Versão corrigida de \"Quando o Verbo se faz carne: a festa da missão\". In: MOSTAÇO, E. (org.) Para uma história cultural do teatro, Florianópolis: Design editora, 2010. pp. 109-140.

August 7, 2017 | Autor: Guilherme Luz | Categoria: Jesuits, Festas, Teatro Jesuítico
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Quando o verbo se faz carne: a festa da missão. Guilherme Amaral Luz “Pois que para encorporar-me E mudar-me em vós de todo, Com um tão divino modo Me mudais, Quando na minh’alma entrais E dela fazeis sacrário De vós mesmo, e relicário Que vos guarda, Enquanto a presença tarda Do vosso divino rosto, O sabr’oso e doce gosto Deste pão Seja minha refeição E todo meu apetite, Seja gracioso convite De minha alma, Ar fresco de minha calma, Fogo de minha frieza, Fonte viva de limpeza, Doce beijo Mitigador do desejo Com que a vós suspiro e gemo, Esperança do que temo De perder. Pois não vivo sem comer, Coma-vos, em vós vivendo, Viva em nós, a vós comendo, Doce amor! Comendo de tal penhor, Nele tenha minha parte E despois de vós me farte Com vos ver! Amém”1

De todos os mal-entendidos que giram em torno da “escrita” dos missionários inacianos na América portuguesa quinhentista, é provável que nenhum outro se iguale, em dimensões e implicações, àqueles que produziram o que hoje se chama pela expressão “teatro jesuítico”. Tamanha é a dificuldade de desatar os nós estabelecidos ao longo dos séculos na construção deste “mito”, que mesmo aos estudos de caráter mais revisionista escapam as sutilezas da história das gestões teológicas e políticas (quando não teológico-políticas) da sua memória. Uma boa maneira de apresentar o significado 1

Anchieta, José de. Do santíssimo sacramento. Lírica portuguesa e tupi, São Paulo: Loyola, 1984. pp. 105-106.

2 simbólico e político das representações e dramatizações alegóricas da América portuguesa no século XVI e, por extensão, da teatralidade e da espetacularidade das “festas coloniais” é por meio da consideração, em primeiro lugar, da memória “seiscentista” do “teatro jesuítico”. Parece-nos necessário que o “teatro jesuítico” seja problematizado como exemplar de uma prática cultural das mais ricas em implicações sociais, religiosas e políticas no mundo colonial: as festas. Além disso, propomos a reflexão sobre alguns dos caracteres mais significativos da mitologia cristã veiculada por este “teatro”, na procura por demonstrar o quanto há de elementos próprios da hermenêutica jesuítica do Novo Mundo nos textos para representação. No caso, buscaremos retomar a tópica do canibalismo como enunciado central das representações, articulando-a aos significados eucarísticos da reunião do corpo místico, conforme a teologia-política que dá sentido às “festas coloniais”. 1. O Teatro Santo e a Universalidade do Verbo: “(...) Nas festas dos santos é melhor pregar como eles, que pregar deles.” 2

Desnaturalizar a memória do “teatro jesuítico” significa, antes de tudo, considerar uma questão de “autoria”. Tudo o que restou das prováveis “encenações” teatrais da América portuguesa quinhentista são textos que se encontram salvaguardados no Arquivo Romano da Companhia de Jesus, em Roma, naquele códice (ARSI Opp. NN. 24) que ficou conhecido como “caderno de Anchieta” ou, mais propriamente, Repertorium ad Anchieta spectans, auctore P. Van Meurs. Opuscoli poetici. Segundo Magda Jaolino Torres, este códice é composto por “um conjunto de fascículos manuscritos encadernados, escritos ou copiados, em várias épocas e por diversas mãos, entre a segunda metade do século XVI (...) e, provavelmente, as primeiras décadas do século XVIII”. Ainda segundo esta autora, esse material deve ter chegado a Roma por volta do ano de 1730, integrando um corpus documental destinado à construção de um “perfil biográfico” de Anchieta, cuja canonização era almejada pela Companhia de Jesus3. Nota-se, portanto, que a história da construção do códice que contém os textos “teatrais” confunde-se com aquela da invenção de uma “vida santa”. Em outros termos, podemos dizer que o “teatro jesuítico” do século XVI, ligado à “pseudo-autoria anchietana”4, é uma invenção seiscentista operada no interior da própria edificação da memória institucional da Companhia de Jesus. Entre os séculos XVI e XVIII, precisamos entender a “autoria” como tendo significados diversos daqueles que ela passa a assumir em sistemas poéticos pós-iluministas ou românticos, o que não necessariamente a torna um dispositivo irrelevante de “leitura”. Ao contrário, propomos que a atribuição “auctoral” do “teatro jesuítico” a Anchieta seja considerada um crivo histórico relevante, nos séculos XVII e XVIII, para a “leitura” dos textos que o compõem, mesmo que ela não corresponda à suposta realidade efetiva de “criação” da “obra”. O que importa, pois, não é a positividade da autoria como evidência de um 2

Vieira, Antônio. Sermão de Santo Antônio (1654). Disponível em: www.bibvirt.futuro.usp.br. Acessado em 28/08/2007. 3 Torres, Magda Jaolino. As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da missão” no Brasil do século XVI, Tese de Doutorado. Brasília: Programa de Pósgraduação em História / Universidade de Brasília, 2006. pp. 02-03. 4 Quando utilizamos “pseudo-autoria”, aqui, não necessariamente indicamos que Anchieta não tenha sido o “autor” dos textos em questão. Importa-nos menos a efetividade ou não deste “fato” do que a história da atribuição autoral em si. O que pretendemos frisar com a expressão “pseudo-autoria” é a artificialidade da produção de algo que nos parece incerto ou passível de dúvida.

3 “gênio criador”, mas a autoridade (no caso, sacramental), que indica a origem do repertorium ali disposto no coração de um taumaturgo: instrumento poderoso de comunicação entre o Criador e as suas criaturas. No sentido exposto acima, Isadora Travassos Telles parece ter razão ao afirmar que a “autoria anchietana” dos textos em questão deve ser avaliada não “no sentido romântico de restaurar a figura do autor soberano cuja biografia dirige a escrita e cujas intenções dão o significado da obra, porém entendendo-o como autoridade que confere um novo significado a um escrito”5. Assim, é no interior do processo de beatificação/canonização de Anchieta que o códice portador do suposto “teatro jesuítico” ganha inteligibilidade. Entre 1598, logo após á sua morte, e 1763, ano de sua beatificação, Anchieta foi objeto de processos informativos, homenagens diversas e vidas. Tudo isso tinha em vista a confirmação de sua santidade e de seus prodígios. Desse material, as vidas, especialmente as escritas pelos padres Quirício Caxa, Pero Rodrigues e Simão de Vasconcelos, todos inacianos que atuaram no Brasil, oferecem importantes indicativos dos prováveis significados que o “teatro jesuítico” deveria assumir quando autorizado pela “voz” do “Canarinho do Céu”. Robert Ricard, analisando a vida de Anchieta composta por Simão de Vasconcelos, percebe que a sua santidade nela se explica pela associação entre o missionário e o primeiro homem: Adão. Para Simão de Vasconcelos, a origem dos prodígios do “Apóstolo do Brasil” estaria em sua apatheia, entendida como imunidade à concupiscência, à sexualidade e à luxúria. Anchieta é retratado, assim, como vivendo no mais puro estado de inocência, assim como Adão antes da queda. A inocência do missionário, aliada à sua penúria, era o que o colocava na mais perfeita união com o Criador, possibilitando-lhe desfrutar de poderes de taumaturgo e restaurando a condição paradisíaca perdida pelo primeiro homem6. Os poderes do taumaturgo, nas três primeiras vidas de Anchieta, recorrentemente aparecem ligados à comunicação: com Deus (oração), com os animais e as feras e com os homens (principalmente pela sua facilidade no aprendizado das línguas indígenas). A propósito da oração, Pero Rodrigues é enfático ao afirmar que está na base de todas as virtudes, profecias, milagres e prodígios dos santos (e, como tal, de Anchieta), entendidos como “instrumentos dignos” da mão da providência: “(...) havendo de tratar neste livro das sólidas e religiosas virtudes do Padre José, é bem que demos princípio a esta matéria, pela oração, porque a comunicação familiar com Deus, que nela se aprende e exercita, é a fonte donde todas elas nascem, e donde tomam lustre e perfeição. O espírito da oração é o que dá ser à vida religiosa, ascende o zelo das almas, e é o fundamento das profecias e milagres, quando Deus é servido de os fazer, por algum instrumento digno de sua santa mão.”7

Um exemplo dos mais emblemáticos e conhecidos da relação entre apatheia, espírito de oração, devoção e linguagem é a história da escrita do poema épicopanegírico de Anchieta dedicado à Virgem Maria, De Beata Virgine Dei Matre Maria Telles, Isadora Travassos. A “fundação escrituraria do Rio de Janeiro”: um estudo de caso do auto Na festa de São Lourenço (ca. 1583) de José de Anchieta. Dissertação de Mestrado. Campinas: Instituto de Estudos da Linguagem, 2004. p. 28. 6 Cf.: Ricard, Robert. Adam et Anchieta. Revista portuguesa de História, Tomo V, Coimbra, 1951. pp. 357-360. Cf.: Vasconcelos, Simão de. Vida do venerável padre José de Anchieta, Porto: Lello & Irmão Editores, 1953. pp. 371-410. 7 Rodrigues, Pero. Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus. Viotti, H. A. (org.). Primeiras biografias de José de Anchieta, São Paulo: Loyola, 1988. p. 103. 5

