Vestes e Bordados: a moda como fator subversivo no campo artístico / APPAREL AND EMBROIDERY: FASHION AS SUBVERSIVE FACTOR IN ARTISTIC FIELD

May 24, 2017 | Autor: Júlia Mello | Categoria: Gender Studies, Contemporary Art, Body Image, Visual Arts
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POETIC AS2016

Seminário Ibero-amer o processo de criação

VITÓRIA, DEZEMBRO DE 2016

ART VESTES E BORDADOS: A MODA COMO FATOR SUBVERSIVO NO CAMPO ARTÍSTICO APPAREL AND EMBROIDERY: FASHION AS SUBVERSIVE FACTOR IN ARTISTIC FIELD Júlia Almeida de Mello / Júlia Mello; Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Aparecido José Cirillo / José Cirillo Universidade Federal Do Espírito Santo (UFES)

RESUMO O presente artigo traz uma análise de produções artísticas conectadas com políticas de gênero cuja linguagem se desenvolve através das vestes e de técnicas de bordado. Através de um apanhado de autoras do campo da sociologia, cultura e arte, como Rozsika Parker (2010) e Julia Twigg (2007), o artigo explora a relação da arte-moda como expressão de corpos e identidades. Artistas como Elisa Queiroz, Rebbeca D. Harris e Nicola Constantino serão consideradas. Os resultados revelam a moda no campo artístico como um fator de dissonância, abrindo caminho para diálogos referentes à expressão da identidade bem como para a incorformidade da hegemonia de corpos e gêneros. Palavras-chave: Arte, Moda, Gênero, Política.

ABSTRACT This article presents an analysis of artistic productions connected with gender politics which language develops through garments and embroidery techniques. Through an overview of the field of sociology authors, culture and art, such as Rozsika Parker (2012) and Julia Twigg (2007), this article explores the relationship of art-fashion as an expression of bodies and identities. Artists like Elisa Queiroz, Rebbeca D. Harris and Nicola Constantino will be considered. The results reveal the fashion in the artistic field as a dissonance factor, opening a path to dialogues concerning to identity expression as well as the unconformity of the hegemony of bodies and genders. Keywords: Art, Fashion, Gender, Politics.

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1. Introdução As vestes têm o poder de expressar, moldar e até mesmo criar uma nova realidade para quem as utiliza. Através delas é possível compreender aspectos históricos e culturais, além da constituição e formação de identidades na cultura moderna, que tece as linhas para a leitura da contemporaneidade. A pesquisadora Cristina Volpi (2003, p. 245) considera o vestuário como sendo “[…] uma linguagem visual que remete ao mesmo tempo ao indivíduo e à sociedade que o produziu”. Desta forma, através dos estudos do que a autora denomina “formas vestimentares”, aproximamo-nos de uma compreensão das representações simbólicas da sociedade e dos indivíduos. A arte de bordar, embora ainda pouco debatida, encontra-se fortemente alinhavada com a moda e suas manifestações ao longo das décadas. Possui uma potência considerável no campo das lutas feministas e de acordo com a historiadora de arte Rozsika Parker (2010), é uma prática que há muito esteve presente na educação das mulheres sobre o ideal feminino e que paradoxalmente tornou-se uma arma contra as restrições da feminilidade. Através dessas premissas, veremos panoramicamente alguns exemplos onde as vestes e os bordados podem ser usados como uma linguagem de subversão no campo artístico. Sem o intuito necessário de vestir ou apresentar um bordado que ornamente, as artistas com as obras que serão mencionadas trazem uma discussão sobre corpo e gênero e a incorformidade dos padrões hegemônicos ainda veiculados em anúncios de moda e beleza.

2. Pele e Alinhavos Volpi (2003) faz uma analogia entre a formação do corpo humano e a construção dos trajes. Segundo a autora, ambos se originam de maneira semelhante: através de ligamentos (ou alinhavos) e tecidos. De uma forma curiosa, essa questão pode ser transposta nos trabalhos citados a seguir. Em uma outra dimensão, também encontramos uma relação desvelada entre pele e alinhavos, corpo e costura.

Figura 1 – Rebecca Harris, “Untitled (red thread)”, 2013. Impressão e bordado s/ chita. Fonte: HARRIS, 2013.

