VESTIDAS PARA PROTESTAR: MODOS DE PARECER DAS MANIFESTANTES NA MARCHA DAS VADIAS DE CURITIBA

June 3, 2017 | Autor: Adriana Baggio | Categoria: Moda, Semiótica Discursiva, Curitiba, Axiologia, Marcha Das Vadias, Vestuário
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VESTIDAS PARA PROTESTAR: MODOS DE PARECER DAS MANIFESTANTES  NA MARCHA DAS VADIAS DE CURITIBA  ADRIANA TULIO BAGGIO1  1

Universidade Federal do Paraná (UFPR), [email protected] 

    Resumo: A Marcha das Vadias de Curitiba é uma das edições brasileiras da manifestação originada no  Canadá com o nome de Slut Walk e tem por objetivo protestar contra a culpabilização da mulher em casos  de violência sexual. A Marcha apropria‐se do termo ofensivo para ressignificá‐lo, levando a uma reflexão  sobre o que é ser “vadia" e porque “vadias” merecem ser alvo de violência. Na prática da manifestação, tais  problematizações são traduzidas semioticamente nos textos visuais do corpo vestido das manifestantes.  Percebe‐se uma articulação entre elementos do vestuário que figurativizam dois papéis temáticos opostos,  o da “vadia” e o da “santa”, que por sua vez reiteram uma classificação de tipos de mulher comumente  operada na sociedade. Por meio de registros fotográficos produzidos durante a Marcha de 2011 em  Curitiba, ilustramos como se dá esta articulação que busca, por meio da roupa, contribuir para a proposta  de ressignificação do termo. Nota‐se, neste processo, uma reiteração dos simulacros que se pretende  combater. O artigo reflete ainda sobre a participação da moda na promoção e circulação de discursos  prescritivos e classificatórios da mulher a partir de sua sexualidade.     Palavras chave: Marcha das Vadias; Curitiba; moda; vestuário; axiologia santa x vadia; semiótica  discursiva.   

1. Sua roupa pode ser usada contra você  Em termos de roupas, costuma‐se afirmar que hoje “tudo é permitido”. Os espartilhos do vestuário foram  afrouxados  e  sua  linguagem  é  uma  das  mais  poderosas  expressões  de  liberdade  que  um  sujeito  experimenta  e  manifesta.  No  entanto,  o  prescritivo  da  moda  permanece.  Ele  está  presente  tanto  no  julgamento cotidiano que se faz sobre a aparência do outro, particularmente o feminino, quanto nos pode‐ e‐não‐pode da imprensa especializada. Como observa Ludmila Brandão,   “Entre nós, real women das classes médias, um princípio é esconder os excessos. Isso elimina de vez  tecidos  colantes,  cores  e  estampas  espetaculares  e  transparências  reveladoras,  por  exemplo.  As  consultoras  de  moda  da  vez  estão  sempre  nos  ‘lembrando’  dos  erros  que  devemos  evitar,  estampando nas revistas os padrões desejados para corpos e seus invólucros. Um gosto que não se  dobra,  todavia,  entre  as  classes  populares,  é  o  do  corpo  curvilíneo,  das  formas  arredondadas,  e  do  prazer em destacá‐los porque aí residem as promessas de prazer”. (Brandão, 2011, p.210, grifos da  autora)  A  prescrição  apontada  por  Brandão  ilustra  uma  axiologia  de  valor  entre  original  e  cópia,  mas  que  enseja  uma outra categoria, que coloca em oposição as mulheres “de respeito” e as mulheres “fáceis”. Sabemos  que  é  comum  interpretar  estas  “promessas  de  prazer”  não  só  como  promessas,  mas  como  “convites”.  A  roupa  que  destaca  o  corpo  compõe  o  paradigma  da  mulher  “fácil”  e  esta  organização  corporal  é  o  tal  “convite” que justifica culpar a vítima pelo assédio ou agressão sofridos. É sobre esta relação entre roupa e  violência sexual e sua tentativa de desconstrução que tratamos neste artigo. 

