VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS ANOS SETENTA

July 22, 2017 | Autor: Rosane Kaminski | Categoria: IMAGEM, Artes Graficas, Contestation
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PATRÍCIA HOMMERDING PEDROZO,EDSON JORGE PEDRO LUIZ DAFERLIN SILVEIRA FILHO E CAMILA MARSZALECK

VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS ANOS SETENTA

ROSANE KAMINSKI

Professora - Desenho Industrial - Centro Universitário Positivo / UNICENP Professora - Faculdade de Artes do Paraná / FAP [email protected]

da Vinci , Curitiba, v. 1 , n. 1, p. 43-60, 2004

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RESUMO No contexto brasileiro da década de 1970, com as medidas econômicas e políticas tomadas pelo governo militar, ocorreu uma reorganização e um fortalecimento da indústria cultural nacional, gerando novas possibilidades profissionais neste setor. Desta forma, diversos artistas que criavam imagens para reprodução em série encontraram meios técnicos e econômicos cada vez mais favoráveis à ampliação de suas atividades, participando ativamente do progresso técnico-econômico nacional e da expansão dos mercados de bens simbólicos e materiais. Entretanto, tais profissionais encontraram também limites à sua atuação, especialmente a censura política imposta aos meios de comunicação de massa pelo governo militar e a ideologia do consumo, com a qual nem sempre concordavam. O presente estudo questiona se seria possível detectar nas próprias imagens impressas durante aquele período contraditório alguns vestígios do dilaceramento experimentado pelos artistas gráficos que atuaram simultaneamente nos espaços ofertados pela crescente indústria cultural nacional e em outros espaços de produção de bens simbólicos de teor marginal e/ou contestatório. Para tal exercício, foram selecionados para análise alguns cartuns publicados em revistas curitibanas dos anos setenta, buscando neles elementos que possam ser considerados contestatórios em relação à conjuntura histórica na qual os seus autores estavam inseridos quando da produção destas imagens. Palavras-chave: imagem gráfica; cartum; contestação; regime militar.

ABSTRACT In the seventies, the brazilian cultural industry is reorganized and strengthened because some economical and politics devices of military government. That section favors the opening of new professional possibilities for the graphic artists. Like this, the artists participate actively of the national technician-economical progress and of the symbolic and material goods market’s expansion. However, the graphic artists found two limits to your performance. First, the political censorship imposed by the military government to mass media; and, second, the consumption ideology. We know that, on that moment, the graphic artists lived a contradictory professional condition, because they acted simultaneously in the spaces of national cultural industry and in the marginal spaces of cultural production. Presenting a selection of images which were vehicled in periodicals, from Curitiba, of the seventies, this article proposes to notice in the graphic images some visual vestiges of that contradictory condition, with prominence to the critical elements. Key works: graphic image; cartoon; graphic art; military government.

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VESTÍGIOS DE CONTESTAÇÃO EM IMAGENS GRÁFICAS DOS ANOS SETENTA ROSANE KAMINSKI Desde que os meios técnicos de reprodução em série vieram se sofisticando – sobretudo no século XX –, os espaços profissionais reservados aos produtores de imagens foram progressivamente se expandindo. Novas profissões, como a do publicitário e a do designer gráfico, surgiram para atender às crescentes necessidades comunicacionais implicadas na expansão do sistema capitalista. No contexto brasileiro da década de 1970, com as medidas econômicas e políticas tomadas pelo governo militar, ocorre uma reorganização e um fortalecimento da indústria cultural nacional, sendo que novas possibilidades profissionais passaram a existir neste setor. Desta forma, a atividade de produzir imagens encontrou meios técnicos e econômicos cada vez mais favoráveis à sua ampliação, participando ativamente do progresso técnico-econômico nacional e da expansão dos mercados de bens simbólicos e materiais. Entretanto, tal atividade encontrou também limites à sua atuação, especialmente a censura política imposta aos meios de comunicação de massa pelo governo militar e a ideologia do consumo. Os profissionais recrutados a trabalhar nos novos espaços da indústria cultural, entretanto, nem sempre concordavam com as imposições do governo que fomentava a indústria gráfica e publicitária, nem com a expansão desenfreada da ideologia do consumo, vivendo uma situação de dilaceramento: por um lado, cresciam os meios técnicos ao seu alcance, por outro lado, estreitavam-se as possibilidades de expressão da opinião publica. A questão que moveu o presente estudo formulou-se em torno da curiosidade em saber se seria possível perceber nas próprias imagens impressas durante aquele período contraditório algumas características que permitem visualizar vestígios deste dilaceramento. Vários dos profissionais que atuavam dentro dos espaços oferecidos pela indústria cultural obtiveram sucesso simultâneo dentro destes meios tutelados pelo governo militar e dentro de outros espaços de produção de bens simbólicos de teor marginal e/ou contestatório, como por exemplo as produções do tipo underground e os veículos de difusão da charge política1 . O objetivo deste texto é observar até que ponto existem vestígios desta postura contestatória nas próprias imagens gráficas que foram veiculadas em meios de circulação impressos naquele momento histórico. Mais especificamente, em algumas imagens gráficas selecionadas de revistas curitibanas. Os autores das imagens selecionadas (Solda, Miran, Rettamozo e Padrella) apresentam uma trajetória profissional marcada por uma espécie de hibridismo, atuando entre a publicidade, a direção de arte, as artes plásticas e a ilustração, como veremos a seguir. Naqueles primeiros anos da década de 1970, por detrás da cortina estampada do milagre econômico e das promessas de vantagens que esta trazia, existia o autoritarismo violento do governo militar: sua face sombria, raramente comentada pelos meios de comunicação Segundo Fonseca, a charge é um tipo de cartum, no qual se satiriza um acontecimento, uma idéia, ou mesmo uma pessoa. Geralmente possui caráter político. FONSECA, Joaquim. Caricatura: imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999, p.26.

