VESTIDAS PARA PROTESTAR: MODOS DE PARECER DAS MANIFESTANTES NA MARCHA DAS VADIAS DE CURITIBA ADRIANA TULIO BAGGIO1 1
Universidade Federal do Paraná (UFPR),
[email protected]
Resumo: A Marcha das Vadias de Curitiba é uma das edições brasileiras da manifestação originada no Canadá com o nome de Slut Walk e tem por objetivo protestar contra a culpabilização da mulher em casos de violência sexual. A Marcha apropria‐se do termo ofensivo para ressignificá‐lo, levando a uma reflexão sobre o que é ser “vadia" e porque “vadias” merecem ser alvo de violência. Na prática da manifestação, tais problematizações são traduzidas semioticamente nos textos visuais do corpo vestido das manifestantes. Percebe‐se uma articulação entre elementos do vestuário que figurativizam dois papéis temáticos opostos, o da “vadia” e o da “santa”, que por sua vez reiteram uma classificação de tipos de mulher comumente operada na sociedade. Por meio de registros fotográficos produzidos durante a Marcha de 2011 em Curitiba, ilustramos como se dá esta articulação que busca, por meio da roupa, contribuir para a proposta de ressignificação do termo. Nota‐se, neste processo, uma reiteração dos simulacros que se pretende combater. O artigo reflete ainda sobre a participação da moda na promoção e circulação de discursos prescritivos e classificatórios da mulher a partir de sua sexualidade. Palavras chave: Marcha das Vadias; Curitiba; moda; vestuário; axiologia santa x vadia; semiótica discursiva.
1. Sua roupa pode ser usada contra você Em termos de roupas, costuma‐se afirmar que hoje “tudo é permitido”. Os espartilhos do vestuário foram afrouxados e sua linguagem é uma das mais poderosas expressões de liberdade que um sujeito experimenta e manifesta. No entanto, o prescritivo da moda permanece. Ele está presente tanto no julgamento cotidiano que se faz sobre a aparência do outro, particularmente o feminino, quanto nos pode‐ e‐não‐pode da imprensa especializada. Como observa Ludmila Brandão, “Entre nós, real women das classes médias, um princípio é esconder os excessos. Isso elimina de vez tecidos colantes, cores e estampas espetaculares e transparências reveladoras, por exemplo. As consultoras de moda da vez estão sempre nos ‘lembrando’ dos erros que devemos evitar, estampando nas revistas os padrões desejados para corpos e seus invólucros. Um gosto que não se dobra, todavia, entre as classes populares, é o do corpo curvilíneo, das formas arredondadas, e do prazer em destacá‐los porque aí residem as promessas de prazer”. (Brandão, 2011, p.210, grifos da autora) A prescrição apontada por Brandão ilustra uma axiologia de valor entre original e cópia, mas que enseja uma outra categoria, que coloca em oposição as mulheres “de respeito” e as mulheres “fáceis”. Sabemos que é comum interpretar estas “promessas de prazer” não só como promessas, mas como “convites”. A roupa que destaca o corpo compõe o paradigma da mulher “fácil” e esta organização corporal é o tal “convite” que justifica culpar a vítima pelo assédio ou agressão sofridos. É sobre esta relação entre roupa e violência sexual e sua tentativa de desconstrução que tratamos neste artigo.
