Vestígios de um “Novo Brasil”: A configuração do mercado de pesquisas para a “base da pirâmide”

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A desigualdade social brasileira se consolidou como problema à medida que diferentes modalidades de indicadores se estabeleceram para mensurá-la "objetivamente". Esses operadores, desenvolvidos em instituições científicas e políticas em diferentes níveis e registros às quais estão asseguradas sua legitimidade em prognosticar diagnósticos, concentram-se na análise de índices como o Produto Interno Bruto (PIB), a Renda Per Capita, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e, sobretudo, o Coeficiente de Gini – criado em 1912 pelo estatístico italiano Corrado Gini especificamente para medir o grau de desigualdade social. Nesse instrumento, os países são distribuídos ao longo de uma escala que varia de zero (onde todos detêm a mesma renda per capita) a um (onde um indivíduo, ou uma pequena parcela da população, detém toda a renda e os demais nada têm).
Luís Fernando Veríssimo, em crônica publicada no jornal O Estadão, destaca sarcasticamente esse ponto na fala de um de seus personagens: "Nós não éramos assim. Nós nunca fomos assim. Lula acabou com o que tínhamos de mais nosso, que era a pirâmide social. Uma coisa antiga, sólida, estruturada...". Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,buuu-imp-,711779, acessado em 28/06/2014.
O órgão foi criado em 2008, durante o segundo mandato do presidente Luís Inácio Lula da Silva, e até o final dele foi coordenado por um filósofo e filiado ao partido do então vice-presidente. Nesse período, que vai de 2008 até 2010, a secretaria discutiu, basicamente, questões de médio e longo prazo, tais como o Plano Amazônia Sustentável, que até então estava sob o guarda-chuva do Ministério do Meio Ambiente. Foi nesse período que o IPEA, até então vinculado ao Ministério do Planejamento, passou a responder diretamente às demandas da secretaria. No início de 2011, com a posse do novo ministro, Wellington Moreira Franco, nomeado diretamente pela presidente Dilma Rousseff, a secretaria adquiriu maior importância para o planejamento estratégico do governo, ao mesmo tempo em que novas agendas de pesquisa passaram a compor a ordem do dia. Em pouco tempo, a SAE reorganizou suas pautas internas e estipulou a "nova classe média" como uma das principais temáticas de sua nova atuação.
Entre os defensores de uma definição de "nova classe média" como recurso explicativo para o entendimento dos recentes processos de mobilidade social de um estrato social específico, até então considerado "popular", "operário", "trabalhador" ou simplesmente "pobre", as razões que o justificam estariam na incontestabilidade das estatísticas e dos números brutos (Neri, 2011). É assim que a tal "classe C", segundo critério recentemente estabelecido pela SAE-PR, situar-se-ia entre R$ 292 e 1019 reais de renda per capita familiar, o que representaria 53% da população do censo de 2010, e equivaleria a aproximadamente 102,6 milhões de pessoas.
Coimbatore Krishnarao Prahalad (1941-2010), de origem indiana, foi por longos anos professor de Estratégia Corporativa na Universidade de Michigan. Sua formação inclui passagens pelo Indian Institute of Management Ahmedabad e pela Harvard Business School, de onde resultou, em 1975, sua tese de doutorado sobre administracao multinacional. Durante décadas, seu nome constou entre os dez mais influentes pensadores de administracao e estratégia corporativa do mundo.
Trecho extraído de entrevista acessível em http://jornalggn.com.br/noticia/rolezinho-nao-e-um-movimento-politico-diz-renato-meirelles.
Trata-se de um bairro nobre de São Paulo, situado no distrito de Pinheiros, na região oeste. É conhecido por ser um reduto boêmio da cidade, desde o início da década de 1970, quando passou a ser ocupado por estudantes em função da proximidade com a Universidade de São Paulo (USP).
A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) foi fundada em 1948 no Rio de Janeiro, e congrega e representa todos os estudantes de escolas de ensino fundamental, médio, técnico, profissionalizante e pré-vestibular do Brasil. A UBES tem como objetivo declarado a defesa da educação pública gratuita, de qualidade e laica. Em sua história, acumulam-se inúmeras vitórias e participações em eventos importantes para a vida política do país, como a resistência à ditadura militar, a luta pelo passe-estudantil, pela meia-entrada em atividades culturais, esportivas e sociais, pelo voto aos 16 anos e contra as guerras.
Matéria de 2006 aponta Haroldo da Gama Torres, Luciana Aguiar e Renato Meirelles como sócios-diretores da empresa Data Popular – "primeiro instituto de pesquisa no Brasil criado para estudar em profundidade os hábitos, costumes e motivações da base da pirâmide de renda". Disponível em http://www.megabrasil.com.br/tome_nota2.asp?Codigo=963; acessado em 23 de abril de 2014.
Um passo decisivo nessa direção ocorreu com a divulgação da pesquisa da Fundaçao Getúlio Vargas, coordenada pelo economista Marcelo Neri, que em 2008 cunharia o termo "nova classe média". Isso seria providencial no sentido de fornecer o instrumento taxonômico definitivo para a consolidação da iniciativa de Renato Meirelles à testa do Data Popular, que a partir de então invocaria o conceito como materialização concreta e prova incontestável da inovação das pesquisas produzidas sob sua coordenação.
Em 2012, no seio da SAE-PR, estruturou-se o projeto "Vozes da Nova Classe Média", resultado de um seminário organizado no ano anterior que visava congregar "especialistas", cientistas sociais e figuras políticas estratégicas ao governo para pensar políticas públicas destinadas à sustentabilidade dessa Classe C. Renato Meirelles, diretor do instituto Data Popular, foi o único representante do setor privado a ser convidado. Após esse primeiro seminário, montou-se uma comissão técnica, composta pelos mesmos intelectuais, políticos e publicitários, para discutir um novo critério de classificação das classes sociais brasileiras. Baseando-se no estudo de Neri (2008; 2011) e em uma miríade de outras abordagens internacionais sobre o problema da estratificação, a SAE valeu-se da renda familiar per capita para elaborar os intervalos de classe, amarrando-os a um cálculo sobre o grau de vulnerabilidade social, isto é, da probabilidade de voltar à pobreza.
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi0506200120.htm. Acessado em 23 de abril de 2014.
Disponíveis em http://www.datapopular.com.br/home_empresa_pt.htm. Acessado em 24 de abril de 2014.
Sigla pela qual passou a ser conheido o bloco de países composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, a partir de relatório produzido pela Goldman Sachs, em 2001.
A lata-copo consiste numa tecnologia que permite transformar uma lata de cerveja em copo, por meio de uma tampa com abertura total.
É assim, por exemplo, que, em relatórios de apresentação a clientes ou mesmo em estórias paradigmáticas contadas em palestras, os autoproclamados consultores desses novos mercados deixam-se "supreender" e "educar" pelos sujeitos que encontram em suas pesquisas de campo, simulando um estranhamento radical que se resolve na sua expertise em lidar com essa diferença e aplainá-la para conseguir capturá-la adequadamente, isto é, sendo capaz de convertê-la em insumo na construção de mercados.


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Vestígios de um "Novo Brasil"
A configuração do mercado de pesquisas para a "base da pirâmide"
Moisés Kopper – UFRGS

RESUMO: O artigo problematiza as novas representações emergentes desde princípios dos anos 2000 sobre o Brasil, sua economia e sua população, a partir da configuração de institutos de pesquisa de mercado voltados para a "base da pirâmide". A partir de entrevistas realizadas no Data Popular, A Ponte Estratégia e Plano CDE, busca-se tensionar a configuração de novos espaços que permitiram sua reprodução, seja por meio de alianças e fissuras entre expertos e profissionais, seja por meio de novas tecnologias metodológicas, apropriadas das ciências sociais, que contribuíram na construção de seu "novo objeto". Conclui-se que, nas passagens, empréstimos e experimentos inventivos entre ciência, mercado e governo, a consolidação desses institutos de pesquisa é crucial para o entendimento dos caminhos discursivos delineados pela "nova classe média" brasileira.
PALAVRAS-CHAVE: nova classe média, institutos de pesquisa, etnografia.
Quando se fala sobre problemas endêmicos do Brasil, uma das questões que mais vêm à tona é a sua desigualdade social de amplas proporções. Desde os livros didáticos mais elementares, aprendemos sobre nossas riquezas naturais e econômicas abundantes, contra as quais se impõe a "dura realidade" de sua distribuição irregular entre a população, um problema de longa data para muitos intelectuais preocupados com as especificidades do Brasil. Um país rico, mas com muitas pessoas pobres, tal o jargão que se constitui das inúmeras interpretações acerca de sua contextualização histórica e que circulam mais ou menos livremente como verdades corriqueiras sobre a situação de sua população.
De alguns anos para cá, as representações arraigadas sobre o caráter desigual da sociedade brasileira tiveram seu curso interrompido, sendo substituídas pelos brados acerca da emergência de um "novo Brasil". Não apenas a desigualdade na renda e nas condições de vida teria diminuído, como também sua população estaria desfrutando, em maior ou menor medida, dos benefícios de uma insipiente redistribuição, acompanhada de crescimentos econômicos em meio a crises internacionais diversas. A renda já não se concentraria exclusivamente no topo da estratificação, tendo mesmo se deslocado para suas camadas intermediárias – e seria desejável, segundo os moldes de uma invocada literatura internacional, que assim o fosse. Perdíamos, pois, a possibilidade de descrever nossa sociedade por meio de uma de suas figuras mais persuasivas, a pirâmide social.
As fotografias que estampavam os argumentos que outrora urgiam o combate à pobreza são agora substituídas por comportadas famílias sorridentes posando em ambientes domésticos povoados por objetos de consumo; outras procuram acentuar os contrastes e ambivalências que ainda existiriam, à frente de suas (muitas vezes) precárias habitações em zonas periféricas de grandes cidades. Ao longo da década de 2000, o número de artigos e reportagens a se valer dessas imagens não cessou de aumentar; pelo contrário, alimenta-se de um circuito que parece se constituir na profusão de publicações científicas que lançam dados cada vez mais bombásticos que comprovariam a veridicidade de seus argumentos: uma assim chamada nova classe média estaria em gestação, agouro de um novo tempo, vaticínio de um Brasil em transformação não apenas em suas estruturas mais objetivas, mas também no caráter de sua população, de seu povo.