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A britânica Rebecca D. Harris (1977-) utiliza a arte para discutir questões que envolvem o seu próprio corpo. Considerada obesa pelos padrões médicos, a artista iniciou um processo de construção e reconstrução de imagens de corpos gordos após ter desistido de realizar uma cirurgia de redução de peso. Consciente da materialidade de seu corpo, das estrias e dos excessos de pele, Harris une em diversos trabalhos elementos de bordado associados à intervenções médicas sugerindo que a pele e as vísceras são o seu foco. Em “Untitled (red thread)” (2013) (Figura 1), a artista transpõe o universo dos bordados e bastidores para uma cena agressiva das costuras do bisturi. Trata-se de um enquadramento do seu próprio corpo, sendo modificado, invadido e distorcido através de recortes e montagens, tais quais os realizados em cirurgias plásticas. A região compreendida entre o abdômen e os joelhos foi fotografada, impressa em chita e centralizada num bastidor. O excesso de linhas vermelhas agregou o valor simbólico de repúdio e agressão. Em “The subversive stitch: embroidery and the making of the feminine” (2010), Parker realiza um panorama histórico do lugar da mulher na arte ocidental através do bordado. Segundo a autora, a arte de bordar, que como comentamos, à princípio cumpria com a função da construção da feminilidade e da domesticidade, passou a representar o avesso às instituições e delimitações de gênero, sobretudo a partir de 1970, com a força do movimento feminista. Na contemporaneidade são inúmeros os artistas, independente de gênero, que atravessam as fronteiras de uma arte considerada antes tão trivial. Como afirma Twigg (2007), a moda também foi por muito tempo tida como um fenômeno culturalmente atrelado ao feminino. Além disso, segundo a autora, a moda carrega um fator ideológico forte e contribui para que a desigualdade possa parecer algo legítimo. E essa desigualdade pode ser facilmente notada em se tratando de gênero, classe e, foco da autora, idade. Estendendo ainda mais esses fatores, podemos incluir tamanho. Muitas mulheres corpulentas, sobretudo até o início do século XXI onde plus size ainda não havia tomado corpo, indicavam se sentirem invisíveis pela falta de opção de peças do vestuário.

Figura 2 – Elisa Queiroz, “Camisolas”, 1997. Técnica mista. Tecido, linha, espuma, impressão fotográfica. 100 x 80 x 60 cm. Fonte: Queiroz, [200-].

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Elisa Queiroz (1970-2011) foi uma dessas pessoas. A artista sempre ironizava as normatizações dos corpos, criando um embate com a sua corpulência e o que era tido como padrão de beleza ideal. Em “Camisolas” (1997) (Figura 2), Queiroz inscrevia a insatisfação frente ao mercado de moda, que, como julgava, só fornecia roupas parecidas com camisolas para gordinhas (QUEIROZ, [entre 1990-2000]). “Camisolas” traz a frequente padronização das roupas de tamanhos acima de GG sobretudo na década de 1990. A obra critica a falta de visão da moda na época, que, para Queiroz, fornecia peças sem considerar a personalidade das pessoas gordas. Utilizando do artifício da ironia, a artista posiciona imagens de nádegas com calcinhas de diferentes cores na parte traseira das camisolas, insunuando haver ali sensualidade, desejo de mostrar o corpo para além da modelagem “comportada”. Como afirma Volpi (2003), ao longo da história ocidental, as “formas de vestuário” se adequaram a propósitos e normas culturais e trabalhos como esse parecem lutar pelo alargamento do que é tido como “adequado”. “Camisolas” também se mostra como um exemplo da multiplicidade de significações em torno do vestuário que ainda segundo Volpi, (p. 245) “[…] tem múltiplas funções cujas origens são complexas, não podendo ser reduzido unicamente à sua funcionalidade”. Twigg (2007) complementa a visão do papel cultural do vestuário dizendo que este possui interfaces que permitem aos corpos individuais se adequarem à normas ou sistematizações – ou, no caso de Queiroz, irem contra elas, violando as regras de visibilidade dos corpos gordos. A última artista que citaremos e que encerrará a nossa breve discussão acerca de peles e alinhavos é a argentina Nicola Constantino (1964-). Possuidora de um senso crítico apurado e de pitadas de grotesco na sua rotina de criação, a argentina brinca com elementos do próprio corpo para desenvolver obras que discutem consumo, padrões de beleza e política. Na série de trabalhos intitulada “Peletería humana” (1998) (Figuras 3 e 4), ela apresentava vestes e calçados confeccionados em silicones com padronagens de mamilos, de umbigos, de ânus e detalhes em cabelo humano que resultavam no casamento entre a moda e a medicina. Ao mesmo tempo sedutoras e repugnantes, essas peças dialogavam com o desejo de consumo do luxo e a obsessão por sexo e traziam a ideia de quem os vestisse estivesse sempre nu. “Peletería humana” apresentava uma pele que revelava e que assustava ao se insinuar como o mais novo luxo e a mais nova tendência da moda: o couro humano.