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1046
1.1
Vadias em manifestação
Talvez seja possível dizer que a “primavera feminista”1 observada no último trimestre de 2015 no Brasil tenha tido sua arrancada com a Slut Walk, em 2011, no Canadá. O protesto foi uma reação à palestra proferida por um policial na Universidade de Toronto após diversos casos e ameaças de estupro no campus. Seu conselho às alunas: não se vistam como vadias (sluts) que o risco de estupro diminui. Como o pensamento expresso pelo policial não é exclusividade canadense, a manifestação ganhou aderência em todo mundo, sendo realizada naquele ano em mais de 200 cidades. No Brasil, recebeu o nome de Marcha das Vadias. O objetivo da Marcha é protestar contra o assédio e a violência dirigidos às mulheres por conta do seu comportamento sexual e contra a naturalização do pensamento de que a vítima é culpada pela violência sexual sofrida. Ainda que tais demandas sejam consideradas bastante legítimas, houve reações contrárias ao uso do termo “vadia”, mesmo de segmentos que tradicionalmente apoiam e aprovam as reivindicações: movimento negro, LGBT e inclusive vertentes do feminismo. Considerando o poder ofensivo da palavra na cultura brasileira, como dar conta de ser chamada de “vadia”? A ideia era, justamente, usar este poder para ressignificar o termo e provocar reflexão sobre os comportamentos que o tematizam. A violência sexual não se restringe à sua manifestação física. “Cantadas” e xingamentos recebidos na rua também são formas de violência, o que coloca a linguagem como parte importante deste processo, seja pela maneira ofensiva e preconceituosa de se referir às mulheres, seja pela linguagem como arma de ataque por si própria. Assim, a reapropriação do termo tem por objetivo desafiar tanto a naturalização do que se entende por “vadia” quanto a ideia de que é compreensível que mulheres “vadias” sofram violência. O raciocínio é explicado por Gleidiane S. Ferreira em artigo sobre a presença da Marcha nas redes sociais: “Amplamente difundido como uma forma de relacionar mulheres de comportamento livre – principalmente em relação à sexualidade – o termo vadia pôde compor com protagonismo o mosaico de questionamentos levantados pelas marchas das vadias no Brasil e no mundo. Relacionar o termo com o exercício de várias liberdades fez possível uma auto‐nominação do termo como uma demarcação da liberdade”. (Ferreira, 2013, p.40) Tal processo é similar à ressignificação do termo queer pela comunidade LGBT. De “etimologia sórdida” na língua inglesa, com “camadas de preconceito e discriminação”, como observa José Gatti (2011, p.16), a palavra queer foi reapropriada por um coletivo anti‐homofobia nos anos 1990 nos Estados Unidos. Incorporada pela academia e ressignificada positivamente, originou a teoria queer como campo de estudos, cujo foco inclui não apenas a homossexualidade, mas “todo tipo de prática sexual e identidade de gênero que pode se situar num espectro de categorias mais ou menos normativas e desviantes” (Gatti, 2011, p.17). Na Marcha das Vadias, a forma de protesto alicerçada na linguagem assemelha‐se à do movimento queer porque “vadia” é considerada a mulher com comportamento “desviante” e porque a ressignificação positiva do termo talvez esteja respaldada pelo surgimento do movimento no meio acadêmico. Mas, na prática, como o movimento trabalha para esta “ressignificação”? Ao participar da edição de 2011 da Marcha percebemos a construção de um parecer que buscava figurativizar o simulacro desta mulher “vadia”, inspirado nos diversos exemplos que circulam em textos de diferentes épocas e linguagens, da literatura à mídia. Ao mesmo tempo, notamos uma preocupação com a credibilidade, destinada pela necessidade de levar o destinatário social e governamental a reconhecer a violência de gênero e a adotar posturas e políticas para sua prevenção e combate. Assim, tal parecer 1
“Primavera feminista” é uma expressão utilizada para referir às manifestações de mulheres brasileiras contra o retrocesso nas conquistas obtidas em relação ao controle de seus corpos e ao atendimento prestado pela rede pública de saúde em caso de estupro. Como esclarece o subtítulo de editorial da edição brasileira do jornal El País (2015), “Em outras nações, as mulheres lutam por salários iguais. No Brasil, para não retrocederem em suas conquistas”.
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1047
sugeriu a articulação de figuras que compõem dois papéis temáticos opostos: o da mulher “fácil” – a “vadia” –, e o da mulher de “respeito”, de “família” – a “santa”. É este jogo entre a “vadia” e a “santa” que acreditamos perceber no vestuário e nos demais arranjos corporais usados pelas manifestantes. Suas verificação e discussão neste trabalho são ilustradas por fotografias produzidas durante nossa participação na edição de 2011 da Marcha das Vadias de Curitiba. Antes de proceder à análise dos enunciados, apresentamos alguns aspectos dos textos verbais das organizadoras da Marcha para podermos observar, depois, sua tradução nas práticas durante a manifestação. Com essa articulação entre as propostas anteriores à Marcha e sua efetiva realização, nos inspiramos no que diz Eric Landowski (2001, p.31) sobre os “textos” e as “práticas”: “enquanto que as práticas […] só fazem sentido sob a condição de serem, por assim dizer, lidas — como se fossem textos — os textos, pelo contrário […], só fazem sentido, em definitivo, em função das práticas específicas de seus leitores”. Assim, a Marcha das Vadias de Curitiba só faz sentido enquanto a manifestação de um discurso. E, de outro lado, as orientações, proposições e intenções que regem a Marcha só se atualizam na prática das manifestantes.
