Viagem do galeão grande São João: informações modificadas do «Naufrágio de Sepúlveda» ao longo das edições

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Texto para a comunicação apresentada na XV International Reunion for the History of Nautical Science / na XV Reunião International de História da Náutica «Navigation and Hydrography (16th-19th centuries)» El Ferrol, 2010.11.4-6

Viagem do galeão grande São João: informações modificadas do «Naufrágio de Sepúlveda» ao longo das edições Kioko Koiso Introdução: Relatos de naufrágio As viagens levadas a cabo pelos Portugueses nos séculos XVI e XVII originaram não apenas os roteiros e os diários de bordo como também os relatos de naufrágios pois, na odisseia transoceânica, os perigos estavam sempre latentes ou iminentes. Por vezes, a tragédia possibilitava aos náufragos chegarem à costa e, a partir daí, seguirem por terra para atingir os portos onde os portugueses se encontravam como, por exemplo, Lourenço Marques. Outras vezes, os sobreviventes construíam embarcações numa ilha para navegarem até alguma terra ou voltarem à Índia. Esses acontecimentos eram registados pelas próprias testemunhas ou pela pena de alguém que tivesse mais habilidade na redacção, variando a sua autoria desde anónimos às figuras cultas. Alguns relatos foram impressos sob a forma de literatura de cordel e lidas amplamente, constituindo um género específico. Os episódios fundamentados nas experiências verdadeiras aterrorizavam e impressionavam o público, cativando o interesse e suscitando a curiosidade, o que fez que alguns obtivessem sucesso editorial. Essas narrativas ofereciam, entre outros assuntos, tanto aos leitores gerais como aos que iriam dirigir-se ao Oriente, os conhecimentos respeitantes à navegação, às causas dos naufrágios, às medidas tomadas, à caminhada, aos meios de comunicação e de troca com os autóctones. Consequentemente, os acontecimentos anteriores iriam ser lembrados noutras ocasiões, sendo referidos nas narrativas posteriores. Entre os relatos de naufrágios, saídos dos prelos individualmente como fascículos ou não, doze dos desastres surgidos entre 1552 e 1602 foram compilados pelo bibliófilo Bernardo Gomes de Brito em dois tomos, em 1735 e 1736, intitulados História Trágico-Marítima. Em sentido restrito, a colectânea indica essas doze

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narrativas de naufrágios. Em sentido lato, mais seis relatos das calamidades ocorridas entre 1622 e 1649 são considerados como pertencendo à mesma categoria. No que diz respeito ao terceiro tomo, de que se menciona por vezes a sua existência, não é senão apenas uma miscelânea de opúsculos avulsos. Por esta razão, além de não se encontrar nem um índice nem um rosto comuns, mantêm-se as características de cada fascículo tais como a paginação, a tipografia, os papéis e as marcas de água. Além de ser apreciada como obra literária, a História Trágico-Marítima pode reconhecer-se como uma fonte fecunda que não cessa de nos fornecer informações úteis, por exemplo, no âmbito de história, de navegação, de antropologia, de psicologia entre outros domínios. Naufrágio do galeão grande São João Dentre todos os relatos de naufrágio, o primeiro da História Trágico-Marítima, ou seja, «o naufrágio do galeão grande São João» que se conhece como «Naufrágio de Sepúlveda» é, sem nenhuma margem de dúvida, o mais afamado. Mencionaremos adiante a sua autoria. O capitão Manuel de Sousa de Sepúlveda, que perdera a sanidade mental durante a longa e fatigante caminhada na costa oriental africana e que não pudera assumir a liderança devidamente, chegou a ordenar aos companheiros que entregassem as armas aos indígenas como o chefe destes lhe pediu. É óbvio que os sobreviventes sem armas foram logo espancados e roubados pelos autóctones. No auge da narrativa, depois de ter sido despida pelos africanos, a mulher do capitão, D. Leonor, cobriu-se com o seu cabelo comprido e fez uma cova na praia, onde se meteu até falecer. A tragédia que impressionou os leitores tornou-se um paradigma dos relatos de naufrágio, tendo sido reeditado e amplamente divulgado. Contudo, no manuscrito «Perdimento do gualeão São João que vinha da Imdia pera Portuguall Manoel de Sousa de Sepulluada por capitão» incluído na Miscelânea Histórica (vol. II, ff. 418v-433r) e conservado na Biblioteca da Ajuda que consideramos ser, até hoje, a versão mais antiga do relato, D. Leonor despida e coberta com cabelo não chegou a cavar a areia e a esconder-se, falecendo desta maneira na costa africana (ff. 431v-432r). Uma passagem «fazendo hũa coua na area onde ſe meteo atee a cinta» é inserida na editio princeps (capitulo xxix). Na transição do manuscrito ao primeiro 2

