemento indispensável à visão. Não por acaso, o poeta e filósofo latino de mesmo nome apresentou no seu famoso poema a

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teoria de que a luz visível seria composta de pequenas partículas. E devemos lembrar que photo, em grego quer dizer luz. E a Luzia, fotógrafa, não por coincidência relembra outra figura histórica, como nos diz o próprio Daniel: “Luzia. Fora uma santa mártir a quem arrancaram os olhos e que nas estampas os mostrava num prato como como dois ovos estrelados.” Lucrécio ao contrário do seu homônimo latino não busca uma vida hedonista: busca uma explicação absoluta para o Universo, e vendo a impossibilidade disso, acaba fazendo o mesmo que o poeta de De rerum natura: suicida-se. Sua irmã, Luz, não fica cega como a bisavó, nem como a própria mãe, que de tanto estudar em claro suas dissertações e teses acaba desenvolvendo com a velhice uma inevitável catarata que não lhe permite ver muita coisa. Ela parece enxergar de modo diverso da sua homônima mais distante, a Lúcia, ou Luzia, de Siracusa, que passa pelo martírio de ter os olhos arrancados por ser pura. Luz destila um ódio extremo por todas as convenções da sociedade (é uma mulher de vários amantes, chama a sua atividade jornalística de seu lado puta e todas as suas exposições individuais têm como tema a miséria humana, o feio, o grotesco). Daniel centra na consciência da relatividade dos juizos de valor a compreensão do mundo, ainda que ele mesmo precise largar aos poucos suas próprias prevenções. Em um longo solilóquio ele considera essa visibilidade do horror, que muitas vezes é desconsiderada por quem o despreza, como parte da Natureza, colocando-o também como belo ([...]“Tudo é belo, tudo rebenta de verdade pelas costuras! Glória à Natureza! Merda para os que lhe desprezam a merda! Viva a merda!”p. 80,81). Seu pensamento se constrói à medida em que as percepções do seu mundo penetram cada vez mais no seu Eu, e ele então compreende que a convencionalidade da beleza cede à construção sensitiva da razão, que demonstra que: [...] Acabou o tempo da beleza raquítica e pindérica, da harmonia pirosa convencionada como tirar o chapéu que já ninguém usa, da expropriação da vossa ontologia, da marginalização da vossa verdade natural, da afirmação exclusivista da luz, da exclusão do estrume para estrumeira municipal depois de servidos da retrete, da negação dos esgotos depois de servido o deboche, da negação da verdade depois de se servirem do erro da verdade. Hoje é o tempo da treva, do disforme, do ódio que gera a desformidade para a haver quando a não há, da glorificação da sordidez e do horror, da reabilitação do excremento para ele ser também filho de Deus e Deus não se queixar de lho quererem roubar, da extensão da maravilha ao que está antes de ela ser e se cumprir na vida como um intestino grosso (p. 84-85).

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A partir daí, da freqüente observação e compreensão do que lhe cerca, Daniel parece atender ao pensamento de Merleau-Ponty, que, discorrendo sobre a sensação diz que [...] “poderia entender por sensação, primeiramente, a maneira pela qual sou afetado e a experiência de um estado de mim mesmo” (MERLEAU-PONTY, 2006, 23). 2Como que respondendo posteriormente, em solidão, à pergunta emitida pela filha quando criança, Daniel elabora para si mesmo um pensamento em que a sua realidade parece se dissipar em meio às linhas de sua pintura, o seu real derrama-se na sua arte, na Arte na qual se refugia como ponto de ilusões que por momentos não permitem mais ilusões à sua própria tangibilidade: então fica mais fácil aceitar as peças que a vida real lhe prega: Vem da vida, da sua superfície invisível. Do invisível donde vim. Mas enfrentado com a tela branca o que vejo não é o que lá deve ficar porque disso sei apenas a minha inquietação, que é cega como se dizia como se dizia do amor e preciso de ver para não atrapalhar. Sei que a realidade que procuro é só a que na tela fica.” (...) “Pensar a tela no ponto exacto exclusivo em que se encontra todo o invisível. E o invisível seja depois o visível de redobrada violência.

A sensibilidade que permeia o mundo do romance — e que é a sensibilidade do narrador — permite que as mortes reais de Luc e de Ângela se transfigurem em arte, por meio do olhar doentio de Luz, mas também possibilitam a compreensão de Daniel quando esta lhe diz que espera um filho (e ele entende que é filho dela com o Serpa sapo — que viria a morrer num acidente obscuro com seu carrinho de rolimã), quanto ao entrelaçamento do que ele teoriza com a sua vida real. Contudo essa dicotomia do visível e do invisível presente na narrativa não nos permite descobrir, em meio à neblina lançada pela mente obcecada do médico-pintor, se a figura de Bárbara, ideal perseguido desde os tempos da universidade, é apenas uma ficção que dá à luz um filho ele mesmo representante de um grotesco que parece fincar suas unhas na realidade final de Daniel. Fica a impressão de que à percepção falta sempre algo mais que possibilite um cogitar definitivo e plausível. Parece-nos proposital esse encontro de Daniel com a Bárbara acontecer no último capítulo (o XXVIII), capítulo no qual a relação dele com o seu mundo é totalmente nula: não há referência à família, nem à sua pintura; é um mundo de espectros, de um onirismo perturbador, no qual suas percepções estão suspensas, por si mesmo, para efetuar com mais eficácia sua fuga do mundo. Na tua face, assim, como representante dessa filosofia do sensível materializada Literatura demonstra como Vergílio Ferreira dispõe assim como cada um

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compreende o verdadeiro e se reencontra em si àquilo que o escrito diz da vida e dos sentimentos percebidos ao longo dela. REFERÊNCIAS

FERREIRA.Vergílio. Na tua face. 2 ed. Lisboa: Bertrand, 1993. MERLEAU-PONTY.Maurice.O visível e o invisível. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. MERLEAU-PONTY.Maurice. Fenomenologia da percepção. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. PAIVA, José Rodrigues de.Vergílio Ferreira: Para Sempre, romance-síntese e última fronteira de um território ficcional.Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007.

NOTAS 1

Filosofia do sensível como literatura, texto de maio de 1960. Não que Merleau-Ponty, com tais palavras, negligencie a capacidade do leitor. Para ele, se assim podemos compreender, a recepção do sensível é que vai operar na recepção da obra. Assim, teremos o leitor como co-produtor da obra literária, posto que é capaz de sentir e capaz de dizer sobre depois. 2 Capítulo 1 da Introdução: Os prejuízos clássicos e o retorno aos fenômenos — A “sensação”

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