VESTÍGIOS DE FORMAS ELEMENTARES DA INSTRUÇÃO EM UMA COMARCA MINEIRA SETECENTISTA: O LER, ESCREVER E CONTAR

June 15, 2017 | Autor: R. Santos | Categoria: História Da Educação, Historia Moderna
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VESTÍGIOS DE FORMAS ELEMENTARES DA INSTRUÇÃO EM UMA COMARCA MINEIRA SETECENTISTA: O LER, ESCREVER E CONTAR. Beatriz R. Magalhães Professora Aposentada-Departamento de História UFMG Raphael Freitas Santos Mestrando em História-UFMG Flávia Amaral Graduanda em História-UFMG/Bolsista CNPq-PIBIC Fontes, categorias e métodos de Pesquisa em História da Educação INTRODUÇÃO

O conhecimento da História de países e/ou regiões tem avançado muito graças à exploração sistemática de dados cartoriais, em especial de Inventários post-morten e Testamentos, tanto no plano local como em territórios mais amplos. Valeremo-nos desse rico manancial para o estudo de uma determinada região, a Comarca do Rio das Velhas. O prisma da história regional nos obriga a recorrer a um texto já elaborado há algum tempo1. Nele se indagou: como trabalhar a história de uma vila mineira (naquele caso, Ouro Preto), instalada nos primórdios do oitocentos, se não se considerasse o intenso trânsito entre seus moradores e os arredores? Como estabelecer limites territoriais se sua população circulava, comerciava, adquiria produtos rurais, mantinha relações sociais e de parentesco num amplo espaço como o da capitânia e/ou do poder central? Vimos, pois, trazer, de início a esse Congresso de Pesquisa e Ensino em História da Educação alguns elementos de nossa pesquisa regional e consequentemente apresentar um “modo de operar a produção científica existente”2. Para o caso em pauta, foram utilizados os dados, até então registrados no Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas – Século XVIII3, de 460 inventários post-morten até a década de 60; bem como de 1286 testamentos até meados da década de 70. Entretanto direcionaremos nossa pesquisa, sobretudo, para os 51 testamentos que foram escritos e assinados por seus testadores. É bom lembrar, de início, que aos burocratas “agentes da construção dos Estados Modernos”, aos religiosos, aos negociantes, aos profissionais liberais o saber ler, escrever e contar era condição primária para manter as relações entre seus pares e estabelecer uma gestão eficiente “em seu tempo, em suas atividades ou em seus patrimônios”4. 1

MAGALHÃES, Beatriz R.. La société ouropretaine selon les inventaire post-mortem-1740-1770. Tese de Doutorado. Paris, 1985 (mimeo) pp. 310-319. O inventário post-mortem é o registro oficial do patrimônio deixado por pessoa falecida, da qual consta o tipo e o valor monetário dos bens acumulados ao longo da vida, bem como lista de créditos e débitos pendentes. Este registro é feito por autoridade pública e o documento assim produzido tem valor para definir, em caráter fixo, o que caberá, por partilha, aos herdeiros, após honrado os débitos com Estado e com credores particulares. 2 NUNES, Clarice. História da Educação: interrogando a prática de ensino e da pesquisa, 2002 pp.38. 3 Projeto coordenado pela Prof.a Beatriz Ricardina Magalhães que vem tendo apoio do CNPq e FAPEMIG. 4 PALUS-KAPLAN, Marie-Louise. Cultures et formations négociantes dans L’Éurope moderne (Comptes rendus). IN: Annales, 55 anée, n. 4, 2000, pp.917-919.

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LER, ESCERVER E CONTAR: COMPETÊNCIAS ESSECIAIS PARA O COMÉRCIO

A historiografia vem atribuindo uma importância cada vez maior ao comércio no período colonial mineiro5. E é de fundamental importância estudar este grupo social “haja vista as necessidade de uma população que experimentava em seu cotidiano a aceleração das relações sociais, das trocas comerciais, enfim, a ocorrência de rápida monetização da economia”6, fenômeno visível pela ampliação do crédito. No entanto, o que se entende por comerciantes? No contexto das minas setecentistas, não se pode reduzir esse grupo social, apenas aos indivíduos que possuíam vendas, tabernas, tendas; aos mascates e tropeiros; ou, mesmo, aos mercadores de grosso trato. Isso porque uma das características da economia colonial era, justamente, o investimento em múltiplas atividades. Analisado-se os inventários post-morten e testamentos do século XVIII, até então recuperados pelo nosso banco de dados, observa-se que, em 85% dos 480 inventários postmorten e em 71% dos 1.286 testamentos analisados, não foi especificada a profissão do inventariado ou do testador. A partir desses dados, pode-se indagar: Será que existia uma certa dificuldade em definir a atividade profissional dos envolvidos? Por quê? Ainda não encontramos uma resposta para essa pergunta, mas os números apresentados sinalizam esse fenômeno, estrutural, referente à multiplicidade de investimentos de um mesmo indivíduo em várias atividades econômicas. Uma outra questão ainda fica no ar: Como identificar os comerciantes sob tais limitações numéricas? Nessa perspectiva, a principal possibilidade consiste em elaborar um estudo, caso a caso, buscando detectar os investimentos prioritários dos inventariantes cuja profissão não foi declarada. Entretanto analisar de 1.766 documentos é uma tarefa que demanda bastante tempo. Assim sendo, optamos, preliminarmente, por delimitar a pesquisa documental aos testamentos que foram escritos e assinados por seus testadores. Dentre os 1286 testamentos, até então recuperados pelo banco de dados, 72% dos testamentos foram ditados e assinalados, ou seja, foi “desenhada” uma cruz, pelos testadores, 24% foram ditados e assinados por eles; enquanto apenas 4% foram escritos e assinados por seus autores. Esstes números, em uma análise superficial, atestam a velha máxima de que a sociedade mineira, no período colonial, era constituída por iletrados. Entretanto, quando confrontados com outros dados, podem ser mos relativizados. Segundo Daves, até metade do século XVIII7, 67,5% dos testamentos, em média foram feitos já no leito de morte. Supõe-se, portanto, que, na maioria dos casos, mesmo tendo conhecimento suficiente para redigir seus testamentos, o testador não teria mais condições físicas para tamanho esforço. Dessa forma, muitos daqueles que não redigiram seu testamento por enfermidade, por exemplo, atestaram ser detentores de uma instrução elementar ao assiná-los. Ainda que pequeno, consideramos, no entanto, que o percentual de testamentos “redigidos de próprio punho” é representativo para se analisar a participação do grupo dos comerciantes entre aqueles que possuíam, ao menos, uma instrução elementar.

