Vésperas: A Devoção Mariana na Música Portuguesa do Tempo de D.João V - Fazer como em Roma

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NOTAS À MARGEM “veja-se Lisboa em Roma como em espelho” Padre António Vieira, Palavra de Deus empenhada, in Sermões

Ao longo do século XX, a historiografia portuguesa e, por arrasto, a musicologia, seguiram a esteira de uma certa “mitologia” liberal, encarnada em escritores como Herculano ou Quental, resumindo o reinado de D. João V (1689-1750) ao gosto perdulário do soberano, à Patriarcal de Lisboa, ao palácio-convento de Mafra, à italianização das artes, à bizarria do seu estatuto de “Rei-Sacerdote”, rematando, quase sempre, com a infeliz boutade de Frederico, o Grande, da Prússia (1712-1786), “ses plaisirs étaient des fonctions sacerdotales, ses bâtiments dês couvents, ses armées dês moines, et ses maîtresses dês réligieuses.”! São recentes, e não tão divulgadas quanto seria de esperar, as primeiras obras em que este período particularíssimo da nossa História é abordado na linha de um entendimento do tempo segundo ele próprio e não de acordo com juízos de valor fruto da nossa mentalidade contemporânea. A primeira ideia a reter é o esforço continuado de D. João V em desenvolver uma política de prestígio interno e internacional, tentando construir uma representação simbólica monumental do Poder régio, não como resultado de um mero capricho e gosto pessoal mas, no dizer de Vieira Nery, como “condição essencial da própria eficácia da implantação do novo modelo de Estado, o Absolutismo Régio”. A segunda, reporta-se à educação das elites, à ausência de um saber erguido à margem das estruturas eclesiásticas, à não elaboração de formações socio-culturais alternativas ou o seu limitadíssimo impacto, ao peso da conceptualização política de raiz pós-tridentina e neo-escolástica, à influência política social e económica da hierarquia da Igreja, responsáveis pela obstrução, segundo Rui Bibiano, do “desenvolvimento de uma cultura superior de características laicas”. A terceira, mais rebuscada, mas profusamente documentada, prende-se em torno da concepção de Lisboa como capital do Quinto Império, de uma Nova Roma, substanciada no imaginário lusitano desde o séc. XV e sintetizada na famosa tirada de Carlos V (1500-1558) “Se eu fora Rei de Lisboa eu o fora em pouco tempo de todo o Mundo”. Assim, e no seguimento da primeira ideia, o absolutismo régio joanino irá demonstrar particular interesse pela arte, traduzindo-se este facto num incremento da produção artística a vários níveis. Esta visará, tendencialmente, a estrutura social portuguesa, em que um indivíduo emerge destacado, um poder único, o do monarca,

competindo, contudo, com outro, embora de natureza diferente, o poder eclesiástico. Política, sociedade e arte surgem, assim, articuladas, no entendimento de Bettencourt da Câmara, numa “concepção da existência como espectáculo”. Deste modo, as famosas embaixadas do Magnânimo a Viena, Paris e Roma, “così ricco, così nobile”, as inacabáveis encomendas nas principais oficinas artísticas da Europa de então, o impulso coleccionador de livros, mapas, quadros e gravuras, não são, meramente, exibição gratuita do gosto perdulário real mas, antes sim, de uma forte retórica do Poder, parte integrante da política externa de promoção da imagem do monarca e do seu Reino, conferindo à arte da corte joanina uma visibilidade além fronteiras a que não podia aspirar se, da concepção à realização, fosse circunscrita aos limites de Portugal, renovando, simultaneamente, a imagem cultural do país. É, portanto, nesta concepção absolutista e barroca que deve ser lida a inegável influência do paradigma francês e romano na elaboração do “gosto” joanino. Importa referir, contudo, que estas influências se reportam, pelo menos, ao reinado de D. Pedro II (1648-1706). Se considerarmos o século XVII português, como forma de reacção frente à dominação espanhola anteriormente (e culturalmente) absorvente, encontramos, em cada geração, um impulso que nos aproxima dos “vizinhos” de além-Pirinéus, procurando apagar os traços culturais implantados pelo “siglo d’oro”. Assim, a influência francesa instalar-se-ia, ainda que limitada à formação cultural dos grupos dominantes e a um genérico ascendente no campo das artes decorativas, da moda e da etiqueta, não sem resistência dos mais antigos fidalgos. Contudo, no domínio da arquitectura e das restantes artes, áreas indispensáveis a um adequado enquadramento cenográfico do cerimonial barroco, prevaleceria a influência italiana. O brilho do barroco romano, combinado com uma certa austeridade pós-tridentina, tão do agrado e mentalidade dominante da Igreja portuguesa, faria, em parte, determinar essa preferência. Esta obsessiva referência romana da estética joanina não pode desligar-se dos objectivos precisos do monarca que, no dizer de António Pimentel, presidiam à conversão de Lisboa na Roma do Ocidente, ideia que encontramos substanciada não em meras palavras, mas em actos: a construção de um Aqueduto (1728-1748), reconhecida prerrogativa dos imperadores romanos; a divisão de Lisboa em dois hemisférios e doze Bairros, para configurá-la de molde a corresponder à exacta figura da capital do Quinto Império, conforme a profecia que preconizava a síntese de Oriente e Ocidente na cidade sede do Império e a instituição da Basílica Patriarcal, arremedo da Nova Jerusalém.