4 (1565). Conforme aparece nas vidas escritas por Caxa, Rodrigues e Vasconcelos, o poema teria sido escrito por Anchieta quando o missionário estava voluntariamente prisioneiro de índios tamoios no litoral de São Vicente (Iperoig). O cativeiro de Anchieta fazia parte de uma tentativa diplomática por parte dos jesuítas de resolver os conflitos entre índios e portugueses no contexto da “Confederação dos Tamoios”. Na ocasião, os primeiros “biógrafos” do missionário destacam as diversas provações sofridas no seu cárcere, enfatizando as tentações e, mais especialmente, as carnais. Segundo Quirício Caxa, Anchieta teria suportado todos esses perigos e se mantido puro graças a muita oração e devoção à Virgem Maria8. Posteriormente, Pero Rodrigues afirmaria, pela primeira vez, que foi naquele contexto que Anchieta teria composto seu panegírico à Virgem. Segundo este “biógrafo”, não havendo disponibilidade de papel e tinta, o “poeta” teria composto os quase 6.000 versos em louvor à mãe de Deus de memória, enquanto caminhava pela praia9. O poder de taumaturgo atribuído ao “virtuoso” Anchieta dava-se, portanto, em função do seu espírito de devoção, de oração e de comunicação com Deus e manifestava-se, igualmente, através do uso da linguagem e da sua comunicação com as diversas criaturas do mundo. Assim, por meio de Anchieta, Deus realizava maravilhas, dotando os discursos do missionário de um grande poder retórico a serviço da cristandade e da “verdade”. Sobre isso, é interessante o comentário de Pero Rodrigues sobre a pregação do “Apóstolo do Brasil”: “(...) Sua pregação parecia sair mais de um peito cheio de devoção e comunicação com Deus, que não de muito estudo por livros, e assim era muito afetuosa, e movia ouvintes, à compunção dos pecados, lágrimas e aborrecimento de vícios, e amor à virtude e freqüência dos sacramentos, da confissão e comunhão, donde se seguia emendarem muitas pessoas suas vidas.”10

As virtudes da pregação anchietana estendem-se, ainda, à facilidade que, segundo seus “biógrafos”, Anchieta teria aprendido e sistematizado em regras a língua dos índios. Embora a primeira edição impressa da Arte de grammatica da língua mais usada na costa do Brasil somente tenha sido lançada em 1595 – portanto, apenas dois anos antes da morte do missionário –, Quirício Caxa não deixa de enfatizar que Anchieta teria aprendido a língua com muita facilidade quando ainda era um simples Irmão da Companhia de Jesus, subordinado direto do Pe. Manuel da Nóbrega. A propósito, Caxa afirma que Anchieta “(...) aprendeu a língua da terra, pondo de sua parte, além da muita facilidade natural que Deus para isso lhe tinha dado, muita diligência e aplicação, com o grande desejo que tinha de ajudar as almas dos naturais que por falta de obreiros padeciam muitas necessidades espirituais. E tanto de raiz a aprendeu que não somente chegou a entendê-la e falá-la com toda a perfeição, e compor nela e trasladar as coisas necessárias para a doutrina e catecismos: mas veio a reduzi-la a

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Caxa, Quirício. Breve relação da vida e morte do Padre José de Anchieta. Viotti, H. A. (org.). Primeiras biografias de José de Anchieta, São Paulo: Edições Loyola, 1988. pp. 23-25. 9 Rodrigues, Pero. Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus. Viotti, H. A. (org.). Primeiras biografias de José de Anchieta, São Paulo: Loyola, 1988. pp. 76-79. 10 Rodrigues, Pero. Vida do Padre José de Anchieta da Companhia de Jesus. Viotti, H. A. (org.). Primeiras biografias de José de Anchieta, São Paulo: Loyola, 1988. p. 116.

5 certas regras e preceitos e compor arte dela, com que os nossos que aprendem a língua muito se ajudam.” 11

Do fragmento acima, chamamos atenção para alguns elementos importantes. Em primeiro lugar, percebe-se que, além de disciplina, o aprendizado da língua foi possibilitado por um dom providencialmente inspirado em Anchieta visando atender a um fim: “ajudar as almas dos naturais”. Em segundo lugar, percebe-se que essa finalidade era por desejo de Anchieta em consonância com a vontade de Deus. Por último, é perceptível que, entre as maneiras que a língua poderia auxiliar no cumprimento de tal finalidade, estava: compor discursos (inclusive poéticos) na língua, traduzir instrumentos de catequese e reduzir esta língua em uma gramática para que pudesse ser ensinada a outros missionários. Anchieta não foi o único (e nem mesmo o primeiro) missionário jesuíta do Brasil a conseguir aprender, sistematizar as regras da “língua geral” e traduzir instrumentos de catequese para ela. Antes dele, Juan de Azpilcueta Navarro e Leonardo do Vale, por exemplo, já o tinham feito. O que se destaca no caso de Anchieta é de outra ordem: a autoridade teológica do seu conhecimento lingüístico e a relação disso com a sua “vida santa”. É importante assinalar que, quando a Arte de Grammatica foi editada em Coimbra, já se reconheciam publicamente as “virtudes” do Pe. Anchieta em Portugal e na costa do Brasil, pelo menos. Na licença real para que o livro circulasse, o censor Augustinho Ribeyro frisa que a impressão da obra é desejável como forma de prestar testemunho da “grande virtude, religião e exemplo do Autor”, cuja fama ele reconhece percorrer a colônia para a “satisfação” e “edificação” de muitos. Além disso, a autoria de Anchieta se apresenta autorizada pela sua posição hierárquica no corpo da Companhia de Jesus. Isto é: aquela gramática, conforme se enuncia na edição, foi “feita pelo P. Ioseph de Anchieta Theologo et Prouincial que foy da Companhia de IESV, nas partes do Brasil”12. Neste ponto, não nos custa lembrar, com Andréa Daher, entre outros, que as operações jesuíticas de tradução, de sistematização vocabular e sintática e de composição de regras gerais para as línguas indígenas são determinadas teologicamente. A possibilidade do uso da língua indígena para proferir a palavra cristã é, para os jesuítas, a evidência “do princípio unitário da verdade divina profunda face à multiplicidade superficial das línguas humanas depois da dispersão da unidade da língua adâmica no mundo com o episódio da Babel”13. No caso da língua indígena, a tópica mais freqüentemente empregada pelos missionários em relação a ela é a do torpe idioma, que, para João Adolfo Hansen, “indicia a falta de toda virtude dos que o falam” 14 . Trata-se, pois, de uma língua à qual faltam signos para a enunciação mais perfeita da “verdade bíblica”. Ela é uma língua na qual não há as letras F, L, e R, conforme repetido inumeráveis vezes na documentação quinhentista, indicando, por sua vez, a ausência de fé, lei e rei entre o gentio da América portuguesa. Converter um “torpe idioma” em língua capaz de enunciar a Palavra de Deus é, portanto, uma tarefa que exige encontrar, na “confusão”, no “vazio” e na máxima “imperfeição” da oralidade tupi, o seu princípio unificador ou a memória difusa da 11

Caxa, Quirício. Breve relação da vida e morte do Padre José de Anchieta. Viotti, H. A. (org.). Primeiras biografias de José de Anchieta, São Paulo: Edições Loyola, 1988. p. 18. 12 Anchieta, José de. Artes de Gramática da língua mais usada na Costa do Brasil, São Paulo: Loyola, 1990. pp. 19-21. 13 Daher, A. Écrire la langue indigène: la grammaire tupi et les catéchismes bilingues au Brésil (XVIe siècle). In: Mefrim, n. 111, 1999. p. 239. 14 Hansen, João Adolfo. Sem F, sem L, sem R: cronistas, jesuítas e índio no século XVI. Cadernos Cedes, Campinas-SP, n. 30, p. 47, 1993.