A emergência de uma nova classe média brasileira abriu agendas de pesquisa e de intervenção que respondem a demandas políticas, econômicas e morais de nosso tempo. Da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE-PR) a intelectuais de gabinete, passando por jornalistas e elaboradores de políticas públicas, uma miríade de agentes, instituições públicas e privadas, sugeriu critérios para a sua apreensão e classificação, arrogando-se o direito de falar em seu nome, de acessar sua subjetividade e, enfim, destinar-lhe a tão aguardada cidadania política por meio de seu ingresso visível no universo do consumo.
No Brasil, os institutos privados de pesquisa de mercado foram os primeiros a sugerirem e apostarem numa possível associação entre mobilidade social, redução da desigualdade e ascensão de uma nova classe média. Constituem, por conseguinte, o primeiro elo de uma teia de conexões entre ciência, mercado e estado que importa reconstituir no processo de tornar inteligível esse idioma que sugere uma nova leitura do Brasil a partir de sua estratificação. Este artigo tem por objeto, assim, a configuração dessa paisagem que emerge no cenário mercadológico brasileiro a partir da década de 2000, preocupando-se com a reconstituição das materialidades técnicas que subjazem à construção social dos números dessa ciência tornada mercado: seus agentes e personagens, suas práticas e racionalidades, suas redes de conexões e fissuras que nos conduzem às intrincadas controvérsias em jogo na constituição dos mercados de consultoria de ideias no Brasil contemporâneo. Concentramo-nos especialmente nessas operações de experimentação (Muniesa e Callon, 2007) associadas a certos modelos científicos de intervenção e invenção desse mercado, atentos às formatações móveis, deslocamentos e circulações de tecnologias metodológicas.
Iniciamos com uma incursão pela primeira experiência bem-sucedida de pesquisa e consultoria para a "base da pirâmide" brasileira: o Instituto "Data Popular" e seus desdobramentos posteriores, os institutos "A Ponte Estratégia" e "Plano CDE". Na sequência, enfocamos os processos de inflexão no mercado de ideias que permitiram a sua emergência. Em seguida, a partir de conversas e entrevistas com expertos no Data Popular e A Ponte Estratégia, esmiuçamos a constituição de espaços de experimentação metodológica, fundamentados num diálogo de apropriações e empréstimos com as ciências sociais, sem o que esses institutos – e seu efeito, qual seja, a invenção da "nova classe média" – seriam inimagináveis. Finalmente, encerramos com uma problematização sobre os limites definitórios das fronteiras entre ciência e mercado, por meio de reflexões em torno de tensões constitutivas das trajetórias dos profissionais e de seus métodos.
1 – Do mercado para a "base da pirâmide" ao surgimento dos institutos de pesquisa
No início da década de 2000, o universo da administração corporativa recebeu um de seus impulsos mais duradouros e influentes na direção de um reordenamento profundo dos paradigmas que sustentam o planejamento de estratégias de negócios e empresas e, logo, da estruturação dos mercados capitalistas contemporâneos. C. K. Prahalad, um dos pensadores corporativos mais influentes do séc. XX, lançava o conceito de "base da pirâmide" (BoP) em dois artigos publicados em 2002 (Prahalad e Hart, 2002; Prahalad e Hammond, 2002), seguido de seu best-seller The fortune at the bottom of the pyramid: erradicating poverty through profits (2004). A obra sugeria, de um modo até então inédito, que seria possível erradicar a pobreza através da invenção de novos modelos de mercado destinados a esses segmentos da população.
O desafio estava, em suas palavras, em propor alternativas eficientes ao grande problema histórico enfrentado mas não resolvido por organismos multilaterais, agências internacionais e governos nacionais. Entre os pressupostos lançados pelo autor, estava o de que a "base da pirâmide", de um ponto de vista econômico, figurava como o grupo mais pobre de uma sociedade, mas também o mais volumoso, constituído por 80% da população mundial ou quatro bilhões de pessoas. Havia, então, que inflexionar as estratégias de mercado para atingir esse segmento e despertar seu potencial de consumo, transformando pobres em consumidores por meio de processos de interação produtiva conhecidos sob o signo da "co-criação", e convertendo-os no target primário das empresas privadas.
Na prática, isso incluía questões como novas táticas e oportunidades de mercado – baseadas na diversificação dos canais de distribuição –, a criação de serviços e produtos pensados desde sua concepção para circulação em mercados emergentes – vale dizer, simplificando e barateando os custos de produção local, com menores margens de lucro e grandes volumes de venda, e percebendo e canalizando novas "necessidades" desses segmentos – além de foco em conceitos como baixo custo, sustentabilidade, qualidade e lucratividade. O argumento era de que o consumo em massa e o desenvolvimento de mercados internos seriam capazes de produzir a imagem de uma pirâmide social em movimento – isto é, que lograsse se converter em "diamantes sociais" ou, mais concretamente, em populações de classe média (Prahalad, 2004, p. 109 e ss.).
Menos de uma década depois da publicação dos estudos de Prahalad, em um programa televisivo de abrangência nacional, o apresentador inquere seu interlocutor da seguinte forma: "O Sr. é especialista na nova classe média. Quem levar essa fatia do eleitorado tem muitas chances de ganhar esta eleição. Quais são as demandas da nova classe média na próxima eleição presidencial? Que que é prioridade pra esse público?". Quem estava diante das câmeras era Renato Meirelles, diretor fundador do Instituto Data Popular, que se consolidou rapidamente como referência consultiva quando o que está em jogo é traçar tendências, explicar comportamentos e prognosticar reações da chamada "Classe C".
Filho de psicólogos, residente na Vila Madalena, bairro boêmio de São Paulo, Meirelles compõe a terceira geração de universitários da família. Participou desde cedo de diferentes movimentos estudantis, entre os quais a direção da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas, e atuações destacadas no Centro Acadêmico durante o período universitário. Ao tomar parte do projeto "Sou da Paz" – uma campanha em favor do desarmamento que surgiu em 1997 –, Meirelles converteu-se ao universo da propaganda e do marketing. Instigado pela perspectiva de transformar a realidade, Renato decidiu inscrever-se na faculdade de Publicidade e Propaganda da Fundação Armado Álvares Penteado (FAAP). Lá, conheceu um professor de pesquisa de mercado que era, então, sócio da Popular Comunicação, uma agência de marketing em operação na cidade de São Paulo. Meirelles ingressou como estagiário na empresa, coordenada por publicitários como André Torreta, Bá Assumpção, João Augusto Palhares Neto e Wagner Sarnelli.
Renato Meirelles foi convidado a ingressar na Popular Comunicação como parte de um esforço interno de diversificação e ramificação comercial, que incluía a criação de um braço de pesquisas de mercado, que em 2001 desembocaria na fundação do Data Popular. Ao longo da década, ele ascendeu rapidamente às posições de comando da empresa, até tornar-se reconhecido publicamente como sócio-diretor do Instituto. Por meio de generosas matérias midiáticas e contratos de alta monta com clientes interessados em suas pesquisas e metodologias, seu nome transformou-se numa espécie de selo certificador dos saberes produzidos em torno da "nova classe média" – a tal ponto que sua rotina atual concentra-se mais na concessão de entrevistas e palestras que propriamente na administração do instituto. Certamente não é de menor importância, nesse processo, o fato de haver convertido o que até então era apenas uma agência de marketing em um instituto de pesquisa. Isso lhe permitiu, mais que investir as pesquisas de reconhecimento científico, agregar uma equipe multidisciplinar capaz de engendrar um "produto diferenciado".
Nas palavras de Renato, sua ideia do que deveria ser o Data Popular implicava que ele pudesse fornecer "uma leitura diferente do que a opinião pública, a imprensa e as empresas estavam acostumadas a ver. (...) Se a imprensa é bem generosa com a gente, tem a ver com essa visão de mundo que a gente construiu, de como mostrar a história das pessoas atrás das estatísticas". Com efeito, seria possível estender suas reflexões acerca das razões que conduziram ao rápido sucesso dessa empreitada, especulando em torno das sobreposições entre redes de intelectuais, agências da grande mídia, novas metodologias importadas das ciências sociais e reconfigurações nos discursos e recursos de comunicação mais amplos – o que apontaria convergências entre jornalismo e propaganda quanto ao uso de "casos" paradigmáticos e números persuasivos, por exemplo.
Em 2001, por ocasião do surgimento do Instituto Data Popular, um conjunto de sócios atuava em parceria, promovendo cursos e palestras que tinham o objetivo de chamar a atenção para a constituição de novos mercados e a necessidade de pensar estratégias inovadoras de marketing para esses segmentos. Entre eles estava o publicitário baiano André Torreta, que até aquele momento exercera a profissão empregando-se como redator e diretor de criação em diferentes empresas de comunicação. Apesar de bem sucedido, a rotina de sua ocupação não lhe satisfazia plenamente. Nas suas palavras, "não tinha nada de brasileiro de verdade, e eu sonhava que tinha essa possibilidade".
André decidiu, então, mudar de rumo, passando a atuar como estrategista político em diferentes estados brasileiros, incluindo-se o Rio Grande do Sul, em que foi responsável pelas campanhas de Antônio Britto, em 1998, e de Alceu de Deus Collares, em 2000. Ficou nesse ramo por quinze anos até que, cansado de percorrer o país em correrias infindáveis atendendo ao setor público, decidiu que era chegada a hora de regressar à iniciativa privada. Estava decidido a fazer isso em São Paulo:
Mas montar uma agência em São Paulo.... A fila é enorme. É difícil pra cacete. (...) Porque eu tinha feito todo o network só na área pública. Aí me associei a três caras que saíram da Salle e discutiam networking, mas eu achava que uma hora o Brasil ia se reconhecer. Que tinha esse sonho por trás que eu acho que ia ter uma nova identidade nacional. (...) Como eu fiz campanha em mais de 20 estados do Brasil... Então é assim: 'André, você conhece?' Conheço. Eu fui lá. Então eu conhecia o Brasil e achava que isso poderia valer algum dinheiro. Agora começa a valer.