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vigiados pela censura. Em 1974, no mesmo ano em que iniciava o período de distensão – para o qual o recém-assumido presidente Ernesto Geisel propunha uma “abertura lenta, gradual e segura” à linha-dura que vinha caracterizando o governo dos últimos cinco anos2 – na cidade paulista de Piracicaba, ocorreria o Primeiro Salão de Humor em nível nacional, do qual participariam alguns artistas gráficos paranaenses – entre os quais Solda – , ao lado de nomes conhecidos nacionalmente, como Ziraldo, Henfil, Millôr Fernandes, Jaguar e outros. Um grupo de jornalistas daquela cidade havia resolvido criar o evento, acreditando no cartum como veículo poderoso de comunicação, tanto por suas características gráficas como pela sua carga sócio-política3. A charge política, que desde o tempo do Império se difundia principalmente através da imprensa nanica4 , ganhava agora corpo institucional. No Salão de Humor, a linguagem do desenho assumia função de ferramenta de contestação contra a violência política e as injustiças sociais. Além disso, esta mostra era também importante para divulgar os trabalhos dos cartunistas, que não tinham muitas chances na grande imprenFigura 1. “Salão de Humor”. Curitiba Informações, ago/1972, capa. sa devido aos cuidados que os donos destes órgãos tomavam em relação à censura, conforme depoimento, na época, do cartunista e publicitário paranaense Luís Antônio Solda, participante assíduo dos Salões de Piracicaba, e premiado em várias edições do evento5 . Solda, inclusive, já havia participado do Salão de Humor do Teatro Paiol, realizado em Curitiba dois anos antes da primeira edição do Salão em Piracicaba, mas que não teve continuidade6 . O evento havia sido inclusive motivo de capa da revista Curitiba Informações, em 1972, capa esta contendo um cartum de Solda (Figura 1). O humor lúgubre da cena – construído sobre a idéia de que o pedinte cego não percebe o perigo da bomba próxima a ele – pode ser associado à situação mais ampla dos brasileiros que preferiam aceitar a imagem de paternalismo atribuída ao governo da época pelos meios de comunicação oficiais, do que perceber o “perigo”, vivenciado tanto por aqueles que ameaçassem contradizer a ordem do sistema mantido pelos governantes, quanto FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2001, p.489. Segundo Diniz: “o período do ‘milagre econômico’ caracterizou-se por acentuado grau de repressão e intolerância políticas. A censura, a falta de liberdade, a coerção sobre as organizações sindicais e políticas alcançariam seus mais altos níveis. Mas a pujança econômica mascarava os rigores do autoritarismo. Os indícios do êxito da fórmula ordem-crescimento pareciam suficientemente fortes para afastar resistências e isolar os núcleos de descontentamento”. DINIZ, Eli. Empresariado, regime autoritário e modernização capitalista: 1964-85. In: D’ARAÚJO, Maria Celina e SOARES, Gláucio (orgs). 21 anos de regime militar: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro: FGV, 1994, p.206. 3 Sobre o Salão de Piracicaba, ver: HUMOR BRASILEIRO. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23.08.1976; Diário do Paraná, Curitiba, 25.08.1976; Jornal do Salão de Humor de Piracicaba, 1979; RETTAMOZO, Luiz Carlos. Pira, pira, Piracicaba. Correio de Notícias, 23.08.1979. Ver também: RIANI, Camilo. Linguagem & cartum... tá rindo do quê? Um mergulho nos salões de humor de Piracicaba. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2002; e FONSECA, Joaquim. Caricatura: a linguagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999, p.280. 4 As manifestações impressas consideradas como pertencentes à imprensa nanica não existiram apenas durante a ditadura militar pósgolpe de 1964. Segundo Caparelli, a imprensa nanica ou alternativa (como este autor prefere) é um fenômeno histórico que “vive ou sobrevive nos regimes fechados em que o poder estabelece um controle cerrado do sistema de comunicação. Quando se fala em controle da mensagem, entende-se também ação de monopólios da indústria cultural”. Esta categoria “funciona como um fogofátuo a iluminar zonas obscuras do autoritarismo”. Caparelli aponta o jornal gaúcho A Manhã, de 1926, como um dos mais antigos periódicos brasileiros desta categoria. CAPARELLI, Sérgio. Imprensa alternativa. In: Comunicação de massa sem massa. São Paulo: Cortez, 1980, p.41-53. 5 SOLDA. Diário do Paraná. Curitiba: 25.08.1976. Luis Antonio Solda foi premiado nos Salões de Piracicaba em 1975, 1976 e 1977. Informações contidas na pasta do artista, no acervo do Museu de Arte Contemporânea de Curitiba – MAC. 6 IMAGUIRE JÚNIOR, Key. Cronologia preliminar da arte gráfica no Paraná. Nicolau, ano I, nº8. Curitiba, fev/1988, p.22-23. 2

