Versões e deslocamentos do ativismo político no espaço jurídico

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Versões e deslocamentos do ativismo político no espaço jurídico Publicado 22 de Julho, 2016 site JOTA JUSTIÇA http://jota.uol.com.br/versoes-e-deslocamentos-ativismo-politico-no-espaco-juridico

Por Fabiano Engelmann Professor da UFRGS O movimento do direito alternativo brasileiro nos anos 1990 foi uma expressão forte da crítica ao conservadorismo das práticas judiciais e do ensino jurídico. Emergindo no cenário de reconstrução institucional pós-regime militar, tinha entre suas principais bandeiras a reforma do ensino, com a denúncia dos arcaísmos, e a busca de maior aproximação das diversas disciplinas do direito com a filosofia e as ciências sociais. Articulado por magistrados e docentes, pregava, no âmbito das práticas judiciais, a maior permeabilidade do direito a demandas por igualdade social e denunciava o formalismo jurídico identificado ao modelo de direito voltado para a defesa absoluta da propriedade privada. Essa expressão do ativismo político no interior do campo jurídico que marcou também a produção jurídico-intelectual da década de 90 com a produção de inúmeros livros de “doutrina crítica” – cedeu espaço, nos anos 2000, para novas formas de ativismo político-judicial. Entre essas, destaca-se a inflexão de diferentes categorias de profissionais para a promoção da “efetivação de direitos” e, mais recentemente, a emergência de um ativismo em torno do controle punitivo dos agentes políticos. Repercutindo o ideário iconoclasta do critique du droit francês[i] e de outros movimentos similares da Europa e dos Estados Unidos; o direito alternativo visava principalmente a restituição da “natureza política” das práticas judiciais e do ensino jurídico e a denúncia da “neutralidade” das técnicas jurídicas. Como no caso francês, e também na experiência italiana do “uso alternativo do direito”; a mobilização das “teorias críticas” apareceram em decisões judiciais que refutavam o formalismo jurídico

e evocavam “princípios gerais de direito” tensionando, dessa forma, as tradições jurídicas ancoradas na idéia da neutralidade. Com mais visibilidade no início da década de 2000, a denúncia da natureza conservadora da neutralidade jurídica cede espaço para um (re)investimento na construção de doutrinas e técnicas capazes de legitimar a “função política” da intervenção judicial na efetivação de direitos, em especial os relacionados a políticas sociais, como o direito à saúde e à educação. A tutela coletiva ou individual de direitos sociais baseada no catecismo da guarda dos direitos fundamentais encontra guarida nos tribunais e contribui para um cenário de maior interpenetração entre o direito e a política, através da reelaboração de causas políticas coletivas transformadas em causas jurídicas[ii] patrocinadas tanto por advogados vinculados a movimentos sociais, quanto pelas ações coletivas do Ministério Público. Essa conversão de um ativismo que predominantemente denunciava o formalismo jurídico, para um ativismo em torno da “promoção do Estado de Direito” através da idéia de “efetivação de direitos” articulase com um movimento crescente de construção da legitimidade da intervenção política do poder judiciário e do ministério público. Nesse fenômeno, mais recentemente outras categorias de agentes também aparecem na condição de porta-vozes do Estado de Direito; tais como os procuradores federais e estaduais, os defensores públicos e mesmo a polícia federal. Apesar de se situarem em distintos pontos do espaço jurídico, reivindicam como sentido comum a independência ou autonomia em relação ao espaço da representação política. Pode-se observar nos diferentes contextos em que se desenvolveram os movimentos de denúncia do formalismo jurídico trajetórias semelhantes. Iniciam com ciclos de maior radicalização e politização incluindo a proximidade com forças político-partidárias a esquerda e, em um segundo momento, tendem a uma “despolitização” que segue diferentes cursos conforme caso. O segundo cenário contempla a mobilização da forma jurídica a favor de causas políticas e coletivas em um contexto de complexa interpenetração das formas jurídicas com o campo político onde a construção de um modelo de excelência profissional calcado na autonomia e na manipulação da técnica está presente. Em torno da noção de cause lawyer[iii] (advogados de causas) – desenvolvida por sociólogos do direito americanos – a partir da análise de um conjunto de mobilizações do Judiciário por grupos socialmente excluídos – é proposto um referencial analítico para a apreensão do fenômeno que conecta engajamento militante, profissionalização e mobilização do espaço judicial como estratégia de “luta política”. Diferentemente dos movimentos de “crítica do direito” que florescem na Europa na década de 70 e mesmo dos sucedâneos do americano, critical legal studies; não se trata de uma denúncia do “caráter burguês” do Estado e do arcaísmo das práticas jurídicas, mas sim de um movimento que visa mobilizar o aparato Estatal-Judicial. O princípio dos cause lawyer é que o direito é a matéria própria do Estado, logo pode (re)configurar o poder de Estado. A versão mais recente insere-se no quadro da emergência do espaço judicial como espécie de meta-razão da atividade política. Pode-se observar essa forma de ativismo nas ações de “combate a corrupção” que perpassam a Itália das “operações mãos limpas”[iv], também na forma de intervenção da justiça na sucessão de “escândalos políticos”[v] na França da década de 90, assim como no Brasil mais recentemente. As

mobilizações contra a corrupção na França e Itália na década de 90 brotaram no cenário de processos judiciais contra empresários e parlamentares acusados de crimes financeiros. Posicionaram os magistrados e os promotores de justiça (representantes do Estado de Direito) contra os políticos eleitos extrapolando o controle da legalidade e a condenação judicial por atos de improbidade e conectaram-se a um processo mais amplo que envolveu uma cruzada pela “moralização da política”. A grande contribuição dos movimentos críticos da tradição jurídica da neutralidade política foi a abertura de espaços no interior do campo jurídico para a promoção de doutrinas e causas vinculadas a expansão dos direitos sociais. Entretanto, a versão do ativismo voltada para a promoção de um Estado de Direito punitivo, ancorado em ampla cobertura midiática e ações que não mensuram conseqüências econômicas e políticas, representa um fenômeno que ainda precisa ser muito investigado. Nos países centrais, a hipótese da despolitização de diversos setores tradicionalmente engajados – como jornalistas, intelectuais, cientistas e mesmo juristas – vincula-se a novas formas de legitimidade de intervenção pública calcadas na manipulação de expertises e em modelos de excelência profissional. Entretanto, no caso das diferentes categorias de juristas, que ancoram sua força no poder de Estado, ainda falta um entendimento mais claro do que pode representar essa versão do ativismo político-judicial, em especial, em países com uma tradição histórica autoritária e com identidades políticas muito fluídas. _______________________________________________ [i] FRAGALE, Roberto & ALVIN, Joaquim. O movimento “critique du droit” e seu impacto no Brasil. Revista Direito GV 6 v.3 n. 21 jul-dez 2007. [ii] ENGELMANN, Fabiano. Internacionalização e ativismo judicial: as causas coletivas. Lua Nova, São Paulo, n. 69, pp. 123-146, 2006. [iii] SARAT, Austin; SCHEINGOLD, Stuart. (eds.) Cause Lawyering Political Commitments and professional Responsabilities. New York: Oxford University Press, 1998. [iv] VAUCHEZ, Antoine. L’institution judiciaire remotivée: le processus d ‘institutionnalisation d’une ‘nouvelle justice’ en Italie (1960-2000). Paris, LGDJ, 2004 [v] ROUSSEL, Violaine. Affaires de juges: les magistrats dans les scandales politiques en France. Paris: La Découverte, 2002.

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