6 Revelação que se esconderia por traz da sua falta de escritura e de uma “língua escurecida pelo mal”. Aqui, novamente interpõe-se a associação de Anchieta com o primeiro homem antes da queda. Ao restaurar, em sua “vida santa”, a condição paradisíaca perdida pelo homem, Anchieta restaura também a unidade da língua adâmica. Eis a fonte da “facilidade natural que Deus para isso lhe tinha dado” à qual se refere Quirício Caxa no seu trecho supracitado. Assim, os instrumentos de catequese e doutrina, a poesia lírica ou o “teatro” em tupi, quando associados à autoria anchietana, estariam autorizados como resultantes de interpretações re-unificadoras e providencialmente inspiradas da confusão babilônica de um “torpe idioma”. 2. O Corpo e a Alma da Festa: “A alma não foi feita para o corpo, mas o corpo foi feito para a alma”. 15

Quando se busca entender os sentidos mais abrangentes da teatralidade da conversão, há que se ter em vista o caráter não exclusivamente semântico das formas jesuíticas de pregação e propaganda. Para a missão, não basta converter a língua do índio, reencontrando sua “verdadeira” vocação para a proclamação do verbo. É preciso fazer o índio proferi-la, convertendo-o e transformando as suas ações no caminho do seu destino salvífico. Isso quer dizer que o verbo não veicula somente conceitos, mas a “verdade bíblica” em sua plenitude, levando aqueles que a experimentam à devoção, ao reconhecimento da culpa pelo pecado, à comiseração, à ação em prol do conserto dos hábitos, enfim, ao ordenamento cristão de suas vidas e ações. Nesse sentido, são bastante oportunas as análises de João Adolfo Hansen sobre aquele poema conhecido como “Tupána Kuápa”, presente no “caderno de Anchieta”. Em relação ao seu uso como meio de evangelização, Hansen afirma: “Levar o catolicismo para o ‘índio’ nos termos descontextualizados de sua própria língua é uma estratégia extremamente eficaz que o subordina e integra em novas relações de poder. Na recitação do monólogo, o poema produz o destinatário como o ‘eu’ de uma pessoa católica dotada de interioridade anímica. Assim, quando o destinatário/leitor ocupa o lugar do corpo imaginário do personagem ‘índio’, que aparece todo escrito em tupi mas respirando como um católico medieval, a mescla teológico-lingüística captura o corpo do destinatário como um veículo para a fala da alma católica. (...) Em seu tempo, o poema era recitado ou cantado por um ‘índio’ ou por qualquer outro indivíduo, que vinha a ser, no ato, simultaneamente ‘índio’ e ‘católico’.”16

A “captura do corpo como veículo para a fala da alma católica”, identificada acima, conforma um tipo de experiência pedagógica e religiosa que poderíamos classificar como performática. Ela não é exclusivamente teatral, no seu sentido poético, mas reveste o conjunto das práticas religiosas em público de “teatralidade” ou “espetacularidade”. O teatro da missão, propriamente dito, seria, conforme defende Magda Jaolino Torres, uma “espécie de remate de uma formação que visava capacitar

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Loyola, Santo Inácio de. Ejercicios Espirituales de S. Ignácio de Loyola, Madrid: Razón y Fé, 1954. p. 35. 16 Hansen, João Adolfo. A escrita da conversão. Costigan, Lúcia Helena (org.). Diálogos da conversão: missionários, índios, negros e judeus no contexto ibero-americano do período barroco, Campinas-SP: Editora da Unicamp, 2005. pp. 35-36.

7 os convertidos ao uso da palavra cristã, na língua nativa”17, mas a proclamação pública do verbo em tupi (bem como em todas as outras línguas que conviviam no interior da vida religiosa da colônia) não se restringia ao espaço do “palco” ou do “pátio”. O teatro da missão só se compreende no seu ambiente espetacular mais amplo, ou seja, nos momentos festivos em que eram apresentados, formando uma unidade orgânica com os seus outros elementos artísticos, litúrgicos, sacramentais e devocionais. Por sua vez, as festas da missão no século XVI – ou as “notícias” que delas podemos ter no presente – não podem ser isoladas de um corpus documental particular (formado por textos de gêneros e subgêneros específicos): as narrativas de consolação e as correspondências dos padres da Companhia de Jesus, especialmente, no caso, aquelas cartas escritas para seus superiores na Europa. Entre os exemplares de cartas e narrativas de consolação que trazem descrições de festas, destacam-se as ânuas de 1581, 1583 e 1584, escritas pelo então Provincial da Companhia de Jesus no Brasil, Pe. José de Anchieta, ao Pe. Cláudio Acquaviva, Prepósito Geral da Companhia de Jesus entre 1581 e 1615. Contemporânea destas cartas é a “Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica” (1584), do Pe. Fernão Cardim, que, então, acompanhava o Padre Visitador Cristóvão Gouvêa em suas viagens pelas aldeias da Bahia. Das ânuas de Anchieta e da narrativa epistolar de Cardim, gostaríamos de comentar alguns trechos dos mais significativos no que diz respeito à conexão do “teatro” com as festas da missão no Brasil. Para isso, como exemplares, selecionamos descrições de festividades relacionadas à exposição pública das relíquias das Onze Mil Virgens depositadas no Colégio da Bahia. Vamos aos trechos: “Dia 21 de outubro, consagrado às Santas Virgens, deram princípios com grande festa, com o canto das vésperas e missa cantada, ao som de órgão. O número dos que se confessaram e comungaram superou a expectativa. Em seguida, efetuou-se, com excelente ordem, uma procissão, na qual um de nossos padres recém-ordenado, acompanhado de acólitos, levava sob o pálio de seda o relicário com as cabeças das virgens. Houve, em honra das mesmas, algumas representações, Avançava desde logo uma nau, muito bem ornamentada e montada com a maior perfeição sobre rodas de madeira, tão escondidas, que delas nada sobressaía. Nessa nau era transportada Santa Úrsula e suas companheiras, sobre as quais sobrepairava um Anjo, com uma palma na mão, e a exortar o batalhão à conquista da coroa do martírio. A tal pagão, acolhido com rosto não turbado, mas feliz, a comandante e todas mais, com voz sonora, respondiam em uníssono estarem prontas a dar, por Jesus, esposo de suas almas, o sangue e a vida. Terminados tais diálogos, prosseguiu a nau o caminho iniciado. A uma alocução do Anjo, desfraldaram-se estandartes vermelhos e soaram os estampidos dos morteiros, como sinal de um glorioso triunfo. (...) Após outros espetáculos semelhantes, à tarde houve nova representação, mais breve, em que os corpos degolados e cobertos de sangue das Santas Virgens, carregados pelos Anjos foram entregues ao sepulcro entre suaves canções. Isso tudo com tamanho realismo, que, não apenas os espectadores, mas os próprios atores, deixando-se dominar pela compaixão, desataram em prantos. Exibições, estas e outras que – como a experiência demonstra – concorrem para que se reúnam, vindas por terra e mar, verdadeiras multidões, aumentando

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Torres, Magda Jaolino. As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da missão” no Brasil do século XVI, Tese de Doutorado. Brasília: Programa de Pósgraduação em História / Universidade de Brasília, 2006. p. 158.

8 assim o número das confissões, com o proveito das almas, que daí redunda, fácil de ser por todos comprovado”.18

A festa referida acima marcava a fundação da Confraria das Onze Mil Virgens, nascida em 1584, conforme Anchieta, da iniciativa dos estudantes do Colégio dos Jesuítas da Bahia. Segundo o Pe. Fernão Cardim, o Pe. Visitador Cristóvão Gouvêa, ao ser recebido no Colégio da Bahia no ano anterior, presenteou o local com várias relíquias trazidas da Europa, entre as quais uma cabeça das Onze Mil Virgens. Na ocasião, Cardim indica como esta última relíquia foi recebida pelos estudantes do Colégio e pelos moradores da Bahia: “A cidade e os estudantes lhe fizeram um grave e alegre recebimento: trouxeram as santas relíquias da Sé ao Colégio em procissão solene, com flautas, boa música de vozes e danças. A Sé, que era um estudante ricamente vestido, lhe fez uma fala do contentamento que tivera com a sua vinda; a Cidade lhe entregou as chaves; as outras duas virgens, cujas cabeças já cá tinham, a receberam à porta de nossa igreja; alguns anjos a acompanharam, porque tudo foi a modo de diálogo. Toda a festa causou grande alegria no povo, que concorreu quase todo”.19

No conjunto dos trechos citados, temos descritas três circunstâncias de representação propriamente teatral que convivem, em momentos festivos, com cantos; danças; procissões; pregações; ostentações de imagens, insígnias e estandartes; sons de prantos e tiros de morteiro; administração de sacramentos como a confissão e outras formas artísticas ou não de devoção e fervor religioso. No recebimento de Cristóvão Gouvêa e das relíquias, a representação dá-se na forma de diálogo entre personagens alegóricos e “reais” que se encontram nos extremos de uma procissão, ou seja, na Sé da Bahia e no Colégio dos Jesuítas. O martírio de Santa Úrsula deu-se, por sua vez, também na forma de diálogo, representado sobre uma nau sobre rodas que atravessava o espaço de uma longa festa. Por último, o sepultamento das Onze Mil Virgens, na mesma ocasião festiva, foi representado ao som de canções, não sendo mencionado nenhum diálogo entre personagens. Antes de se avaliar o sentido das representações nas descrições de festas da escrita jesuítica, devemos, primeiramente, considerar os efeitos de consolação/edificação que a ecfrase do espetáculo deveria produzir nos destinatários desses discursos. Nesse sentido, devemos ter em vista, primeiramente, os efeitos da festa sobre os seus participantes, conforme descritos (e prescritos), na carta, pelo jesuíta. Em segundo lugar, é necessário perceber a extensão desses efeitos a um outro público, distante das celebrações, que há de receber as mensagens contidas nas descrições como leitores/ouvintes de cartas. Na primeira operação, podemos dizer que as imagens postas em movimento nas festas buscam suscitar o estado de ânimo a ser produzido nos seus participantes. Na segunda operação, o estado de ânimo supostamente produzido sobre os participantes da festa é transposto para imagens destinadas à intensificação e à multiplicação dos efeitos edificantes da celebração a um auditório quantitativa e qualitativamente ampliado. Nesse caminho, os efeitos da segunda operação confirmam e amplificam os da primeira e os da primeira anunciam os da segunda. 18

Anchieta, José de. Carta Anua de 1584, ou breve narração das coisas atinentes aos colégios e residências, existentes nesta Província do Brasil (Bahia, 27 de dezembro de 1584). Cartas: correspondência ativa e passiva, São Paulo: Loyola, 1984. pp. 375-376. 19 Cardim, Fernão. Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica. Tratados da terra e gente do Brasil, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936. p. 174.