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1.1

Vadias em manifestação 

Talvez  seja  possível  dizer  que  a  “primavera  feminista”1  observada  no  último  trimestre  de  2015  no  Brasil  tenha  tido  sua  arrancada  com  a  Slut  Walk,  em  2011,  no  Canadá.  O  protesto  foi  uma  reação  à  palestra  proferida por um policial na Universidade de Toronto após diversos casos e ameaças de estupro no campus.  Seu conselho às alunas: não se vistam como vadias (sluts) que o risco de estupro diminui.   Como  o  pensamento  expresso  pelo  policial  não  é  exclusividade  canadense,  a  manifestação  ganhou  aderência  em  todo  mundo,  sendo  realizada  naquele  ano  em  mais  de  200  cidades.  No  Brasil,  recebeu  o  nome de Marcha das Vadias. O objetivo da Marcha é protestar contra o assédio e a violência dirigidos às  mulheres por conta do seu comportamento sexual e contra a naturalização do pensamento de que a vítima  é culpada pela violência sexual sofrida.  Ainda que tais demandas sejam consideradas bastante legítimas, houve reações contrárias ao uso do termo  “vadia”,  mesmo  de  segmentos  que  tradicionalmente  apoiam  e  aprovam  as  reivindicações:  movimento  negro,  LGBT  e  inclusive  vertentes  do  feminismo.  Considerando  o  poder  ofensivo  da  palavra  na  cultura  brasileira,  como  dar  conta  de  ser  chamada  de  “vadia”?  A  ideia  era,  justamente,  usar  este  poder  para  ressignificar o termo e provocar reflexão sobre os comportamentos que o tematizam.  A violência sexual não se restringe à sua manifestação física.  “Cantadas” e xingamentos recebidos na rua  também  são  formas  de  violência,  o  que  coloca  a  linguagem  como  parte  importante  deste  processo,  seja  pela  maneira  ofensiva  e  preconceituosa  de  se  referir  às  mulheres,  seja  pela  linguagem  como  arma  de  ataque por si própria. Assim, a reapropriação do termo tem por objetivo desafiar tanto a naturalização do  que se entende por “vadia” quanto a ideia de que é compreensível que mulheres “vadias” sofram violência.  O raciocínio é explicado por Gleidiane S. Ferreira em artigo sobre a presença da Marcha nas redes sociais:  “Amplamente  difundido  como  uma  forma  de  relacionar  mulheres  de  comportamento  livre  –  principalmente em relação à sexualidade – o termo vadia pôde compor com protagonismo o mosaico  de questionamentos levantados pelas marchas das vadias no Brasil e no mundo. Relacionar o termo  com  o  exercício  de  várias  liberdades  fez  possível  uma  auto‐nominação  do  termo  como  uma  demarcação da liberdade”. (Ferreira, 2013, p.40)  Tal processo é similar à ressignificação do termo queer pela comunidade LGBT. De “etimologia sórdida” na  língua  inglesa,  com  “camadas  de  preconceito  e  discriminação”,  como  observa  José  Gatti  (2011,  p.16),  a  palavra  queer  foi  reapropriada  por  um  coletivo  anti‐homofobia  nos  anos  1990  nos  Estados  Unidos.  Incorporada pela academia e ressignificada positivamente, originou a teoria queer como campo de estudos,  cujo foco inclui não apenas a homossexualidade, mas “todo tipo de prática sexual e identidade de gênero  que pode se situar num espectro de categorias mais ou menos normativas e desviantes” (Gatti, 2011, p.17).   Na Marcha das Vadias, a forma de protesto alicerçada na linguagem assemelha‐se à do movimento queer  porque  “vadia”  é  considerada  a  mulher  com  comportamento  “desviante”  e  porque  a  ressignificação  positiva  do  termo  talvez  esteja  respaldada  pelo  surgimento  do  movimento  no  meio  acadêmico.  Mas,  na  prática, como o movimento trabalha para esta “ressignificação”?  Ao  participar  da  edição  de  2011  da  Marcha  percebemos  a  construção  de  um  parecer  que  buscava  figurativizar o simulacro desta mulher “vadia”, inspirado nos diversos exemplos que circulam em textos de  diferentes épocas e linguagens, da literatura à mídia. Ao mesmo tempo, notamos uma preocupação com a  credibilidade,  destinada  pela  necessidade  de  levar  o  destinatário  social  e  governamental  a  reconhecer  a  violência  de  gênero  e  a  adotar  posturas  e  políticas  para  sua  prevenção  e  combate.  Assim,  tal  parecer                                                                 1