impresso procedeu-se um considerável número de substituições, adições e eliminações, tanto ao nível de palavra e expressão como ao nível de frase ou de parágrafo. A nossa análise comparativa entre dois textos leva-nos afirmar que o episódio impregado de emoção faz parte das alterações efectuadas na primeira edição a fim de dramatizar os cenários, comovendo os leitores e cativando o seu interesse. O cenário modificado iria ser transmitido às edições posteriores, até ser reunida na História Trágico-Marítima. Edições retrospectivas do relato do naufrágio do galeão grande São João Para mais de metade dos mencionados dezoito relatos de naufrágio, existem edições legítimas e contrafacções. Enquanto as publicações oficiais dispõem das licenças específicas para cada fascículo, outras, clandestinas, copiam-nas quer integral quer parcialmente como se elas fossem ainda válidas, mostrando, porém, as características de formato, de tipográfia, de papel e de marcas de água da época posterior. Para o relato do naufrágio do galeão grande São João, têm-se referido diversas edições entre as quais verificámos a existência de sete edições, ou seja, a primeira, a segunda, a terceira, a terceira emendada, a quarta, a quinta e a contrafacção. Não referiremos três outros manuscritos acerca do naufrágio de Sepúlveda que conhecemos pois trata-se de outra versão, ou de resumo ou de cópia, sem afectar as mencionadas edições. Embora possa ter havido outros manuscritos desconhecidos e algumas edições cujos exemplares se perderam totalmente, efectuámos a análise comparativa dos textos, o que nos leva a chegar à conclusão de que cada edição se baseia, em princípio, na edição anterior. Contudo, apesar de não entrarmos aqui em pormenores, não sabemos qual é a edição em que se fundamenta a quinta edição – ou na terceira emendada, ou na quarta, ou em ambas. Adicionando o mencionado manuscrito, o texto da História Trágico-Marítima corresponderá, pelo menos, à nona versão. Por consequência, é fácil presumirmos que a história foi sendo alterada paulatinamente no decorrer de cada publicação, quer por descuido, quer intencionalmente. Algumas das palavras e das expressões sujeitas às alterações No texto do «Naufrágio de Sepúlveda» havia algumas dúvidas, quase clássicas, até que foram esclarecidas graças à aquisição da primeira edição pela Casa de Bragança 3

no princípio dos anos 1990 e conservada desde então na Biblioteca D. Manuel II do Paço Ducal de Vila Viçosa. Uma das dúvidas aparece logo no início do texto: «E partio taõ tarde por hir carregar a Coulaõ, e lá haver pouca pimenta, onde carregou obra de quatro mil e quinhentas, e veyo a Còchim acabar de carregar a copia de ſette mil e quinhentas por toda com muito trabalho por cauſa da guerra que havia no Malabar»1 (HTM2, p. 5)

Na primeira edição, as palavras ambíguas estão registadas como «quintaes» e «quiutaes» com o provável lapso tipográfico neste segundo caso: «E partio tão tarde por hyr carregar a Coulão, e la auer pouca pimenta, onde carregou obra de quatro mil quintaes, e veo a Cochim acabar de carregar a copia de ſete mil quiutaes [sic] por toda, com muyto trabalho, por a guerra que auia no Malabar» (1.ª edição, cap. ij).