Montar uma agência de marketing no coração econômico do país, entretanto, não se afigurava tarefa fácil. As andanças pelo Brasil e a ampla experiência de campo provar-se-iam decisivas para realizar o intento e, posteriormente, fundar a "Publicum", por meio da qual veio a associar-se à Popular Comunicação e, em seguida, ao Data Popular. Juntou-se a dois outros sócios, um dos quais de nome Fábio que, nascido em "um bairro muito pobre", supunha-se, poderia oferecer uma "visão" mais "próxima" da realidade. De posse desse valioso networking, ele reivindicaria a autoria criativa que culminaria na gestação do Data Popular.
André não permaneceu tempo suficiente para consolidar-se no instituto. Segundo o publicitário, em 2001 ainda não havia clientela que justificasse investimentos vultosos de propagada e marketing direcionados para as classes populares: "As pessoas ainda não enxergavam isso". Sua sensibilidade, contudo, indicava que estava na hora de apostar mais incisivamente nessa "ideia". Isso ocorreu a partir de 2007 quando um conjunto de fatores fez com que retornasse a esse mercado, fundando a empresa "A Ponte Estratégia". Entre eles, estava a noção de construir-se como profissional bem sucedido, o que equivale a observar a si próprio como protagonista de processos constantes de recomposição e reconfiguração, numa dinâmica incessante de renovação e reciclagem que inauguraria um nicho de mercado próprio, dentro do qual seria possível pensar "out of the box" – isto é, para além dos parâmetros tidos como convencionais ou instituídos.
Luciana Aguiar é a terceira parte que deu origem ao Instituto Data Popular, ao lado de Renato Meirelles e André Torreta. Com uma trajetória pontuada pela circulação em espaços acadêmicos, ela é doutora em antropologia social pela Universidade de Cornell (EUA), e participou, ao longo da carreira de mais de vinte anos, de diferentes projetos de responsabilidade social e geração de renda promovidos por instituições internacionais e multilaterais. Além disso, atuou na coordenação de pesquisas e projetos em empresas multinacionais dos segmentos de alimentos e bebidas, varejo, cosméticos, laboratórios farmacêuticos, finanças, telefonia, tecnologia e publicidade.
Sua entrada no mercado de consultorias e pesquisas aparece vinculada à possibilidade de um retorno ao trabalho com o que chama de "público de menor renda", que por sua vez é indissociável de uma tentativa de ampliar os horizontes e olhares consagrados pelos agentes já estabelecidos nesse cenário. Para ela, não é de menor importância o fato de que, uma vez no "mercado", a possibilidade de acesso a diferentes informações e a "campos" pesquisáveis, assim como o ritmo da coleta de dados, torna-se muito maior. Por extensão, é nesse contexto de rápidas transformações e apropriação de grandes volumes de dados que é preciso entender a movimentação e constituição de sua agência enquanto pesquisadora de mercado. Tudo iniciou com a associação ao Data Popular, que era então o único a "empunhar essa bandeira no começo dos anos 2000".
Eu ajudei a fundar a empresa, boa parte dos argumentos que são usados hoje lá eu ajudei a construir. Eu tava dentro desse projeto, mas ele acaba assumindo um traço, que é justamente o esforço de como vender para o pobre. Ele começa a assumir um papel apenas como consumidor. Então a questão da pobreza é colocada em segundo plano e o discurso do acesso ao consumo se torna mais evidente. (...) Acho que tem uma questão aqui importante que é uma visão que é muito caricata de classe média. É um discurso que a mídia tem adotado, é um discurso que as empresas também adotam que é um pouco de marcar muito a diferença (...). Com isso as questões transversais começam a ser deixadas de lado.
Ao lado de Luciana, Haroldo Torres era responsável pela arquitetura técnica do instituto de pesquisas. Economista e demógrafo com doutorado na Unicamp e especialização pela Universidade de Harvard, já tinha grande experiência na formulação de projetos junto a organismos internacionais, governos, terceiro setor e empresas quando da fundação do Data Popular. No setor privado, desenvolvia projetos nas áreas de educação financeira, varejo, investimentos, cartões, construção e bebidas. Sua trajetória também foi marcada pela atuação junto ao setor público, em instituições como o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), a Secretaria de Educação de São Paulo, prefeituras, o Ministério da Educação e o Ministério do Desenvolvimento Regional. Era nítido, em suma, que sua carreira e interesses o aproximavam substantivamente de Luciana.
Em meados da década de 2000, o Data Popular se reconfiguraria com a saída de Luciana e Haroldo de seu quadro técnico, com a consequente fundação do Instituto Plano CDE. Este conta atualmente com quatro sócios que operam como diretores – além de Luciana, coordenadora técnica; e Haroldo, que atua como consultor; há também um diretor executivo, e um fundo de investimento e negócios de impacto social, chamado Vox Capital, igualmente parte do Data Popular no passado. Sua estrutura atual de funcionamento reforça a vocação analítica e técnica de seus pesquisadores. Assim, o rompimento entre os sócios provocou a migração de parte dos clientes do Data Popular, sobretudo aqueles interessados em avaliações de impacto e responsabilidade social e organismos governamentais buscando informações para o subsídio de políticas públicas.
Esses e outros desdobramentos tiveram significativos efeitos sobre o modo como o Data Popular rapidamente se converteria numa espécie de selo garantidor dos debates subsequentes acerca do surgimento de uma nova classe média brasileira. Com a decomposição do instituto, Meirelles logrou conduzir com maior controle os problemas que lhe interessavam na opinião pública – chegando mesmo a tomar assento em uma comissão de discussão para proposição de um novo critério de estratificação das classes sociais brasileiras, no âmbito da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.
Da mesma forma, as bifurcações do Data Popular em outros institutos igualmente voltados à base da pirâmide acabariam consolidando a figura de Meirelles como "especialista" nessa "nova classe média" em ascensão. Prova disso é que a partir da segunda metade dos anos 2000 os principais jornais do país não cessariam de associar seu nome à expertise da produção de números que precisariam, como condição de sua eficácia, cada vez mais, agregar novos valores: não bastava levar às últimas consequências os esquadrinhamentos e sobreposições no interior da "nova classe média" – o que esses sujeitos consumiam, de que forma o faziam, que subpopulações eram afetadas, quais os prognósticos futuros sobre o Brasil, seus mercados e seus políticos. Era preciso tratar de construir novos quadros institucionais que possibilitassem a essa gramática reproduzir-se por si própria – e, com isso, inercialmente, a seu personagem público alimentar-se desse cenário controlado de invenções orquestradas.
2 – Das Teorias "Aspiracionais" às Classes C, D e E
Renato Meirelles, André Torreta e Luciana Aguiar, na origem da fundação do Instituto Data Popular, conquanto seguissem distintos caminhos na configuração de uma arena de consultorias e pesquisas de mercado, concordam que esta se funda sobre o pressuposto básico dos estudos de Prahalad (2004): a ideia de que é preciso inflexionar o olhar para abarcar a "base da pirâmide" como condição de produção de novos espaços de consumo capazes de alavancar a economia. O lugar galgado por esses institutos já se prefigurava em matérias de jornal desde 2001, em que a Folha de São Paulo divulgava a realização de uma palestra intitulada "Estratégias publicitárias para as classes populares", promovida pelos sócios do instituto então em construção, sugerindo o que parecia ser um novo olhar sobre o marketing. Em comentário publicado no mesmo jornal, dias após o evento, lê-se que "Consumidor de baixa renda faz marca líder":
(...) os publicitários disseram que as companhias não sabem como lidar com o mercado de baixa renda, que deve movimentar R$ 230 bilhões neste ano [2001]. Por isso, eles argumentam, quem atingir essa população será imitado por outras empresas. Apesar do baixo poder aquisitivo, é essa classe social que decide a liderança das marcas, porque, segundo os publicitários, é formada por 80 milhões de pessoas. Mas essas pessoas sofrem com a discriminação da própria propaganda, que os bombardeia com produtos a que não têm acesso. Isso os faz criar uma proteção psicológica contra os sonhos inatingíveis. Com isso, um anunciante compra um espaço na televisão assistido por milhões de espectadores, mas só atinge de fato uma pequena parcela deles. É preciso conhecer esses consumidores para não criar peças publicitárias que pecam em detalhes que pode levá-los a concluir que o produto vendido não é feito para eles. Os consumidores de baixa renda têm sonhos diferentes dos consumidores de alta renda.
Tratava-se, então, de um argumento novo no mercado publicitário – algo evidenciado no próprio tratamento direcionado e cuidadoso da mídia para deixar claro que a ideia era deles, os publicitários. Sua consolidação ocorreria ao longo da década, junto com a evolução matemática da performance dos números e da ampliação generalizante desse discurso. No primeiro caso, ficaria evidente que a eficácia do argumento estava atrelada à possibilidade de converter os segmentos de baixa renda em números objetivados que, em seu conjunto agregado, forneceriam razões suficientes para a expansão de mercados na base da pirâmide. É assim que as projeções econômicas realizadas pelo Data Popular, extensões desse raciocínio, aventariam um consumo anual de R$ 230 bilhões em 2001 e de mais de R$ 1 trilhão em 2012 – resultado da expansão do crédito, da oferta de bens duráveis e da dilatação do mercado interno brasileiro, como sustentam. Não obstante as mudanças nos critérios de classificação e circunscrição de classes ao longo desses anos, os dados produzidos pelo instituto apontam para um inequívoco e constante recrudescimento do potencial de consumo, legitimado por números cada vez mais incisivos sobre a participação das populações de baixos rendimentos na economia nacional: consumindo 78% do que é comprado em supermercados, 70% do número de cartões de crédito, 80% do acesso à internet, e assim por diante.