Basta lermos, entre muitos outros autores, D. Francisco da Silva e Meneses, cónego da Patriarcal, para ficarmos minimamente elucidados: "[...] Viu o Evangelista S. João uma Igreja, ou uma Sé colocada no Céu, que tinha à sua vista um mar cristalino […] como nenhuma Igreja ou Sé tem mais semelhança do que com a Santa Igreja Patriarcal; porque tem à vista o mar e o Tejo que é quase mar [...]. E desta sorte se estabeleceu na Sacrossanta Basílica Patriarcal o Quinto Império do Mundo e de Cristo, prometido por Cristo ao primeiro Rei de Portugal [...]. De maneira que o Quinto Império do Mundo sendo espiritual e de Cristo também é temporal e dos Reis Portugueses. E tendo-o fundado Cristo na Santa Igreja Romana o estabeleceu depois na Sacrossanta Basílica Patriarcal, que por ser Igreja junta e unida com o Palácio de El-Rei, entre El-Rei e o Eclesiástico está repartido sem divisão o Quinto Império [...]. Porque assim como da Celeste Jerusalém se derivou a Igreja de Roma, da Igreja de Roma, como de perfeitíssimo original, se tirou a perfeita cópia da Sacrossanta Basílica Patriarcal [...]". Importa frisar, contudo, que a instituição de um Patriarcado em Lisboa é uma velha aspiração portuguesa. Há que retroceder quase dois séculos para encontrarmos as primeiras vozes que proclamam a necessidade de uma maior autonomia da Igreja portuguesa face ao papado, assim permitindo uma melhor e mais rápida evangelização do império e, em alguns casos, apontando a secessão como única via para resolver eternos problemas como, a título de exemplo, o Padroado do Oriente e a nomeação de bispos. A elevação da Capela Real a Patriarcal foi, também ela, entendida como motivo de prestígio e dignificação da monarquia portuguesa além fronteiras. Processo moroso, iniciado em 1710, culminaria com a elevação do Patriarca de Lisboa à dignidade de cardeal, em 1737, por bula de Clemente XII (1652-1740). Mas, aquele que era tratado de “meu como irmão muito amado” pelo soberano, tendo direito a insígnias pontificais, pois as suas armas eram coroadas por uma tiara e no tejadilho do seu coche, como no coche papal, brilhava o Espírito Santo de ouro, o cardeal Patriarca de Lisboa, um dos príncipes mais importantes da cristandade, que estava à cabeça de um conjunto impressionante de mais de duzentos dignitários entre os quais se contavam vinte e quatro principais, formando um sacro colégio e usando vestes cardinalícias, setenta e dois monsenhores com vestes roxas, episcopais, e tendo direito à mitra, vinte cónegos e setenta beneficiados, a quem apenas faltava o uso de solidéu branco para ser em tudo igual ao Papa, resumia-se à dignidade de mero Capelão-Mor do rei Fidelíssimo de Portugal. Com todo este processo, D. João V não clericalizou o Poder, como alguns autores afirmam. Serviu-se, apenas, do infindável poder da Igreja na sociedade portuguesa, subjugando-a com a pompa e solenidade das liturgias da Patriarcal, dependentes exclusivamente da vontade e generosidade real, sendo estas uma das faces do espelho