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Ver: FRAGOSO, João Luís. Homens de Grossa Aventura., 1998; CHAVES, Claúdia M. das Graças. Perfeitos Negociantes, 1999; FURTADO, Júnia Pereira. Homens de Negócios, 1999. 6 DAVES, Alexandre P. Subsídios para a História da Instrução na Capitânia de Minas Gerais, 2001. 7 DAVES, Alexandre P. Vaidade das vaidades. Dissertação de mestrado, UFMG, 1999, pp. 93.

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Veja-se, primeiramente, um breve perfil dos indivíduos que redigiram e assinaram seus testamentos. De um total de 51 que enquadram nessa situação, 92% eram, naturalmente, portugueses, e, destes, a imensa maioria era proveniente do Arcebispado de Braga, norte de Portugal, seguido pelos lisboetas. Seis desses testadores residiam em Sabará; quatro registraram seu domicílio em Paracatu; o mesmo número foi observado para Roça Grande, Curral Del-Rey, Santa Bárbara e Santa Luzia. Em suma, observa-se que 77,7% desses declararam residência nas principais vilas ou arraiais da Comarca, enquanto 11,7% não declaram domicílio e o restante morava em sítios, fazendas ou, mesmo, fora da Ccomarca. E dentre os testadores que declararam sua profissão, 38,5% eram, eclesiásticos, uma mesma percentagem era constituída de profissionais liberais – advogados, licenciados, boticários, etc. –, e apenas 7,5% dos testadores se declararam comerciantes. Esses números variam bastante, porém, quando para se analisar os testamentos onde os indivíduos ditaram e assinaram o documento. A variação maior dá-se, por exemplo, com relação às profissões declaradas: a maioria dos testamentos - 27% - continua sendo de eclesiásticos, mas seguidos de perto pelo percentual de comerciantes - 25,6% - e em seguida, pelos militares - 18,9%. É preciso frisar, entretanto, que muitos desses dados precisam ser analisados com mais cautela, como já foi dito anteriormente. A percentagem de 7,5% de testadores que declararam ser comerciantes não condiz com o quadro que será apresentado a seguir, resultante do estudo de cada um dos 51 testamentos redigidos e assinados, por seus autores. O COMÉRCIO E A ESCRITA

A propósito da condição dos comerciantes, afirma Villalta: “A regra geral foi, por parte das elites, dos proprietários de terras e lavras e dos grandes comerciantes, um maior devotamento à instrução [...]. Muitos dos comerciantes europeus estabelecidos no Brasil eram rústicos, não sabiam sequer ler e escrever; tendo começado do nada, ao se tornarem ricos, conservavam-se no mesmo estado”8. Acreditamos que tal afirmação não condiz com a realidade mineira no período colonial. Com base nos 51 testamentos estudados pode-se inferir que, aproximadamente, 47% dos testadores podiam ser considerados comerciantes. Contudo, não é possível dizer-se, com certeza, que estes 47% eram apenas comerciantes. Veja-se, por exemplo, o caso de Antônio Vieira da Silva9, que, embora morador em Serro Frio, morreu na comarca do Rio das Velhas, onde escreveu seu testamento em abril de 1720. Os investimentos de Silva abrangiam desde “um sítio em Itambé com 42 alqueires de feijão no paiol e outra roça com 1370 mãos de milho”, até indumentárias estocadas – como dois panos de cetim bordados, varas de fita larga e “21 travesseiros com almofadinhas guarnecidas de renda”. Tudo indica que, além de investir no comércio, principalmente de fazendas (tecidos), o testador produzia gêneros para o abastecimento interno. As negociações no comércio, como se pode perceber pela documentação analisada, eram realizadas, muitas vezes, a prazo. Assim foi o caso do 8 9

VILLALTA, Luís C. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura, 1997, pp.354. MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 01(01) Folhas 87v – 102.