  “Primavera  feminista”  é  uma  expressão  utilizada  para  referir  às  manifestações  de  mulheres  brasileiras  contra  o  retrocesso nas conquistas obtidas em relação ao controle de seus corpos e ao atendimento prestado pela rede pública  de saúde em caso de estupro. Como esclarece o subtítulo de editorial da edição brasileira do jornal El País (2015), “Em  outras nações, as mulheres lutam por salários iguais. No Brasil, para não retrocederem em suas conquistas”. 

     

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  sugeriu  a  articulação  de  figuras  que  compõem  dois  papéis  temáticos  opostos:  o  da  mulher  “fácil”  –  a  “vadia” –, e o da mulher de “respeito”, de “família” – a “santa”. É este jogo entre a “vadia” e a “santa” que  acreditamos  perceber  no  vestuário  e  nos  demais  arranjos  corporais  usados  pelas  manifestantes.  Suas  verificação e discussão neste trabalho são ilustradas por fotografias produzidas durante nossa participação  na edição de 2011 da Marcha das Vadias de Curitiba.   Antes  de  proceder  à  análise  dos  enunciados,  apresentamos  alguns  aspectos  dos  textos  verbais  das  organizadoras  da  Marcha  para  podermos  observar,  depois,  sua  tradução  nas  práticas  durante  a  manifestação.  Com  essa  articulação  entre  as  propostas  anteriores  à  Marcha  e  sua  efetiva  realização,  nos  inspiramos  no  que  diz  Eric  Landowski  (2001,  p.31)  sobre  os  “textos”  e  as  “práticas”:  “enquanto  que  as  práticas […] só fazem sentido sob a condição de serem, por assim dizer, lidas — como se fossem textos —  os textos, pelo contrário […], só fazem sentido, em definitivo, em função das práticas específicas de seus  leitores”.  Assim, a Marcha das Vadias de Curitiba só faz sentido enquanto a manifestação de um discurso. E, de outro  lado,  as  orientações,  proposições  e  intenções  que  regem  a  Marcha  só  se  atualizam  na  prática  das  manifestantes. 

2. A Marcha das Vadias de Curitiba  Curitiba é uma cidade localizada no sul do Brasil, capital do estado do Paraná, oitava mais populosa do país.  Possui  aproximadamente  1,8  milhão  de  habitantes  e  características  que  a  diferenciam  de  outras  cidades  brasileiras. A temperatura média no verão é de 21º e de 13º no inverno. As baixas temperaturas costumam  ser responsabilizadas, em parte, pelos traços de reserva atribuídos aos curitibanos. Outro fator que procura  explicar essa característica comportamental é a imigração europeia que ajudou a formar a cidade no final  do século XIX e início do século XX, com a predominância das etnias alemã, ucraniana, polonesa e italiana.  Curitiba é, assim, considerada uma cidade de pessoas fechadas e conservadoras. Sua Marcha das Vadias de  2011 aconteceu no dia 16 de julho, auge do inverno. O sol e a temperatura agradável, que se percebe ou  infere nas fotografias, foram atípicos para a época.  Mais de um mês antes da Marcha, suas organizadoras criaram um grupo no site de rede social Facebook e  postaram  diversos  documentos  e  manifestos.  Estes  textos  verbais  apresentam  a  origem  da  Marcha,  as  reivindicações,  orientações  para  os  participantes,  releases  para  a  imprensa.  Em  um  desses  documentos,  vemos a justificativa para o uso do termo “vadia”:  “[…]  achamos  que  levar  às  ruas  o  termo  vadia  é  imprescindível  para  a  discussão  sobre  a  violência  contra  a  mulher.  Pois  essa  violência  está  diretamente  ligada  às  relações  de  poder  estabelecidas  no  universo masculino. E é esse exercício de poder que faz com que os homens nos chamem de vadias  para nos diminuir, para regular nosso comportamento sexual e para desmerecer nossa capacidade de  articulação.  Acho  também  que  a  discussão  sobre  a  violência  deve  obrigatoriamente  abordar  a  prostituição e, se falamos em nome das vadias ‘oficiais’ não podemos mascarar a situação. Entendo  que  para  mulheres  brancas,  heterossexuais,  de  classe  média  seja  muito  difícil  ressignificar  o  termo  vadia e discutir a questão de gênero que envolve os preconceitos contra a mulher (principalmente se  for transsexual ou lésbica)”. (Nunes, 2011)  Outro documento elenca os comportamentos que levam uma mulher a ser chamada de “vadia”:  “Já fomos chamadas de vadias porque usamos roupas curtas, já fomos chamadas de vadias porque  transamos  antes  do  casamento,  já  fomos  chamadas  de  vadias  por  simplesmente  dizer  ‘não’  a  um  homem, já fomos chamadas de vadias porque levantamos o tom de voz em uma discussão, já fomos  chamadas  de  vadias  porque  andamos  sozinhas  à  noite  e  fomos  estupradas,  já  fomos  chamadas  de  vadias  porque  ficamos  bêbadas  e  sofremos  estupro  enquanto  estávamos  inconscientes,  já  fomos  chamadas de vadias quando torturadas e estupradas por vários homens ao mesmo tempo durante a  Ditadura  Militar.  Já  fomos  e  somos  diariamente  chamadas  de  vadias  apenas  porque  somos       