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pelos que preferiam manter os olhos fechados à política excludente e impiedosa do regime em vigor. O pedinte cego pode ser interpretado como representativo de uma parcela da população que “prefere não ver, para não se incomodar”. Nos Salões de Humor de Piracicaba, Solda participou com personagens caricatos que remetem através da sátira às circunstâncias de dilaceramento, como é o caso do carrasco (Figura 2), sugerindo a situação dos que assumem um papel dentro das engrenagens de um sistema do qual dependem mas com o qual nem sempre concordam ou nem sequer compreendem. A imagem estereotipada de um carrasco que esconde o rosto atrás de um capuz pode ter se originado do imaginário medieval, ou das situações de inquisição, em que determinados agentes sociais eram autorizados a exercer atos violentos (torturas e execuções) como forma de castigo aos que se opunham às leis e dogmas em vigor. Nos carrascos dos cartuns de Solda criados durante os anos setenta, esta associação cria, ao mesmo tempo, um afastamento histórico (são personagens de um passado brutal) e uma aproxima-ção com as violências adotadas e consentidas pelas autoridades durante o regime militar, no interior do qual existiam até mesmo órgãos especificamente Figura 2 “Carrascos”. Kamikaze do espanto. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2001. criados para manter a ordem, como os DOI-CODI7 . O caso de Solda pode ser citado como exemplo do trânsito ambíguo que caracterizou a atuação de diversos profissionais que, naquele contexto contraditório trabalhavam nos espaços sustentados pela lógica mercantil da indústria cultural e, ao mesmo tempo, nos espaços reservados à contestação através da arte do desenho de humor. Atuava como ilustrador no meio publicitário curitibano dos anos setenta, na mesma época em que publicava tais imagens com humor social e político em periódicos de caráter mais irreverente. Aliás, o uso do cartum nestes dois âmbitos – o da publicidade e o da expressão de opiniões políticas – não é novidade histórica, nem mesmo em Curitiba. De acordo com Key Imaguire, o primeiro cartum publicado em Curitiba compunha um anúncio de jornal, ainda em 1886. As charges políticas mais antigas do Paraná, por sua vez, são as do primeiro período chargista de Paranaguá, nos idos de 18698 . No Brasil dos militares funcionaram 224 locais de tortura. Especialmente após o AI-5, a fase de interrogatório equivalia muitas vezes a um seqüestro. ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares; e WEISS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (org). História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.390. Sobre os DOI-CODI, explica Fausto: “Até 1969, o Centro de Informações da Marinha (Cenimar) foi o órgão mais em evidência como responsável pela utilização da tortura. a partir daquele ano, surgiu em São Paulo a Operação Bandeirantes (Oban), vinculada ao II Exército, cujo raio de ação se concentrou no eixo São Paulo-Rio. A OBAN deu lugar aos DOI-CODI, siglas do Destacamento de Operações e Informações e do Centro de Operações de Defesa Interna. Os DOI-CODI se estenderam a vários Estados e foram os principais centros de tortura do regime militar”. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2001, p.481. 8 Em Curitiba, “a primeira ocorrência nas imediações do cartum [...] é um anúncio, com letras art decó, no jornal 19 de Dezembro, que no ano de 1886 se faz de um espetáculo do mágico Moya. Dois anos depois, já temos uma publicação de bom padrão gráfico, a Galeria Illustrada, onde na seção ‘Gaveta do Diabo’ Narciso Figueras publica histórias em quadrinhos de página inteira”. IMAGUIRE JÚNIOR, Key.Op.cit. p.22-23. Em Paranaguá, o único número da publicação O Barbeiro marcaria a primeira fase chargista, em 1869. A charge política em Curitiba teria um dos seus pontos altos com as revistas satíricas Olho da Rua e A Carga, impressas nesta cidade nos primeiros anos do século XX graças à sua “adiantada estrutura técnico-industrial” na área gráfica, segundo: CARNEIRO, Newton. As artes gráficas em Curitiba.Curitiba: Edições Paiol, 1975, p.24. Deste autor, ver também: O Paraná e a caricatura. Coleção memória cultural do Paraná, vol.1. Curitiba: MAC, 1975. 7