Figuras 3 e 4 – Nicola Constantino, peças da série “Peletería humana” (1998). Fonte: http://www. nicolacostantino.com. ar/peleteria.php. e http://beautifuldecay. com/2014/01/27/ nicola-constantino/. Acesso: 16 set. 2016

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Há também uma forte potência dessas peças em desmistificar o pudor da nudez, dos orifícios, do que é comumente oculto. Parece haver uma provocação contra a ordem do vestuário nas sociedades ocidentais modernas que, como afima Volpi (2003, p. 246), busca desviar o corpo nu do que é cultural, isto é, ocultar a nudez é distanciar o ser humano do seu “estado natural”, “[…] contra o qual a cultura se interpõe”.

Considerações Finais Muito brevemente pudemos acompanhar um pouco da visão de Rebecca D. Harris, Elisa Queiroz e Nicola Constantino, que apesar de possuírem poéticas distintas, insinuam desenvolver produções fortemente atreladas ao repensamento de antigos discursos fundamentados nas premissas de dominação de saberes direcionados à medicina, ao masculino (claro, o próprio campo artístico é um forte exemplo disso) e ao pudor. Como vimos, pensar a arte através das vestes e dos bordados abre espaço para a conexão de pensamentos que criam embates em relação às instituições e legitimações de corpos e posições dentro da sociedade. Harris e Queiroz reforçam a desvalorização da gordura na contemporaneidade conciliando as disjunturas entre o corpo ideal e o real. Harris, com o bordado invasivo provoca os padrões médicos reforçando a manipulação do seu corpo através de incisões e costuras. Queiroz provoca a padronização de roupas para gordas e sugere um corpo que possa se mostrar, que tenha o seu espaço. Transversalmente, Constantino extrapola a pele como camada de proteção, expondo o que, na prática, não deve ser visto. Nesse sentido, podemos fazer um pequeno contraponto com a moda e a sua frequente luta, ao longo da história, em disfarçar “erros” do corpo através de um ajuste na modelagem ou de um corte específico no tecido. O que as três artistas fazem é justamente o contrário: mostram o que as pessoas receiam ver. Por fim, as vestes e os bordados produzidos por Harris, Queiroz e Constantino, possuem um forte significado social relacionado com a quebra de estereótipos. A moda no campo artístico, entendida aqui como o campo amplificado o qual se encontram as vestes e os bordados, se mostra como um fator de dissonância, abrindo caminho para diálogos referentes à expressão da identidade.

Referências HARRIS, Rebecca D. Obscure objects of obesity. 2013. 134 p. Dissertação (Mestrado em Arte Contemporânea) – Plymouth University. Reino Unido. 2013. QUEIROZ, Elisa. Elisa Queiroz. [200-]. Catálogo de obras da artista não publicado. Arquivos do Processo de Criação de Elisa Queiroz disponível no Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) na Universidade Federal do Espírito Santo. 36 p. ___________________________. [Entre 1990 e 2000]. Documentos de processo de Elisa Queiroz disponíveis no Laboratório de Extensão e Pesquisa em Artes (LEENA) na Universidade Federal do Espírito Santo TWIGG, Julia. Fashion, the body and the age. Kent: Universy of Kent, 2007. Disponível em: < http://www. clothingandage.org/projects/index.html>. Acesso em: 18 set. 2016.

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VOLPI, Maria Cristina. [O vestuário como princípio de leitura do mundo]. Le costume comme principle de lecture du monde. Marie CARANI (ed.). VISIO – Le visual à l’`ere du post-visuel 2 / The visualin the age of the postvisual, vol. 8, 2003. Pp. 245-254. PARKER, Rozsika. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine. Nova York: I.B Tauris, 2010.

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