2. A Marcha das Vadias de Curitiba Curitiba é uma cidade localizada no sul do Brasil, capital do estado do Paraná, oitava mais populosa do país. Possui aproximadamente 1,8 milhão de habitantes e características que a diferenciam de outras cidades brasileiras. A temperatura média no verão é de 21º e de 13º no inverno. As baixas temperaturas costumam ser responsabilizadas, em parte, pelos traços de reserva atribuídos aos curitibanos. Outro fator que procura explicar essa característica comportamental é a imigração europeia que ajudou a formar a cidade no final do século XIX e início do século XX, com a predominância das etnias alemã, ucraniana, polonesa e italiana. Curitiba é, assim, considerada uma cidade de pessoas fechadas e conservadoras. Sua Marcha das Vadias de 2011 aconteceu no dia 16 de julho, auge do inverno. O sol e a temperatura agradável, que se percebe ou infere nas fotografias, foram atípicos para a época. Mais de um mês antes da Marcha, suas organizadoras criaram um grupo no site de rede social Facebook e postaram diversos documentos e manifestos. Estes textos verbais apresentam a origem da Marcha, as reivindicações, orientações para os participantes, releases para a imprensa. Em um desses documentos, vemos a justificativa para o uso do termo “vadia”: “[…] achamos que levar às ruas o termo vadia é imprescindível para a discussão sobre a violência contra a mulher. Pois essa violência está diretamente ligada às relações de poder estabelecidas no universo masculino. E é esse exercício de poder que faz com que os homens nos chamem de vadias para nos diminuir, para regular nosso comportamento sexual e para desmerecer nossa capacidade de articulação. Acho também que a discussão sobre a violência deve obrigatoriamente abordar a prostituição e, se falamos em nome das vadias ‘oficiais’ não podemos mascarar a situação. Entendo que para mulheres brancas, heterossexuais, de classe média seja muito difícil ressignificar o termo vadia e discutir a questão de gênero que envolve os preconceitos contra a mulher (principalmente se for transsexual ou lésbica)”. (Nunes, 2011) Outro documento elenca os comportamentos que levam uma mulher a ser chamada de “vadia”: “Já fomos chamadas de vadias porque usamos roupas curtas, já fomos chamadas de vadias porque transamos antes do casamento, já fomos chamadas de vadias por simplesmente dizer ‘não’ a um homem, já fomos chamadas de vadias porque levantamos o tom de voz em uma discussão, já fomos chamadas de vadias porque andamos sozinhas à noite e fomos estupradas, já fomos chamadas de vadias porque ficamos bêbadas e sofremos estupro enquanto estávamos inconscientes, já fomos chamadas de vadias quando torturadas e estupradas por vários homens ao mesmo tempo durante a Ditadura Militar. Já fomos e somos diariamente chamadas de vadias apenas porque somos
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1048
MULHERES. Mas, hoje, marchamos para dizer que não aceitaremos palavras e ações utilizadas para nos agredir enquanto mulheres. Se, na nossa sociedade machista, algumas são consideradas vadias, TODAS NÓS SOMOS VADIAS”. (Lima, 2011) No primeiro texto há a inclusão das prostitutas no grupo de mulheres que sofrem violência por questões de comportamento sexual. Um dos objetivos, portanto, é não diferenciar as mulheres pela quantidade ou tipo das relações sexuais que mantêm. No segundo, há um elenco de situações que levam uma mulher a ser chamada de “vadia”: o vestuário, o dizer sim para o sexo, o dizer não para o sexo e a assertividade – “levantar o tom de voz numa discussão”. Nos filmes e seriados de língua inglesa, especialmente os norte‐ americanos, usa‐se a palavra bitch para referir de forma ofensiva a esta mulher decidida, dura ou assertiva. Nas legendas em português tal palavra é traduzida como “vadia”. Esta outra conotação para o termo descreve justamente a atitude da mulher na Marcha: o protesto, o falar alto, o se posicionar, o gritar palavras de ordem. Veremos que essas três facetas da figura de conteúdo “vadia” parecem estar expressas nos enunciados sincréticos das fotografias.