9 Em relação aos efeitos do espetáculo festivo sobre os participantes, destacam-se: (1) a atração da atenção do público, movendo-o (em massa) para os espetáculos; (2) a incitação do público para a freqüência nos sacramentos, especialmente na confissão, na comunhão e no batismo; (3) produção da comoção pública, levando à compaixão e à expiação e (4) geração de uma “grave alegria” no povo. Os quatro efeitos articulam-se completamente, tendo, como ponto de fuga, a noção de reunião do corpo místico com a finalidade dirigir os afetos de suas partes na direção ascendente da salvação das almas. Anchieta e Cardim narram duas circunstâncias distintas (exemplares no conjunto do corpus epistolar jesuítico) próprias para a edificação de imagens destinadas à produção de determinados efeitos: a celebração de martírios (no caso, o de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens) e o recebimento (no caso, de uma relíquia das Onze Mil Virgens, trazida pelo Visitador Pe. Cristóvão Gouvêa). Na circunstância da representação do martírio, a ênfase é posta na produção da comoção; na do recebimento, a ênfase é dada à “grave alegria”. Mas essas circunstâncias são complementares, se pensarmos que, na sua origem, está o mesmo mito: o martírio de Santa Úrsula. Os efeitos de comoção e consolação (“grave alegria”) buscados nos ânimos dos participantes são apresentados nas cartas como decorrentes da visualização de presenças. No caso de Cardim, esta presença é enunciada nas várias personificações que ornam o seu texto: a Cidade, a Sé, a nova Virgem que se recebia no Colégio, as duas outras que já estavam na Bahia e os Anjos são personagens de um diálogo que, no espaço do recebimento, representavam realidades incapazes de se fazer ver aos homens a não ser de maneira mediada por palavras e imagens inspiradas pela luz da graça. No caso da ânua de Anchieta, a presença se anuncia no “realismo” das cenas do martírio e do sepultamento das mártires, representado por meio de artifícios imagéticos (os estandartes), plásticos (a nau ornamentada, os “corpos degolados”), performáticos (o “sepultamento”), sonoros (artilharia) e verbais (cantos e diálogos). Em meio disso, os próprios ânimos dos participantes se demonstram em atos de devoção que se convertem em imagens pias, gerando mais e mais ardor religioso: prantos, demonstração de alegria, freqüência aos sacramentos... Sobre os leitores coevos dessas narrativas/descrições, o remetente das cartas também espera gerar efeitos de edificação/consolação. Explicando o efeito de “consolação” buscado na escrita de Cardim, Charlotte Castelnau-L’Estouile afirma que “a consolação corresponde ao estado de manifestação de alegria” ao se assistir ao “florescimento” (épanouissement) da vontade de Deus em um contexto de dificuldades missionárias, ao qual se pode aplicar a tópica jesuítica da vinha estéril20. Já em relação às cartas, Fernando Londoño, por exemplo, afirma que a sua função era “consolar e edificar, dando a conhecer as obras feitas em nome de Deus”21. Com isso, concorda Pécora, que, nos preceitos da ars dictaminis inaciana, identifica a obrigatoriedade de as cartas principais darem “edificação” ao leitor (ou ouvinte), sendo escrita exclusivamente – ignorando tudo que para isto se mostrasse impertinente – para o “serviço de Deus e aproveitamento do próximo”, constituindo-se, pois, como “obras espirituais” ordenadas e disciplinadas22. Também Magda Jaolino Torres endossa o caráter edificante, não só das cartas, mas de toda a escrita jesuítica, que, por isso, Cf.: Castelnau-L’Estouile, Charlotte. Les ouvriers d’une vigne stérile: les jésuites et la conversion de Indiens au Brésil, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000. pp. 354-355. 21 Cf.: Londoño, Fernando Torres. Escrevendo cartas. Jesuítas, escrita e missão no século XVI. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 43, p. 15, 2002. 22 Cf.: Pécora, Alcir. A arte das cartas jesuíticas do Brasil. Máquina de gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Avarenga e Bocage, São Paulo: EdUSP, 2001. p. 29. 20

10 deveria ser disciplinada conforme uma ordem e, logo, um decoro, que entre outras limitações, impunha as matérias e os modos de dispô-las que se entendiam como legítimos23. Assim, devemos buscar o entendimento das passagens de Anchieta e Cardim sobre as festas e representações (bem como de qualquer outro missionário que tenha escrito sobre o assunto em suas cartas) naquilo que elas potencialmente serviam para a função edificante/consoladora de suas escritas. Além disso, nos casos de Anchieta e Cardim, as cartas referidas pertencem a subgêneros específicos que também têm funções determinadas. A de Cardim é uma epístola, o que marca o seu caráter oficial, no caso, destinado a relatar a visitação do Pe. Visitador Cristóvão Gouvêa ao Brasil. A de Anchieta é uma ânua que, conforme as normas da Companhia de Jesus, deveria servir ao Provincial para informar ao Prepósito Geral sobre o que se passa em cada província, de modo que esse tenha elementos para ajuda-lo a “fazer bem o seu governo”, emitindo opiniões e ordens24. Ambas, portanto, têm valor “administrativo” ou “político” nos destinos da missão, indicando, explícita ou dissimuladamente, estratégias e formas de agir, na Província, ad maiorem gloriam Dei. As descrições/narrações de festas potencialmente traziam, com efeitos edificantes e consoladores, exemplos dos frutos que se faziam ou se podiam ainda fazer na missão do Brasil a partir das estratégias que vinham sendo adotadas. Não raro, o foco da carta se dá mais em relação aos ânimos dos participantes e aos seus afetos mobilizados, buscando provocar, no leitor (ouvinte) da carta, o reconhecimento ou a evidência de um espetáculo de devoção. Por isso, é tão comum, no manuseio das correspondências, encontrarem-se passagens que descrevem festas, enfatizando mais o ardor dos disciplinantes (“autoflagelantes”), os prantos, a comoção generalizada, a alegria, o entusiasmo ou a comiseração dos participantes do que propriamente o aparato artístico (cênico, visual, sonoro ou verbal) construído para gerar tais estados25. Na verdade, nas cartas, o aparado artístico (com)funde-se ao aparato devoto dos participantes, ambos destinados a evidenciar a presença, na festa, da realização da vontade de Deus. Em suma, a festa jesuítica da missão tem, em si, a função de mover os ânimos da comunidade, dirigindo suas paixões ascendentemente na busca da salvação. Como escrita edificante, por sua vez, a festa funciona como mecanismo capaz, na correspondência jesuítica, de gerar consolação, evidenciando a arte de produção e, mais

23

Cf.: Torres, Magda Jaolino. Os documentos/monumentos da Companhia de Jesus. As práticas discursivas da Companhia de Jesus e a emergência do “teatro jesuítico da missão” no Brasil do século XVI, Tese de Doutorado. Brasília: Programa de Pós-graduação em História / Universidade de Brasília, 2006. pp. 13-33. 24 Cf.: Pécora, Alcir. A arte das cartas jesuíticas do Brasil. Máquina de gêneros: novamente descoberta e aplicada a Castiglione, Della Casa, Nóbrega, Camões, Vieira, La Rochefoucauld, Gonzaga, Silva Avarenga e Bocage, São Paulo: EdUSP, 2001. pp. 26-28. 25 É bastante paradigmática, neste sentido, a descrição genérica do Ir. José de Anchieta ao Prepósito Geral Pe. Diego Laynes sobre as festas principais de Piratininga: “em las fiestas principales, maxime quando se celebra el Nascimiento y Passión del Señor concorrem a Piratininga de tódolos lugares comarcanos quasi todos muchos días antes. Están presentes a los divinos officios y processiones, disciplinándose hasta derramar sangre, para lo qual mucho antes aparejam disciplinas com mucha diligentia. Lo mesmo hazem processiones. El officio de las tinieblas hazemos em la Iglesias in canto, el qual concluímos tomando disciplina com tres Miserere. También les predicamos la Passión en língua no sin gran devotión y muchas lágrimas de los oyentes, las quales también derraman en abundantia em las confessiones y communiones”. (Anchieta, José de. Do Ir. José de Anchieta ao P. Diego Laynes, Roma. São Vicente, 01 de junho de 1560. Leite, Serafim (org.) Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil (vol. III), São Paulo: Ed. Nacional, 1954. p. 255.