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  MULHERES. Mas, hoje, marchamos para dizer que não aceitaremos palavras e ações utilizadas para  nos agredir enquanto mulheres. Se, na nossa sociedade machista, algumas são consideradas vadias,  TODAS NÓS SOMOS VADIAS”. (Lima, 2011)  No primeiro texto há a inclusão das prostitutas no grupo de mulheres que sofrem violência por questões de  comportamento sexual. Um dos objetivos, portanto, é não diferenciar as mulheres pela quantidade ou tipo  das  relações  sexuais  que  mantêm.  No  segundo,  há  um  elenco  de  situações  que  levam  uma  mulher  a  ser  chamada  de  “vadia”:  o  vestuário,  o  dizer  sim  para  o  sexo,  o  dizer  não  para  o  sexo  e  a  assertividade  –  “levantar o tom de voz numa discussão”. Nos filmes e seriados de língua inglesa, especialmente os norte‐ americanos, usa‐se a palavra bitch para referir de forma ofensiva a esta mulher decidida, dura ou assertiva.  Nas  legendas  em  português  tal  palavra  é  traduzida  como  “vadia”.  Esta  outra  conotação  para  o  termo  descreve  justamente  a  atitude  da  mulher  na  Marcha:  o  protesto,  o  falar  alto,  o  se  posicionar,  o  gritar  palavras de ordem. Veremos que essas três facetas da figura de conteúdo “vadia” parecem estar expressas  nos enunciados sincréticos das fotografias.  

