Vibrações, Símbolos e Lugares do Rio Maracatu. Referência: SOUZA, Larissa Lima de. Vibrações, símbolos e lugares do Rio Maracatu. 2015. 168 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

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Descrição do Produto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Tecnologia e Ciências Instituto de Geografia

Larissa Lima de Souza

Vibrações, símbolos e lugares do Rio Maracatu

Rio de Janeiro 2015

Larissa Lima de Souza

Vibrações, símbolos e lugares do Rio Maracatu

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Orientador: Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello

Rio de Janeiro 2015

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CTC/C

S729

Souza, Larissa Lima de. Vibrações, símbolos e lugares do Rio Maracatu / Larissa Lima de Souza. – 2015. 168 f. il. Orientador: João Baptista Ferreira de Mello Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Geografia. Bibliografia 1. Geografia humana – Rio de Janeiro (RJ) – Teses. 2. Maracatu – Aspectos simbólicos – Teses. 3. Cultura popular - Teses. I. Mello, João Baptista Ferreira de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Geografia. III. Título. CDU 911.3:793.31(815.3)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. ________________________________________________

Assinatura

____________________________________

Data

Larissa Lima de Souza

Vibrações, símbolos e lugares do Rio Maracatu

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Gestão e Estruturação do Espaço Geográfico.

Aprovada em 27 de Maio de 2015. Banca Examinadora: _______________________________________________ Prof. Dr. João Baptista Ferreira de Mello (Orientador) Instituto de Geografia - UERJ

____________________________________________ Prof.ª Dra. Aureanice de Mello Corrêa Instituto de Geografia - UERJ

______________________________________________ Prof.ª Dra. Amélia Cristina Alves Bezerra Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2015

AGRADECIMENTOS

Ondjaki, no livro Os da minha rua, afirma que “uma casa está em muitos lugares [...] É uma coisa que se encontra”. Sentir-me em casa durante essa pesquisa somente foi possível graças a pessoas que, generosamente, caminharam junto a mim e me fizeram acreditar no meu potencial, me motivaram com palavras e atitudes, compartilharam comigo seus conhecimentos, me ajudaram a construir os meus lugares. Agradeço, primeiramente, ao orientador desta pesquisa, professor João Baptista Ferreira de Mello, pela atenção, pelas tardes e noite de orientação em seu lar, pelas guloseimas. João, obrigada por ter aceitado orientar minha pesquisa, apesar de sua religião. Agradeço, igualmente, à professora Zeny Rosendahl, pelas discussões e indicações de leitura durante a disciplina Espaço e Cultura, pelo conhecimento compartilhado; à professora Aureanice Corrêa, que, em sua extravagância, ousou trabalhar geograficamente a cultura afrobrasileira do candomblé, pelas aulas tão esclarecedoras e pelo incentivo para que eu optasse pelo maracatu como objeto de investigação. Como um trabalho de mestrado não se constrói apenas com o conhecimento adquirido durante este curso, gostaria de agradecer imensamente aos professores da UFF que contribuíram para minhas escolhas acadêmicas e encaminharam minha vida enquanto pesquisadora: ao mestre Sérgio Nunes Pereira, meu eterno tutor, pelas indicações de leitura, pelos debates, pelo carinho; à mestra Amélia Cristina Alves Bezerra, incentivadora de todas as horas, seja na sala de aula, na minha banca de TCC ou me assistindo cantar, por sua postura amiga e pelos diálogos a respeito de Educação ou das Festas; à mestra Flávia Elaine da Silva Martins, por ampliar meu encantamento pelas nuances urbanas, por participar das minhas primeiras divagações sobre espaço urbano e cultura; ao ilustre professor Ivaldo Gonçalves Lima, por ser uma referência para pensar criticamente as relações humanas no espaço, por seu humor ácido, pela indicação de bibliografia sobre glocalização. Agradeço ao mestre Nelson da Nóbrega Fernandes (em memória), por ter me acompanhado e orientado nos primeiros estudos culturais e urbanos, por tamanha