Outro elemento estranho encontra-se no cenário em que o mar agitado dificulta a navegação: «E aſſim corrèraõ tres dias, e ao cabo delles lhe tornou o vento a acalmar, e ficou o mar taõ grande, e trabalhou tanto a Nao, que perdeo tres machos do lème ſo-os polegar em que eſtà toda a perdiçaõ, ou ſalvaçaõ de huma Nao.» (HTM, p. 7)

A passsagem equivalente na primeira edição é a seguinte: «E aſſi correrão tres dias com ſuas noytes, e ao cabo delles lhe tornou o vento a calmar, e ficou o mar tão grande, e trabalhou tanto a Nao, que perdeo tres machos do leme .ſ. os do polegar, em que eſtaa toda a perdição, ou ſaluação de hũa Nao.» (1.ª edição, cap. iiij).

Em vez de ser «perdeo tres machos do lème ſo-os polegar», o passo é «perdeo tres machos do leme .ſ. os do polegar» na primeira edição. Desta maneira, a consulta da primeira edição descodifica alguns mistérios antigos. No entanto, apesar de se saber a existência da quase meia dúzia de edições deste relato, não se referia em que etapa teriam ocorrido as alterações. Voltando ao mencionado manuscrito e a todas as edições anteriores, sabemos que a palavra em questão redigida originalmente como «mill quimtais» do manuscrito (f. 418v) se transmite com algumas modificações ortográficas até à contrafacção (cap. I). Ou seja, foi o compilador da História Trágico-Marítima que a copiou incorrectamente como «quinhentas», ou houve lapso tipográfico. Vejamos umas linhas do manuscrito que incluem o segundo exemplo das referidas dúvidas: 1 2

O destaque é da nossa responsabilidade. Doravente usamos as siglas "HTM" nas referências em vez de escrever História Trágico-Marítima.

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«e asy correrão tres dias com suas noutes e no cabo deles lhe tornou ho vemto a quallmar e fiquou o mar tão gramde em que trabalhou tamto o gualeão que perdeo tres machos do leme: comuem a saber os do boleguar em que esta toda a salluação de hũa nao.» (Mss., f. 419v).

A palavra em causa «comuem a saber» do manuscrito substitui-se na primeira edição pela abreviatura «.ſ.» (scilicet em latim) (cap. iiij), sendo copiada desta maneira até à terceira edição emendada (cap. III). Na quarta edição, a abreviatura volta para a grafia original «conuem a ſaber» (cap. Terceiro). Na quinta edição, regista-se como «ſ.», desaparecendo o primeiro ponto (cap. III). Na contrafacção, fica impressa como «ſó os pollegar», trocando-se a abreviatura por «ſó» e omitindo-se «do» (cap. III). Finalmente, chega na versão da História Trágico-Marítima àquilo que se conhece «perdeo tres machos do lème ſo-os polegar» com a adição de um traço. Embora não conheça nenhuma abordagem ao assunto a não ser nos nossos trabalhos, vejamos outra frase algo incompreensível: «Andando aſſim neſte trabalho, tornoulhe outra vez a faltar o vento a Les-ſuduèſte, e temporal desfeito, e jà entaõ parecia que Deos era ſervido do fim que ao deſpois tiveraõ» (HTM, tomo I, p. 8)

Apesar de o vento poder faltar no meio da tempestade, estranha-se o passo «tornoulhe outra vez a faltar o vento a Les-ſuduèſte, e temporal desfeito», uma vez que, depois de parar o vento, entrou numa situação desastrosa sem se mencionar o vento que soprou novamente. Consultemos as versões anteriores: «Amdamdo asim neste trabalho tornoulhe outra vez ho vemto a salltar ao sudueste temporall desfeitosa emtão pareçia que Deos era seruido da fim que depois ouuerão» (Mss. f. 419r) «ANdando aſſi neſte trabalho, tornoulhe outra vez ſaltar o vento a Loesſudueſte, e temporal deſfeyto, e jaa entam parecia que Deos era ſeruido da fim que deſpois ouuerão» (1.ª edição, cap. v) «ANdando aſsi neſte trabalho, tornou lhe outra vez a ſaltar o vento a Loesſudueſte, & temporal deſfeito, & ja então parecia que Deos era ſeruido da fim que depoys ouueram» (2.ª edição, cap. v). «ANdando aſsi neſte trabalho, tornoulhe outra vez a ſaltar o vento a Lesſudueſte, & temporal desfeito, e ja entam parecia que Deos era ſeruido da fim que deſpois ouueram» (3.ª edição, cap. IIII). «ANdando aſsi neſte trabalho, tornoulhe outra vez a ſaltar o vento a Leſſudueſte, & temporal desfeito, & ja entam parecia que Deos era ſeruido da fim que deſpois ouueram» (3.ª edição emendada, cap. IIII).