visível da acção esclarecida do monarca. A ideia de que a corte pontifícia era o modelo a seguir pelo rei soçobra perante o esplendor da “Troca das Infantas”, em 1729, como, se do nada, o “Rei-Sacerdote” se tivesse transfigurado num “Rei-Sol”. D. João V sabia, e bem, como demonstrar o seu Poder, servindo-se dos modelos que existiam de acordo com as circunstâncias. O problema do absolutismo português da primeira metade do séc. XVIII é, apenas e só, a forte resistência por parte das elites às reformas joanina, não sendo por acaso que, como brilhantemente António Pimentel descortinou, Mafra seja a concretização do modelo de sociedade idealizado por D. João V, em que o soberano é, no dizer de Lopes de Oliveira, o “esplendissimo Sol Oriente da nossa Lusitânia”. É, precisamente, nesta linha de ideias que deve ser entendida a profunda reforma musical ocorrida durante o reinado do Magnânimo. Ao contrário do que comummente é afirmado, esta reforma não está ligada, meramente, à preocupação do soberano com a qualidade musical das cerimónias litúrgicas da Patriarcal, mas sim a um esforço continuado de modernização estruturalizante, consumado em três medidas que iriam influenciar a vida musical portuguesa durante cerca de um século: a criação de uma estrutura de ensino da mais alta qualidade adequada à competente formação de músicos portugueses, o Seminário da Patriarcal, fundado por Alvará Régio de 9 de Abril de 1713; o envio de bolseiros régios para Roma, a fim de se aperfeiçoarem na sua arte e a importação maciça de instrumentistas e cantores (“inteiros ou mutilados”, como dizia, com sabor, Ernesto Vieira), criando autênticas dinastias em actividade até ao início do século XIX, permitindo uma continuidade da qualidade musical, bem como a possibilidade destes ensinarem e contribuírem para a criação de efectivos instrumentais de nacionalidade portuguesa. Mas, também neste último caso, jogava-se o prestígio internacional do soberano. Os agentes da Coroa procuram apenas o melhor. E, se a contratação do célebre Francesco Geminiani (1687-1762), o mais afamado violinista da sua geração, não se concretiza, para desconsolo do rei, Domenico Scarlatti (1685-1757) e Giovanni Giorgi (?-1762), maestros da Cappella Giullia [a Capela Pontifícia] e de São João de Latrão, respectivamente, aceitam o convite para o cargo de compositor régio, o primeiro em 1719 e o segundo em 1725. Sobre a permanência de Scarlatti em Portugal, envolta numa certa penumbra, mas parcialmente descortinada sagazmente por João d’Alvarenga, sabemos que chegou a Lisboa em Novembro de 1719, para ser “il Capo, e direttore di tutta la […] musica della Patriarcale”, sendo posteriormente adstrito ao serviço do Infante D. António, na qualidade de Maestro do irmão do rei. Como compositor régio, e controlando o aparelho da produção musical da Corte joanina, Scarlatti foi, senão o responsável pela introdução na Patriarcal do repertório

polifónico romano e de obras exclusivas da Cappella Giulia [o Miserere de Allegri, por exemplo], o garante da sua correcta interpretação. Quanto a Giovanni Giorgi, sabe-se que chegou a Lisboa em 1725, na qualidade de “Compositor de solfa Italiana”, mas também de compositor da Patriarcal, como o próprio atesta no rosto de uma missa composta para a Patriarcal, em 1759. Supostamente, retirouse para Génova após o Terramoto, mantendo, aparentemente, os laços profissionais com a Corte portuguesa. A chegada e permanência destes dois compositores em Lisboa coincide com uma mudança progressiva da tradição musical portuguesa, permitindo o afastamento de modelos eminentemente ibéricos (como o vilancico religioso, banido do culto em todas as Igrejas do país por ordem régia de 1723) e a adopção de modelos composicionais e práticas musicais de origem italiana. É no seio desta mudança, no contexto da música sacra em Portugal, que detectamos dois modelos dominantes: o stile pieno, que seguia o idioma contrapontístico de Palestrina, se bem que a combinação das linhas polifónicas de igual peso desse lugar a um processo gradual de escrita baseado em progressões harmónicas, valorizando o movimento melódico e texturas homofónicas, em detrimento do contraponto, e o stile concertato, que absorvera o virtuosismo vocal da música dramática. É, ainda, neste contexto que emerge a obra de três bolseiros do Magnânimo, Francisco António de Almeida, João Rodrigues Esteves e António Teixeira, dignos ilustradores do universo musical joanino. Segundo Ernesto Vieira, e o seu Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses (1900), João Rodrigues Esteves foi enviado para Roma em 1719, tendo aí permanecido até 1726, sendo provável que tenha estudado com Ottavio Pitoni (1657-1743) [Mestre da Capela Pontifícia desde 1719, e o mais afamado compositor de música religiosa daquele tempo em Roma]. Em 1729, é apontado para o cargo de Mestre de Capela da Sé de Lisboa, sendo possível acompanhar a sua actividade até 1751, ano da sua última obra conhecida. Contudo, é apenas a seguir ao terramoto de 1755 que as actas da Fábrica da Sé de Lisboa deixam de fazer referência ao seu nome, pelo que se assume que tenha perecido nesse cataclismo. Nascido em Lisboa, em 1707, António Teixeira foi enviado para Itália como bolseiro com apenas 10 anos. Supõe-se que tenha permanecido em Roma até Junho de 1728. No seu regresso a Lisboa foi apontado como cantor da Capela Real e examinador oficial de cantochão da diocese de Lisboa. Teixeira notabilizou-se, igualmente, pela sua produção de música secular, como o provam a cantata Gli sposi fortunati, cantada no