11 ainda, o produto de representações26 devotas inspiradas pela luz da graça. Como festa ou como escrita, o espetáculo jesuítico prescreve afetos e modos sensíveis de uso do corpo para a saúde da alma. Ela direciona o olhar, o tato e o ouvido para os sinais da misericórdia divina e para o sacrifício dos mártires e do próprio Cristo; ela os estimula a experimentarem a dor, o sofrimento e a alegria; ela ordena os movimentos do corpo, o timbre das vozes, o ritmo do andar, a distribuição espacial dos participantes conforme a hierarquia, etc. para que sensorialmente as mensagens religiosas (e políticas) da festa sejam percebidas. A festa, poderíamos dizer, é proclamação da mensagem de Deus e não somente ensinamento da Palavra Revelada27. Nela, o Verbo se faz carne e se expõe ao corpo místico dos participantes. A festa tem sentido sacramental28, pois busca dar visualidade, no corpo do conjunto dos fiéis, à hipóstase redentora que, encarnada, lhe promete a salvação. 3. Receber entregando-se. O pacto sacrificial das festas. “O sacrifício que se oferece exteriormente representa o sacrifício espiritual interior, por meio do qual a alma se oferece a Deus em acordo com Ps. 50, 19: ‘um sacrifício para Deus é um espírito aflito’.” 29

Em linhas gerais, é possível identificar dois grupos tipológicos básicos de circunstâncias festivas que, na correspondência jesuítica quinhentista, são oportunas para a proclamação do Verbo: as festas periódicas e as festas ocasionais. As periódicas são aquelas que se fazem conforme o calendário litúrgico e de celebração das vidas de Santos e da Virgem, principalmente. Incluem-se nelas as celebrações natalinas e do Advento, as da Paixão, a festa de Corpus Christi, as cerimônias várias da Quaresma, as festas de oragos de vilas e aldeias etc. As ocasionais, por sua vez, são aquelas que se dão por conta de alguma circunstância não prevista no calendário religioso, mas que seja propícia à proclamação do Verbo. Dentre as festas ocasionais, temos alguns subtipos mais recorrentes, como os recebimentos, as rogações públicas, os agradecimentos por graças divinas, os matrimônios e os funerais. Em muitos dos casos, as festas periódicas podiam se confundir com ocasionais na correspondência jesuítica. Isso é muito freqüente, por exemplo, no caso de festas em Para o que temos chamado de “representação”, cf.: Hansen, João Adolfo. A categoria “representação” nas festas coloniais dos séculos XVII e XVIII. Jancsó, István & Kantor, Iris (orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa, Vol. 2, São Paulo: Imprensa Oficial/HUCITEC/EdUSP/FAPESP, 2001. pp. 733-755. 27 Utilizamos, aqui, o conceito de proclamação conforme formulado por Hans-Georg Gadamer em seus estudos sobre as relações entre experiências estética e religiosa. Para este autor, o mito cristão, do ponto de visto da comunidade de fiéis, não é somente uma narração, mas o testemunho do narrado. Assim, a mensagem “proclamada” pela autoridade religiosa que se apresenta na festa, na liturgia ou no ritual requer não somente a compreensão do seu conteúdo, mas, principalmente, a experiência do sinal de que, ali, algo se faz “revelar”, “conhecer” ou “reconhecer” como verdade. A aceitação e a compreensão da mensagem religiosa dependem, pois, de uma atitude sensorial do público diante da forma em que esta mensagem se apresenta, aproximando, pois, a experiência do sagrado à experiência estética. Cf.: Gadamer, Hans-Georg. Aesthetic and religious experience. The relevance of the beautiful and other essays, Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 153. 28 Aproximamo-nos, aqui, daquilo que Alcir Pécora nomeou “sacramentalidade” nos sermões de Antônio Vieira, afastando o anacronismo de se dar autonomia, nos discursos do sermão ou da festa, a um suposto valor estético em si. Conforme Pécora, para Vieira, “a base articulatória de sentido e eficácia dos sermões é dada por sua impregnação do divino, vale dizer, (...) por sua sacramentalidade”. Cf.: Pécora. Alcir. Teatro do sacramento, São Paulo: EdUSP, 1994. p. 41. 29 Aquino, São Tomás de. Suma Theologica. Parte II. Questio 85. Disponível em: www.newadvent.org/summa/3085.htm . Acessado em 28/08/2007. 26

12 aldeias de índios, onde recebimentos de clérigos de fora podiam se dar durante a celebração de alguma data do calendário litúrgico. Na maior parte das vezes, a presença desses clérigos se dava para a administração de sacramentos (batismos, confissões, matrimônios, confirmações...), o que marcava o equívoco do próprio recebimento, que era, ao mesmo tempo, para a autoridade eclesiástica e para o sacramento, que chegavam. Outro exemplo constante é aquele em que uma imagem ou uma relíquia é recebida na vila ou na aldeia durante as festas de um orago ou para alguma outra festa principal. Em outros muitos casos, durante festas periódicas mais longas, era comum haver batismos e casamentos em massa, rogações públicas e agradecimento por graças. Assim, não podemos separar radicalmente os dois tipos básicos de circunstâncias festivas como se fossem puros ou, menos ainda, opostos. Mais do que isso, pode-se dizer que, em certo sentido, toda festa periódica é uma ocasião que se instaura para a proclamação do Verbo e que toda festa ocasional, de alguma maneira, implica recorrências e repetições. Há ciclos de recebimento, de nascimento e de morte, de secas e de bonança... Em outros termos, poderíamos, com Gadamer, dizer que as festas periódicas “não são registradas numa ordem temporal, mas ao contrário, a ordem temporal surge a partir do retorno das festas”30. As festas, sejam ocasionais ou periódicas têm o seu tempo, vêm ao seu tempo. Elas instauram momentos próprios e significativos em que se suspendem as práticas cotidianas da localidade para que seja celebrado um pacto religioso que se dirige à busca de todos pela salvação da alma. Tempo da salvação, talvez seja esta a melhor expressão para nos referirmos ao tempo que se fazia presente periódica ou ocasionalmente nas festas jesuíticas. Nele, reatualizavam-se “atos originais” ou “eventos sagrados” conforme ocasiões particulares que se remetiam à chegada da promessa de salvação. Nesse sentido, toda festa é de recebimento: recebimento da salvação. Ou melhor, a festa de recebimento é o paradigma das festas31. Analisando os textos “teatrais” de recebimento que aparecem no “caderno de Anchieta”, Thereza Baumman chega à conclusão de que suas circunstâncias celebravam um pacto entre cristãos e índios, mesclando elementos da saudação lacrimosa (o erejupe dos Tupis) e da Entrada de Cristo em Jerusalém32. O erejupe indígena era lido pelos europeus como sinal de amizade com os cristãos que chegavam de longe, passando por muitos perigos de viagem para estarem ali com eles. Já, no calendário litúrgico, a data que comemora a entrada de Cristo em Jerusalém é o Domingo de Ramos, primeiro dia da Semana Santa, que compreende também o tríduo pascal (Santa Ceia, Paixão e Aleluia) e culmina no domingo da vigília pascal (Ressurreição). A Entrada de Cristo em Jerusalém é, pois, a abertura do momento mais significativo do calendário cristão, ou seja, o final da Quaresma, quando, após um longo período de preparo e privações, o cristão celebra os momentos mais decisivos da História da Salvação, como a instituição

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Gadamer, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985. p. 64. 31 O caráter paradigmático dos recebimentos é notado por Armando Cardoso em seu estudo crítico do que entende ser a estrutura do “auto anchietano”. Para o estudioso jesuíta, os recebimentos de pessoas, imagens de santos ou relíquias configuram um gênero teatral inspirado em tradições indígenas de manifestação de respeito àqueles que os visitam. (C.f.: Cardoso, Armando. Os recentes apreciadores de Anchieta. Anchieta, José de. Teatro de Anchieta, São Paulo: Loyola, 1977. p. 51.) A partir desse insight de Cardoso, podemos formular a hipótese de que as cerimônias de recebimento das festas jesuíticas são traduções religiosas que se fundam na hermenêutica cristã do erejupe, decodificando-o como signo que anuncia a disposição indígena para a recepção do Evangelho e da promessa da salvação. 32 Baumman, Thereza. Festa na missão: recebimentos e entradas no teatro catequético de José de Anchieta. Cadernos de história social, Campinas-SP, no. 04, pp. 25-40, outubro de 1996.

13 do sacramento da Eucaristia, o Sacrifício de Cristo e a Ressurreição, acompanhada da promessa da Remissão dos Pecados. O Domingo de Ramos ocorre, pois, por volta do mês de abril. Contudo, tamanha é a sua significação como modelo das festas jesuíticas (de recebimento) que Capistrano de Abreu, ao comentar com ironia uma passagem de Cardim, observa que o mesmo descreve uma celebração do dia de Ramos em novembro, em uma ocasião em que o Pe. Gouvêa era recebido no Espírito Santo33. Aquilo que pareceu um contra-senso ou um excesso religioso para o historiador oitocentista, acostumado a contabilizar e organizar o tempo segundo abstrações numéricas; para um jesuíta do século XVI não era mais do que o cruzamento significativo de dois eventos coincidentes no tempo da salvação: a Entrada de Cristo em Jerusalém e a chegada do Visitador na Capitania do Espírito Santo. O primeiro evento – poderíamos dizer – é periódico ou cíclico. O segundo é ocasional ou singular. O primeiro, como temporalmente mais duradouro, fornece as tópicas gerais que dão inteligibilidade ao segundo. O segundo, na sua particularidade, confirma a promessa que o primeiro instaura, realizando-a in facti. O mesmo tipo de mal entendido parece se mostrar nos juízos negativos que cercam a fortuna crítica de um dos mais famosos textos do “caderno de Anchieta”: aquele conhecido como Na Festa de São Lourenço. Décio de Almeida Prado, por exemplo, refere-se às suas personagens como “disparatadas, tão dilatadas no espaço e no tempo, quanto se possa desejar”. O crítico, aqui, faz menção à convivência de índios tamoios inimigos (como Aimbirê e Guaixará) com São Lourenço, São Sebastião e os imperadores Décio e Valeriano. Para Almeida Prado, este caos só faz sentido se os personagens são separados maniqueistamente entre amigos e inimigos da Igreja Católica. A unidade dramática – arremata o estudioso – é “das mais precárias” e a peça “não quer outra coisa senão reviver no presente, em tom triunfalista, batalhas ganhas ou perdidas no passado pela Igreja”.34 Para o crítico do século XX, a unidade dramática da “peça” exige uma coerência espaço-temporal que Na festa de São Lourenço supostamente não provê. Por outro lado, o seu próprio juízo negativo parece atenuado quando reconhece a possibilidade de “redução” da cena a um maniqueísmo trans-histórico que pode englobar tanto as histórias de martírios dos primeiros cristãos quanto os revezes da ação missionária inaciana no Novo Mundo. Parece-nos, aqui, que o próprio crítico furta-se em sua formulação ao afirmar a possibilidade de “reviver (no presente) triunfalmente batalhas perdidas (no passado) pela Igreja”. Pensar em um triunfo pela derrota envolve reconsiderar a idéia de uma luta maniqueísta entre amigos e inimigos da Igreja. Não há tal luta, mas uma coincidentia oppositorum que tem, como vitoriosa, no tempo da salvação, sempre a Igreja ou, em última análise, a Providência. Seu ícone, por excelência, é o mártir, nunca um derrotado. Seu ícone é o do cristão que se sacrifica, daquele que se entrega em nome do seu testemunho de fé. Novamente, o modelo é cristológico e eucarístico. O verdadeiro vitorioso é aquele que se despoja do próprio corpo mortal para participar da Glória de pertencer ao corpo místico e eterno de Deus. Este modelo de entrega é o que vimos no trecho da ânua de 1584, em que Anchieta descreve a festa de criação da Irmandade das Onze Mil Virgens na Bahia. Santa Úrsula e suas companheiras, São Lourenço ou São Sebastião, ao serem recebidos (na forma de imagens, relíquias, dia do calendário, associações em sua homenagem ou orago de igreja recém inaugurada, por exemplo), apresentam-se como modelos éticos 33