3. Look para um dia de marcha As saias estão presentes em quase todos os enunciados fotográficos que analisamos neste trabalho porque efetivamente eram muito usadas pelas manifestantes e porque nosso recorte de pesquisa na época era relacionado a esta peça de roupa. A historiadora francesa Christine Bard (2010) acredita que hoje a saia toma o lugar antes ocupado pela calça: um vestuário interdito às mulheres, que podem sofrer diversos tipos de sanção ou violência quando decidem vesti‐la. A saia teria rareado no guarda‐roupa feminino, em maior ou menor grau, por deixar o corpo mais acessível, desprotegido e vulnerável, e por levar alguns homens a interpretar a peça como sensual, como um convite a uma aproximação. Ao sentirem‐se obrigadas a evitar a saia para não sofrer assédio ou violência, algumas mulheres elegeram esta peça como símbolo de protesto e de afirmação do direito à feminilidade. Em 2010, o movimento feminista francês Ni putes ni soumises propôs que, no 25 de novembro, dia de luta contra a violência feita às mulheres, todas usassem saia, chamando este dia de Toutes en jupe (Habchi, 2010). Na escolha da saia e de outros trajes para a marcha, as mulheres trabalham com uma construção da aparência que articula o seu parecer no dia‐a‐dia e seu parecer durante a manifestação, como uma troca de papéis para diferentes encenações. Este processo que é explicado por Diana Crane (2006, p.37) em seu estudo sobre o papel social da moda: “o indivíduo constrói um senso de identidade pessoal ao criar ‘narrativas próprias’ que contenham sua compreensão do próprio passado, presente e futuro”. A narratividade de cada manifestante traz, portanto: uma narrativa anterior, de seu papel social cotidiano; a transformação operada pelas roupas, que conduz à narrativa durante a Marcha; e uma projeção de uma narrativa futura, possível quando a transformação do preconceito permita, por exemplo, que se use uma saia ou qualquer outra roupa sem o risco de violência. Assim, como veremos adiante, a bota usada no dia‐ a‐dia compõe o look da Marcha, com grande importância na produção de sentido. E a roupa sensual ou a saia da Marcha são elementos do traje que se deseja poder usar no futuro. Em seu trabalho sobre os discursos da aparência nas interações entre o corpo e as roupas, Ana Claudia de Oliveira (2008) explora o enunciado (materialização do discurso) e a enunciação (produção do enunciado) do corpo vestido. No primeiro opera‐se o estado e a transformação do sujeito, na segunda organiza‐se um modo de presença para o outro. Quanto à articulação entre essas instâncias da enunciação e os actantes destinador e destinatário – quem diz o que deve ser feito e quem fará o que foi mandado fazer –, a semioticista explica: “Enquanto destinador e destinatário são figuras do mundo em que vivemos, enunciador e enunciatário são instâncias pressupostas sobre as quais assentam‐se as manifestações textuais. Nesta trajetória, a dinamicidade das entradas e saídas dos atores nas suas atuações na cena discursiva, construída por temas e figuras, especifica, na sintaxe da interação entre enunciador e
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1049
enunciatário, o que o destinador faz saber, faz sentir para o destinatário fazer depreender e reconhecer as articulações do sentido”. (Oliveira, 2008, p.5) Na Marcha das Vadias (figura 1) as roupas são recursos de manipulação da mulher enquanto destinadora de um fazer‐ressignificar o termo “vadia”. Também são marcas de um enunciador que parece convocar tanto estes discursos da ressignificação do termo quanto aqueles que classificam a mulher em uma axiologia “fácil” x “de respeito” – ou seja, os discursos da não‐ressignificação.
Figura 1: Manifestantes da Marcha das Vadias de Curitiba de 2011. Modos de vestir “parecer vadia”. Registros feitos pela autora.
A saia em si ou como parte do vestido é uma figura de conteúdo que tematiza comportamentos femininos que levam as mulheres a serem chamadas de “vadias” (Baggio, 2014). Tal relação é reforçada quando a saia apresenta certas formas, cores e texturas. Na Marcha de Curitiba, as saias (figura de conteúdo) são curtas, onduladas, de tecidos leves e com babados (figuras de expressão). São acompanhadas por meias‐calças de renda ou do tipo arrastão, estampadas, coloridas. Enquanto as saias mais rodadas e com babados ampliam a área do quadril, pernas e tronco são ajustados por peças de roupas coladas ao corpo. Na parte de cima, as mulheres vestem collants, blusas de alça, maiôs e espartilhos. Esta última peça soma‐se a uma crinolina e a uma liga de meia‐calça, remetendo ao traje das cortesãs do século XVIII e das dançarinas do Moulin Rouge. Algumas manifestantes usam apenas lingerie. Os tecidos são a renda, o couro, o veludo; os materiais frios, lisos e elásticos, como a lycra, e os rasgados. Às roupas sensuais, decotadas e por vezes leves, opõem‐se sapatos (figura 2) pesados e fechados, como botas; mais práticos, como tênis; e mais “ingênuos”, como as sapatilhas.