3. Look para um dia de marcha  As saias estão presentes em quase todos os enunciados fotográficos que analisamos neste trabalho porque  efetivamente  eram  muito  usadas  pelas  manifestantes  e  porque  nosso  recorte  de  pesquisa  na  época  era  relacionado  a  esta  peça  de  roupa.  A  historiadora  francesa  Christine  Bard  (2010)  acredita  que  hoje  a  saia  toma  o  lugar  antes  ocupado  pela  calça:  um  vestuário  interdito  às  mulheres,  que  podem  sofrer  diversos  tipos de sanção ou violência quando decidem vesti‐la. A saia teria rareado no guarda‐roupa feminino, em  maior  ou  menor  grau,  por  deixar  o  corpo  mais  acessível,  desprotegido  e  vulnerável,  e  por  levar  alguns  homens a interpretar a peça como sensual, como um convite a uma aproximação.   Ao sentirem‐se obrigadas a evitar a saia para não sofrer assédio ou violência, algumas mulheres elegeram  esta  peça  como  símbolo  de  protesto  e  de  afirmação  do  direito  à  feminilidade.  Em  2010,  o  movimento  feminista francês Ni putes ni soumises propôs que, no 25 de novembro, dia de luta contra a violência feita  às mulheres, todas usassem saia, chamando este dia de Toutes en jupe (Habchi, 2010).  Na  escolha  da  saia  e  de  outros  trajes  para  a  marcha,  as  mulheres  trabalham  com  uma  construção  da  aparência que articula o seu parecer no dia‐a‐dia e seu parecer durante a manifestação, como uma troca de  papéis  para  diferentes  encenações.  Este  processo  que  é  explicado  por  Diana  Crane  (2006,  p.37)  em  seu  estudo  sobre  o  papel  social  da  moda:  “o  indivíduo  constrói  um  senso  de  identidade  pessoal  ao  criar  ‘narrativas próprias’ que contenham sua compreensão do próprio passado, presente e futuro”.   A narratividade de cada manifestante traz, portanto: uma narrativa anterior, de seu papel social cotidiano;  a transformação operada pelas roupas, que conduz à narrativa durante a Marcha; e uma projeção de uma  narrativa futura, possível quando a transformação do preconceito permita, por exemplo, que se use uma  saia ou qualquer outra roupa sem o risco de violência. Assim, como veremos adiante, a bota usada no dia‐ a‐dia compõe o look da Marcha, com grande importância na produção de sentido. E a roupa sensual ou a  saia da Marcha são elementos do traje que se deseja poder usar no futuro.  Em seu trabalho sobre os discursos da aparência nas interações entre o corpo e as roupas, Ana Claudia de  Oliveira (2008) explora o enunciado (materialização do discurso) e a enunciação (produção do enunciado)  do corpo vestido. No primeiro opera‐se o estado e a transformação do sujeito, na segunda organiza‐se um  modo de presença para o outro. Quanto à articulação entre essas instâncias da enunciação e os actantes  destinador  e  destinatário  –  quem  diz  o  que  deve  ser  feito  e  quem  fará  o  que  foi  mandado  fazer  –,  a  semioticista explica:  “Enquanto  destinador  e  destinatário  são  figuras  do  mundo  em  que  vivemos,  enunciador  e  enunciatário  são  instâncias  pressupostas  sobre  as  quais  assentam‐se  as  manifestações  textuais.  Nesta  trajetória,  a  dinamicidade  das  entradas  e  saídas  dos  atores  nas  suas  atuações  na  cena  discursiva,  construída  por  temas  e  figuras,  especifica,  na  sintaxe  da  interação  entre  enunciador  e       

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  enunciatário,  o  que  o  destinador  faz  saber,  faz  sentir  para  o  destinatário  fazer  depreender  e  reconhecer as articulações do sentido”. (Oliveira, 2008, p.5)  Na Marcha das Vadias (figura 1) as roupas são recursos de manipulação da mulher enquanto destinadora  de  um  fazer‐ressignificar  o  termo  “vadia”.  Também  são  marcas  de  um  enunciador  que  parece  convocar  tanto  estes  discursos  da  ressignificação  do  termo  quanto  aqueles  que  classificam  a  mulher  em  uma  axiologia “fácil” x “de respeito” – ou seja, os discursos da não‐ressignificação. 

  Figura 1: Manifestantes da Marcha das Vadias de Curitiba de 2011. Modos de vestir “parecer vadia”. Registros feitos pela autora. 

A saia em si ou como parte do vestido é uma figura de conteúdo que tematiza comportamentos femininos  que levam as mulheres a serem chamadas de “vadias” (Baggio, 2014). Tal relação é reforçada quando a saia  apresenta certas formas, cores e texturas. Na Marcha de Curitiba, as saias (figura de conteúdo) são curtas,  onduladas, de tecidos leves e com babados (figuras de expressão). São acompanhadas por meias‐calças de  renda ou do tipo arrastão, estampadas, coloridas.  Enquanto as saias mais rodadas e com babados ampliam a área do quadril, pernas e tronco são ajustados  por peças de roupas coladas ao corpo. Na parte de cima, as mulheres vestem collants, blusas de alça, maiôs  e espartilhos. Esta última peça soma‐se a uma crinolina e a uma liga de meia‐calça, remetendo ao traje das  cortesãs do século XVIII e das dançarinas do Moulin Rouge. Algumas manifestantes usam apenas lingerie.  Os tecidos são a renda, o couro, o veludo; os materiais frios, lisos e elásticos, como a lycra, e os rasgados.  Às  roupas  sensuais,  decotadas  e  por  vezes  leves,  opõem‐se  sapatos  (figura  2)  pesados  e  fechados,  como  botas; mais práticos, como tênis; e mais “ingênuos”, como as sapatilhas.       