Capistrano de Abreu, João. Fernão Cardim. Ensaios e estudos, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL, 1976. p. 227. 34 Almeida Prado, Décio de. Teatro de Anchieta a Alencar, São Paulo: Perspectiva, 1993. pp. 2324.

14 perfeitos de conduta cristã. Como tais, mostram ser aliados poderosíssimos dos participantes da festa na luta contra o pecado e tudo mais que os pudesse afastar da glória celestial. Os mártires se entregaram ao martírio para a salvação de muitos e, ao serem recebidos, ensinam ao público a se entregar à salvação. Ao receberem os mártires, os santos, a Virgem, a Igreja, o Padre ou qualquer outro “aliado”, os participantes da festa se entregam a eles como seus protetores e, analogamente, entregam seus destinos a Deus, livrando-se de suas vaidades e tentações por um sacrifício redentor. Em suma, é possível dizer que os atos concomitantes e mútuos (entre “participantes” e “recebidos”) de receber e de entregar-se conformam um modelo de comportamento adequado ao conjunto das festas jesuíticas. Nele, o que os participantes recebem é enunciado, nos textos do “teatro jesuítico”, a partir de algumas metáforas recorrentes que definem o caráter de determinadas personagens “recebidas” e, num nível mais profundo, substâncias, por si só, dignas de recebimento. Dessas, podemos destacar, por exemplo, a do “remédio”, como aparece naquele texto conhecido como Recebimento do Pe. Bartolomeu Simões Pereira. Simões Pereira é construído, mais propriamente, a partir de três metáforas: a do “pastor”, que comanda e administra os fiéis; a de “evangelizador”, que traz a “cura” ou o “remédio” para a culpa, e a de “capitão”, que fornece auxílio na luta contra o Inimigo. No caso, o “remédio”, ou a “arma”, é o sacramento da Crisma, como aparece no diálogo: “– E que traz para nos dar? – Um óleo sagrado e bento, Que se chama sacramento, Com que nos há de crismar, Para poder pelejar Contra Satanás traidor, Com ajuda do pastor.”35

Note-se que, se Simões Pereira é apresentado como capitão, é por trazer uma “arma”, se é como “evangelizador” ou “remediador” é por trazer um “remédio” e se é como pastor é por oferecer “condução espiritual” (ou, mais concretamente, a administração do sacramento) à comunidade. Mas tudo isso que ele tem a oferecer é o sacramento da confirmação, referido pela sinédoque do óleo da crisma. É o sacramento que é recebido, ao mesmo tempo, como “remédio”, como “arma” e como “condução da comunidade” e é, pois, ele que faz do padre um “capitão”, um “evangelizador” e um “pastor”. O que ele traz é exatamente a possibilidade para os índios ofertarem suas almas a Deus, confirmando, por consentimento, a graça recebida no Batismo. Assim, receber o Pe. Simões Pereira funciona como sendo o mesmo que receber o sacramento da crisma, que tomar as propriedades que este sacramento possui para a busca da salvação e que se entregar como parte do corpo místico, engajando-se na busca pela salvação. A metáfora do “remédio”, ligada ao sacramento, aparece ainda em um sem número de textos do “caderno de Anchieta”. Podemos destacar a que aparece na canção conhecida como “Cordeirinha Linda”, supostamente destinada ao recebimento de relíquias das Onze Mil Virgens no Espírito Santo. Nela, a virgem, provavelmente Santa Inês36, é representada como uma “padeirinha” que chega “ao povo” para lhe dar pão e 35

Anchieta, José de. Poesias, São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 416. 36 Cf.: Nota n. 01 de Armando Cardoso em: Anchieta, José de. Quando no Espírito Santo se recebeu uma relíquia das Onze Mil Virgens. Teatro de Anchieta, São Paulo: Loyola, 1977. p. 278

15 luz, sarando-o e saciando sua fome (“espiritual”). Aqui, o pão refere-se ao corpo de Cristo e, logo, ao sacramento da Eucaristia, e o termo “remédio” aparece na variante portuguesa de “mezinha”, gerando um sentido equívoco, na oralidade, de tratar-se de “mesinha”, diminutivo de mesa, tal como “padeirinha” é diminutivo de padeira: “Santa padeirinha, Morta com cutelo, Sem nenhum farelo É vossa farinha. Ela é mezinha Com que sara o povo, Que, com vossa vinda, Terá trigo novo.”37

Portanto, além de receber “remédio”, “arma” e “condução”, ao receber o sacramento, o público/participante poderia receber, também, “alimento” e “luz”, que o fortalecem e o iluminam no seu caminho ascendente em direção à salvação. As metáforas – não meramente pneumáticas, mas in facti – ou, no caso, as metonímias do “pão”, do “trigo” e do “alimento”, relacionadas à Eucaristia, podem ser visualizadas também, por exemplo, na canção conhecida como “O Pelote Domingueiro”, em que Adão é representado como um moleiro que, tendo feito má farinha, tornou-se fraco e presa fácil para o Diabo inimigo38. O que, no entanto, aqui, chama mais a atenção é o fato de a santa mártir ser ela própria tratada como a substância da “farinha” com a qual se faz o “pão” para alimentar espiritualmente “o povo”. Isto nos leva a crer que o ato de martírio a torna, de maneira semelhante a Jesus Cristo, alguém que entrega sua própria vida e o seu corpo mortal para a salvação daqueles que os devem receber como “alimento da alma” e “remédio para a culpa”, ou seja, como “mesinha” e como “mezinha”. 4. A mitologia das representações. Canibalismo e Eucaristia: “Se não comerdes a carne do Filho do homem nem beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós (...). Quem come minha carne e bebe meu sangue permanece em mim e eu nele”.39

Como temos visto, há, nos recebimentos, como paradigmas das festas da missão, nas quais se davam as representações do chamado “teatro jesuítico”, um forte sentido eucarístico, em que o público/participante toma aquilo – fruto de um sacrifício in illo tempore – que, como prometido, lhe chega para proveito de sua alma e, concomitantemente, a entrega como oferta sacrificial a Deus, que se apresenta como substância em tudo aquilo que a festa encerra. Chegamos, assim, ao ponto que nos permite tratar de uma das características dos textos do “caderno de Anchieta” que mais desafiam o senso comum: a mobilização do que denominamos tópica do canibalismo. As sutilezas na mobilização dessa tópica se dão, sobretudo, em função das ambigüidades do canibal como figura de transição. Na escrita jesuítica, incluindo o “teatro”, o canibal é o ícone, ao mesmo tempo, de um índio bruto (em costumes) e virtualmente justo e cristão (em natureza). Assim, o canibalismo se apresenta, ao 37

Anchieta, José de. Poesias, São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 383. 38 Cf.: Anchieta, José de. Poesias, São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. pp. 399-404. 39 Jo 6, 53-59.