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1050
Figura 2: Manifestantes da Marcha das Vadias de Curitiba de 2011. Modos de vestir “não parecer vadia”. Registros feitos pela autora.
As roupas (figuras de conteúdo) e seus aspectos plásticos (figuras de expressão) tematizam comportamentos ou papéis femininos associados ao termo “vadia” e, consequentemente, à justificativa para a violência sexual. A reiteração da renda, do arrastão, dos espartilhos e das lingeries remete ao simulacro da prostituta ou da cortesã, da mulher sedutora de comportamento sexual mais livre. As cores mais claras, os babados e ondulado das saias e a calcinha “bunda rica” (figura 1) têm um quê de infantil. Tais peças, porém, são combinadas com outras mais sexies. Nessa articulação, as roupas de menina – ou “de boneca”, como diz o cartaz da manifestante – são os trajes de uma Lolita, personagem que flerta com a ideia de pedofilia. Quando estas peças são usadas com sapatos pesados e fechados, como as botas (figura 2), o caráter sedutor da “vadia” passa a estar a serviço da própria mulher. Já não se trata mais da “vadia” que merece a violência porque usa roupas curtas inadvertidamente, mas sim a “vadia” assertiva que tem poder sobre seu corpo e sua sexualidade. De qualquer maneira, é outro comportamento que provoca a violência. Nota‐se que as manifestantes reiteram no vestuário o conteúdo do manifesto “somos todas vadias”. Mas, para ressignificar o termo, é preciso partir da concepção binária do papel social feminino: a “santa”, que se enquadra nas normas, e a “vadia”, que não se enquadra. Enquanto a primeira deve ser protegida, contra a segunda justifica‐se a violência. Se não for possível distingui‐las, não se pode agredi‐las. Este recurso manipulador só funciona se as destinadoras puderem dar‐se a ver como “santas”, mesmo disfarçadas de “vadias”. O uso de algumas peças de vestuário que operam uma descontinuidade no simulacro da prostituta serve para abrir essa brecha que permite ao sujeito mostrar o seu não‐ser “vadia”. As botas fechadas e pesadas, a camisa sob o espartilho ou amarrada na cintura, as bolsas grandes de dia‐a‐dia (figura 2) são marcas deste não‐ser. A própria pesquisadora preocupou‐se com estes efeitos de sentido ao escolher seu traje: uma camiseta que simula o corpo quase nu de uma passista de escola de samba, mas usada sobre uma calça jeans. Inadvertidamente, acabamos por reiterar o simulacro e o discurso preconceituoso sobre a mulher brasileira, muitas vezes vista como prostituta.
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1051
Figura 3: Cartazes que expressam as reivindicações da Marcha das Vadias de Curitiba de 2011. Registros feitos pela autora.
Outro desafio no processo de ressignificação diz respeito à seriedade do discurso. Apesar de haver palavras de ordem escritas nos corpos das manifestantes, elas não são institucionalizadas. A legitimidade do discurso depende de marcas de credibilidade do enunciador. Assim, em oposição à parte lúdica – as fantasias, as cores e os babados, os escritos à mão, com tinta ou batom (figura 1) – existiam os cartazes retangulares impressos em computador, trabalhados no contraste de preto e branco (figura 3). Neste caso, o destinador conta com a aceitação do contrato de manipulação pelo destinatário, que vai considerar legítimas as reivindicações da Marcha a partir de uma figuratividade que tematiza a seriedade.