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Brigadeiro João Lobo de Macedo que, declaradamente, “deve ao testador por um negro Benguela conforme consta no rol”. Essa passagem do testamento de Antônio Vieira da Silva é elucidatória, ainda, de um outro vestígio que indica uma instrução elementar entre os comerciantes mineiros, a existência de livros de razão. “Os livros de razão, ou assentos, são uma espécie de memorial que recebia os lançamentos referentes às transações diárias de compra e venda ou troca de produtos, (...) de dívidas e prejuízos ocorridos. (...) Os livros de razão não são peculiares á sociedade colonial; existiam já na Europa dos séculos XVII e XVIII de forma mais abundante do que na América portuguesa10”. Esses livros, portanto, são indicativos de um conhecimento elementar de escrita, leitura e contabilidade, por parte dos comerciantes. Identifica-se a presença de tais livros de razão – ou rol, como costuma aparecer nos inventários post-morten e testamentos analisados – por diversas vezes. Antônio de Sousa Chaves11, morador em Morro Vermelho/Sabará, cujo testamento foi aberto em 1719, possuía crédito proveniente da venda de fazendas no valor de 250 oitavas de ouro, crédito que “consta no rol de nomes de pessoas que lhe devem”. Num testamento de 1726, Manoel Ferreira Leal12 , um comerciante viandante, declara “um livro de razão que contém o que faltar no testamento”. Porém os “róis” não são exclusividade dos comerciantes. Muitos padres também se utilizavam desse artifício para controlar as missas e os legados deixados às igrejas, bem como suas atividades paralelas como empréstimos e penhora de bens –atividades típicas dos comerciantes. Entre os testamentos analisados, destaca-se o do Padre Francisco Coelho de Santa Maria13, que declarou ter “um caderno de contas e dívidas conforme o rol”. Além da presença de créditos nos livros de assentos, observa-se outros indícios de atividades comerciais entre aqueles testadores que redigiram seus testamentos. Por exemplo, considere-se o caso de Francisco Tavares Dias14, em cujo testamento, lavrado em 1768, manda “rezar 50 missas pelas pessoas com quem tem tido contas”. No que diz respeito a Caetano Pinto de Faria15, pode-se se deduzir a sua condição de comerciante pelos seguintes dizeres em seu testamento: “Sendo que eu faleça em alguma praça ou cidade do Rio de Janeiro, Bahia ou Pernambuco, então se dobrarão as quantias outras declaradas e tudo se pagará o dito forçoso e costume. Isto se fará com brevidade possível...”. Pressupõe-se, portanto, tratar-se de um comerciante que mantinha contato com várias praças mercantis. Como essa população, que demandava instrução, tinha acesso, ao menos, aos saberes elementares? Segundo Villalta, difundiu-se bastante o “aprender-fazendo”: “... extramuros da escola, na luta pela sobrevivência, adquiriram-se os rudimentos necessários para garantir a subsistência e para reproduzir os papéis que lhes eram reservados na 10

ALGRANTI, Leila. Mezan. Famílias e Vida Doméstica, 1997, pp. 133. MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 01(01) Folhas 47v – 51v. 12 MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 08(03) Folhas 116v – 127. 13 MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 16(08) Folhas 09 – 17. 14 MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 35(22) Folhas 68 – 72v. 15 MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 36(23) Folhas 128 – 134. 11

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sociedade”16. Entretanto essa forma de instrução não é simplesmente reprodutora da condição do indivíduo numa sociedade estamental. Por exemplo, um comerciante poderia ensinar a seu filho ou, mesmo, a um sobrinho que seria o pretendente de sua filha o ofício do comércio, conforme propõe Fragoso17; mas eles, por sua vez, poderiam investir o lucro em outras atividades – em terras, sítios ou fazendas. Esta aquisição significava a escalada de um degrau na sociedade extremamente hierarquizada do século XVIII, em que, mesmo nas Minas, o comércio não era visto com bons olhos, principalmente pelas autoridades que acreditavam que os proprietários territoriais “são mais ligados à sociedade e mais obedientes a suas leis do que os negociantes” 18. A ESCRITA E AS TRANSAÇÕES COTIDIANAS

No século XVIII, o comércio nas minas do processava-se tanto pela troca, como, e principalmente, pelo uso do ouro em pó como moeda. Existiam, porém, várias dificuldades no seu uso – como a perda de grãos na hora da pesagem, por exemplo. Assim sendo, o comércio a prazo tornou-se uma prática usual. Lastreada na palavra, tal prática também se utilizava de artifícios escritos. Voltando a analisar o escopo geral da documentação – inventários post-morten e testamentos – observamos que muitos comerciantes emitiam recibos, que eram repassados e, assim, funcionava como uma moeda paralela no mercado. No caso, por exemplo, do testamento, de Luiz de Barros Rêgo19, morador em Caeté, aberto em 1759, que diz possuir “um livro de notas onde há um acerto de 3 oitavas de ouro que recebeu de José Fernandes Souza por conta de um crédito (de compra de milho) que foi tomado por Manoel Luiz”. Isso demonstra que uma dívida contraída por uma pessoa muitas vezes era repassada a um terceiro que passaria a ser o novo devedor. Outro exemplo dessa prática pode ser observado no testamento, datado de 1740, de Jerônimo da Costa Valle20, um “viandante comerciante”. E que dentre os devedores desse comerciante consta o nome de Manoel Roiz, morador em Minas Novas que “deve 103$000 (cento e três mil réis) na mão de João Miranda Pinto”. Nesse caso, deduz-se que caso João Miranda Pinto repassou sua dívida para com o testador a Manoel Roiz, que passou a ser, portanto, o novo devedor. Além dos recibos, ou bilhetes como aparece geralmente nos textos (que funcionavam por vezes, também como letras de câmbio), os comerciantes recorriam a outros artifícios cujo uso tornava necessário um conhecimento elementar de escrita e leitura. Como já foi dito, houve um crescimento das negociações a prazo e, para o sucesso de tais negociações, eram feitas, algumas vezes, escrituras ou termos de compromisso que atestavam a existência de uma dívida afim de que, caso esta não fosse ser paga, o credor pudesse recorrer judicialmente. Um exemplo de tal prática pode ser observado no inventário post-morten dos bens de José Isidoro Pereira, que faleceu em 1767. Anexa ao processo, há uma cobrança de um comerciante de Santa Luzia, que apresentou um documento entregue pelo inventariado, em que atesta a contração de uma dívida e promete o pagamento dela, afirmando: 16