Carnaval de 1733, bem como as óperas escritas para a Casa de Bonecos do Bairro Alto, concretamente, para as obras de António José da Silva (1705-1739). Esta colaboração cessou com a morte d’o Judeu nas fogueiras da Inquisição em 1739. Presume-se que tenha morrido c.1759. Quanto a Francisco António de Almeida, José Mazza, no seu Diccionario biographico de Musicos (c.1780) chama-lhe "organista da Patriarcal e famoso compositor". Por outras fontes da época é tratado apenas por Francisco António e citado como compositor de música para as populares representações de Presépios que se faziam na Mouraria. Sabe-se que, nascido c.1702, foi enviado para Roma em 1716/1717, onde permaneceu por alguns anos. Na Quaresma de 1722, foi executada uma oratória de sua autoria com libreto de Andrea Trabucc, na Igreja de S. Girolamo della Carità, intitulada Il Pentimento di Davidde. Anos mais tarde, em 1726, estreou nova oratória, a brilhante La Giuditta. Da sua passagem por Roma ficou um retracto caricatural do famoso Pier Leone Ghezzi (1674-1755), que se encontra na Biblioteca Apostólica Vaticana com a seguinte legenda: “Signor Francesco Portoghese il quale è venuto in Roma per studiare, e presentemente è un bravissimo compositore di Concerti, e di musica da Chiesa ”. Deduz-se que tenha regressado a Lisboa dois meses antes de António Teixeira, em Abril de 1728, pois a 22 do dito mês executou-se no Palácio do cardeal D.João da Mota (1691-1747), Secretário de Estado do Reino, a serenata Il Trionfo della Virtù, com libreto de D. Luca Giovine e música de sua autoria. Seguiu-se o scherzo pastorale Il Trionfo d'Amore, a 27 de Dezembro de 1729, no Paço da Ribeira. Nos anos seguintes compôs Gl'incanti d'Alcina, cantada a 27 de Dezembro de 1730, no Paço da Ribeira [27 de Dezembro era a Festa Onomástica de D.João V], La Spinalba ovvero il vecchio mato, no Carnaval de 1739 e L'Ippolito, uma serenata, cantada no Teatro do Forte do Paço da Ribeira, a 4 de Dezembro de 1752. Presume-se que tenha morrido no terramoto de 1755. Foi, sem margem de dúvidas, o maior compositor português da primeira metade do século XVIII, pela fluidez e requinte do discurso musical, e aquele que melhor incorporou na sua obra o idioma musical romano em todo o seu esplendor. No geral, estes quatro compositores foram capazes de, com liberdade, acolher apenas o que lhes servia da Escola Romana, efectivando nas suas obras características alheias a este influxo o que, em última análise, poderíamos designar musicalmente por traços da idiossincrasia da cultura musical portuguesa. Assim, ao oscilar entre o stile concertato e o stile pieno, próximo da textura contrapontística seiscentista, de certa forma arreigada ao conservadorismo da própria sociedade portuguesa, dir-se-ia, em jeito de

conclusão que os modelos romanos foram moldados de acordo com os portugueses, uma vez que, em Portugal, não existia uma sociedade apta a aceitar esquemas que lhe eram estranhos, a que se misturava, contudo, uma vontade de fazer como em Roma.

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