dedicação e sinceridade, por despertar meus melhores questionamentos, por sugerir, em dedicatória de seu livro O rapto ideológico da categoria subúrbio que eu continuasse “irrequieta”. Segui seu conselho e eis aqui um dos frutos dessa ousadia que me recomendou. Como esta pesquisa buscou compreender os lugares do Rio Maracatu, sem a receptividade e a participação de seus integrantes não seria possível concluí-la. Então, gostaria de sinceramente agradecer a todo o grupo Rio Maracatu, e, principalmente, aos professores Aline, Tiago, Adriano, Alexandre, à monitora Monique e às alunas da ODRM Camila e Sabrina, por dedicarem parte do seu tempo para me contarem suas experiências e emoções vivenciadas com o maracatu. Agradeço, igualmente, às pessoas que registraram os cortejos do grupo e cederam as fotos para serem utilizadas nesta pesquisa, em especial, Renata Rodrigues, Benjamin Tollet e Sérgio Feijó. Obrigada aos amigos do trabalho, à Renata e ao Marcelo, parceiros de disciplina, e principalmente à Raquel Hogemann, pelo auxílio com os dicionários históricos com termos coloniais. Obrigada aos amigos desde os tempos de escola, pelo apoio, incentivo e pela compreensão durante esses dois anos em que me enveredei nesta pesquisa acadêmica, estando ausente em muitos momentos. Especialmente, agradeço à Vanessa Martins, ao Ananias Matos, à Yasmim Querino e ao Yuri Fagundes. Agradeço, também, aos amigos de Mangaratiba Renan Saísse e Letícia Fionda, pela parceria, pelos encontros, por me encherem de boas lembranças da minha infância, da minha adolescência e do que vivi da minha fase adulta até agora. Obrigada aos amigos geográficos, da UFF e da Uerj, por toda a troca de conhecimentos, de afeto, de incentivo, assim como pelos momentos de descontração necessários para que minha produzisse boas ideias. Em especial, gostaria de agradecer aos companheiros de PET-GeoUFF: Natalia Sales, Juliana Luquez, Gabriel Balardino, Gustavo Cayres, Flavio Laplace, Lea Costa, Hannah Quaresma, Jean Brum e Felipe Werminghoff. Da mesma maneira, agradeço grandemente às amigas: Taiany Marfetan, Roberta Pereira, Thaiana Netto, Kelly Soares, Evelyn Meirelles, Amábile Soares, Brunna Uchôa, Lívia Abdalla, Giselle Borges. À amiga desde os tempos de graduação na UFF, Evelyn Meirelles, dedico um agradecimento especial pela imensa presteza e ajuda na elaboração dos mapas

presentes neste trabalho, por toda atenção e paciência durante as tardes no LAGEPRO- Uerj. Obrigada, amiga. Muito obrigada, também, aos grandes amigos da Geografia-UFF Luiz Furtado, Pedro Toledo e Lucas Honorato, e às amigas Amanda Mello, Júlia Caon e Lívia Vargas. Aos amigos do PPGEO-Uerj, da Geografia Cultural e Humanística: Cassio Novo, Gisela Alves, Jefferson Olyver, Natália Ferreira, Karina Arroyo e José Arilson. Também sou grata a toda a equipe da secretaria de Pós-Graduação em Geografia da Uerj (PPGEO-Uerj), pelo imenso auxílio não somente com a burocracia de prazos e inscrições em disciplinas, mas também pelo apoio humano com tantas palavras de incentivo. Ciro, Mayra, Cristina e Fátima, obrigada por terem contribuído para que tudo desse certo na minha Defesa de Mestrado. Da mesma maneira, agradeço imensamente à Taciane Ferreira, bibliotecária do Instituto de Geografia, pelo grande auxílio antes da Defesa e após, com a revisão atenta da versão final deste trabalho. Gostaria de agradecer à amiga Cassia Oliveira, pela tradução dos textos sobre maracatu publicados na Áustria e escritos em alemão. Agradeço, igualmente, à amiga Rafaela Monteiro, pelo empréstimo do livro que me ajudou nesta “arte de pesquisar”, assim como à amiga Glauce Nascimento por todos os momentos de riso e de palavras de incentivo e encorajamento sobre a intensa fase de elaboração da uma dissertação de mestrado. Igualmente agradeço à Cassia Martins Pereira, pelo tempo dedicado a me ouvir e me ajudar a lidar com os diversos sentimentos e emoções despertados ao longo deste trabalho de mestrado, por contribuir para a ampliação de meu autoconhecimento e amadurecimento. Ao amigo Israel Santos, exemplo de superação e de força, muito obrigada por cada oração, por cada lanche, por cada dia de abrigo em seu lar, pela amizade sincera. À grande amiga Karine Pinheiro, por cada detalhe da nossa caminhada juntas, iniciada na barriga de nossas mães. Obrigada por me apoiar tanto em todas as fases vividas até agora e por comemorar cada conquista comigo. O incentivo da minha família também foi basilar para que esta pesquisa fosse realizada com afinco. Foi enorme a vontade de me conectar com minha ancestralidade e de honrar minhas raízes negras e nordestinas, através de meus