Por outro lado, a invenção do conceito de "nova classe média", a partir da pesquisa conduzida por Neri (2008) à testa da Fundação Getúlio Vargas, permitiria ao instituto operar a passagem de um discurso situado para um discurso generalizado, isto é, que atravessa a sociedade como um todo. A grande mídia deixava, assim, de situar a expansão dos mercados na base da pirâmide como simplesmente uma "ideia" de publicitários, passando até mesmo a incorporá-lo como grande avatar de um "novo Brasil". Por sua vez, a noção de "nova classe média" se prestava à passagem porque permitia articular a dimensão econômica do consumo à questão governamentalizante da cidadania, isto é, das populações que passariam doravante a ser objeto de políticas públicas e de retóricas em torno da "inclusão", seja ela social, econômica ou política. Em poucas palavras, na passagem da baixa renda para a nova classe média como campo semântico, criava-se um novo sujeito político de direitos, alicerçado na consolidação de novos mercados aos quais se encontra inextrincavelmente vinculado, apropriado como a face visível de uma nova população em nome da qual deverá ser governado esse igualmente "novo Brasil".
Desenhar os contornos culturais desse novo personagem no cenário econômico e político brasileiro coloca-se como o desafio central do Data Popular, na medida em que é esse imaginário sobre a alteridade que tornar-se-á o objeto de sua comercialização na relação com clientes interessados nessa expertise. Como pistas nesse sentido, os slides de apresentação do instituto sugerem que há, entre o mundo corporativo e o universo do consumidor popular, uma "dissonância cognitiva". A desconsideração das diferenças culturais, educacionais, econômicas e linguísticas estaria na origem dos fracassos das estratégias de marketing voltadas para "conquistar" a "nova classe média". Em outros slides, convida-se os empresários ainda excessivamente direcionados pela "lógica corporativa" a um "choque de realidade": "passe um dia trabalhando como corretor e você descobrirá que o que vale é explicar, não vender. Aproveite para ver de perto as dificuldades do dia-a-dia dos corretores e saber o que o cliente realmente precisa"; "vá ao Feirão da Caixa e fique na fila, esperando para ser atendido, como a maioria da população brasileira. Troque uma ideia com as pessoas ao seu lado e você aprenderá muito sobre o que a nova classe média está procurando"; "caminhe por um bairro tradicional da baixa renda, como Ermelino Matarazzo ou mesmo no stand da Olá (Klabin Segal) em Guarulhos, para desvendar o que é o sonho da casa própria. Enxergue além do óbvio!"; "Bem-vindo ao Brasil de verdade". De fato, a primeira página de apresentação, tanto do site quanto dos slides, procura "fazer imergir" o leitor ou potencial cliente nessa "nova realidade":
Bem-vindo ao mundo do carnê, do consórcio, do SPC.
Bem-vindo ao mundo do metrô, do buzão, da lotação, da CBTU, do seminovo zerado.
Bem-vindo ao mundo do vale-refeição, do PF e da marmita.
Bem-vindo ao mundo do supletivo, da escola de cabeleireiro e do curso de computação.
Bem-vindo ao mundo do celular pré-pago, da megasena.
Bem-vindo ao mundo do trabalho informal, da pensão do INSS, do despertador pras 5, da mobilidade social.
Bem-vindo ao mundo do Ratinho, Raul Gil, Bruno & Marrone, Banda Calypso, Calcinha Preta, MC Leozinho e da Rádio Tupi.
Bem-vindo ao mundo do supermercado com a família, da cervejinha gelada, da macarronada com frango, do financiamento da Caixa.
Bem-vindo ao mundo surpreendente da economia da base da pirâmide.
Assim, ao desenhar uma nova visão desses sujeitos, doravante de nova classe média, Renato enreda criativamente o imaginário de seus interlocutores-clientes e se constrói, simultaneamente, como personagem central do próprio processo de experimentação que produz a expertise por trás da construção mercadológica da diferença. Tanto é assim que uma importante parte da rotina do instituto consiste em convencer potenciais clientes da necessidade de procurar ajuda especializada – leia-se, cientificamente legitimada – para tratar das especificidades dessa nova classe.
Qual, então, a motivação de fundo capaz de dissuadir esse mesmo interlocutor da necessidade de abrir-se à compreensão desse outro "de classe C" dramatizado nos exemplos –caricaturado e essencializado nas figuras de linguagens, chistes e retiradas de contexto? Nas palavras do publicitário: "Precisamos repetir o óbvio: o consumo popular tem uma participação importante na economia". Vale dizer, o sujeito (da nova classe média) só existe ou aparece como cidadão – livre para escolher – na medida em que se torna um consumidor cujas práticas ou lógicas podem ser escrutinadas pelo saber econômico que cria esse próprio sujeito. Ou seja, é porque a "economia" pode "crescer" que é preciso valorizar a particularidade e a liberdade desse sujeito, suas aspirações, desejos e expectativas; mas isto é também, novamente, apenas verdade na medida em que este sujeito consuma – e é mais bem no ato de consumir que sua liberdade, controlada pelo "mercado" e pelo "governo", se materializa.
Assim, não surpreende que Renato Meirelles veja a passagem das teorias aspiracionais à análise das especificidades da Classe C a condição para a efetivação de novos mercados em cujas definições tomaria parte por meio das pesquisas cientificamente legitimadas de mercado. Em suas palavras:
Eu acho que o mercado de propaganda aprendeu a fórceps essa classe média. Eles têm uma dificuldade de entender que o Leão de Cannes, que é o maior prêmio da propaganda mundial, não vale nada para quem mata um leão por dia para sobreviver. A propaganda cresce com a teoria do aspiracional, de que todos querem ser melhores pra isso, e historicamente a propaganda esculhamba as pessoas pra que ela se sinta mal e ache que a compra do produto é a única forma dela se sentir bem. E isso não funciona pra essa classe média. Ela ta com a autoestima elevada, ela quer ser reconhecida, e ela acha o rico o babaca, o maior perdulário.
Para André Torreta, sócio-diretor de "A Ponte Estratégia", o problema resume-se ao modo como os institutos tradicionalmente se engajam na produção de pesquisas de mercado, numa comparação às discussões travadas no cenário internacional. A "descoberta" das diferenças culturais e regionais seria um passo natural no sentido de tornar o produto dessas consultorias mais ajustado à "realidade" dos consumidores finais.
Hoje tem uma discussão mundial sobre a qualidade das pesquisas [de mercado]. Elas não evoluem. Estão se discutindo mudanças de modelo de todos os serviços e produtos do país. E os institutos de pesquisa se recusam a discutir o seu negócio. A televisão ta se modificando, o carro se modificando, celular se modifica mas o instituto de pesquisa só quer fazer daquele jeito ali. Achando que o mundo cabe ali. (...) Muitos institutos de pesquisa não fazem o campo. É terceirizado. Então, o cara que apresenta o PowerPoint, ele nunca conversou com ninguém. (...) Quando você manda gente ir atrás de um assunto, as pessoas voltam falando coisas que a gente não perguntou. Porque tem muitas coisas que você não sabe que tem. Não existe questionário completo. Então, se achar alguma coisa interessante, trás pra gente! Aí começa a vir um outro tipo de informação.
Vê-se, assim, que desse ponto de vista a consolidação da Ponte Estratégia era diretamente proporcional à apropriação de novas metodologias que permitissem dar conta das especificidades da "realidade brasileira" – numa espécie de sinônimo para "nova classe média" ou ainda "classe C". Ao mesmo tempo, ao situar seu esforço numa posição de vanguarda, em que está em jogo a fabricação de tendências e a interpretação de indícios ainda pouco convincentes ao grande público, Torreta termina por colocar-se na posição do profeta, reconhecido por suas habilidades persuasivas em um mercado pouco explorado. "Existia um preconceito muito grande no Brasil sobre essa nova classe média. Há quatro anos atrás nem discutia-se se devia ter cara de pobre na televisão ou não; se deveria se fazer produtos específicos ou não. As agências diziam que o que eu estava falando era maluquice. Então foi muito de catequese". Seria essa especificidade, em última instância, a responsável pelo rápido sucesso da empresa, e pela repercussão das estratégias de divulgação adotadas.
Ao produzir essas e outras interfaces com literaturas internacionais na área do marketing, com experiências de companhias bem-sucedidas no exterior, André logrou capitalizar seu negócio, especializando-o em conhecimento para o contexto brasileiro. Esse processo de apropriação e circulação de tecnologias de como fazer a gestão de sua empresa passava igualmente pela importação crítica de metodologias já bastante convencionais em outros cenários internacionais, que precisariam ser empregadas no redesenho das práticas de pesquisa realizadas no Brasil. "A gente foi montando um monte de metodologias, porque também não é ciência. Não é ciência. É uma outra história". Derivado da gramática da administração, Torreta chama o processo de inovação em países de terceiro mundo através do desenho de produtos e serviços nesses países como renovation. "A gente começou a entender e começamos a prestar diversos outros tipos de serviços porque a lógica das coisas estava mudando. Então, se você tem que criar um produto e você submete à pesquisa, às vezes a pesquisa não testa. E se não testa, não presta".
Para Torreta, o principal desafio enfrentado pelos institutos de pesquisa no Brasil, em pleno processo de renovação a partir da reconfiguração de seu mercado interno, estaria em inverter as instâncias de tomada da decisão sobre campanhas de marketing e propaganda – que, no caso das multinacionais, ainda estariam demasiadamente centradas nos grandes centros mundiais, sendo em seguida importadas aos países periféricos. Seriam essas dificuldades que explicariam o fato de que apenas recentemente os institutos de pesquisa se consolidaram no entendimento da "realidade brasileira":
Há 10 anos atrás tinha o IBOPE, que sempre teve, e só. Aí depois veio a IPSOS pra cá. Começou a dar corpo no mercado dos institutos de pesquisa. (...) Então o que seria pra ser uma coisa fácil, que é você ter uma empresa que atende a classe C no Brasil, já que classe CDE é 90% da população, não é tão fácil não porque o cara não quer. (...) O mainstream brasileiro nunca foi um mainstream. O mainstream brasileiro era alguém de classe A. Mas classe A é nicho! Ainda não caiu todas as fichas de que a gente vive em um país em que Moinhos lá em Porto Alegre é a exceção. E tem esse começo de quebra de paradigma das agências, dos institutos de pesquisa.