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Nem sempre o cartum possui a força de crítica social atribuída à charge. Os desenhos de humor podem apresentar temas banais, divertindo o observador pelo simples fato de materializar metáforas verbais, ou de criar aberrações através de combinações visuais esdrúxulas, só possíveis num mundo de fantasias. Joaquim Fonseca diz que a atividade caricatural está ligada aos processos e técnicas que permitem a reprodução em série, sendo sua história imbricada ao desenvolvimento da própria arte da impressão. Desde as técnicas de gravura artesanal, até os meios de comunicação mais característicos de nossos dias, o humor tem sido um dos temas de maior atração, fascínio e popularidade. E “a propaganda utiliza a linguagem do humor como uma de suas fórmulas mais efetivas de motivação e persuasão”9. Por outro lado, muitas vezes o meio de expressão é humorístico, mas o tema não é. Nos anos densos do regime militar, o cartunista se servia do riso para “mostrar uma situação que é muito séria”, conforme opinava Solda. Quem não entendesse, poderia pensar que se tratavam apenas de simples piadas. A escolha deste meio de expressão, contudo, independente das variações temáticas eleitas por um mesmo artista, pode também ser indicativa de certas inquietações do contexto que acabam por transparecer em seus trabalhos. A posição imprecisa de muitos profissionais do desenho no contexto dos anos setenta, de estar inserido mas não estar completamente ajustado ao modelo político-econômico, é observável também em outros profissionais bastante evidentes na cultura publicitária dos anos setenta, e que igualmente deixaram marcas de uma “marginalidade aceitável” nas suas produções gráficas do tipo cartum, algumas delas publicitárias, outras mais underground. De acordo com Canclini, as caricaturas, por si só, já seriam um gênero cultural híbrido, uma vez que trazem algumas características do artesanal (como o desenho à mão) e do marginal para dentro da produção industrial e da circulação em massa 10. Seus produtores, então, certamente possuem também algo deste hibridismo, desta capacidade de atuar dentro do grande circuito massivo, mas de não se permitir abandonar os espaços paralelos, ribeirinhos, semi-ocultos, fervilhantes, da cultura urbana. Além do caso de Solda, outro publicitário e artista gráfico curitibano extremamente conceituado em âmbito nacional e que também publicava trabalhos em órgãos de comunicação de teor mais marginal durante os anos setenta, é Miran11. Oswaldo Miranda trabalhou como ilustrador em agências publicitárias e também como diretor de arte, sendo responsável por alguns dos anúncios mais destacados no contexto curitibano (foi responsável pela criação de imagens e cartazes utilizados em campanhas institucionais, como por exemplo a da Souza Cruz, realizada pela Associados Propaganda em 1973. Em 1975, é citado na Gazeta do Povo como publicitário, e “considerado um dos melhores layout-men do Paraná”), mas os cartuns que produziu para O Espalhafato, por exemplo, mostram uma outra face do mesmo profissional. O Espalhafato era uma espécie de suplemento da Revista Panorama, que apareceu em apenas duas edições: dezembro de 1974 e janeiro de 1975, justamente no períoFONSECA, Joaquim.Op.cit., p.23 e 34. CANCLINI, Néstor-Garcia. Culturas híbridas, poderes oblíquos. In: Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 2000, p.336. 11 Miran publicou cartuns em O Pasquim, Ovelha Negra, Folhetim, Raposa, entre outros periódicos. FONSECA, Joaquim. Op.cit., p.265. 9

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do em que o seu editor - o artista e publicitário Luiz Carlos Rettamozo12 - era Supervisor de Arte da revista em que este suplemento foi inserido. O Espalhafato era apresentado por Rettamozo como “uma edição dedicada aos cartuns, grafites, papéis riscados, bilhetes em garrafa, panfletos andergraunde, rabiscos nas paredes, vontades, notas de armazém com recados de amor, pele de cego, chuva, ao cheiro mais forte deste país e do mundo. Só para se ter o gosto de uma comunicação maior”13. Era a “cultura marginal” conquistando um espaço significativo no sistema de produções culturais da cidade, já que a revista Panorama, onde foi veiculado, já possuía uma tradição de mais de vinte anos na cidade14. O Espalhafato, apesar de circular como encarte de uma revista comercial, não parecia estar voltado à comunicação massiva e sua lógica mercantil, mas se referia a um universo marginal e fervilhante da comunicação urbana, cuja existência era geralmente omitida das comunicações e instituições oficiais. Provavelmente devido à posição de seu editor dentro da estrutura hierárquica do próprio campo publicitário que vinha se formando na cidade por aquele tempo, bem como de grande parte dos seus colaboradores (Miran, Solda, Leminski, Gorda, Rogério dias, Padrella, eram agentes envolvidos e de certa maneira timbrados na esfera cultural curitibana15), esta publicação marginal encontrou um espaço temporário dentro de um órgão de comunicação já consagrado entre a elite curitibana. A página inicial do O Espalhafato possui um aspecto artesanal, com textos escritos à mão, ilustrações a traço, e uma diagramação que o assemelha à tradição dos pasquins (pelo aspecto do cabeçalho, das letras, da manchete). Mesclando o literário, o político, o escandaloso, a descompostura, a linha dos pasquins na imprensa brasileira fala a linguagem do dia, se faz assunto, liga-se no que é “novo” ao mesmo tempo em que carrega o gosto do popular. É o descontraído que se impõe, segundo Ricardo Ramos, principalmente como linguagem, com os imprevistos de sintaxe e com o alargamento do círculo de um vocabulário mais informal16 . Na Curitiba dos anos setenta, O Espalhafato aparece como uma das publicações mais ousadas, tanto no aspecto quanto nos conteúdos veiculados, entretanto, teve vida curta. Na Panorama, saiu em apenas duas edições. O cartum que aparece estampado no seu segundo número (“Espalhafato” – Figura 3) é de Miran. Composto por linhas finas e suavemente angulosas, pode ser pensado como sendo um barbante fino tricotado de maneira RETTAMOZO, Luiz Carlos: Pintor, desenhista, gravador, cineasta, publicitário e diretor de arte. Nascido no Rio Grande do Sul, por volta de 1970, tendo em torno de vinte anos de idade, chega a Curitiba para conquistar um lugar de destaque nas artes plásticas, na arte underground e no circuito publicitário da capital paranaense. ARAÚJO, Adalice. A arte-jogo de Rettamozo. Gazeta do Povo. Curitiba, 24.5.92. 13 Texto presente na primeira página de O ESPALHAFATO nº2. Suplemento da revista Panorama, jan/1975. 14 Esta revista circulava no Paraná desde junho de 1951, com tiragem inicial de 1.000 exemplares. Foi fundada em Londrina, pelo professor Adolfo Soethe. Em 1954, a revista foi adquirida pela Impressora Paranaense e passou a ser editada em Curitiba, crescendo vertiginosamente, e entrando na fase de circulação nacional. Ver: Direta Pesquisa: a propaganda no Paraná. Curitiba: Digital, ago/1974. 15 Miran conquistou mais de oitenta prêmios internacionais em ilustração e arte editorial. No Brasil, foram mais de trezentos prêmios. Solda conquistou diversas premiações no Salão de Humor de Piracicaba, e participou também de outros eventos artísticos. Em 1972, Solda e Rettamozo trabalharam junto com Leminski na LEMA Publicidade. Rettamozo, além das premiações com peças e cartazes publicitários (por exemplo, na Campanha da Fraternidade da CNBB Vamos Repartir o Pão, em 1974), foi premiado nos Salões Paranaenses de artes plásticas em 1975, 76 e 78, e participou da XIV Bienal Internacional de São Paulo, em 1977. Gorda (Nélida Kurtz), Padrella, e Rogério Dias também participaram de Salões Paranaenses, cada um com ao menos uma premiação. Informações retiradas dos arquivos de pesquisa do MAC e do livro: JUSTINO, Maria José. 50 anos do Salão Paranaense de Belas Artes. Curitiba: FUNPAR, 1995. 16 RAMOS, Ricardo. Do reclame à comunicação. In: Anuário Brasileiro de Propaganda. São Paulo, 1970-71, p.14. Ramos considera que a história dos pasquins brasileiros começou com A Aurora Fluminenese, de 1827, o Farol Paulistano, de 1828 e a Abelha Pernambucana, de 1829. “Jornais de briga, como os nomes indicam”. 12