16 mesmo tempo, como sinal de selvageria e engano e de conhecimento (ainda que precário e pervertido, pois, selvagem e influenciado por fantasias satânicas) da “verdade bíblica” por parte daqueles que supostamente o praticavam. No teatro jesuítico, a tópica do canibalismo aparecerá sob suas duas formas principais: a de torpe selvageria, associando-se, por exemplo, à configuração dos caracteres demoníacos (ou anhangás) que povoam os diálogos; e a de inversão labiríntica, que, revertida, possibilita o testemunho da verdade que se esconde por traz de suas “fantasias demoníacas”. Este último uso, certamente o menos óbvio (e, como tal, mais instigante), da tópica do canibalismo é o que aparece, por exemplo, quando Anjos ou a Virgem aparecem representados através de elementos que lembram algo do complexo canibal. É o caso, por exemplo, do Anjo que no texto conhecido como Recebimento do Pe. Marçal Beliarte dirige-se a demônios inimigos, ameaçando-os: “Vivo vos despedindo, Vos expulsando... Olhai! Esta minha tangapema Não está em minha mão a toa, Ela vos destroçará um dia.”40

Um dos demônios aos quais se dirige o Anjo é nomeado Makaxéra, que, no final do diálogo, é derrotado com um único golpe da tangapema, que lhe quebra a cabeça. E mais: antes de executar Makaxéra, o personagem índio que, identificado com o Anjo armado, deu o golpe fatal o lembrou de um antigo algoz: Tupansy, a Mãe de Deus, que outrora também lhe teria esmagado a cabeça. No momento imediatamente após o fatal golpe, exclama o índio: “Pronto, matei Macaxera Extinguiu-se o mal. Eu sou o ‘Anhangupiara’”41

Três vocábulos, nos fragmentos selecionados, permanecem sem tradução do tupi: tangapema, macaxera e anhangupiara. Os três fazem profunda referência ao complexo antropofágico tupi, conforme identificado pelos inacianos. O tangapema, ingapema ou ibirapema é a arma que jesuítas e “cronistas” dizem ser utilizada pelos algozes para matar as vítimas do festim canibal. Na ocasião, ele seria especialmente preparado e adornado e, no momento da execução, deveria, com um único golpe na cabeça, matar o inimigo. Macaxera é fácil de identificar como metáfora alimentar, pois significa mandioca ou aipim, raiz que fornecia a base da alimentação indígena. No caso, mais do que isso, de sua farinha, os jesuítas faziam pão e, na falta do trigo, o utilizava na consagração eucarística. Anhangupiara é um vocábulo criado a partir da aglutinação dos substantivos anhangá e jupiara (contrário). A analogia com o canibalismo, aqui, é mais sutil, mas existe, na medida em que identifica o demônio com um “inimigo de guerra”, tal como aqueles que supostamente eram aprisionados para serem mortos e devorados. Ainda mais significativamente, o nome Anhangupiara é tomado pelo índio após matar Makaxéra, o que remonta à prática correlata adotada pelos principais indígenas após matarem suas vítimas em terreiro. 40

ANCHIETA, José de. Poesias São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 670. Em tupi: “Aikobé pemondoárama, / pemoséma... / Mãe! Ko xe itangapéma / xe pópe ndoikói teme, / pemombokaõáma e”. 41 ANCHIETA, José de. Poesias São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 672. Em tupi: “Te! Ajuká Makaxéra, / omanongatú moxy. / “Anhangupiára” xe réra!”.

17 O Anjo/índio mesmo, em sua imagem, quando representado de maneira tão próxima do universo canibal, pode ser substituído, por metáfora elaborada ou conceptual, pelo guerreiro canibal que, enfeitado com plumas brancas e sua “capa de pena” com “abas para cima como asas de anjo”42, mata suas vítimas no “demoníaco” ritual de antropofagia. Estranha figura é este canibal, que apresenta aspectos de anjo e de demônio. Estranho Anjo o do Recebimento do Pe. Marçal Beliarte, que se comporta como um canibal... Aqui, a analogia entre o canibal (demônio) e o anjo, dois opostos extremos, só é concebível no interior de uma gramática totalitarista, capaz de ver, seja entre os similares ou entre os distantes, a causa primeira e origem de toda e qualquer analogia: Deus. Novamente, apresenta-se a coincidentia oppositorum, que anteriormente nos referimos, contradizendo uma leitura, a nosso ver, rasa, porém recorrente, de haver um suposto maniqueísmo nos textos do teatro jesuítico. Na gramática jesuítica, absolutamente nada tem autonomia em relação à Providência, muito menos o mal ou o demônio, incapaz de criar realidades novas. Tudo o que pode o mal é perverter, na consciência humana imperfeita, o sentido “natural” de toda a criação. Sendo assim, mesmo o canibalismo – prática vil de ingestão da carne do próximo, motivada pelo apetite de vingança, que, conforme alegam os missionários e outros testemunhos coevos, movia as guerras intertribais dos povos tupi – tem Deus como fundamento ou causa primeira. Se era assim, caberia aos missionários desvendar as saídas do “labirinto enganoso” por lúcifer plantado no coração do canibal, encontrando, naquilo que ele apresentava de “verdadeiro”, o caminho da sua retificação, significando um (re)encontro com a justiça e com a promessa de salvação. Por isso, não é necessariamente contraditório que um Anjo possa lembrar um guerreiro canibal e vice-versa. Para que isso se faça mais evidente, propomos fazer uma comparação entre o “canibalismo” do qual ele se aproxima com aquele que se apresenta na caracterização das personagens propriamente demoníacas do “caderno de Anchieta”. Como exemplo, tomamos, primeiramente, os dois diabos presentes no próprio Recebimento do Pe. Marçal Beliarte. No caso, um deles se diz soberano entre os “brancos” do Espírito Santo, que, com seus “conselhos, / vivem sempre em pecado, / abandonando o seu criador”43. O outro se diz soberano entre os índios de Guaraparim, que viviam presos às suas formas de comportamento, imitando os seus hábitos, que confiavam somente nele e ouviam somente suas palavras44. 42

Cf.: [Pseudo] Cardim, Fernão. Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e ceremónias. Tratado da Terra e Gente do Brasil, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936. p. 119. 43 ANCHIETA, José de. Poesias São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 667. 44 “Apyabaré opakatú! Ko Guaraparim iguára, Xe recó rupi tekoára Xe ño xe ñeéng endú, Xe ño semierobiára.” Na Tradução de Paula Martins: “ Ó índios! Os habitantes aqui de Guaraparim, Que vivem conforme meus princípios, Ouvem apenas as minhas palavras, Confiam unicamente em mim.” A palavra tekoára, traduzida por “princípios”, indica, mais precisamente “modos de agir” ou “hábitos” do que “abstrações”. Sua raiz é téco: comportamento, procedimento. Do mesmo radical, formase a palavra tecóangaipaba, neologismo católico para “pecado” ou “culpa”. (ANCHIETA, José de. Poesias São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 668.)

18 Percebe-se que o poder dos diabos acima tem origem nos próprios índios e brancos, que lhes tomam como “conselheiros”, “mestres” e, principalmente, “exemplos de comportamento”. No caso, os dois diabos aparecem unidos para afastar os cristãos de Deus e manter os índios Dele distantes. O que eles visariam, portanto, operar é o efeito oposto da promessa de Cristo ao instituir o sacramento da eucaristia, através do qual, na ortodoxia católica, Jesus oferece seu sangue e seu corpo aos homens para que seja por eles tomado, de modo que Deus possa se fazer presente em cada cristão e cada cristão possa tomar parte no corpo místico de Cristo. Ao contrário, o que os Diabos fazem é ensinar índios e cristãos a se comportarem como eles, afundando-se nos pecados e “maus hábitos” (vícios) que eles representam. Entre esses comportamentos vis, acha-se a antropofagia e a soberba canibal, que podemos exemplificar com a caracterização do demônio Guaixará, personagem do auto Na festa de São Lourenço. Quando é interpelado pelo mártir a respeito de quem é, Guaixará responde: “Guaixará kaguára, ixé, Mboitiningusú, jaguará, Moruára, moroapyára, Andirá-guasú bebé, Añánga morapitiára”.45

Guaixará, em sua resposta a São Lourenço que condensa formidavelmente em imagens a ordem corrompida que ele representa. Em primeiro lugar, seu próprio nome, fazendo referência a um importante chefe tamoio, indica a hostilidade em relação aos portugueses e à chegada do Evangelho no Brasil. Em segundo lugar, seus epítetos zoomórficos, cascavel, jaguar e morcego, indicam: (1) semelhança com os pajés, já que a cascavel traz um chocalho (que lembra o maracá) e é peçonhenta (o que remete às heresias e os enganos das “falsas profecias”); (2) ferocidade e soberba; (3) hábitos alimentares sanguinários; (4) formas traiçoeiras e noturnas de ameaçar e (5) perigo. Os adjetivos que o qualificam, por sua vez, indicam agressividade, alcoolismo e hostilidade. Em Guaixará encontra-se condensada grande parte dos atributos associados à maioria dos diabos do caderno de Anchieta, em cujos nomes mesmo podem trazer zoomorfismo (Jaguaruçu, Boiçu, Urubu, Tataurana, Caborê46...), referências a hábitos viciosos (Tatapitera, Caumondá, Cauguçu47...) e a nomes próprios de outros chefes tamoios (Saravaia e Aimbirê). Quando caracterizado como símile canibalesco, o Anjo do teatro jesuítico empunha a tangapema e esmaga (ou ameaça esmagar) a cabeça do inimigo com um único fim: extinguir o mal, realizar a justiça, proteger os homens da maldade e do pecado. Se ele toma um novo nome após matar Makaxéra, é o de Anhangupiara, o contrário do Demônio. Ele torna-se seu “antídoto”, se nós preferirmos. Guaixará, por outro lado, é caracterizado como o canibal soberbo, animal peçonhento, carnívoro, que 45

ANCHIETA, José de. Poesias São Paulo: Comissão Nacional do IV Centenário de São Paulo, 1954. p. 692. Na tradução de Paula Martins: “– Sou Guaixará, o bêbado, Grande boicininga, jaguar, Antropófago, agressor, Andirá-guaçú que voa, Demônio assassino”. Em sua tradução, Paula Martins não traduziu as palavras que se referem a animais: boicininga (cascavel) e andirá-guaçú (uma espécie grande de morcego). 46 Onça grande, cobra grande, urubu, taturana e coruja. 47 Sorvedor de fogo (refere-se ao hábito, dos caraíbas principalmente, de fumar petyn durante as cerimônias proféticas), Ladrão de cauim e beberrão.