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  Figura  2:  Manifestantes  da  Marcha  das  Vadias  de  Curitiba  de  2011.  Modos  de  vestir  “não  parecer  vadia”.  Registros  feitos  pela  autora. 

As  roupas  (figuras  de  conteúdo)  e  seus  aspectos  plásticos  (figuras  de  expressão)  tematizam  comportamentos  ou  papéis  femininos  associados  ao  termo  “vadia”  e,  consequentemente,  à  justificativa  para  a  violência  sexual.  A  reiteração  da  renda,  do  arrastão,  dos  espartilhos  e  das  lingeries  remete  ao  simulacro da prostituta ou da cortesã, da mulher sedutora de comportamento sexual mais livre.  As cores mais claras, os babados e ondulado das saias e a calcinha “bunda rica” (figura 1) têm um quê de  infantil. Tais peças, porém, são combinadas com outras mais sexies. Nessa articulação, as roupas de menina  – ou “de boneca”, como diz o cartaz da manifestante – são os trajes de uma Lolita, personagem que flerta  com a ideia de pedofilia.  Quando  estas  peças  são  usadas  com  sapatos  pesados  e  fechados,  como  as  botas  (figura  2),  o  caráter  sedutor da “vadia” passa a estar a serviço da própria mulher. Já não se trata mais da “vadia” que merece a  violência porque usa roupas curtas inadvertidamente, mas sim a “vadia” assertiva que tem poder sobre seu  corpo e sua sexualidade. De qualquer maneira, é outro comportamento que provoca a violência.  Nota‐se que as manifestantes reiteram no vestuário o conteúdo do manifesto “somos todas vadias”. Mas,  para ressignificar o termo, é preciso partir da concepção binária do papel social feminino: a “santa”, que se  enquadra nas normas, e a “vadia”, que não se enquadra. Enquanto a primeira deve ser protegida, contra a  segunda  justifica‐se  a  violência.  Se  não  for  possível  distingui‐las,  não  se  pode  agredi‐las.  Este  recurso  manipulador  só funciona se as destinadoras puderem dar‐se a ver como “santas”, mesmo disfarçadas de  “vadias”.  O uso de algumas peças de vestuário que operam uma descontinuidade no simulacro da prostituta serve  para abrir essa brecha que permite ao sujeito mostrar o seu não‐ser “vadia”. As botas fechadas e pesadas, a  camisa sob o espartilho ou amarrada na cintura, as bolsas grandes de dia‐a‐dia (figura 2) são marcas deste  não‐ser.  A  própria  pesquisadora  preocupou‐se  com  estes  efeitos  de  sentido  ao  escolher  seu  traje:  uma  camiseta  que  simula  o  corpo  quase  nu  de  uma  passista  de  escola  de  samba,  mas  usada  sobre  uma  calça  jeans.  Inadvertidamente,  acabamos  por  reiterar  o  simulacro  e  o  discurso  preconceituoso  sobre  a  mulher  brasileira, muitas vezes vista como prostituta.       

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  Figura 3: Cartazes que expressam as reivindicações da Marcha das Vadias de Curitiba de 2011. Registros feitos pela autora. 

Outro desafio no processo de ressignificação diz respeito à seriedade do discurso. Apesar de haver palavras  de  ordem  escritas  nos  corpos  das  manifestantes,  elas  não  são  institucionalizadas.  A  legitimidade  do  discurso  depende  de  marcas  de  credibilidade  do  enunciador.  Assim,  em  oposição  à  parte  lúdica  –  as  fantasias,  as cores  e  os  babados,  os  escritos  à  mão, com  tinta ou  batom  (figura  1)  –  existiam  os  cartazes  retangulares impressos em computador, trabalhados no contraste de preto e branco (figura 3). Neste caso,  o  destinador  conta  com  a  aceitação  do  contrato  de  manipulação  pelo  destinatário,  que  vai  considerar  legítimas as reivindicações da Marcha a partir de uma figuratividade que tematiza a seriedade.  