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irregular pela própria velhinha ali representada, tamanha é a harmonia entre forma e conteúdo. A alternância entre regiões vazadas (onde as hachuras parecem costuras) e regiões mais densas, preenchidas de negro, faz com que a quantidade de linhas não resulte cansativa ao olhar. A insistência no uso dos ângulos, por sua vez, insinua algo de descompostura, de indisciplina, e o conjunto todo desperta uma sensação de “quebradiço”. Ao mesmo tempo em que os significantes plásticos estão assim resolvidos, a situação sugerida pelo gato que substitui um dos pés da cadeira deixa explícita toda a sua vicissitude, toda a fragilidade do equilíbrio existente no contexto, pois a estabilidade do ser humano depende, na ilustração, da boa vontade de um animal irracional e indisciplinado. E a velha não parece nem um pouco preocupada com isso, talvez por manter uma “cumplicidade” com o animal. Tanto o gato quanto a velha parecem se “esfarelar” nos múltiplos pontos que deixam seus contornos indecisos, o que também dá a aparência de instabilidade à cena (como também, por este tempo, vinha à tona a instabilidade do modelo econômico defendido pelo governo militar). O tom de intimidade da cena parece convidar o leitor a “bater um lero”, jogar conversa fora na companhia da velha pífia e marota. Afina com a pretensão contida no título do periódico, o “espalhar fatos”, quem sabe até os proibidos oficialmente – pois apesar da proposição de abertura do governo Geisel, a censura à imprensa permaneceria firme ainda até o final da década17. A frase contida logo abaixo do tíFigura 3 “Espalhafato”. O Espalhafato nº2. suplemento da revista Panorama, jan/1975. tulo da publicação: só não se revoltou contra o regime porque precisava emagrecer; metaforicamente apresenta o teor de contestação pretendido. Outro cartum produzido por Miram para O Espalhafato é o da imagem “ratos” (Figura 4). O personagem ali presente está vestido como alguém instituído de poder, e senta-se numa cadeira que lembra um trono. Suas botas e os detalhes na manga do casaco dão-lhe um ar militar. Este sujeito, porém, parece não ter compostura, e tem como companheiros um Ver: MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira: 1968-1978. São Paulo: Global, 1980.