avós maternos Helena (em memória) e José (em memória) e de meus avós paternos Maria (em memória) e Joaquim (em memória). Obrigada a meu tio-avô materno Luiz, por toda a troca de conhecimentos, pelas histórias contadas em Olinda e Recife sobre a nossa família, por me permitir construir um lugar em seu lar. Também devo agradecer, principalmente, aos meus queridos tios Jairo, Jarbas, José e tias Isabel, Marleide e Marluce. Obrigada pelo carinho, pela paciência, pela torcida, por todos os pensamentos e palavras positivas ao longo dessa caminhada. Às minhas irmãs Jaqueline e Janaína, obrigada pelo incentivo em cada escolha feita por mim, pela compreensão nessa fase de relativa ausência e pelo carinho de sempre. Agradeço enormemente a minha irmã Lívia Pinheiro, pela parceria, pelo carinho, pelas conversas, pelos puxões de orelha...pelo exemplo de profissional que é. Ao cunhado Pedro, obrigada pela amizade, pelo incentivo e pelos momentos de descontração ao longo desses dois anos em que realizei a pesquisa. Devo agradecer de maneira singular àqueles que me trouxeram a este mundo, me auxiliando a aprender, me incentivando em todos os momentos, prezando pela minha autoestima, me encorajando a enfrentar os desafios surgidos, me concedendo a vida e me ensinando a amá-la, cada um da sua maneira: Marise Gomes de Lima e Jorge Juarez de Souza. Mãe, muito obrigada por me amar tanto e por me dizer sempre isso, obrigada pelo apoio em minhas empreitadas acadêmicas, pelas conversas esclarecedoras, por ter permitido que eu conhecesse Pernambuco há alguns anos atrás, por cada detalhe que contribuiu para que eu tivesse autonomia de pensamento. Obrigada por ser tão protetora, amável e guerreira. Pai, muito obrigada por me ajudar a construir minha identidade negra desde bem pequena, me chamando de “nêga” e “crioula”, de maneira tão carinhosa. Hoje eu vejo como isso foi importante. Obrigada por me levar desde criança para Mangaratiba, onde brinquei e fiz amigos verdadeiros e para a vida inteira. Obrigada por me apoiar sempre, por ter lutado junto comigo pela minha vaga no mestrado, pelas conversas sobre candomblé, por todos os momentos em que compreendeu minha ausência e por me estimular a terminar logo minha pesquisa para voltarmos a ter mais tempo juntos. Nesta reta final, foi essencial.

Por fim, gostaria de agradecer ao melhor companheiro que poderia ter ao meu lado, Giam Miceli. Muito obrigada por estar comigo nos altos e baixos desta pesquisa, por me tranquilizar, por me apoiar, por me acompanhar nos trabalhos de campo e ler atentamente meu trabalho. Obrigada pelos cafezinhos quando eu fiquei cansada, por todas as refeições feitas com amor...por

me acolher tão

confortavelmente, em seu braços, nos momentos de descanso, por renovar minhas energias, por toda atenção e carinho dedicados a mim. Amore mio, obrigada por todos os instantes ao meu lado. Você é minha inspiração. Amo você.

As coisas que não têm dimensões são muito importantes. (Manoel de Barros, Livro sobre nada)

Modernizar o passado é uma evolução musical. Cadê as notas que estavam aqui? Não preciso delas. Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos. O medo da origem é o mal. O homem coletivo sente a necessidade de lutar. O orgulho, a arrogância, a glória enchem a imaginação de domínio. São demônios os que destroem o poder bravio da humanidade. [...] Viva Zumbi, Antônio Conselheiro, todos os Panteras Negras, Lampião, sua imagem e semelhança. Eu tenho certeza: eles também cantaram um dia.