VILLALTA, Luís C. op. cit., pp. 333. FRAGOSO, João L. Os homens de negócios do Rio de Janeiro , 2001 18 SILVEIRA, Marco A . Universo do Indistinto, 1997, pp. 69. 19 MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 22(13) Folhas 127v – 133v 20 MO - Casa Borba Gato: Testamentos Códice 08(03) Folhas 107 – 116v 17

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“Devo que pagarei a João Gonçalves a quantia de 22 oitavas e ¾ e 4 vinténs procedidos de mantimentos que lhe comprei a meu contento tanto no preço como com bondade a qual quantia pagarei a ele ou a quem este me mostrar todas as vezes que mais me disserem sem o fico com dúvida alguma e para que obrigo minha pessoa e bens em sua satisfação e por fim de ser verdade pedi ao pároco de Santa Luzia que este por mim fizesse e com testemunho o assinou e o mesmo fiz com meu sinal costumado que he uma cruz. V. Abono os juros de 1769 até hoje e digo de resto que são 12 oitavas e 2 vinténs”21. Observa-se o mesmo procedimento no inventário post-morten de Maria Martins, preta forra, feito em 1760, em que um comerciante move um processo semelhante ao anterior apresentando um documento com os dizeres: “Devo que pagarei a Domingos Carvalho da Costa ou a alguém (...) nove oitavas e 3 quartos e 3 vinténs de ouro procedidas de fazenda que lhe comprei e recebi a meu contento assim em preço como em bondade cuja quantia pagarei todas as vezes que mais pedir com seus juros (...). A última satisfação e para fim de ser verdade lhe passei este por mim assinado o meu sinal com que eu uso que he uma cruz em presença das testemunhas abaixo assinadas. Congonhas, três de junho de 1757.”.22 Como se vê há uma certa regularidade no formato desses documento, o que demonstra ser essa uma prática recorrente nas Minas setecentistas. Com o crescimento das transações a crédito, a escrita tornou-se essencial para o acesso ao mercado. Então, os comerciantes – ora para controlar o caixa (rol), ora para circulação de mercadorias (bilhetes), ora ainda para cobrar uma dívida – podem ser caracterizados como um grupo que tinha acesso ao conhecimento elementar do ler, escrever e contar. Do exposto, deduz-se uma demanda por instrução, ao menos primária, por parte não só dos comerciantes mas, também, de uma parcela significativa da população – haja vista a necessidade dos mineiros, principalmente da população urbana, em integrar-se ao mercado, que cada vez mais se desenvolvia e se monetizava. UMA SANTA APÓCRIFA NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO DOS TESTAMENTOS: O EXEMPLO DE SANTANA

Nesta segunda parte do trabalho optamos por um tipo de análise acerca dos vestígios de instrução em Minas no século XVIII o qual terá como ponto de partida a religiosidade. O culto à Santa Ana, a mãe de Maria, presente através das devoções declaradas ou externado no pedido de sufrágios, está presente em vários dos testamentos que deixaram os antigos moradores da Comarca do Rio das Velhas. Tal constatação suscitou alguns questionamentos. O fato de esta santa sempre ter sua figura representada com um livro aberto em mãos , como que ensinando a sua jovem filha Maria, teria influenciado no comportamento de seus devotos com relação à educação? Quem eram essas pessoas que durante a feitura de seu testamento, reproduziam um culto tão antigo? Como através da religiosidade podemos resgatar vestígios de instrução? Para a compreensão de como o 21 22

MO - Casa Borba Gato/IPHAN: Inv. (Ant.) (06)21. MO - Casa Borba Gato/IPHAN: Inv. (Ant.) (02) 02.

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fenômeno do culto à Santana se deu em terras mineiras no século XVIII, devemos nos remontar à origem desta devoção. A religiosidade católica sempre se valeu das tradições ditas apócrifas. Inúmeras histórias referentes à vida de Cristo que são recorrentes às celebrações, ao imaginário e até mesmo aos dogmas católicos, baseiam-se em relatos que não estão presentes nos escritos canônicos da Igreja Católica.23Hoje a expressão Evangelho Apócrifo é usada para designar os escritos acerca da vida de Jesus Cristo que não compõem o corpo do Novo Testamento. Uma das passagens apócrifas mais conhecidas e mais representadas na literatura, nas artes e no culto católico é a que narra o nascimento de Maria. Essa história tornou-se conhecida junto à cristandade através do proto-Evangelho de São Tiago, escrito apócrifo, elaborado provavelmente no século II.24 Neste relato são narradas as histórias da concepção, nascimento e infância de Maria, nas quais há duas figuras de suma importância: seu pai Joaquim e sua mãe, Ana. Ambos são considerados santos pela Igreja Católica, ainda que seus nomes não sejam sequer mencionados nos texto canônicos. No apócrifo de São Tiago foram baseados dogmas (como por exemplo o da Imaculada Conceição de Maria) e cultos importantes que sobrevivem com vigor até a atualidade, como no caso da devoção aos avós de Jesus – São Joaquim e Santa Ana. Este último ponto é o que interessa particularmente a esta análise. A proposta é visualizar de que modo o culto à Santana se fez presente em Minas Gerais no século XVIII, mediante o estudo dos testamentos referentes aos habitantes da Comarca do Rio das Velhas. O problema inicial é verificar a possível relação existente entre o culto à santa e o grau de instrução manifestada nos casos em pauta. Para o trabalho que será agora apresentado a opção é trabalhar com os testamentos deixados pelos alfabetizados comprovados que o escreveram e assinaram, e nos quais há alguma menção à Santana (entre sufrágios, devoções ou legados) ou algum indício que nos leve a crer que haja alguma relação devocional com a santa, como por exemplo ter uma filha de nome Ana, ou uma escrava ou alguma pessoa da família. O objetivo seria ver o propósito dessa relação a ESCRITA DO TESTAMENTO X MENÇÃO À SANTANA. Seria importante entretanto tentar fazer um mapeamento quanto ao estado do culto à mãe de Maria. Isso pode ser realizado por de um levantamento estatístico daqueles testamentos, nos quais consta que o indivíduo era devoto da santa e/ou deixou sufrágio em seu louvor, ou seja deixou registrada sua vontade de que ela fosse invocada em missas. Um levantamento inicial leva- nos a compor o perfil majoritário dos que eram devotos e/ou deixavam sufrágios em louvor à Santana. Eram, em sua maioria, nascidas em Portugal, de condição livre e do sexo masculino. Tal constatação confirma o que se observa no comportamento geral dos testadores25, ou seja, vai de encontro ao levantamento geral de todos os protagonistas dos testamentos de que dispomos para a pesquisa. Neste caso específico seria importante evidenciar outros dados. Entre as mulheres, tanto no tocante à devoção quanto ao sufrágio, o número de africanas é sempre maior do que o de brasileiras e, no caso das devoções, chega a ser o triplo das portuguesas. É 23