Por sua vez, Luciana Aguiar, sócia-diretora da "Plano CDE", sustenta que os discursos que emergiram no fim da década de 1990 em torno da importância estratégica dos países dos BRICS vieram associados de uma "constatação de que esse público [os mais pobres] não era atendido e muitas vezes desconsiderado dentro do discurso do marketing e das estratégias das empresas em geral. Quer dizer, era um público basicamente atendido pelo setor público ou pelo terceiro setor". Assim, o processo que tornou esse público visível veio acompanhado do surgimento das primeiras pesquisas de mercado no Brasil, e da constatação de que existe um mercado na base da pirâmide:
Na verdade o argumento era: 'existe um mercado de baixa renda'. E essa questão vai tomando corpo ao longo aí dos anos 2000 e até dois mil e tantos. (...) Então o que você tem dentro das empresas no começo é um grande, enorme preconceito com relação a esse público, uma classe média que é empobrecida e uma construção de um argumento de que de fato existe uma nova oportunidade nesse mercado e as empresas começam a se dar conta disso muito recentemente. (...) Por isso que eu acho que quando se escuta falar da classe média você escuta mais o olhar de quem vê. Eu não vejo que seja de fato uma caracterização do público.
Luciana é taxativa ao sustentar que a adaptação das empresas ao mercado da classe C ocorreu de modo irregular e inconstante, devido a fatores internacionais que as forçaram às mudanças, a tal ponto que se tornou, hoje, uma demanda que já parte do próprio cliente. Ainda assim, a relutância das empresas em trabalhar com perspectivas voltadas a esse público dever-se-ia, sobretudo, à falta de "glamour" subjacente à mudança de paradigmas, na medida em que implica uma inequívoca massificação e padronização do consumo e, assim também, uma inflexão no modo de pensar as estratégias de marketing. Por sua vez, trabalhar com processos de massificação do consumo implica não somente inflexões nas estratégias de campanha de marketing, como também adaptações e modificações na concepção da cadeia de produtos e serviços. De um lado, isso é possível através da diversificação de canais de distribuição no acesso a esse novo público que reside na periferia dos grandes centros. Outro caminho, de acordo com Luciana, seria baratear o produto final, tornando-o mais simples: "é uma visão absolutamente estreita, mas muito comum". Esses limites apontariam para o fato de que as empresas em geral ainda estão num processo contínuo de aprimoramento de suas técnicas, e que ainda há muito a ser feito:
Acho que tem uma questão que não é só de comunicação, mas é geral, que é partir de um entendimento real da dinâmica de funcionamento, da lógica de consumo dessas classes de renda mais baixa, e não simplesmente a adaptação e tradução dos conceitos e produtos do público de renda mais alta. Então não se trata só de pegar um produto e tirar atributos para ele ficar mais barato e poder ser consumido pelo público de renda mais baixa. Eles querem produtos que respondam às suas necessidades. Às vezes o atributo que você tira é exatamente aquele que seria fundamental para atender uma necessidade que é diferente da outra. Então acho que ainda existe muito desconhecimento sobre essa classe, ou essas classes, e ainda muita coisa é pensada a partir dos processos e da dinâmica de consumo de renda mais alta, tentando se adaptar para o público de baixa renda.
3 – Metodologias e Expertises: produzindo mediações entre ciência e mercado
O Data Popular é composto por uma equipe multidisciplinar de cerca de vinte e cinco pesquisadores com passagens por universidades em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, que se dividem em dois departamentos, de acordo com a natureza das investigações que conduzem – quantitativa ou qualitativa. Por um lado, os estudos quantitativos se realizam a partir de dados secundários, como análise de informações do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), do censo demográfico ou ainda de amostragens do PNAD (Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios). Por outro, de acordo com as demandas de cada cliente, o Data Popular pode organizar pesquisas primárias, através da realização de surveys com dezenas, centenas ou até milhares de entrevistados.
O departamento de pesquisa quantitativa, sob a coordenação de um jovem com especialização em economia, trabalha de modo mais ou menos independente em relação ao de pesquisas qualitativas, dirigido por uma socióloga. As entrevistas realizadas entre 2012 e 2014 com pesquisadores, coordenadores, e ex-funcionários, não deixam dúvidas quanto ao processo de tradução dos "diferenciais" do Data Popular enquanto agência de pesquisas em metodologias de investigação. Estas tratam de conciliar estratégias quanti- e qualitativas, seja como forma de mobilizar os diferentes recursos humanos do instituto, seja como tática de legitimação diante do cliente. Segundo um dos entrevistados:
Esse é o diferencial do Data, porque em geral os institutos entregam um relatório quali e um quanti. E daí as coisas não se conversam e o cliente dá um jeito de resolver. Ou então os institutos terceirizam a quali, contratam um moderador que faz a análise e entrega tudo pronto. A gente faz a análise aqui dentro por esse time de cientistas sociais. Então a quali pode ser grupo de discussão, imersão etnográfica, pode ser uma série de coisas. A partir dali a gente desenvolve o questionário quanti baseado nesses primeiros aprendizados porque pra tomar decisões em geral os clientes querem um número que comprove aquilo, pra poder desenvolver um produto novo ou uma estratégia. Eles querem a segurança do número. (...) Quando a gente divulga na imprensa, por exemplo, a imprensa só quer saber de quanti; (...) Se você der uma pesquisada na internet do Data você só vai ver número. O que não quer dizer que a gente faça mais quanti do que quali.
Apesar de as pesquisas quantitativas serem logisticamente mais complexas – uma vez que mobilizam maior número de pesquisadores e instâncias de mediação – a experiência do Data Popular enquanto instituto de pesquisa permite "não partir do zero". Esse acúmulo de expertise e conhecimentos se deve sobretudo ao fato de "se olhar mais para um segmento da população", o que concentra esforços, redes de contatos e técnicas. É também essa sedimentação de experiências no trato com a "nova classe média" que autoriza a confecção de diferentes modelos e projetos de pesquisa na relação com os interesses e expectativas de seus clientes: "muitas vezes o cliente já chega e diz 'olha, eu preciso entender tal coisa'. Aí a gente recomenda a metodologia. Às vezes o cliente chega com um briefing definido e a gente faz aquilo que ele pede; outras ele chega e a gente sugere modificações que funcionam melhor". Algumas empresas, mais estruturadas, com departamento de pesquisa próprio, costumam solicitar demandas bastante específicas, que podem variar desde a simples aplicação de grupos focais para testes de marcas ou produtos, até a execução de projetos já previamente montados.
Pesquisas menos direcionadas geralmente implicam o acionamento do departamento qualitativo – em especial o que se convenciona chamar, nesse universo, de "observação etnográfica". Em acentuado contraste com a observação participante antropológica clássica – que implica, nos moldes malinowskianos, uma imersão subjetiva de longo prazo em que o resultado é a conversão da experiência de afetação do etnógrafo, num processo de mediação produzido por meio da escrita acadêmica entre seus "informantes" e seus leitores – a observação para fins de mercado obedece a outras lógicas e coloca em marcha uma intrincada rede conectada de agentes, mediações e instituições ao longo de sua cadeia produtiva como recurso metodológico.
Antes mesmo de a pesquisa iniciar, como uma espécie de assessoramento técnico, há todo um mercado multiforme de recrutamento de pessoas e famílias – os "informantes" da antropologia – que "se enquadram no perfil" demandado pelos objetivos da investigação. Nas palavras de outro entrevistado: "Então a pessoa diz: 'eu preciso de quatro casos no interior, mulheres com esse perfil, essa idade'. Aí os recrutadores que prestam esses serviços vão lá, veem bem a casa, veem se ela tem condições de receber uma pessoa, se ela quer". A dinâmica dessas redes baseia-se ainda em indicações e circuitos de confiança estabelecidos ao longo da experiência de atuação no mercado:
A gente faz muito por indicação de uma ou de outra pessoa. Existem recrutadores que trabalham de forma autônoma e eles levantam fichas de pessoas que estariam dispostas a participar de pesquisas, e eles comercializam essas fichas. Comercializar ficha parece que você ta vendendo a pessoa, mas é como funciona. Eles levantam essas fichas e eles ganham por ficha. Eles são remunerados por ficha que seja dentro do perfil que a gente quer. Então a gente tem alguns recrutadores que trabalham com a gente. A gente sempre faz uma checagem de todos os dados, liga, nunca fala pra ele sobre o que que é a pesquisa porque se não é... Tem muita fraude em recrutamentos. Você tem que ter mecanismos pra lidar com isso. Então 'ah, fala que você consome, sei lá, hidratante'. 'Fala que você faz não sei o que'. Ou então é a pessoa que indica uma pessoa que indica outra que indica outra... E às vezes a gente vai pra rua mesmo. Por exemplo... tem que ser consumidor de uma loja. Então a gente vai as vezes pra porta da loja e fala "ah, você não quer participar de uma pesquisa e tal". E assim que é feito o recrutamento.