4. É possível ser vadia e estar na moda?  Ainda que as marchas aconteçam até hoje, cremos que nenhuma edição apresenta com tanto privilégio a  tradução semiótica das reivindicações em textos sincréticos do corpo vestido quanto a de 2011. O grande  desafio desta primeira manifestação era obter uma sanção positiva para a performance de ressignificação  do termo – objeto de valor fundamental para a credibilidade do movimento e de suas demandas.  A  proposta  deste  trabalho  era  verificar  como  se  deu  a  desconstrução  da  relação  entre  roupa  e  violência  sexual  pelas  manifestantes  e  que  tipo  de  efeitos  de  sentido  foram  convocados  para  a  ressignificação  do  termo. Diferente de outras opressões ou injustiças, a da violência contra mulher inscreve‐se no corpo. Daí,  também, a importância de trazer no corpo as marcas desta ressignificação.   Não havia um dress code para o protesto. Cada manifestante enunciou individualmente seu corpo “vadia‐ santa”.  No  conjunto,  tais  enunciados  são  bastante  harmoniosos  e  reiteram  os  simulacros  de  mulheres  sexualizadas que formam o imaginário de nossa cultura, especialmente a ocidental.  A lógica da articulação que objetiva a ressignificação poderia ser resumida assim: "não concordamos que  classifiquem as mulheres entre ‘vadias e ‘santas’. Por isso, vamos confundir vocês: nós, mulheres ‘santas’,  vamos nos vestir de mulheres ‘vadias’. Desta forma, vocês não saberão quem podem ou não ofender ou  agredir.”  No  entanto,  a  efetividade  desta  lógica  só  funciona  se  o  destinatário  puder  perceber,  entre  as  figuras  de  vestuário  que  identificam  a  mulher  “vadia”,  algumas  peças  que  dão  pistas  de  existir,  ali,  uma  mulher “santa”. Isto foi operado a partir da mistura de acessórios não‐sexies às peças sexualizadas.   Na articulação entre ser e parecer, as manifestantes colocam‐se como não‐vadias e não‐santas, relação de  contradição  sobredeterminada  como  falsidade.  Com  isso,  negam‐se  as  duas  asserções  que  se  opõem  na  axiologia de classificação da mulher e nega‐se, principalmente, a própria prática de classificar. No entanto,  a  reiteração  das  escolhas  dos  elementos  disponíveis  no  paradigma  vestimentar  mostra  uma  partilha  de  códigos que servem para classificar as mulheres e são por elas articulados na construção do seu parecer,       

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  dependendo  do  objeto  de  valor  das  narrativas  expressas  em  seus  corpos.  Ao  mesmo  tempo  em  que  se  “luta” contra o estereótipo, ele é convocado e reiterado.  Quando uma mulher articula estes códigos a partir de um não‐querer não‐parecer vadia – ou seja: não se  importar em parecer vadia –, ela rompe um contrato e assume o risco de sofrer sanções negativas por sua  performance.  Colocado  desta  forma,  este  sancionador  parece  ser  atorializado  por  algum  tipo  de  vilão,  talvez  pelo  simulacro  do  homem  violento  com  as  mulheres.  Na  verdade,  assumimos  este  papel  toda  vez  que  classificamos  uma  mulher  a  partir  de  uma  axiologia  baseada  no  exercício  da  sexualidade.  E  isto  acontece com muita frequência e nos mais (aparentemente) inocentes textos e práticas do nosso cotidiano.  Ressignificar  o  termo  “vadia”  não  consiste  em  “modificar”  seus  sentidos,  mas  em  recusar  a  operação  de  certas  axiologias  no  juízo  de  valor  que  se  faz  dos  indivíduos.  Neste  ponto,  o  discurso  da  moda  tem  um  poder e uma responsabilidade bastante representativos. 

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