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«Andando aſsi neſte trabalho tornou lhe outra vez a faltar a Leſſudueſte, & temporal desfeyto, & ja entam parecia que Deos hera ſeruido da fim que deſpois ouueram» (4.ª edição, cap. Qvarto). «Andando aſsi neſte trabalho tornoulhe outra vez a faltar o vento a Leſſudueſte & temporal desfeito & ja entam parecia que Deos era ſernido [sic] da fim que deſpois ouuerão» (5.ª edição, cap. IV). «ANdando aſſim neſte trabalho tornoulhe outra vez a faltar o vento a Leſſudueſte, & temporal desfeyto, & já entaõ parecia que Deos era ſervido do fim que depois tiveraõ» (Contrafacção, cap. IV)

No manuscrito, está registado «tornoulhe outra vez ho vemto a salltar ao sudueste». Na primeira edição, este «sudueste» passa para «Loesſudueſte». Na terceira edição emendada, a direcção do vento troca-se por «Lesſudueſte». Na quarta edição, «ſaltar» substitui-se por «faltar» provavelmente devido à semelhança do carácter tipográfico da «ſ» da altura, com a «f». Deste modo, o vento mudou frequentemente a sua direcção no decorrer das edições até deixar de soprar na quarta edição. Por fim, conhecemos através da colectânea britiana apenas o resultado dessas modificações. Vejamos outro passo da História Trágico-Marítima: «A treze de Abril veyo Manoel de Souſa haver viſta da Coſta do Cabo em trinta e dous gràos, e vieraõ ter tanto dentro, porque havia muitos dias que eraõ partidos da India, e tardàraõ muyto em ver o Cabo por cauſa das roins vèlas que traziaõ, que foy huma das cauſas a principal de ſeo perdimento; porque o Piloto Andrè Vàs fazia ſeo caminho para hir à terra do Cabo das Agulhas, e o Capitaõ Manoel de Souſa lhe rogou que quizeſſe hir ver a terra mais perto; e o Piloto por lhe fazer a vontade, o fez: pela qual razaõ foraõ ver a Terra do Natal, eſtando à viſta della, ſe lhe fez o vento bonança, e foy correndo a Còsta athè ver o Cabo das Agulhas, com prumo na maõ, e ſondando; e eraõ os ventos taes, que ſe hum dia ventava Levante, outro ſe levantava Poente. E ſendo jà em onze de Março eraõ Nordèſte, Suduèſte com o Cabo de Boa Eſperança vinte e cinco legoas ao mar, alli lhe deo o vento Oèſte, e o Esnoroèſte com muitos fuzìs» (HTM, tomo I, p. 6).

Só neste extracto notam-se duas contradições. A primeira tem a ver com a data, ou seja, depois de o capitão ter avistado o Cabo da Boa Esperança «a treze de Abril», ter rogado ao piloto André Vaz que mudasse o rumo e ter visto o Cabo das Agulhas, regista-se «onze de Março», isto é, a data de quase um mês anterior. A segunda é a localização do galeão, sobre a qual António Sérgio levanta uma questão na nota de rodapé na edição da História Trágico-Marítima que organizou: «Parece-nos que há aqui engano, e que deveria ser Noroeste-Sueste. Se vissem o Cabo na direcção Nordeste Sudoeste já o haviam dobrado». Consultando o manuscrito, a segunda data está registada como «omze de Mayo» (f. 419r), o que não constitui nenhuma incongruência. No entanto, este «Mayo» foi substituído por «Março» na primeira edição (cap. iij) e transmitido até à História