Da mesma forma, o mercado de recrutamentos implica a presença e circulação de dinheiro em diferentes níveis do processo de pesquisa. Desde a intermediação de pessoas com "perfis" adequados até a remuneração dos próprios participantes de entrevistas e grupos focais, nas dependências do instituto ou em suas residências – no caso de "observação etnográfica" – tudo é recompensado monetariamente. Para os técnicos do Data Popular, esta seria a maneira mais eficaz de recrutamento: "Tem institutos que dão porta-retratos ou alguma outra coisa. A gente entende que pelos gastos de deslocamento e etc. o melhor é pagar em dinheiro". Obviamente, a dinâmica desses investimentos é computada no cálculo geral que informa os valores finais cobrados pelo planejamento e execução de pesquisas:
Então, o entrevistado é remunerado, a pessoa que achou esse entrevistado é remunerada... Enfim, tudo tem custo. Por exemplo, essa é uma sala de espelho pra grupos de discussão. Então a gente serve comida pra todo mundo, né, pra todo mundo ficar à vontade e ir falando e etc. (...) Então isso tudo entra na cadeia de gastos, além do moderador, do analista que faz o relatório, que embora seja interno isso também é contabilizado nesse custo. Tem o custo, sei lá, da copeira que serve aqui e que volta pra casa de táxi, então tem o custo desse táxi... Então tudo isso entra na nossa planilha pra definir o valor de um grupo.
Em geral, as pesquisas de caráter observacional e etnográfico buscam resolver problemas relativos ao uso de certos equipamentos e objetos. Alternativamente, podem focar na exploração da "realidade" do público-alvo de certo cliente. No limite, são essas modalidades de questionamento que informam os critérios de produção dos relatórios de campo na origem das observações qualitativas. Nas palavras de uma das coordenadoras de pesquisa:
Tudo depende do objetivo do cliente. Por exemplo, se ele quer saber a relação do consumidor com eletro. A gente fez uma pesquisa agora que era eletroportátil, que é liquidificador e batedeira e essas coisas. Então como que eu vou conseguir saber se o que importa é o design, se o que importa é a potência? Eu preciso ir lá e ver se esse aparelho ta dentro do armário ou ta na bancada: isso já me dá uma pista boa de se o design é realmente importante ou não. Como que ela usa? Então a gente chega por exemplo de manhã e fica junto com uma dona de casa, passa o dia, vai vendo onde tão as disposições dessas coisas, como que ela usa quando ela vai preparar o almoço, se ela usa ou não usa, enfim... E daí no final a gente faz uma entrevista em profundidade pra esclarecer alguns pontos.
As razões que justificam o uso direto de observações na realização dos projetos de pesquisa sugerem uma insuficiência metodológica quanto às entrevistas em profundidade. Tal tensão realiza-se na clássica oposição entre discurso e prática, de tal modo que a etnografia revelaria nuances que transcenderiam as palavras dos agentes.
O que que tá por trás disso? Quando a gente faz um grupo de discussão ou uma entrevista em profundidade as pessoas falam muito aquilo que o entrevistador quer ouvir. Quando a gente vai até a casa dela e observa a gente consegue pegar a prática. Porque o discurso em geral não bate com a prática e a gente consegue entender inclusive o que ta por trás daquele discurso. (...) Porque que ela fala que faz desse jeito se ela faz de outro? Aí é o processo analítico nosso. Dos nossos pesquisadores.
As observações diretas são coletadas por meio de impressões registradas em cadernos de campo que, subsequentemente, desembocam em relatórios analíticos. Por fim, as entrevistas, gravadas, são transcritas e confrontadas com as notas etnográficas. Como resultado, tem-se a configuração de um campo de autonomia inventiva em que são experimentados os argumentos que serão transfigurados na apresentação final diante do contratante do instituto. Esse espaço de manobras intelectuais – que na prática adquire materialidade através de apropriações, ressignificações e testes heurísticos de associações e relações de sentidos – é crucial para a compreensão dos excedentes semânticos e transubstanciações ideológicas que são operadas ao longo da cadeia produtiva do instituto, desde a coleta inicial dos dados, passando por sua análise, até sua reinvenção final na forma de apresentação performática. É nesse interstício que é performatizada (MacKenzie, Muniesa e Siu, 2007; Muniesa e Callon, 2007; Callon, 2007) a nova classe média, através da criação de personagens eloquentes e especificidades culturais que lhe dão forma.
Um dos desdobramentos da observação etnográfica consiste no acompanhamento do cliente – muitas vezes algum executivo ou técnico designado da empresa, ou então seu proprietário – nas incursões de campo feitas pelos analistas qualitativos do instituto. Apesar de consistir num "produto" do instituto, não há consenso entre seus técnicos quanto aos efeitos de pesquisa gerados pela presença de executivos na realização de entrevistas e visitas às casas de consumidores finais. Assim, de um lado, sugere-se que essa prática deva ser evitada, devido aos efeitos não premeditados que pode trazer para o contexto da observação:
A gente recomenda que ele não participe porque certamente atrapalha. Uma pessoa já atrapalha, duas muito mais. Mas as vezes o cliente insiste, então a gente limita o número de participações. Mas antes de ir pra observação a gente faz um treinamento com o cliente. Ele vai enquanto Data Popular, ele não vai estampando a marca dele ali. (...) Então é a maior neutralidade possível. A gente não fala sobre o que que é a pesquisa antes e tal. E aí a gente dá esse treinamento de como se comportar, como se vestir... 'Entenda muito bem pra onde você ta indo'. Às vezes a gente leva pra dentro de uma favela ou pra casa de uma pessoa cujo padrão não é o mesmo que o dele. Então regras básicas de sociabilidade. Que é uma sociabilidade muito diferente daquela que ele ta acostumado.
Empresários podem ainda tomar parte durante a realização de grupos focais. Nesses casos, sua identificação é igualmente omitida em prol da "maior neutralidade possível" durante o processo de execução da pesquisa. Nas palavras de outro entrevistado: "A gente fica ali atrás com o cliente, a gente pega pessoas com perfil de renda baixa, e fica ali discutindo sobre produtos. Normalmente quem conduz o grupo é um especialista, alguém com formação em antropologia ou que tenha facilidade pra fazer esse tipo de acompanhamento".
A participação de executivos e clientes do instituto na realização das pesquisas pode ser entendida a partir de diferentes pontos de vista. Por um lado, uma explicação mais imediata está no desejo desses sujeitos de conhecer e aproximar-se de seus clientes finais, diminuindo a distância que os separa. Por outro lado, o que pode estar em jogo para esses executivos é a própria possibilidade de experimentação subjetiva dessa diferença. Em outras palavras, a sensação de deslocamento existencial torna-se um "produto" importante comercializado pelos institutos de pesquisa, resultado de modos particulares de objetivação e radicalização da alteridade que tornam essa experiência de "choque cultural" possível. De modo que uma parte relevante desse processo de preparação do encontro entre executivos e consumidores finais está nas operações de purificação das mediações metodológicas que compõem o elo empírico da pesquisa – tanto com vistas a garantir a segurança dos empresários quanto a outorgar validade científica à amostra cuidadosamente selecionada de acordo com critérios de classe preestabelecidos. Isso ocorre menos porque a "neutralidade científica" seja encarada como um valor em si mesmo, mas como decorrência de sua valorização estratégica no sentido de tornar o "encontro etnográfico", materialização exasperada das diferenças sociais, verossímil e legítimo aos olhos do executivo, consumidor desse produto.
A fabricação científica da diversidade cultural que dá forma ao argumento da emergência de uma nova classe média brasileira não pode ser desconectada dos custos financeiros dessas pesquisas. Estas variam substantivamente, de acordo com a amplitude, o escopo, e as necessidades do cliente, que determina o tipo de produtos ofertados e os custos de logística. A pesquisa qualitativa, apesar de lidar com universos de pesquisa significativamente menores que aqueles das abordagens quantitativas, desponta como o produto mais inflacionado e exclusivo do instituto. Por outro lado, há situações em que a pesquisa quantitativa pode ser tão ou mais dispendiosa. Segundo o coordenador dessa área:
O custo unitário de uma pesquisa, de um entrevistado numa pesquisa qualitativa, é infinitamente maior do que uma qualitativa. Por outro lado, uma pesquisa qualitativa com oito, dez pessoas, você já consegue ter várias hipóteses, já consegue ter uma série de insights bacanas sobre o seu tema de interesse. Então vá lá, dez casos, você passa o dia inteiro ali vendo como elas trabalham com… lavando a roupa, você já tem uma ideia. Numa pesquisa quantitativa isso é inviável. Você precisa de uma amostra que te permita fazer inferências estatísticas. Senão você não consegue trabalhar. Você vai precisar de pelo menos 120, 300, 500, dependendo da margem de erro que você vai considerar aceitável. Depende muito. Se você for fazer uma pesquisa quantitativa que represente o Brasil inteiro, uma pesquisa eleitoral, por exemplo, você precisa de pelo menos 500 pessoas. Isso tem um custo enorme também, né. Tudo depende do objetivo.
Apesar do esforço de compreensão da alteridade inerente às metodologias qualitativas, o Data Popular jamais teria se consolidado como instituto de pesquisas com foco na base da pirâmide brasileira não fosse a capacidade de articulação e generalização dos resultados dessas investigações. Em outras palavras, sua reputação não advém apenas do acúmulo de expertise etnográfica ou da intimidade no manuseio dos números públicos, mas das conexões entre essas instâncias para a produção de um argumento eficaz sobre o "novo Brasil". Em última instância, são os procedimentos de experimentação científica envolvidos na amarração e fabricação da "diversidade", capazes de ampliar o escopo de uma pesquisa particular como uma pesquisa de "abrangência nacional", que permitem entender o seu sucesso. Nesse processo de construção do nacional por meio da pesquisa de mercado, observa-se algumas regras de formatação dos projetos:
Cada grupo ou imersão etnográfica que você faz em um lugar é uma passagem que você paga, é um negócio que vai ficando caro. Então o mercado de pesquisa como um todo trabalha assim. 'Ah... eu quero um retrato do Brasil, na quali. Quero fazer grupo focal'. Pra não ficar muita coisa, muito extenso e muito caro, o custo benefício acaba sendo São Paulo, Porto Alegre e Recife. São Paulo mais sudeste, Porto Alegre mais representante do sul e Recife do nordeste. Esse é o padrão de pesquisa.