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bando de ratos “escrotos” e uma caneca de algo que parece cerveja. Os grafismos obtidos através da concentração de pontos irregulares (como aqueles que faziam a velha e o gato parecerem se esfarelar) são abundantes nos ratos e em algumas outras regiões da ilustração, como fossem sujeira, germes, podridões que se alastram. A expressão fisionômica dos ratos é carregada de malícia sem escrúpulos (características de humanidade vil representadas nos animais18), e sua presença insistente na cena, suas poses, revelam que estes bichos do lixo e dos esgotos sentem-se à vontade na companhia do personagem humano, e que estão à espreita para tirar vantagem de 4. Figura “ratos”. Miran. Cartum de O Espalhafato nº1, dez/1974. tudo o que puderem, pois não são nada confiáveis. Pode-se resumir a sensação produzida pela cena em duas palavras quase gêmeas na grafia: poder, podre. A presença de tais imagens num encarte de uma revista do porte da Panorama é indicativa da ambigüidade tanto dos espaços dos veículos comunicacionais, quanto dos agentes que são responsáveis pelas imagens e pela publicidade ali presentes. Participar do progresso e estimular o funcionamento do sistema de necessidades móveis da sociedade de consumo, não significa estar cooptado por esta visão, sendo possível, isto sim, atuar simultaneamente em direções diversas. Os produtores de imagens, devido aos efeitos de persuasão e/ou de repugnância que estes signos exercem sobre o temperamento humano, estão munidos de “armas” capazes de favorecer ou combater determinadas visões de mundo, e os usos que fazem deste seu arsenal estão imbricados na trama extremamente movediça de poderes, hierarquias, oportunidades, que caracteriza, em âmbito mais imediato, o campo onde os desenhistas atuam profissionalmente, mas ao mesmo tempo, em âmbito mais amplo, as relações de poder entre os diversos campos sociais19 . Aos criadores de imagens existia a possibilidade de, algumas vezes através do cartum, mostrar certas visões dos fatos que invertiam as Um dos artifícios mais comuns do cartunista é a recorrência aos animais, desde a época de Esopo e de La Fontaine. “Para o cartunista, esses significados entendidos universalmente se fundem facilmente com outra esfera do saber convencional sobre os animais, as feras heráldicas derivadas dos brasões de armas e dos emblemas nacionais”. Há uma combinação de metáfora e convenção. GOMBRICH, Ernst H. O arsenal do cartunista. In: Meditações sobre um cavalinho de pau. São Paulo: Edusp, 1999, p.136. 19 Os campos, no sentido bourdieusiano, engendram internamente seus significados e hierarquias, suas regras de consagração e exclusão, conforme suas instituições, produções, e comportamentos dos agentes, os quais possuem relativa liberdade de expressão. Estes espaços funcionam como campos de força, onde ocorrem relações e intercâmbios constantes, de desigualdades (há dominantes e dominados), com esforços para transformar ou conservar sua estrutura. Os campos relacionam-se entre si e também com as instâncias econômica e política em diversos graus, conforme o contexto histórico. Cada campo constitui, assim, um microcosmo que tem leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre por parte dos outros microcosmosVer, por exemplo, os seguintes textos: BOURDIEU, Pierre. A estrutura invisível e seus efeitos. In: Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.55-97; Algumas propriedades do campo jornalístico. Idem, ibidem, p.104-117; O mercado de bens simbólicos. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999, p.99-178; Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. Idem, ibidem, p.183-202; Algumas propriedades dos campos. In: Questões de sociologia. Marco Zero, 1983; O campo intelectual: um mundo à parte. In: Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. 18

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perspectivas oficiais. Como disse Canclini, “o humorista é o profissional da ressemantização”, é um especialista em “deslizamentos de sentidos”20, porque constrói seu humor sobre deslocamentos, o que lhe dá condições de alterar ou ampliar significados aparentemente estabelecidos. Alguns personagens criados por estes artistas, pela sua repetição nas publicações locais, conseguem fixar-se no imaginário dos leitores como se possuíssem personalidade, rotina cotidiana, angústias comuns. É o caso do “Bocamaldita” (Figura 5), sujeito criado por Rettamozo, que faz referências simultâneas à vida doméstica do homem curitibano (Boca Maldita é o apelido de um dos pontos mais conhecidos do centro da cidade), e aos problemas enfrentados pelos brasileiros em geral. O texto que acompanha a imagem indica o grau de importância que os personagens (representativos das camadas médias curitibana e brasileira) conferem à programação televisiva quando, num contexto de crise econômica Figura 5 “Bocamaldita”. Rettamozo. Fique doente, não ficção. Edições Diário do Paraná onde se tomam medidas preventivas e paliativas (racionamentos), a abundância das telenovelas é “colocada em risco”, e isso preocupa o casal Bocamaldita. A boca e os ouvidos sempre tapados por rolhas, mostram o personagem fechado à comunicação e à interação pública. Ele tem afinidade com um outro sujeito, criado por Solda, visível na imagem “Bocafechada” (Figura 6). Sua boca é uma fechadura, os ouvidos e a cabeça estão prensados, os olhos sem vivacidade: seus sentidos estão todos embotados, congestionados. Também pertence ao suplemento O Espalhafato nº1 o cartum “Padrella” (Figura 7), criado por Nelson Padrella21. Nesta figura, observa-se a imagem caricata de dois personagens enquadraFigura 6 “Bocafechada”. Solda. O Espalhafato nº2, jan/1975. dos em primeiro plano, que parecem pouco cooptados pela racionalidade capitalista (como dá a entender sua postura e displicência com a apresentação pessoal). Homens de meia idade, sem camisa, gordos, sem uma aparência muito higiênica, os pêlos desgrenhados do corpo à mostra, CANCLINI, Néstor-Garcia. Culturas híbridas, poderes oblíquos. Op.cit., p.345. Nascido no Rio de Janeiro, Nelson Padrella é auto-didata, bastante presente no cenário artístico paranaense dos anos setenta, atuava simultaneamente como jornalista, artista plástico e artista gráfico, além de escrever contos e roteiros de filmes. Em 1974, representou o Paraná na Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, e em 1977 foi premiado no Salão Paranaense em Curitiba. (Informações na Pasta do Artista, arquivo do Museu de Arte Contemporânea, Curitiba).