O termo kanon vem do grego e significa norma, critério, o que nos remete ao sentido que a palavra canônico foi tomando ao longo do tempo, ou seja, ela significa tudo o que é aceito pela ortodoxia. Por sua vez o termo apócrifo também vem do grego; foi na origem apocryphos, significando oculto, escondido. 24 25

MORALDI, Luigi. Evangelhos apócrifos, 1999. 69% dos protagonistas dos testamentos de que dispomos, eram de nacionalidade portuguesa.

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interessante salientar que as africanas representam 54,5% das mulheres que são devotas de Santana e 48% das mulheres que deixaram sufrágio a esta santa. Outro fator relevante é o de que há uma certa concentração espacial tanto das devoções, quanto dos sufrágios. Dos cento e um testamentos em que se identifica a devoção à Santana, sessenta e sete partem de dezesseis localidades identificáveis26 , com destaque para Sabará e Pitangui que somam 38,8% do total dos domicílios. No caso dos sufrágios, há setenta e três testamentos com pedidos de sufrágio à Santana. Sessenta e dois vêm de dezessete locais diferentes, com destaque agora para Sabará e Paracatu que somam 38,7% do total. Os testamentos que determinam sufrágio à Santana vindos de Paracatu, representam 19,3% do total de domicílios, enquanto os testamentos que possuem a devoção à santa e que são da mesma localidade são 4,4% do total. Tal constatação torna-se ainda mais relevante pelo fato de que essa localidade é denominada Santana de Paracatu, na qual provavelmente existia uma igreja dedicada à santa. Sendo assim, mesmo aqueles que não se diziam devotos de Santana pediam missas em sua homenagem talvez para louvar a padroeira do local. Outros levantamentos são também relevantes. O número de testamentos coincidentes (onde há devoção e sufrágio) não é muito grande. Dos cento e oitenta e cinco nos quais temos a devoção e/ou o sufrágio à Santana apenas treze são coincidentes, ou seja 7,02% do total. O período no qual mais se declarou devoção à Santana foi o compreendido entre os anos de 1758 e 1760(vinte testamentos ou 19,8% do total). Já o período no qual mais se pediu sufrágios à Santana esteve entre os anos de 1720 a 1740 (10 testamentos ou 13,6% do total) e entre os anos de 1768 e 1769 (10 testamentos ou 13,6% do total).27 Dos cinqüenta e um testamentos que foram escritos e assinados pelos protagonistas, vinte e um deles, ou seja, 41% do total têm relação direta e/ou indireta com Santana. Por relação direta compreendemos aqueles testamentos onde o nome da santa aparece literalmente, e isso se dá quando Santana é registrada entre as devoções, na distribuição dos legados ou no pedido de sufrágios. Já uma relação indireta poderia ser estabelecida quando encontramos entre esses cinqüenta e um testamentos o nome Ana aparecendo entre as filhas, entre as escravas ou identificando algum parente do protagonista. Tal hipótese tornase possível na medida em que nos lembramos de que no século XVIII, bem como acontece recentemente, o sentido dos nomes têm enorme significado quando do batismo. Visto que em uma sociedade extremamente marcada pela religiosidade, como era a mineira do setecentos, o fato de ter na família alguém com o nome de um santo ou santa revela um certo grau de identidade, de confiança com o eleito. O testamento de Antônio Vieira da Silva28, um português, nos apresenta interessantes dados. Este morador do arraial do Mato Dentro do Serro Frio, chama-nos primeiramente a atenção pelo fato de pertencer a um pequeno grupo dentro dos moradores da Comarca do Rio das Velhas, ou seja, ele participava do grupo daqueles que possuíam livros. Quando da feitura do testamento(15/12/1720) , o protagonista revela que possuía mais de treze livros, dos quais ele não recordava todos os títulos. Ele, como já foi dito era também comerciante e declarou os livros dos quais se lembrava, sendo que eles em sua

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Um local não identificável seria o que recebe uma denominação do tipo “Fazenda da Sacra Família” (planilha 54 ?) ou “Lago Grande” (planilha 427?) e etc. 27 Todos esses levantamentos referem-se aos testamentos apenas do século XVIII. 28 MO: Casa Borba Gato: Testamentos Códice L1(1), folhas 87 V a 102.