André Torreta, à testa de A Ponte Estratégia, sugere que não se pode desconectar a "descoberta" de um novo segmento de consumo – a base da pirâmide – dos processos de inovação metodológica usados para tornar esses sujeitos visíveis como cidadãos-consumidores. Assim, no instituto que preside, faz questão de empregar recursos metodológicos menos convencionais, conhecidos pelo jargão de co-criação. No idioma do marketing, ela implica que o processo de gestação de um determinado produto deve ser pensado colaborativamente entre seu desenvolvedor e seu potencial consumidor final, supostamente rompendo as barreiras entre clientes e usuários. André confidenciou-me que seu uso tem sido bastante extensivo no instituto, variando de cartões de crédito a biscoitos, e passando por novas tecnologias, como a lata-copo. A ideia subjacente é de que essa suposta aproximação entre produção e consumo minore os riscos envolvidos no lançamento de novos nichos de mercado, aumentando as chances de eficácia da propaganda. Nesse caso, entretanto, não seriam quaisquer consumidores que entrariam nos jogos de recrutamento, mas aqueles que satisfazem a certos perfis necessários ao "teste" adequado do produto. Na prática, isso implica tanto a participação de pessoas consideradas atípicas ao target do segmento, quanto – e esse em geral é o caso, segundo Torreta – heavy users capazes de explicitar, objetificar e questionar suas relações e reações quanto aos usos desse objeto.
André faz uso exaustivo de técnicas como a que chamou de "Antenas", que envolve a participação e treinamento de funcionários da própria empresa para tornarem-se hábeis na produção de resultados apropriáveis para análise e formulação de estratégias de reposicionamento de mercado ou de produto. O recurso seria empregado em diferentes empresas e partes do mundo. O publicitário explica que os resultados obtidos por meio dessa técnica são variáveis. Em geral, as pessoas qualificadas a atuar como "antenas" recebem máquina fotográfica com capacidade para filmagem, a partir do que são instigadas a retratar todos os cenários cotidianos envolvendo uso e manipulação de produtos. Em seguida, é produzido um relatório de fotos e vídeos, seguido de um questionário.
Então pra uma pesquisa de celulares a gente começou: fotografe todos os celulares dos seus amigos. Fotografe onde você guarda o celular. Fotografe não sei o que...E isso me dava um outro tipo de informação que o questionário não me daria. Pelo menos nessa pesquisa a gente encontrou que muita gente coloca adesivo, bibelozinho... como no carro também. É tudo enfeitado, como tudo na vida da classe C. Então o cara da empresa falou, 'porra então vamos investir em acessórios!'. Esse dinheiro os caras já usam, não precisa tu ficar inventando.
O processo de recrutamento dos sujeitos empregados como "Antenas" obedece a diferentes táticas. Em geral, contratar-se-ia mais que o número acordado de pessoas em função de uma alegada "perda de capacidade cognitiva": "(...) falta de ensino. Então a seleção desses caras também é melhorada. Por exemplo, grupo quali muitas vezes a gente faz com pessoas de um nível intelectual superior do que o resto. Você tem um outro tipo de coleta. Esse tipo de coisa não é fácil. São pessoas que são muito mais sensíveis". Em outros casos, o recrutamento é feito em outras esferas: "A gente já pegou passista de escola de samba, grafiteiro, era uma festa. Nenhum instituto trabalha assim pra ele". Ou ainda por meio de escolas de teatro da prefeitura: "Porque eles têm a aparência de descolados. Não posso pegar uma tiazinha tímida que não vai fazer nada. Depois começamos a pegar de uma produtora que veio trabalhar aqui. Sabe o Criolo, o cantor? Já foi um antena, há quatro anos atrás, da gente. Então a gente educou ele".
Torreta é taxativo quanto ao caráter inédito, pouco convencional e necessário dessas pesquisas, diante de certas demandas imprevisíveis de seus clientes. Estas podem se referir a um conjunto extensivo de variáveis, incluindo desde aquelas em que não há dados bibliográficos ou experiências anteriores que ofereçam suporte analítico e hipotético, até as que resultam de problemas mal ou pouco formulados pelos que procuram o instituto.
E aí você tem que bater a cabeça pra entender qual é o problema real do cara. Por exemplo: uma grande empresa de bebidas veio aqui falar com a gente: 'Eu tô construindo uma fábrica. A fábrica vai ficar pronta daqui a 5 anos. Eu quero saber que produto eu vou produzir naqueles setores e que tipo de produto o brasileiro vai querer'. Aí você volta pra casa [risos] e começa a ver. Então a pesquisa não ta pronta. É artesanato puro.
No caso relatado, o publicitário fez uso de outra técnica, chamada de "cenários futuros", que consiste, essencialmente, num cálculo de previsão e imaginação de contextos de curto e médio prazos, de acordo com a solicitação dos clientes:
Eu peguei esse livro de cenários futuros. Imaginei comida daqui a 5 anos, o que vai impactar. Por exemplo, café da manhã vai comer no metrô, trem, ônibus, que não vai ter tempo. Opa! Um primeiro insight. E o que isso significa? Aí você começa a prever, começa a ver o que no futuro vai impactar na comida de rua. E começa a pensar em cima disso. E é um trabalho que ficou lindo, um dos trabalhos mais lindos que a gente já fez aqui dentro. Mas se você bater na IPSOS ou num Data Popular eles vão falar que vão fazer uma quanti pra você. Mas cara, isso quanti não vai resolver. Uma quali vai resolver? Não, não vai resolver.
Como se vê, o processo de co-criação de produtos envolve recursos metodológicos específicos que permitem ao instituto costurar sua posição no concorrido mercado de ideias. Ao mesmo tempo, ele permite resolver problemas logísticos e defasagens de sentido inerentes à cadeia de conversão de uma ideia até chegar ao cliente final. Em outras palavras, ao pensar a produção articuladamente à sua demanda, por meio da figura imaginada de seu consumidor típico – que passa, ademais, a ser visto como um agente ativo –, tudo se passa como se ele pudesse minorar os riscos financeiros envolvidos no processo criativo.
Co-criação é quando você cria um produto ou serviço junto com seu cliente. Então invés de você falar assim: 'Eu vou desenhar um óculos que eu acho bonito aqui em São Paulo, e o cara lá de Vitória de Santana no interior de Pernambuco também vai achar lindo esse troço'. Ou então você constrói o óculos e vai lá em Vitória de Santana pra ver se o cara gostou. Se o cara não gostou você perdeu milhares de reais, e perdeu tempo. Então já chama o cara lá de Vitória de Santana, trás ele pra cá e diz: 'Cara, me fala como que você quer o seu óculos que a gente vai fazer do jeito que você quer'.
Ao mesmo tempo, essas novas dinâmicas implicam um processo reverso à mecânica de pesquisas colocada em prática no instituto Data Popular – em que, como vimos, o espaço de experimentação científica se constituía nas conexões entre o caso particular e as estratégias de generalização. Para Torreta, ao contrário, o desafio consiste na segmentação ou regionalização de marcas e segmentos de consumo, que passam a ser projetadas e pensadas de acordo com as especificidades locais de seus consumidores. No contexto brasileiro, o caso paradigmático seria o Nordeste, que teria dado origem, inclusive, a departamentos próprios em muitos setores de marketing de grandes empresas. Ele próprio é exemplo disso, na medida em que, recentemente, tornou-se sócio da agência de publicidade "Black Box" – onde me recebeu para a realização de uma entrevista – com o objetivo de propulsionar as pesquisas sobre o Nordeste, convertendo-a numa espécie de braço de pesquisas especializadas do instituto.
Nordeste é um outro país. O Recife é a cidade do mundo que mais consome uísque. 14% da produção mundial de Johny Walker é consumido na cidade de Recife. E daí você fala... O que é isso? Pois é. Você precisa entender o que é aquilo ali. Assim como Porto Alegre é diferente do resto do Brasil. São os dois locais que são completamente diferentes [risos]. (...) A gente não ta acostumado, segmentação é uma coisa que nos EUA se faz há mais de 50 anos. E o brasileiro se recusa a falar da segmentação.
Um dos efeitos mais perversos da recusa do mercado brasileiro em pensar-se a partir das especificidades de suas regiões estaria na adoção de campanhas de propaganda pouco eficazes e muitas vezes completamente descoladas do contexto de sua audiência. Torreta cita o exemplo de uma grande marca de café, cujo comercial televisivo era produzido no nordeste: "Era o Alpe Suíço com o menino tremendo, morrendo de frio, e a mãe dava o café pro menino. Aí você olhava pela janela e tava um sol de 48 graus. Aí você fala 'Gente, tem alguma coisa errada, o que eu vejo na televisão não é o que eu vejo no meio da rua'". Outro caso paradigmático estaria num exemplo inverso, em que uma grande rede varejista radicada no nordeste tentara adaptar suas estratégias de marketing no sul do país: "Foi lá, pegou um baianinho e colocou de gaúcho. Só uma anta que não conhece Porto Alegre faria isso. Então o que acontece: quebrou. 'Ah, isso não tem nada a ver'. Gente! Isso é o que tem a ver!". Se a segmentação implica em custos logísticos maiores, estes se justificam por levarem a resultados mais seguros e eficazes:
Se você falar assim: essa empresa vai gastar 200 mil reais em pesquisa pra entender Porto Alegre, mas não quer. Ok, tudo bem. Mas ter um prejuízo de 10 milhões de reais eles podem? E aí você fala: bem, e aí, é caro ou barato? E aí obviamente pra uma empresa pequena, o risco talvez compense, mas pra uma empresa como essa, não. (...) Marketing é tudo. Eu sou baiano. Toda quinta-feira eu comi um acarajé. Mas quer falar de chimarrão, não gosto de chimarrão. Eu preciso qualificar o meu produto, senão eu não compro. Senão não vendo.