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Trágico-Marítima. Aliás, aquilo que António Sérgio estranhou não indica a localização do galeão mas a direcção do vento «nordestes suestes» no manuscrito (f. 419v), modificando-se na primeira edição para «Nordeſte, Sudueſte» com a queda da palavra «os vemtos». Embora não se note no mesmo cenário, a comparação das versões revela mais palavras substituídas. No tocante a outro vento, está registado na História TrágicoMarítima «eraõ os ventos taes, que ſe hum dia ventava Levante, outro ſe levantava Poente». Contudo, o passo correspondente no manuscrito é «erão os vemtos tãis que se lhe vemtauão hum dia de leuante vemtauão dous e tres de ponemte» (Mss., f. 419r). A descrição na primeira edição é «erão os ventos taes, que ſe hum dia lhe ventaua leuante lhe ventauão dous e tres de poente» (cap. iij). Depois, as linhas de «lhe ventauam dous & tres de ponente» da segunda edição (cap. iij) tornam-se em «outro lhe ventaua poente» na terceira edição, substituindo «dous & tres» por «outro» e «ponente» por «poente», como se vê: «eram os ventos taes, que ſe hum dia lhe ventaua leuante, outro lhe ventaua poente.» (cap. II). Posteriormente «lhe ventava» da contrafacção muda-se para «ſe levantava» na História Trágico-Marítima. É um dos exemplos em que a pequena diferença da grafia e a queda ou a adição de umas letras alteram gradualmente o cenário. No que diz respeito ao vento «lhe deo o vento Oèſte, e o Esnoroèſte com muitos fuzìs» da História Trágico-Marítima, a hora que soprou foi ao meio dia e a direcção foi «oeste com noroeste com muitos fuzis» de acordo com o manuscrito (f. 419r). A direcção altera-se para «Oeſte, e Oesnoroeſt (sic)» na primeira edição (cap. iij). Passa para «oeſte & o eſnoroeſte» na terceira edição (cap. II), transformando-se no artigo a primeira letra «o» do vento «Oesnoroeſte». Aliás, no tocante ao rumo que o piloto tomava, o texto da História TrágicoMarítima diz que era «para hir à terra do Cabo das Agulhas». Todavia, segundo o manuscrito, a intenção do piloto era «pera aver vista da mais perto terra do Cabo das Agulhas» (f. 418v). A descrição com a ordem das palavras modificada da primeira edição «pera hyr ver a terra mays perto do cabo das agulhas» (cap. iij) é copiada na segunda edição (cap. iij), cai a expressão «mais perto» na terceira edição (cap. II) e omite-se o verbo «ver» na quarta edição (cap. Segvndo). Consequentemente, o que o piloto tencionava originalmente não era ir atingir o Cabo das Agulhas, mas apenas ir ver a terra mais perto do mencionado cabo.

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Desta maneira, um parágrafo da História Trágico-Marítima que não é referido nos trabalhos anteriores contém as palavras ou as expressões problemáticas. Vejamos outro episódio: «E vendo-ſe ſem maſtro, nem verga fizeraõ no pè do maſtro grande que lhe ficou, hum maſtarêo de hum pedaço de entena bem pregada, e com as melhores arreataduras que pudèraõ; e nelle guarnecèraõ huma verga para a vèla da guia, e da outra entena fizèraõ huma verga para papafigo, e com alguns pedaços de vèlas velhas tornàraõ a guarnecer eſta verga grande; e outro tanto fizeraõ para o maſtro de proa; e ficou iſto taõ remendado e fraco, que baſtava qualquer vento para lhos tornar a levar. E como tiveraõ tudo guarnecido dèraõ às vèlas com o vento Suſuèſte.» (HTM, tomo I, p. 9)