(Monólogo ao pé do ouvido- Chico Science e Nação Zumbi)

RESUMO

SOUZA, Larissa Lima de. Vibrações, símbolos e lugares do Rio Maracatu. 2015. 168 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. O presente trabalho procura analisar os símbolos e significados do Maracatu. Mais especificamente, busca compreender a dinâmica do Bloco Rio Maracatu, investigando de que maneira os integrantes configuram lugares antes e durante o Carnaval carioca, seja a partir da identificação com determinadas formas simbólicas ou com os itinerários simbólicos atravessados pelo cortejo. Ademais, almeja contribuir para um diálogo entre conhecimento popular e conhecimento acadêmico, levando mais sensibilidade à ciência geográfica, a partir do estudo geográfico e humanista de um bloco carnavalesco de maracatu. Nesse sentido, este trabalho dissertativo abordará a cultura como construída nas experiências coletiva e individual, a partir de significações diversas. Para compreender como a Lapa, a orla de Ipanema e algumas comunidades se constituem em lugares simbólicos, será essencial abordar os símbolos dos lugares, apropriados por diversos indivíduos de maneira distinta. A base teórica para apreender tal quadro é composta pelos referenciais da Geografia Cultural, em suas vertentes Humanística e Crítica, considerando, igualmente, as contribuições de outras ciências humanas como a História, a Antropologia e a Sociologia. O presente trabalho adotou a pesquisa qualitativa e a observação participante como metodologia de investigação científica. Optar por este caráter de pesquisa permitiu uma maior conexão com o arcabouço teórico da Geografia Humanística, corrente ávida por desenredar os múltiplos significados construídos por diferentes indivíduos e grupos sociais a partir de sua experiência espacial, bem como facilitou a interpretação e a interação com o objeto de estudo em questão. Após revisão bibliográfica e três meses de trabalhos de campo, a perspectiva aqui apresentada é que não faz sentido buscar uma única raiz para o maracatu, seja a Igreja Católica ou o candomblé (culto nagô pernambucano). Seria mais apropriado considerar que o maracatu já nasce como uma cultura híbrida. No Rio de Janeiro, o maracatu-nação chega através do grupo Rio Maracatu, em 1997, (re)ssignificando determinados símbolos associados ao folguedo, mantendo outros e se apropriando de símbolos espaciais de determinados espaços da cidade, configurando lugares simbólicos. É importante lembrar que quanto mais elementos e características dos espaços apropriados pelo Rio Maracatu, quais sejam a Lapa, Ipanema ou as comunidades cariocas, podem ser comparados aos de Recife, maior é a identificação dos integrantes deste grupo percussivo e, portanto, maior é o sentido de lar, de lugar, quando ocorre um cortejo ou um arrastão. Palavras-chave: Lugar. Símbolos. Maracatu. Rio de Janeiro.

ABSTRACT

SOUZA, Larissa Lima de. Vibrations, symbols and places of Rio Maracatu. 2015. 168 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. This paper intends to analyze the symbols and meanings of Maracatu. More specifically, it seeks to understand the dynamics of the Block called Rio Maracatu, investigating how the members make up places before and during the Rio Carnival, either by identifying with certain symbolic forms or with symbolic itineraries crossed by the procession. Besides, this research aims to contribute to a dialogue between popular and academic knowledge, providing more sensitivity to geographical science, from the geographical and humanistic study of a carnival group of maracatu. In this sense, this dissertation will approach culture as built on collective and individual experiences, from various meanings. To understand how Lapa, Ipanema`s edge and some slum communities constitute symbolic places, it will be essential to address the symbols of the places, appropriate by various individuals differently. The theoretical basis for apprehending such a framework consists of the references of Cultural Geography in its Humanistic and Critical aspects, also considering the contributions of other human sciences like History, Anthropology and Sociology. This study adopted the qualitative research and participant observation as a scientific research methodology. This option for this research character allowed a greater connection with the theoretical framework of humanistic geography, which is avid to extricate the multiple meanings built by different individuals and social groups from their spatial experience. This choice also facilitated the interpretation and interaction with the study object. After literature review and three months of field work, our perspective is that it makes no sense to seek a single root for the maracatu, either the Catholic Church or the candomblé (cult Nagô in Pernambuco). It would be more appropriate to consider the maracatu is born as a hybrid culture. In Rio de Janeiro, Maracatu Nation comes through Rio Maracatu group in 1997, (re)meaning certain symbols associated with merriment, keeping others and appropriating spatial symbols of certain areas of the city, creating symbolic places. Remember that the more parts and characteristics of appropriate spaces for Rio Maracatu, namely Lapa, Ipanema or Rio`s communities can be compared to Recife, the greater is the identification of members of this percussion group and, therefore, the greater the sense of home or place, when a procession occurs. Keywords: Place. Symbols. Maracatu. Rio de Janeiro.

LISTA DE MAPAS

Mapa 1 –

Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Informações sobre o Grupo Rio Maracatu (Rio de Janeiro - RJ)......................