A utilização dessas técnicas, que se tornam interessantes justamente por seu uso pouco convencional e pelo ar de vanguardismo que ensejam, permitem uma reflexão em torno dos seus efeitos de purificação metodológica. Assim, por exemplo, Torreta é taxativo quanto à impossibilidade de valer-se da "etnografia" como instrumento eficaz de acesso ao cotidiano dos pesquisados. "Pesquisa etnográfica demora de dois a três anos. (...) Se alguém for morar na sua casa, você vai achar isso normal? Não! Claro que não! [risos]. A gente acha que o observador muda o observado e deu". Tudo se passa como se o cenário tivesse de ser mais bem depurado e purificado, em diferentes níveis, para a produção das informações fidedignas como resultado final diante do cliente. É nessa perspectiva, por exemplo, que a invasão de cenário seria uma técnica mais potente que a etnografia para dar conta do problema da neutralidade do pesquisador em campo:
Então pra explicar a preferência de um determinado tipo de sabão em pó nós não vamos usar etnografia. A gente vai ter invasão de cenário: eu mando alguém do seu bairro que não lhe é estranho e então você pega as fotos de mulher desarrumada, de roupa rasgada. Por quê? Porque o cara que ta ali é seu brother. Agora, manda eu ir lá. A mulher vai se arrumar pra mim, vai fazer café pra mim, vai fazer uma encenação. (...) Como é que eu vou entrevistar alguém que tá se maquiando na minha frente, que ta maquiando o cenário na minha frente e eu vou fazer de conta que aquilo é de verdade? Não. A gente não faz.
Da mesma forma, Torreta é pouco afeito à participação do cliente ou executivo nas incursões de campo, que provocativamente compara à realização de safáris: "parece que é um animal, do outro lado da favela. E qual é a tese do Antena, é de que o observador muda o observado. (...) Então você levar o cliente é só uma questão dele olhar, porque quer mesmo ver que as fotos e as novelas estão dizendo a verdade". Com isso, André escapa ao problema de produzir cenários metodológicos purificados para contornar a presença indesejada de um executivo que, supõe-se, seria prejudicial ao ambiente adequado de pesquisa. Ao sustentar que a própria presença do empresário minaria com a possibilidade de um encontro espontâneo com a diferença, Torreta recoloca o discurso científico a seu próprio favor, impedindo o acesso de seus clientes ao lócus da pesquisa e, com isso, declarando o monopólio de apropriação, interpretação e experimentação desses dados na produção da diferença. Em poucas palavras, o publicitário acaba por restituir e ampliar o espaço de possibilidades de performatização da nova classe média, ao inventar-se a si próprio através da gestação e apresentação, transubstanciada em relatórios, fotos e slides, de personagens e histórias persuasivas que caricaturam a alteridade diante do cliente.
Considerações finais: a caminho da etnografia
Este artigo tratou de problematizar algumas das práticas científicas envolvidas na constituição de institutos de pesquisa voltados para mercados emergentes na base da pirâmide. Ao largo desse processo – problematizado por meio do surgimento de espaços a partir de configurações concretas e de estratégias metodológicas a ela associadas – ficou evidente que, apesar das distâncias que separam seus praticantes, há mais em comum entre as ciências sociais praticadas nos centros acadêmicos e as pesquisas de mercado do que nos permitimos, num primeiro momento, perceber.
De um lado, está claro que tal aproximação é possível quando consideramos uma das passagens possíveis que explica a colocação da pobreza como problema de mercado (Roy, 2010; Schwittay, 2011). Esta ocorre na conversão da política em economia – operação evidenciada na trajetória de André Torreta que, após vários anos envolvido com a estruturação de campanhas eleitorais, decide transformar essa expertise em conhecimento de mercado, investindo-a de novo valor. Historicamente, as campanhas são momentos oportunos de confrontação entre a lógica da grande política, pontuada por retóricas empresariais e corporativas, e o esquadrinhamento da política local, que coloca àquela o desafio de incorporar as culturas populares e a pobreza como condição de eficácia do discurso eleitoral – argumento demonstrado exaustivamente pela literatura clássica da antropologia da política no Brasil. De certo modo, portanto, somos tentados a perceber um paralelo entre a descoberta da pobreza pelo marketing político como questão crucial para a vitória nas urnas e a pobreza como discurso acadêmico de contestação à grande narrativa capitalista. Apesar de distintos em seus objetivos, conduziram a visões muitas vezes pouco destoantes acerca dos pobres, essencializando suas especificidades e modos de vida.
Por outro lado, é também evidente que essa aproximação se dá por meio de um encurtamento das distâncias para com os pobres ou, para usar um termo caro à antropologia brasileira, com as classes populares. A rigor, uma coisa parece de fato depender da outra: a crescente incorporação dos pobres aos estudos de mercado é concomitante à sua alegada necessidade de aperfeiçoamento dos instrumentos de comunicação, passíveis de serem mensurados como incrementos nas vendas a esse público. Esse processo é acompanhado de ao menos duas consequências importantes. A primeira consiste no fato de que essa passagem é operacionalizada por meio da apropriação e do uso de metodologias oriundas das ciências sociais – no que se refere à execução das pesquisas – e de figuras de linguagem e técnicas narrativas antropológicas – no que se refere à criação de histórias e personagens persuasivos que "contam", caso a caso, as mudanças que engendraram um "novo Brasil" através da configuração de novos mercados de consumo. A segunda diz respeito ao fato de que a pobreza torna-se tanto mais rentável na sua incorporação ao mercado quanto for capaz de positivar-se a si própria – vale dizer, sugerindo a ideia de que ser pobre não é intrinsecamente ruim (ou seja, não está fora dos limites de mercado) ou, melhor ainda, ensejando o argumento da superação da pobreza, razão pela qual a expressão nova classe média torna-se indispensável para positivar a inclusão propiciada por meio do acesso ao consumo.
Tendo assinaladas essas relevantes observações, é preciso afirmar que uma antropologia preocupada com o problema do entendimento das experimentações científicas na origem da legitimação de um "novo Brasil" através de suas configurações concretas de mercado não pode descurar as fronteiras e passagens entre ciência e mercado – seja do ponto de vista das estratégias metodológicas, seja na trajetória de seus praticantes. Tendo em vista o percurso de cada um dos agentes entrevistados nesse campo, fica evidente que há flertes e negociações constantes entre a possibilidade de alterar os rumos de sua carreira e retornar, eventualmente, à academia. Como reflexos distorcidos no espelho, há fantasmas que acompanham esses movimentos.
Os usos do método etnográfico nas pesquisas de mercado permitem colocar de modo privilegiado os impasses em jogo nessas mediações. Uma das entrevistadas relatou: "quando eu vim trabalhar com pesquisa de mercado eu ficava de cabelo em pé quando se falava em etnografia. Continuo a ficar de cabelo em pé. De todo modo, acho que tem caminhos pra você aproximar um pouco mais o que a gente chama de etnografia de mercado e o que pode também ser feito pela academia". De certo modo, portanto, sua trajetória revelou a si própria a possibilidade de coexistência dessas questões e, mais importante, foi reconhecida nisso em sua atuação no mercado de pesquisa em que, afinal, terminou por erigir sua carreira, interesses e networking. Há, nao obstante, nas justificações que diferenciam a academia do mercado, muito mais que simples argumentos; trata-se mesmo de construir separações e purificações entre instâncias que, tal qual economia e intimidade na obra de Zelizer (2010), tendem a não se misturar e, quando o fazem, aparecem inevitavelmente sujeitas a ambiguidades e mal-estares.
Ao longo deste artigo, tratamos das condições que permitiram a institutos de pesquisa de médio porte se estabelecer em cenários competitivos e nichos econômicos instáveis, em cenários em que as verbas destinadas a pesquisa de mercado são diretamente dependentes das variações na situação financeira das empresas-clientes. Municiando-se com profissionais polivalentes e especializados e com rotinas de trabalho atribuladas, elas subsistem apenas na medida em que fecham contratos regulares de grande monta com empresas dispostas a arcar com os custos de projetos muitas vezes milionários, com duração de meses, senão anos, e capazes de reconhecer valor no conhecimento produzido por essas instituições de pesquisa. Em outras palavras, a consolidação desses institutos está vinculada, na origem, à expansão de um modelo de negócios altamente dependente de consultorias e pesquisas no processo de inovação de suas estratégias – sejam elas tecnológicas, produtivas ou humanas (Azevedo e Mardegan Jr, 2009; Müller, 1989; Nardi, 2009; Quadros Jr., s/d; Parente et all., 2008; Rocha, 2009; Torretta, 2009).
Como demonstrado até aqui, a eficácia pragmática dos institutos de pesquisa ocupados com a reinvenção contemporânea do Brasil por meio de seu mercado interno – aquilo que possibilitou afinal sua consolidação – depende de um tripé que conecta a emergência de novos modelos de negócios – isto é, da produção de uma sensibilidade na audiência –, com a agência performática de consultores e personagens na elaboração retórica e gramatical em torno da necessidade desse mercado de pesquisas, e finalmente com a fabricação iconográfica de um repertório de práticas, jargões e valores (variável de acordo com as preferências e formações de cada consultor e pesquisador) passível de ser assinalado, por meio do aval de expertos científicos, como específico a um determinado segmento da população.
Esbarramos assim nos limites do mercado para pensar suas interfaces com outras questões igualmente problemáticas – que perfazem caminhos tão diversificados quanto a retórica da "inclusão social", as políticas públicas de governo da "nova classe média", as associações entre consumo e cidadania, as moralidades e críticas acadêmicas à abordagem mercadológica das classes, e por aí afora. Esses emaranhados são articulados pela agência multiforme de diferentes instâncias, sujeitos e discursos para, através da produção de números e critérios persuasivos, amalgamar visões e políticas de mobilidade social no Brasil contemporâneo. Nesse contexto, a agência dos institutos de pesquisa, com suas experimentações e interfaces móveis entre mercado, ciência e governo, constituem um dos nódulos centrais de um dispositivo de governo mais amplo que se edifica sobre os lastros discursivos de uma "nova classe média" brasileira ainda em gestação.
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