4. É possível ser vadia e estar na moda? Ainda que as marchas aconteçam até hoje, cremos que nenhuma edição apresenta com tanto privilégio a tradução semiótica das reivindicações em textos sincréticos do corpo vestido quanto a de 2011. O grande desafio desta primeira manifestação era obter uma sanção positiva para a performance de ressignificação do termo – objeto de valor fundamental para a credibilidade do movimento e de suas demandas. A proposta deste trabalho era verificar como se deu a desconstrução da relação entre roupa e violência sexual pelas manifestantes e que tipo de efeitos de sentido foram convocados para a ressignificação do termo. Diferente de outras opressões ou injustiças, a da violência contra mulher inscreve‐se no corpo. Daí, também, a importância de trazer no corpo as marcas desta ressignificação. Não havia um dress code para o protesto. Cada manifestante enunciou individualmente seu corpo “vadia‐ santa”. No conjunto, tais enunciados são bastante harmoniosos e reiteram os simulacros de mulheres sexualizadas que formam o imaginário de nossa cultura, especialmente a ocidental. A lógica da articulação que objetiva a ressignificação poderia ser resumida assim: "não concordamos que classifiquem as mulheres entre ‘vadias e ‘santas’. Por isso, vamos confundir vocês: nós, mulheres ‘santas’, vamos nos vestir de mulheres ‘vadias’. Desta forma, vocês não saberão quem podem ou não ofender ou agredir.” No entanto, a efetividade desta lógica só funciona se o destinatário puder perceber, entre as figuras de vestuário que identificam a mulher “vadia”, algumas peças que dão pistas de existir, ali, uma mulher “santa”. Isto foi operado a partir da mistura de acessórios não‐sexies às peças sexualizadas. Na articulação entre ser e parecer, as manifestantes colocam‐se como não‐vadias e não‐santas, relação de contradição sobredeterminada como falsidade. Com isso, negam‐se as duas asserções que se opõem na axiologia de classificação da mulher e nega‐se, principalmente, a própria prática de classificar. No entanto, a reiteração das escolhas dos elementos disponíveis no paradigma vestimentar mostra uma partilha de códigos que servem para classificar as mulheres e são por elas articulados na construção do seu parecer,
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1052
dependendo do objeto de valor das narrativas expressas em seus corpos. Ao mesmo tempo em que se “luta” contra o estereótipo, ele é convocado e reiterado. Quando uma mulher articula estes códigos a partir de um não‐querer não‐parecer vadia – ou seja: não se importar em parecer vadia –, ela rompe um contrato e assume o risco de sofrer sanções negativas por sua performance. Colocado desta forma, este sancionador parece ser atorializado por algum tipo de vilão, talvez pelo simulacro do homem violento com as mulheres. Na verdade, assumimos este papel toda vez que classificamos uma mulher a partir de uma axiologia baseada no exercício da sexualidade. E isto acontece com muita frequência e nos mais (aparentemente) inocentes textos e práticas do nosso cotidiano. Ressignificar o termo “vadia” não consiste em “modificar” seus sentidos, mas em recusar a operação de certas axiologias no juízo de valor que se faz dos indivíduos. Neste ponto, o discurso da moda tem um poder e uma responsabilidade bastante representativos.
Referências Baggio, A. T., 2014. Mulheres de saia na publicidade: regimes de interação e de sentido na construção e valoração de papéis sociais femininos. Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Available at [Accessed 13 March 2016]. Bard, C., 2010. Ce que soulève la jupe. Paris: Autrement. Brandão, L., 2011. Ensaio sobre a cópia na era da hiper‐reprodutibilidade técnica. In: C. Mesquita and R. Preciosa eds. 2011. Moda em ziguezague: interfaces e expansões. São Paulo: Estação das Letras e Cores. pp.195‐212. Crane, D., 2006. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. 2nd ed. São Paulo: Editora Senac. El País Brasil, 2015. Editorial: Primavera feminista no Brasil. El País Brasil, [online] 12 November. Available at: [Accessed 22 December 2015]. Ferreira, G. de S., 2013. Feminismo e redes sociais na Marcha das Vadias no Brasil. Revista Ártemis, 15(1), jan‐jul, pp.33‐43, [online] Available at: [Accessed 30 November 2015]. Gatti, J., 2011. Prefácio. In: F. M. Penteado et al., ed. 2011. Masculinidades: teoria, crítica e artes. São Paulo: Estação das Letras e Cores. pp.9‐23. Habchi, S., 2010. Le 25 novembre, toutes en jupe!. Ni putes ni soumises, [online] 9 October. Available at: [Accessed 22 December 2015]. Landowski, E., 2001. O olhar comprometido. Revista Galáxia, 2, pp.19‐56, [online] Available at: [Accessed 22 December 2015]. Lima, A. C., 2011. Carta Manifesto da Marcha das Vadias de Brasília – Por que marchamos?. Marcha das vadias curitiba Group [Facebook]. 19 June. Available at: [Accessed 22 December 2015]. Nunes, M., 2011. Resposta a quem acha que a Marcha das Vadias devia ter outro nome. Marcha das vadias curitiba Group [Facebook]. 5 July. Available at: [Accessed 22 December 2015]. Oliveira, A. C. de, 2008. Nas interações corpo e moda, os discursos da aparência. Caderno de Discussão do Centro de Pesquisas Sociossemióticas [CD‐ROM], 1(14), November. São Paulo: Edições CPS.
CIMODE 2016 - 3º Congresso Internacional de Moda e Design | ISBN 978-972-8692-93-3
1053