Embora se possa dizer, se incluirmos a diferença da ortografia, que há alterações quase em cada palavra durante as diversas edições, reparemos apenas numa expressão «huma verga para a vèla da guia». No manuscrito, lê-se «hũa vergua pera vela da guavea» (f. 420v). Na primeira edição, regista-se «hũa verga pera a vella da gauea» com algumas modificações gráficas (cap. v). Na etapa transitória da terceira edição para a terceira edição emendada, surge uma mudança de «a vela da gauia» para «a vela da guia» (cap. IIII) e este último termo fica até à versão da História Trágico-Marítima. «E vendoſe ſem maſto nem verga fizeram no pè do maſto grande que lhe ficou hum maſtareo de hum pedaço de entena bem pregada, & com as milhores arreataduras que puderam, & nelle guarneceram hũa verga pera a vela da gauia, & da outra entena fizeram hũa verga pera papafigo, & com alguns pedaços de velas velhas tornaram a guarnecer eſta verga grande & outro tanto fizeram pera o maſto de proa, & ficou iſto tam remendado & fraco, que baſtaua qualquer vento pera lhos tornar a leuar. E como tiueran tudo guarnecido, deram as velas com o vento Suſoeſte.» (3.ª edição (a), cap. IIII). «E vendoſe ſem maſto nem verga fizeram no pe do maſto grande que lhe ficou hum maſtareo de hum pedaço de entena bem pregada, & com as milhores arreataduras que puderam, & nelle guarneceram hũa verga pera a vela da guia, & da outra entena fizeram hũa verga pera papafigo, & com alguns pedaços de velas velhas tornaram a guarnecer eſta verga grande & outro tanto fizeram pera o maſto de proa, & ficou iſto tão remendado & fraco, que baſtaua qualquer vento pera lhos tornar a leuar. E como tiueram tudo guarnecido, deram as velas com o vento Suſoeſte.» (3.ª edição (b), cap. IIII).

Sem entrar em pormenores, a terceira edição e a terceira edição emendada são extremamente parecidas. Contudo, alteram-se constantemente a ortografia nesta edição, o que nem sempre nos parece necessário. Por vezes, na terceira emendada, corrigem-se os erros encontrados na terceira edição. Há casos em que se cometem outros erros na edição emendada. Consequentemente, não podemos supor se o editor António Álvares substitui a palavra «gauia» pela «guia» propositadamente ou por engano, ou por lapso tipográfico pois, considerando as circunstâncias do galeão que navegava «alargando de

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hũa banda, & caſſando da outra» por o leme não se governar, quer «a vela da gavea» quer «a vela da guia» poderá fazer sentido. No que diz respeito ao leme, sabemos, através da História Trágico-Marítima: «por o lème ſer podre hum mar que lhe entaõ deu, lho quebrou pelo meyo, e levoulhe logo ametade, e todos os machos ficàraõ metidos nas femeas». (pp. 9-10). Nestas linhas, esconde-se um passo no manuscrito que iria ser eliminado na terceira edição: «E por o leme ser podre das inuernadas do Rio de Lisboa que foi o mesmo que se fez com o gualeão com hum mar que lhe emtão deu quebrou polo meio e leuoulhe loguo a metade e todos os machos fiquarão mitidos nas femeas» (Mss., f. 420v).

Desta maneira, a informação concreta acerca de uma das principais razões do naufrágio do galeão grande São João é omissa sem ser sabido pelos leitores da História Trágico-Marítima. Passemos a um episódio mais adiante: «E vendo Manoel de Souſa como o Galeaõ ſe lhe hia ao fundo ſem nenhum remedio, chamou ao Meſtre, e Piloto, e diſſe-lhes, que a primeira couſa que fizeſſem foſſe pollo em terra com ſua mulher e filhos, com vinte homens, que eſtiveſſem em ſua guarda, e apoziſto tiraſſe as armas, e mantimentos, e polvora, e alguma roupa de Cambraya, para ver ſe havia na terra alguma maneira de reſgate de mantimentos.» (HTM, p. 13)

Neste extracto, um objecto da carga, «alguma roupa de Cambraya», pode não chamar a nossa atenção em especial. Todavia, consultando as versões anteriores, as palavras em causa estão registadas como «allgũa roupa preta de Quambaya» no manuscrito (f. 421) que se sucede com as pequenas diferenças ortográficas até à segunda edição (cap. ix). Cai o adjectivo «preta» na terceira edição (cap. VIII) e a «Cambaya» muda-se para «Cambraya» na quarta edição (cap. Octavo). Esta troca originará a descrição da História Trágico-Marítima. Enquanto a Cambaia é uma cidade de Guzerate, a cambraia é o tecido fino ou transparente de linho ou algodão. Uma vez que tanto «alguma roupa de Cambaia» como «alguma roupa de Cambraia» podem fazer sentido no contexto, não se sabe se a substituição surge pela cópia incorrecta devido à semelhança da ortografia, ou pelo lapso tipográfico, ou pela emenda intencional do editor. Porém, se considerarmos que, além de começar por letra maiúscula, encontramse as referências «ao Reyno de Cambaya» no relato da nau São Bento e «boas alcatifas de Cambaya» no relato da nau Santo Alberto, a palavra original terá sido o topónimo Cambaia. Antes de finalizar esta comunicação, vejamos um cenário depois de se perderem aqueles três machos do leme, o polegar. 9

«E iſto ſe naõ ſabia de ninguem, ſómente o Carpinteiro da Nao que foy ver o lème, e achou falta dos ferros, e entaõ ſe veyo ao Meſtre, e lho diſſe em ſegredo, que era hum Chriſtovaõ Fernandes da Cunha o Curto» (HTM, p. 7).