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maioria tratava de assuntos religiosos. Dentre eles estava Genealogia de Nossa Senhora Intitulado das Pastorais de Belém de Lopes da Veiga. Antônio Silva além de ter declarado Santa Ana em suas devoções, também pediu sufrágios a ela, e assim pudemos perceber de imediato sua ligação com a santa. O fato dele possuir um livro que falava da genealogia de Maria, faz com que possamos perceber que seu interesse com relação ao tema era marcante. Além disso, já que esse protagonista foi também comerciante podemos inferir que o seu contato com as formas de instrução, ultrapassava as possíveis leituras as quais poderia fazer em sua casa. Temos , pois, em Antônio Silva um exemplo do ler como também um exemplo do contar . Já Vicente Vaz de Melo, outro português que habitou a Comarca do Rio das Velhas, enriquece a análise com outros elementos. Quando da feitura de seu testamento em 10/06/175229, ele fez questão de deixar registrada a sua devoção à Santana. Mas a informação mais expressiva é a de que além de ter deixado todos os seus bens para suas filhas, exige uma particularidade: ele pede que a cada uma delas “seja dado um crioulinho para que lhes servissem nos estudos”. Trata-se esse de uma caso explícito de preocupação com a instrução. Outro aspecto importante com relação a este testamento é o fato de que a esposa do protagonista tinha o nome Ana. Seria esse um fator que o influenciou na devoção à santa? Caetano Pinto de Faria é também outro português que se destaca. Além de pedir sufrágios a Santana, ele deixa, em seus legados, nada menos do que um conto de réis que deveriam ser gastos com missas nas Igrejas onde havia a imagem da santa. Caetano que fez seu testamento em 20/09/176930, era morador da cidade de Santana do Paracatu, o que nos leva a concluir que seu louvor deveria advir da devoção que sentia pela santa padroeira de sua cidade. O protagonista pertencia fazia à Irmandade de Santa Ana, a qual ele pediu, no testamento, que acompanhasse seu funeral. Nestes exemplos pudemos perceber como ao tentarmos rastrear uma informação que a princípio parecia meramente pertencer ao campo da religiosidade, conseguimos captar algum vestígio de instrução nas Minas do século XVIII. Comprova-se assim mais uma vez a riqueza das fontes que utilizamos nessa pesquisa enquanto um manancial rico para o estudo da vida política, social administrativa e religiosa da Comarca do Rio das Velhas.

TUTORIA

O cuidado com os órfãos sempre foi objeto dos Códigos portugueses fundados no Direito Romano31. Neles a figura do tutor é imprescindível quando há herdeiros menores (órfãos de pai) e/ou dementes. Trata-se de um indivíduo nomeado pelo Juiz dos Órfãos, ou designado em testamento, pelo falecido (respeitando suas últimas vontades), cuja função era administrar os bens dos menores ou “em favor da pessoa impedida do negócio” que lhe é afeito. Não era um cargo muito almejado, pelo contrário. Havia critérios rígidos para sua escolha e freqüentemente os designados dele se esquivavam. A concordância ou aceitação 29

Idem. Códice08(16), folhas 737 a 744. Idem. Códice C23(36), folhas 128a 134. 31 Código Filipino, Livro 4, Título CI, pp. 994-995 30

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do nomeado levava, muitas vezes, a processos intermináveis. Escrutinamos, 242 nomes de tutores dentre os dados até então recuperados. Eram apenas 14 mulheres, que correspondiam a 5,5% do total. Havia, pois, sérias restrições à atuação feminina. A maior exigência, entretanto, era possuir um certo grau de alfabetização, isto é saber ler, escrever e contar. Importa-nos, contudo, é afirmar que ao tutor competia prover os tutelados de bens materiais, zelar por sua saúde e sua educação. A título de ilustração, vamos nos reportar ao inventário do Alferes José Isidoro Pereira32, morador nas vila de Sabará. Excepcionalmente, Dona Francisca Xavier da Silva foi nomeada tutora dos seus dois filho menores, em 1767. Seu marido, já doente, ao elaborar o testamento, três anos antes, a nomeara tutora e curadora dos filhos. As posses do alferes eram bastante modestas, entretanto, os bens descritos no inventário indicam a existência de uma vida confortável. Chamaram a atenção nesse documento três aspectos: 1- Ao inventário, vem anexado o testamento;2- a tutora era alfabetizada, assinava os documentos com segurança e boa caligrafia; 3- e, finalmente, o que mais interessa, a apresentação detalhada das despesas efetuadas com os filho. Há três róis separados de despesas ordinárias com os filhos de outubro de 1767 a março de 1772. A- Vem inicialmente o rol das despesas feitas com o órfão Antônio. A relação discrimina bem o que era próprio ao jovem. Havia gastos, por exemplo, com tecidos: baetas, holandas, linho, riscado, pano escuro, lã, para confecção de véstias; além de camisas, calções, capotes, chambres. Nesse período foram adquiridos também 13 sapatos, meias, chinelas e chapéus. Ainda constam nesse rol 16 galinhas para tratamento das bexigas; pagamentos ao boticário e ao cirurgião e 9 livros de latim para aprender gramática. B- O segundo rol diz respeito ás despesas com Maria, que em 1767 tinha apenas 5 anos. O tecidos discriminados eram: sedas, droguetes, brilhante de lã, tafetá, baeta, durante, bretanha, linho, camelão, caça, pano alvadio, pelúcia e muitas fitas, para confecção de capas, mantos, saias, camisas, timão, lenços. Seus sapatos eram requintados: sapatos de luto, de veludo verde, de veludo carmesim, de pelica lavrada, além de chinelas. Para essa jovem foram adquiridos brincos e um rociclé de diamantes (no valor de 26 oitavas e 6 vinténs), algo extravagante considerado a pouca idade de Maria. Houve também despesas quando os filhos sofreram de bexigas e doenças de palpitação, revelando acometimentos comuns aos jovens e o tratamento usual da época. Ao final da apresentação das contas, a tutora lembra que os gastos com os órfãos excederam ao que lhe couberam nas suas legítimas, sendo ela, portanto, obrigada a lançar mão de parcela do que lhe coubera na meação. Encerrando o inventário e não tendo mais o que administrar, ela deixa a tutoria dos órfãos, quando foi nomeado noivo tutor e curador. Antônio teria 15 anos e Maria 13, a maioridade só era atingida aos 25 anos. A escolha desse documento não foi aleatória, mesmo não sendo exemplar, é, entretanto, demonstrativo da forma de organização do processo e de sua curta duração. O zelo da tutora, embora o monte-mor do marido não chegasse a 2:000$000 (dois contos de réis), pode ser percebida pela preocupação de D. Francisca com o bem-estar físico e mental dos órfãos. Com diferentes preocupações, entre seus filhos, é verdade, mas de acordo com os padrões da época. 32

