Versos, anversos e reversos da cultura

June 9, 2017 | Autor: Célia Aldegalega | Categoria: Cultural Studies, Cultural Theory
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Eagleton, Terry (2000), “Versions of Culture”, The Idea of Culture. London:Blackwell, 1-31. Versos, anversos e reversos da cultura

É na emergência da Sociedade do Conhecimento que Terry Eagleton publica esta obra de referência, da qual se extrai o texto em análise, o primeiro de cinco capítulos. A observação do título genérico desde logo indicia a alocação do termo ao plano da abstração e à subjetividade. Sendo múltiplas as noções de cultura que apresenta e comenta, opta pela enunciação no singular: a ideia. Neste capítulo, Eagleton elenca versões de cultura de forma cronológica e em modo crítico. De entre os vários significados de “versão”, selecionamos os contextualmente aplicáveis: interpretação/explicação; ou forma diferente de contar a mesma coisa/variante. Mas se as variantes são plurais, a cultura mantém-se singular. À idiossincrasia que enquadra a data de edição da obra chama Eagleton “idade moderna”, à qual confere a substituição da ideia de cultura por um “desvanecido sentido de divindade e transcendência” (p.2). Optámos por traduzir “fading” por “desvanecido”, mas sobra a dúvida se os significados “moribundo”, “fraco” ou “em declínio” poderiam ser aplicáveis. Não sendo a opção despicienda na ênfase da perspetiva do autor sobre a alegada substituição, selecionámos a mais anódina. Mas o que é substituído, afinal, considerando a multiplicidade de conceções elencadas? Seja o que for, a formulação indicia alguma simpatia, porventura nostalgia por um qualquer ideal de cultura que perpassa por todo o capítulo, paira subliminarmente, assombra o texto, sem se prefigurar de modo explícito. Nas afirmações sequentes, há uma alusão à sacralização da cultura e a uma polarização, ao bom estilo desconstrutivista, da ideia de cultura na contemporaneidade, situada algures entre “o manto da autoridade religiosa” e “afinidades desconfortáveis com ocupação e invasão” que, de modo intrigante, conclui Eagleton serem polos positivo e negativo. Se respetivamente, ergue-se nova estranheza, porquanto a boa relação de um reputado marxista com a autoridade religiosa é, no mínimo, insólita. Não menos seria a afinidade com ocupação e invasão, aliás. Nada vislumbramos de positivo na polaridade, tanto mais que o autor remata o excerto com uma reflexão sobre a conveniência da cultura para políticas de esquerda e de direita, causadora da ambivalência e atribulação na história social da cultura.

Esta é a primeira referência à relação da política com a cultura, que retoma adiante (p.6) para ilustrar influências exógenas na formação cultural. Invocar que o florescimento de um estado se deve à inculcação de disposições espirituais apropriadas nos cidadãos, convoca a memória das políticas do espírito de Paul Valéry, inspiradoras da máquina de propaganda de António Ferro no Estado Novo. Estamos de acordo quanto ao papel regulador do Estado no que concerne à cultura, sem que, como de modo geral, Eagleton defina em que sentido e contexto. Sobretudo, quais as manifestações culturais mais recorrentemente instrumentalizadas e reguladas, considerandos sobre individualidade e cidadania incluídos. No que diz respeito à produção artística, são múltiplas as fórmulas empregues pelo estado para a sua regulação e, consabidamente são elegíveis os produtos artísticos, as manifestações culturais e as temáticas que melhor se enquadrem nas agendas políticas. Após desenvolver a crónica da evolução do conceito de civilização a partir do séc. XVIII pondo em jogo tensões e oposições entre esta e a cultura, com destaque para o conflito entre tradição e modernidade, desemboca numa nova polaridade: a civilização é da burguesia e a cultura concatena extremos, sendo aristocrática e populista (p.12). Toda a análise do processo das noções de cultura de Eagleton é tendencialmente –e tendenciosamente- binária e oponível, fórmula que lhe advirá da sua afiliação ao desconstrutivismo. Quando aborda a pluralidade contemporânea do conceito de cultura, aponta-lhe a perda do seu caráter positivo (p.15), sem que seja claro em que consistiria esse atributo pressupostamente antes detido. Interessante é a referência à separação do sentido descritivo e normativo de civilização bem como a unificação de facto e valor ao incorporar várias atividades, das artes às tecnologias, passando pela civilidade e pela vida urbana, transmitindo simultaneamente a valoração que a institui como paradigma. Já a “cultura orgânica” e a “cultura como civilidade” (p.13) hesitam entre facto e valor e fundem o sentido descritivo e normativo herdado de civilização, estimulando o relativismo pós-moderno. Algo excessiva é a classificação dos que valorizam a pluralidade como formalistas e censurar aos pós-modernistas a celebração de minorias e a detração de maiorias. No primeiro caso pressupõe unicidade, uma fórmula compacta que não tem correspondência com a coexistência de diversas perspetivas e com a pluridisciplinaridade da cultura. No segundo, exercita redundância porquanto a noção de minoria emerge da existência de maiorias normativas. São de facto elementos em conflito.

Eagleton enuncia uma tripartição de variantes da palavra cultura: a crítica anticapitalista; a pluralização da noção a um modo de vida global e o estreitamento à especialização às artes. Estas últimas poderão ser inclusivas de todas as manifestações intelectuais e artísticas ou restritas às manifestações artísticas, sendo que neste caso, se sonegaria a criatividade à Economia, às Ciências, à Filosofia e à Política. Remetendo para o primeiro parágrafo desta recensão, a presunção está em contracorrente com a Sociedade do Conhecimento, que sobrevaloriza a criatividade em todos os campos de atividade. A associação de valores civilizados à “fantasia” (p.16) é francamente pejorativa e redutora quanto à produção artística, à qual adscreve oposição política e elitismo, nunca aflorando a intensificação duma perspetiva de cultura que enfatiza as artes, sobretudo da parte dos seus produtores e dos seus públicos, com a oposição e resistência à cultura de massas, aspeto que abordará no capítulo seguinte da obra. Estabelece por fim uma classificação de três níveis de cultura: cultura como artes, cultura como civilidade e cultura como vida social, levantando retoricamente a questão do que as une para concluir que as três não passam de reação ao fracasso da cultura como civilização real (?). Produz três respostas possíveis ao que considera declínio da cultura como civilização: manter o seu alcance global e a sua relevância social, mas transformar-se numa utopia futurista, tornando-se crítica utópica prolífera mas politicamente debilitada, em risco de ser obliterada pela sua própria distanciação crítica; tornar-se concreta, especificamente relacionada com a realidade e abjurando a abstração, perdendo assim o seu caráter normativo; reduzir-se ao campo da produção artística, suportada pela referenciação e notoriedade, e pelos circuitos de produção, regulação, difusão e distribuição. É nesta última alternativa que encontra uma réstia de salvação, enquanto barómetro de qualidade de vida social. Contudo, talvez a chave se encontre nas primeiras linhas do capítulo quando a propósito da raiz etimológica da palavra assinala a passagem da cultura de atividade para entidade. Talvez o processo se tenha tornado reverso e a cultura na contemporaneidade se redefina a partir da retoma do seu significado primordial, prefigurando-se essencialmente como atividade. Nesse sentido, é a conceptualização da cultura que poderá estar moribunda. Célia Aldegalega | novembro de 2015

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