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sugerindo que sejam pessoas comuns, do povo. A tatuagem no braço de um deles faz pensar que seja um marinheiro. Estão com ares preocupados, questionando a falta de liberdade. Padrella não faz uso de palavras diretas, mas de insinuações, através dos signos visuais e verbais que sugerem as constatações acima. O abrir as asas sobre nós, entendido num contexto amplo da memória de brasilidade, é referência direta à busca da liberdade, compondo inclusive a letra do Hino da República Brasileira22. Um ano depois da publicação deste cartum de Padrella, o jornal alternativo Ex-16 exporia em sua primeira página este mesmo brado pela liberdade (Figura 8), quando da morte do jornalista Vladimir Herzog que trabalhava para a TV Cultura de São Paulo: apresentando-se para depor num sábado, em 25 de outubro de 1975, Herzog fora torturado e morto no DOI-CODI daquela cidade. A morte deste jornalista desempenhou um papel importante nos rumos da vida política brasileira. Uma semana depois do acontecido, a realização de um ato ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, viria a ser o primeiro ato público de Figura 7 “Padrella”. Nelson Padrella. Desenho de humor. O Espalhafato nº1, protesto desde a instituição do AI-5, em dezem- dez/1974. bro de 1968. No cartum de Padrella, artista contestador e crítico ao sistema, o traço duro e a quase ausência de hachuras e gradações tonais (apenas uma tênue gradação é sugerida pelo contraste entre traços grossos e finos) fornecem à imagem um aspecto áspero, pouco delicado. As estilizações grosseiras das bocas, narizes, orelhas, a omissão dos pescoços, produzem personagens grotescos, nada sedutores. Não há idealização, há escrachamento. A deformação é utilizada para melhor fustigar, para expor publicamente o vulgar, o mundano, geralmente deixado de lado pela publicidade oficial. Ainda que diferente da crítica explícita expressa na charge política e nas imagens gráficas publicadas em periódicos alternativos, como o Espalhafato, aquela possibilidade, típica do cartum, de mostrar outros significados às práticas corriqueiras, de inverter as perspectivas oficialmente “verdadeiras”, é visível também em alguns cartuns cria- Figura 8 “Ex-16”. 16/11/1975 dos para anúncios. Como na peça criada por Rettamozo para a Editora Digital (Figura 9), ainda que o teor subversivo esteja apenas subentendido e não perverta o objetivo central da peça, que é a publicidade da empresa23. O desenho posicionado ao centro da página mostra um personagem num suposto ambiente de trabalho, insinuado através dos O Hino da República, composto por Leopoldo Miguez, tem como estrofe os versos de Medeiros e Albuquerque: Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós! Das lutas na tempestade, dá que ouçamos tua voz. 23 Este anúncio está assinado pela agência Lema Publicidade, onde Rettamozo trabalho de 1972 a 1974. Um comentário sobre esta imagem já foi publicado pela autora em: KAMINSKI, Rosane. Entre o salão, a indústria cultural e uma estética underground. Anais do II Fórum de Pesquisa Científica em Arte. Curitiba: ArtEMBAP, 2004. 22