19 se excede no consumo do vinho; é vingativo e agressor, um assassino que se acha capaz de afrontar os mártires que chegam à aldeia para lhe afugentar: São Sebastião e São Lourenço. A imagem do Anjo “canibal” não se confunde com a do demônio. O primeiro representa o guerreiro poderoso que afugenta, amedronta e aniquila o mal, tal como fazem os “capitães”, “pastores” e “evangelizadores” que, junto com (ou no) o Sacramento, são recebidos e tomam para Deus aqueles que os recepcionam na festa. O segundo, representa o lado vil e macabro do sentido vingativo da guerra indígena, que se expressa na animalesca prática de devorar a carne do próximo. Continuando a comparação, nota-se que o “canibalismo” angélico é signo de força e poder verdadeiros. Ele representa, sob a imagem do índio, a natureza virtuosa de um guerreiro justo, aliado da Mãe de Deus, de seu Filho e dos homens, na batalha legítima contra o pecado. Nisso reside sua força, não na sua tangapema. Já o demônio, seja ele Guaixará, Anhangá, Aimbiré, Saravaia, Tataurana, Urubu, Caborê, Jaguaruçu, Moroupiaroera, Caumondá, Tatapitera, Anhanguçu, Boiçu, Anhangobi, Cauguçu, Lúcifer, Satanás ou qualquer outro vocábulo, em português ou tupi, que o nomeie no “caderno de Anchieta”, é um impotente diante dos anjos, dos mártires, dos padres, da Virgem, do sacramento, da Igreja ou qualquer outro personagem destinado a derrotá-lo, sempre, no tempo da salvação. O canibalismo demoníaco é, na sua eterna derrota, a prova de seu engano. Ele mascara-se de força e de poder, finge-se de algo semelhante ao sacramento, mas, enfim, mostra-se como perversão da Palavra. O canibalismo ensinado e praticado pelos demônios do “caderno de Anchieta” é o “engano” que eles produzem a partir da “verdade” que o Anjo guerreiro anuncia. Se o anjo é invencível, os diabos canibais são soberbos; se o anjo usa a tangapema por justiça, os demônios a usam por vingança; se o anjo traz consigo o Sacramento, anunciando a presença de Deus nos homens e dos homens no corpo místico, os diabos canibais são beberrões que consomem o cauim em desmedida e com autonomia em relação a Deus... O que, portanto, produz o “engano” do canibalismo é a ação demoníaca que enturva a visão dos homens para a “verdade”. No caso indígena, segundo os inacianos, os diabos conseguem pervertê-los através da introdução de práticas que os afastam de Deus, incitadas por alguns agentes como, sobretudo, as Velhas e os “falsos profetas” (caraíbas), personagens freqüentes do “teatro jesuítico”. Os diabos canibais do “caderno de Anchieta” são signos de uma ordem corrompida pelo mal, cuja retificação é anunciada pela chegada do Evangelho e seu recebimento por parte dos índios. O canibalismo indígena é, portanto, marca da sua condição bestial e anúncio de uma verdade que ela, paradoxalmente, revela e esconde: a natural vocação cristã do índio. O que o teatro jesuítico da missão busca fazer é recuperar, no confuso labirinto canibal, imagens capazes de dar visibilidade à verdade retorcida pelos enganos fantasiosos que o pecado propiciou. Assim, a festa poderia cumprir seus objetivos missionários: a promoção das entradas do Evangelho na terra e do índio no grêmio da Igreja e no lugar hierárquico que lhe caberia na sociedade civil. Enfim, o teatro jesuítico busca, em sua economia salvífica, reverter, por inversão satírica e ritualização de recebimento, o canibalismo em Eucaristia. 5. Considerações finais: “Des que nesta terra estou que vim com Vossa Mercê, dous desejos me atormentaram sempre: um, de ver os Christãos d’estas partes reformados em bons costumes e que fossem boa semente transplantada nestas partes, que desse cheiro de bom exemplo; e outro, ver disposição no Gentio para se lhe poder pregar a palavra de Deus, pois Christo Nosso Senhor por

20 elles também padeceu, porque para isso fui com meus Irmãos mandado a esta terra, e esta foi a intenção do nosso Rei, tão christianíssimo, que a estas partes nos mandou (...)”48.

Na concepção jesuítica (e, de forma mais geral, no imaginário ibérico dos séculos XVI e XVII), a descoberta do Novo Mundo e o subseqüente envio de missionários para as novas terras não são fatos meramente contingentes de uma história autônoma em relação à vontade de Deus. Pelo contrário, são obras divinas que têm, nos Estados católicos, especialmente Espanha ou Portugal, instrumentos políticos providenciais. Reformar os costumes dos cristãos, reaproximando-os de Deus, e habilitar os índios ao ingresso no grêmio da Igreja eram os fins aos quais se destinavam a missão. Eram finalidades planejadas desde a criação e, logo, caminhos naturais da história, promessas a se realizarem profeticamente49. Assim, a chegada da promessa da salvação à América é tomada como extensão dos efeitos do sacrifício misericordioso de Cristo aos homens que lá habitavam, todos dignos de receberem seu corpo e seu sangue como encarnação do Verbo. A responsabilidade evangelizadora não era tida como só dos padres, mas de todas as partes do corpo místico, dos cristãos que, como tais, deveriam testemunhar a fé em obras, gestos, modos, costumes e palavras, dando exemplo aos neófitos e consertando-se para serem dignos da glória. A festa da missão e seu espetáculo podem ser encarados como ritualização teatral dessa história providencialmente esperada. Para utilizar uma expressão de Geertz, tratava-se de um teatro metafísico destinado a produzir, em presença, uma ordem política perfeita50, capaz de dirigir os afetos e as consciências dos diversos segmentos da sociedade civil ao plano ascendente da salvação. Assim, os inacianos buscaram inventar uma “poética do poder” que funcionasse como um discurso para as almas. Para isso, tiveram que dar sentido às práticas indígenas, interpretando-as e decodificando-as conforme as certezas que um horizonte teológico (e teleológico) prévio já indicava. Nessa direção, o canibalismo forneceu uma linguagem poderosa para a edificação da mitologia do teatro jesuítico, dirigindo-se à sua correção ou reversão como espelhamento (deturpado) do mistério eucarístico. A reversão que o teatro jesuítico opera da ordem corrupta e labiríntica do Novo Mundo (seja indígena ou cristã) para a sua verdade teológica não é trivial. Embrenhar-se na confusão demoníaca e tirar dela, sem se perder, a verdade é tarefa para alguém especialmente iluminado pela luz da graça. Este processo é similar ao da experiência mística de “humilhação” que, nos séculos XVI e XVII, marcou a espiritualidade de seguidores, por exemplo, de Santo Inácio de Loyola ou Santa Tereza de Ávila. Nela, as regiões áridas e corruptas, os lugares de abjeção, as zonas de confusão e dúvida e as paragens que apresentam tentações e perigos para a alma recebem especial predileção nas meditações e técnicas imaginativas católicas. Visitar esses lugares e voltar imaculado é uma estratégia de educação moral da vontade daquele que a isso se submete51. Assim, a questão da autoria anchietana do teatro jesuítico ganha um sentido 48

Nóbrega, Manuel da. A Thomé de Sousa (1559). Cartas do Brasil: 1549-1560, Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988. p. 192. 49 O caráter profético das descobertas e evangelização do Novo Mundo aparece, por exemplo, em José Acosta, para quem a descoberta das Índias Ocidentais não poderia deixar de estar prevista nas Escrituras. Para o jesuíta, as recentes descobertas encontravam-se profetizadas por Abdias, que se referiria à quarta parte do orbe ao falar de Tarsis. Cf.: Acosta, José. História natural y moral de las Índias, México: Fondo de Cultura Econômica, 1985. pp. 44-45. 50 Nos referimos a: Geertz, Clifford. Bali e a teoria política. Negara: o Estado Teatro no Século XIX, Lisboa: Difel, 1991. pp. 153-171. 51 C.f.: Certeau, Michel de. La fable mystique (XVIe - XVIIe siècle). Paris: Gallimard, 1982. pp. 42-44.

21 importantíssimo no século XVII: ela autoriza a sua reversão como fruto de um instrumento perfeito de comunicação com Deus e, paralelamente, reforça a imagem de santo que se busca para o “Canarinho do céu”. Apresentado como ordem da reversão, batalha em que a confusão implantada pelos demônios é desmoronada pelo lume que chega junto com a ação missionária e com o sacrifício de cristo, o teatro jesuítico representa o triunfo prometido a todos aqueles que, recebendo o Verbo, entregam-se ao corpo místico. A festa jesuítica comemora o porvir, celebrando, do presente e do passado, os atos que se somam ao caminho da salvação. Os frutos que se fazem ver nas descrições de festas dizem muito mais do que simplesmente o suposto ocorrido: enunciam a expectativa de transformação anímica que o espetáculo da promessa de salvação deve promover nos homens. A festa (e o “teatro” que ela instaura), nesse sentido, não somente representa como, principalmente, prefigura uma ordem que se quer propagar.

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