MO - Casa Borba Gato/IPHAN Inv. (Ant.) (28)08.

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BIBLIOTECAS

Tanto na filtragem procedida em nossa planilhas, com relação ao gosto ou ao hábito de leitura como na consulta feita a vários autores com ricas obras sobre o assunto 33, verificamos que nesse território reduzido da comarca, nesse pequeno volume de obras registradas e, ainda, nesse pequeníssimo número de registros de portadores de livros,45 apenas, podemos fazer indagações fulcrais, vastíssimas que merecem, em outro momento, um maior aprofundamento nas pesquisas. Então o que fazer? Traçar um roteiro para esse levantamento? Como? Encontrei em R. Chartier e D. Roche uma inteligente reflexão sobre o aparecimento do livro no século XVI, na Europa, seu avanço e sua conquistas ao longo dos séculos seguintes, fixando, sobretudo, no século XVIII34. Os autores consideram, nessa abordagem, o livro como um indicador privilegiado para a história cultural. Qual o seu significado? Seria um suporte de conteúdos culturais, como um objeto físico específico tanto na sua materialidade, como na fabricação e apresentação? E no caso em questão, como analisar essas bibliotecas fragmentadas e esparsas? Embora os processos de elaboração de inventários e testamentos se diferenciem bastante, é mais comum encontrar listas dos livros, com respectivos preços, apenas nos primeiros. Temos, pois, nessa pequena amostragem, um exemplo. Em 16 testamentos, entre 1720 e 1779, indivíduos legaram livros aos seus herdeiros, sem contudo, determinar o valor deles. Nesse bloco elencado, o maior e mais variado volume da de 1720, são descritos 76 e mais outros de cujos nomes não se lembrava Antônio Vieira da Silva cujo testamento já foi citado anteriormente. É recorrente afirmar que predominava obras religiosas, guias espirituais, manuais de devoção, vidas de santos. Nesse setor é surpreendente encontrar as obras do Padre Antônio Vieira como Os Sermões e a Arte de Furtar, com uma certa freqüência. Outros temas também aparecem. Há exemplares, naturalmente, para os administradores, como as Ordenações Filipinas (2) e das Constituições do Arcebispado da Bahia. São enumerados muitos livros de medicina e sobretudo o Erário Mineral. A propósito, em Sabará e nos arredores, na Segunda década do século XVIII, Luís Gomes Ferreira exercia o ofício de cirurgião legando à prosperidade o extraordinário Erário Mineral, publicado em Portugal em 173535. O Inventário do licenciado Manoel Maciel36, 1750, é mencionado aqui numa tentativa de ilustrar a dificuldade que se tem para classificar, pela posse de livros o perfil dos leitores da comarca. Maciel morava próximo do Recolhimento de Macaúbas, Rio das Velhas Abaixo. Era solteiro, tinha 9 herdeiros. No rol dos seus livros encontramos: 13 tomos de Vieira ...................... .............. 14$625 33

Vou citar algumas obras básicas consultadas cujas fontes também foram Inventários post-mortem: ARAÚJO, Jorge de Souza. Perfil do leitor colonial, 1989; SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial, 1984; VILLALTA, op. cit.; seria, contudo, inadmissível não indicar MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia do Período Colonial, 1969.; onde são registrados 308 autores brasileiros com indicações das respectivas obras. 34 CHARTIER, R. & ROCHE, D. Le livre: un changement de perspective, 1978, pp. 115-136. 35 FIGUEIREDO, Betânia G. Erário mineral 2ed. (resenha) IN: Cronos Revista de História, n. 3, 2001. 36 MO - Casa Borba Gato/IPHAN: Inv. (Ant.) (03) 32.