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signos que compõe a imagem – a mesa, a caneta tinteiro, a atividade de escrever. Sua cabeça, porém, aparece deslocada da posição habitual que se espera de um trabalhador: ao invés de estar com a atenção concentrada na atividade que ele desenvolve automaticamente, volta-se a um periódico que está situado abaixo da mesa. Tal periódico trata-se do house-organ de uma empresa imaginária que representa, por extensão, qualquer uma. Este impresso teria supostamente sido produzido pela Editora Digital. Entretanto, além do caráter informativo e publicitário deste anúncio, pode-se vislumbrar no cartum de Rettamozo uma crítica do artista ao sistema sócio-econômico em que ele mesmo estava inserido. As características expressivas que distinguem os cartuns de Rettamozo podem ser observadas tanto no conjunto do hachurado composto de múltiplas pequenas linhas quanto nas deformações propositais das figuras (ver também o cartum “Bocamaldita” da figura 4), que lhe conferem um ar de inquietação. Há um certo parentesco entre o trabalho de Rettamozo e os cartuns de Solda e os de Miran, mas mesmo assim é possível identificar a fatura de cada um, através das minúcias nas hachuras e de pequenos detalhes recorrentes a cada artista nas estilizações realizadas para expressar fisionomias e partes do corpo humano. Por exemplo, as pálpebras dos olhos, o nariz, o alongamento ou encurtamento das mãos, etc. Neste cartum de Rettamozo, observa-se um exagero na desproporção entre as mãos – cujos dedos são extremamente longos e curiosamente possuem as pontas mais grossas do que as juntas – e a cabeça. Esta desproporção pode ser associada à condição do personagem que mais executa tarefas do que pensa. Tal desenho carrega uma crítica justamente na maneira irônica como ele ilustra um suposto trabalhador de escritório no Brasil dos anos setenta. Este trabalhador corresponderia a um tecnocrata (posição sugerida pela mesa e pelos objetos estritamente funcionais organizados sobre sua superfície), de quem geralmente se esperariam qualidades tais como seriedade e eficiência. Isto se torna mais significativo se interpretado à luz do contexto histórico brasileiro. Naqueles primeiros anos da década de setenta, as idéias de planejamento e reformas administrativas eram predominantes na política brasileira, quando da ascensão de um grupo de tecnoburocratas ao poder governamental. Naquela Figura 9 “Digital”. Curitiba: Revista Direta, ago/1974, p.80. ocasião, os governos estaduais só recebiam verbas federais se estivessem inseridos num programa de ação vinculado aos programas nacionais, e o governo paranaense, bem como a prefeitura de Curitiba, estiveram bastante afinados com as proposições do governo federal, tendo recebido grandes incentivos financeiros para as reformas urbanas e para a implantação da Cidade Industrial de Curitiba24. Partindo destas informações, a observação destas características num cartum de anúncio publicado em Curitiba justamente em 1974 torna-se ainda mais expressivas. Nesta imagem, como se pode observar, IPARDES – Fundação Édison Vieira. O Paraná reinventado: política e governo. Curitiba: 1989. Golbery; Roberto Campos; Simonsen; e Delfim Neto compunham o grupo de tecnoburocratas que participava do governo federal durante os anos do milagre econômico (ver p.73). Sobre os governos paranaenses afinados com as idéias de planejamento e reforma, ver p.74-76.

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as características relacionadas à tecnocracia não foram elogiadas ou tratadas com seriedade, mas de certa forma combatidas através da ironia que representa a indisciplina do personagem em relação ao papel que dele se esperava. A indisciplina também aparece sutilmente no desrespeito à perspectiva: enquanto as linhas laterais inclinadas da mesa geram uma certa ilusão de profundidade, os ângulos retos da folha de papel em que o sujeito escreve desmentem esta profundidade, planificam ainda mais a superfície da página. Já a cabeça do personagem sob a mesa, a expressão facial debochada e desligada, os cabelos desgrenhados – associados à depressão ou ao desbunde –, não condizem com a parte superior da imagem, ou seja, com os objetos organizados e as mãos que escrevem em linhas uniformes. Esta discrepância entre as duas partes do mesmo personagem – a cabeça que supostamente “pensa” e as mãos que “fazem” – denuncia uma espécie de farsa social, referindo-se a atitudes disciplinadas às quais as pessoas deveriam se submeter quando em ambientes públicos e profissionais, preservando a aparência de ordem, e inibindo o seu caráter heterogêneo e instável, bem como a exposição pública de suas angústias e desejos. Pode-se dizer, então, que a imagem que ilustra este anúncio aponta para o desvio constante da atenção em relação a certos eixos disciplinares imposto pelo sistema social, já que ao invés de se concentrar no trabalho que “enobrece”, o personagem se oculta para desfrutar de pequenos prazeres. Isto poderia ocorrer, naquele contexto em que a imagem foi produzida, até mesmo como forma individual de contestação, se levarmos em conta a teoria de Luciano Martinsacerca da recusa em encarar o elemento político que teria sido característica de uma parcela da população jovem do Brasil dos anos setenta25. O conjunto das imagens de Solda, de Miran, Rettamozo e Padrella aqui apresentadas e analisadas, exemplifica como se pode realizar o exercício de buscar vestígios das características do contexto histórico de produção das imagens difundidas pelos meios de comunicação. Seja através dos recursos do cartum, seja através de outras evidências sígnicas, as imagens analisadas ou comentadas no decorrer deste texto permitiram vislumbrar algumas facetas das contradições sócio-culturais do contexto dos anos setenta, desde alguns traços gerais que caracterizaram uma parcela da população da época, até signos associados à violência da repressão política e à censura aos órgãos de comunicação. Conclui-se, com isso, que um olhar contextualizado sobre uma imagem gráfica – seja publicitária, seja um cartum humorístico ou uma charge política – permite entrever em suas características temáticas e formais alguns elementos que dizem respeito à conjuntura histórica na qual o artista está inserido quando da produção destas imagens. No caso das peças selecionadas para este estudo, elas dizem respeito inclusive à própria situação de dilaceramento vivenciada pelos artistas (seus autores) que transitavam pelos espaços profissionais abertos pela expansão da indústria cultural nacional, mas que, ao mesmo tempo, pretendiam expressar sua opinião crítica em relação ao próprio sistema que alimentava e dependia da expansão desta indústria. Uma certa postura contestatória a tal sistema é que se buscou averiguar nas características das imagens analisadas.

Segundo Luciano Martins, o período entre 1969 e 1974 seria o momento em que viceja uma “cultura da depressão”, marcada por um clima de conformismo e passividade, aliada ao “culto modernoso do non-sense”, que pode ser entendido como uma recusa em se encarar o elemento político. MARTINS, Luciano, citado por ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.156-158.

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