Analisemos o nome deste mestre, Cristóvão Fernandes da Cunha, chamado «o Curto», por provavelmente ser um homem baixo. Todavia, o mestre é referido no manuscrito como «Cristovão Fez ho Quarto dalcunha» (f. 419v), ou seja, chama-se Cristóvão Fernandes, chamado o Quarto pela alcunha. Esta terá surgido da sua função no galeão, isto é, o chefe do quarto, em vez de ser «o Curto» com que nos familiarizámos na História Trágico-Marítima. Na primeira edição, o nome torna-se em «Chriſtouão Fernandez dalcunha o curto» (cap. iiij), trocando-se a ordem das palavras e transformando a alcunha no «curto». Na segunda edição, o nome e a alcunha dividem-se por uma vírgula, talvez, para não confundir: «Criſtouam Fernandez, dalcunha o curto» (cap. iiij). Na terceira edição, a palavr «dalcunha» começa pela maiúscula, fazendo parte, assim, do nome: «Chriſtouam Fernandez Dalcunha o curto» (cap. III). Na terceira edição emendada, cai a letra «l» de «Dalcunha» por poder tencionar corrigir a grafia, pensando que era errada, ou por omitir uma letra por descuido: «Chriſtouam Fernandez Dacunha o curto» (cap. III). Na quarta edição, «Dacunha» separa-se em «da» e «Cunha»: «Chriſtouão Fernandes da Cunha o curto» (cap. Terceiro). Este novo nome feito com outra alcunha é transmitido na quinta edição (cap. III). Na contrafacção, «curto» começa com letra maiúscula: «Chriſtovaõ Fernandes da Cunha o Curto» (cap. III), que iria ser copiado, por fim, pelo bibliófilo. Em relação à autoria do relato, Diogo Barbosa Machado considera ser de Álvaro Fernandes. No entanto, além de o guardião ser mencionado como fornecedor da informação ao autor anónimo na introdução inserida na primeira edição, a existência de um testemunho é destacada de algumas formas como se tencionasse realçar a veracidade da história nessa editio princeps. Pelo que somos de opinião de que o autor é anónimo. Conclusão A comparação dos textos compilados na História Trágico-Marítima com as versões retrospectivas efectuada nos nossos trabalhos anteriores revela que as narrativas do naufrágio sofrem geralmente intervenções em cada publicação. O relato do galeão grande São João mostra obviamente esta tendência, pois, uma vez que se verificam,

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pelo menos, oito versões anteriores, o texto integrado na História Trágico-Marítima está afectado mais do que quaisquer outros relatos com modificações, intencionais ou não. Por conseguinte, embora a descrição no manuscrito possa não ser inteiramente a verdade, a história que se conhece através da colectânea de Bernardo Gomes de Brito afasta-se, nos pormenores, daquilo que aconteceu. No presente trabalho, tratámos da etapa da navegação até a chegada à costa e apontámos apenas uma parte de diversos exemplos. Entre estes, a vicissitude de modificação ocorrida no nome do mestre poderá constituir um dos modelos representativos. Na sequência da permanência na praia e durante a marcha, também se encontram uma série de casos para discutir. Por um lado, admitimos que as substituições, as adições e as eliminações a fim de dramatizar a história podem considerar-se como uma das características literárias e contribuem para cativar o público. No entanto, por outro lado, quase cada palavra no texto do relato do naufrágio do galeão grande São João da História Trágico-Marítima está influenciada pelas alterações acumuladas através das versões precedentes. Consequentemente, afirmamos que é necessária uma atenção devida, caso as informações registadas neste relato forem aproveitadas como uma fonte histórica para uma análise científica.

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