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6 tomos encadernados de Pe. Feijó ............... 6$750 4 livros de 4o, encadernado ........................... 1$500 2 tomos de livros de medicina de ½ folha..... 1$500 6 tomos de medicina .................................... 3$375 3 Livros velhos a ½ pataca, cada .................. 1$125 21 livros velhos com capas de pergaminho .. 4$500 São 55 volumes, cujo valor é irrisório: 26$365 (vinte seis mil, trezentos e sessenta e cinco réis), num inventário cujo monte-mor atingiu 16:265$666. Ao lado dos Sermões de Vieira, vêm explicitados 8 livros de medicina. Seria Manoel Maciel boticário ou cirurgião? Ou apenas um curioso, um amador? Por que também os 13 tomos de Vieira. Conjectura-se que eles seriam os Sermões. Aqui recorro a Alfredo Bosi37: é preciso considerar o óbvio e lembrar que a ação de Vieira se deu em pleno antigo regime, antes que a crítica das Luzes começasse a arranhar a metafísica social incrustada nos estamentos. Em seus discursos o padre procurava induzir os ouvintes a uma reestruturação conceitual de valores ... daí vem a estranha modernidade de alguns textos seus. Então já no Sermão da Primeira Dominga do Advento, 1650, falou do nascimento do homem novo, de uma Segunda chance dada aos cristãos, um segundo tempo de vida naquela sociedade hierarquizada, mas não estamental... Isto ocorreu em meados do século XVII num sermão pregado na Capela Real... Supõe-se que esse Vieira pragmático era admirado e lido, como até hoje. É bom notar que o fato de os colonos possuírem livros não significava que os lia, a todos. Mas, no caso, um investimento feito de 14$625 não era para obras apenas decorativas. Verifica-se, então uma certa diversidade nos títulos encontrados na biblioteca do licenciado. Tudo indica que nada tinham a ver com suas atividades profissionais observadas mediante análise de seus investimentos já feita anteriormente. A esse respeito podemos conjeturar que a presença de livros, mesmo com indicações genéricas, poderia significar vestígios de um certo grau de instrução e/ou de ostentação? CONCLUSÃO

Em síntese, tratava-se de uma sociedade multicultural, que, na década de 70 já contava uma população de aproximadamente 100.000 habitantes, cuja maioria (50.946) era escrava. Essa sociedade estabeleceu um modus-vivendi que denotava um progressivo avanço no sentido de conviver com formas elementares de instrução, dependendo dos Diversos papéis a serem desempenhados (em casa, sob a orientação do tutor, na sacristia, no mercado, no convívio com seus contemporâneos, nas raras escolas aqui fundadas, etc.). Do exposto, pois presume-se, mediante o exame dos dados cartoriais extraídos de documentos recuperados em nosso banco de dados, a existência de elementos materiais e culturais sinalizadores de uma precária instrução elementar atendendo às demandas sociais da época. BIBLIOGRAFIA Fragmentos de Evangelhos Apócrifos. Trad., org. e notas de Pe. Lincoln Ramos. Petrópolis: Vozes, 1998. ALGRANTI, Leila. Mezan. Famílias e Vida Doméstica. IN: História da Vida Privada no Brasil. Vol. 1 SP: Companhia das Letras, 1997 37

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, 1992

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ARAÚJO, Jorge de Souza. Perfil do leitor colonial. IN: Revista Artes e Literatura. Ano 83, n. 4, RJ: Editora Vozes, 1989, pp. 448-457. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, SP: Cia das Letras, 1992 CHARTIER, R. & ROCHE, D. “Le livre: un changement de perspective”IN: LE GOFF & NORA, P. (Dir.) Faire l’Histoire. Nouveaux objets, 1978, pp. 115-136. CHAVES, Claúdia M. das Graças. Perfeitos Negociantes: Mercadores das minas setecentistas. SP: Annablume, 1999.; DAVES, Alexandre P. Subsídios para a História da Instrução na Capitânia de Minas Gerais – A Comarca do Rio das Velhas (1716-1755) . IN: História da Educação em Minas Gerais. FUMEC, 2001 DAVES, Alexandre P. Vaidade da Vaidades: Os homens, a morte e a religião nos testamentos da Comarca do Rio das Velhas (1716-1755). Dissertação de mestrado, BH: UFMG, 1999. (MIMEO) FIGUEIREDO, Betânia G. Erário mineral 2ed. (resenha) IN: Cronos Revista de História, n. 3. Pedro Leopoldo: 2001. FRAGOSO, João L. Os homens de negócios do Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). IN: Antigo Regime nos Trópicos: A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). RJ: Civilização Brasileira, 2001 _______. Homens de Grossa Aventura. RJ: Civilização Brasileira, 1998.; FURTADO, Júnia F. Homens de Negócios: A Interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas Setecentistas. SP: HUCITEC, 1999 MAGALHÃES, Beatriz R.. La société ouropretaine selou les inventaire post-mortem-1740-1770. Tese de Doutorado. Paris, 1985 (mimeo) MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia do Período Colonial, SP: IEB/USP, 1969. MORALDI, Luigi. Evangelhos Apócrifos. SP: Paulus, 1999. NUNES, Clarice. História da Educação: interrogando a prática de ensino e da pesquisa. IN: LOPES, A A B. M. História da Educação em Minas Gerais. BH: FCH/FUMEC, 2002. PALUS-KAPLAN, Marie-Louise. Cultures et formations négociantes dans L’Éurope moderne (Comptes rendus). IN: Annales, 55 anée, n. 4, Paris: 2000, pp.917-919. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial,SP: Editora USP, 1984, pp. 171188. SILVEIRA, Marco A . Universo do Indistinto: Estado e Sociedade nas Minas Setecentista (1735-1803). SP: HUCITEC, 1997 VILLALTA, Luís C. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. IN: História da Vida Privada no Brasil. Vol. 1 SP: Companhia das Letras, 1997

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