Mapa 2 –

Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Grupos Percussivos no Exterior cadastrados no projeto..........................

Mapa 3 –

76

Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Grupos Percussivos no Brasil cadastrados no projeto................................

Mapa 4 –

75

77

Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Nações de Maracatu em Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes (PE)...

77

Mapa 5 –

Itinerário simbólico do bloco Rio Maracatu durante o Carnaval... 107

Mapa 6 –

Lugares do Rio Maracatu no bairro da Lapa (RJ)........................ 115

Mapa 7 –

Lugares Simbólicos do Rio Maracatu – Comunidade do PavãoPavãozinho (RJ)........................................................................... 152

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Foto 1 –

Aluna da ODRM dançando ijexá, durante o Ensaio Geral do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015...................................................

Foto 2 –

93

Reunião de catitas ao fim do Ensaio Geral do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015..........................................................................

94

Foto 3 –

Últimos preparativos de maquiagem das Rainhas Negras............

97

Foto 4 –

Disposição dos instrumentos percussivos no ensaio geral do Rio Maracatu na Fundição Progresso..................................................

Foto 5 –

Aluna da Oficina de Percussão tocando xequerê/agbê no Ensaio Geral do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015..............................

Foto 6 –

99

Fileira de catirinas margeando o cortejo e protegendo as baianas ricas................................................................................................

Foto 7 –

98

Rainhas

negras

dançando

durante

100

o

cortejo............................................................................................. 100 Foto 8 –

Vall Neves, representando Iansã, durante cortejo carnavalesco do Rio Maracatu em 2015..............................................................

101

Foto 9 –

Dama do leque e baiana fazendo o movimento de Oxum ............

102

Foto 10 –

Equipe da dança ao fim do cortejo carnavalesco do Rio Maracatu, com a ilustre presença do Mestre Maurício Soares, ao centro da foto.................................................................................

Foto 11 –

A rainha, o rei e o escravo, parte da corte do Rio Maracatu em 2015...............................................................................................

Foto 12 –

104

A Dama do Paço e professora da ODRM Isabela, com a calunga do Rio Maracatu, dançando na orla de Ipanema ..........................

Foto 13 –

103

105

Catirinas posam com calunga na concentração do Bloco Rio Maracatu......................................................................................... 106

Foto 14 –

Rio Maracatu na Praça dos Arcos.................................................. 116

Foto 15 –

Logo do evento LapaLê.................................................................. 117

Foto 16 –

Calunga do Rio Maracatu, antes do cortejo do bloco no evento LapaLê............................................................................................ 118

Foto 17 –

Cortejo do Rio Maracatu na Praça dos Arcos, durante o festival LapaLê............................................................................................ 119

Foto 18 –

Alexandre tocando caixa durante cortejo carnavalesco com o Rio Maracatu......................................................................................... 123

Foto 19 –

Professor Adriano Sampaio e criança experimentando o batuque em sua alfaia, durante apresentação do Rio Maracatu na comunidade Pavão-Pavãozinho, em Março de 2015..................... 126

Foto 20 –

Camisas

com

a

logo

idealizada

por

Monique

Pereira

estampando sua frente................................................................... 128 Foto 21 –

A dama do leque Monique Pereira, durante cortejo carnavalesco em Ipanema.................................................................................... 132

Foto 22 –

As principais nação de Maracatu desfilaram junto à alfaia de Tiago, no cortejo de Ipanema......................................................... 140

Foto 23 –

Tiago tocando alfaia na orla de Ipanema, durante cortejo carnavalesco..................................................................................

Foto 24 –

141

Catirinas dançando, representando Oxum e protegendo a corte, as baianas e as rainhas negras.....................................................

144

Foto 25 –

A mestra Aline Valentim desfilando na Avenida Vieira Souto.....

146

Foto 26 –

Aline Valetim rodando sua saia sob ao Arcos da Lapa, em cortejo durante o evento Lapa Lê, em Abril de 2015.....................

Foto 27 –

Aline dança e é observada em uma das ruas da comunidade Pavão-Pavãozinho.........................................................................

Foto 28 –

147

148

Dona Telma, cheia de alegria, segurando a calunga do Rio Maracatu, antes do cortejo pelas vielas da comunidade PavãoPavãozinho..................................................................................... 149

Foto 29 –

Rio Maracatu se apresentando no Terraço Cultural do Museu de Favela, na comunidade carioca do Pavão-Pavãozinho.................

Foto 30 –

150

O casal de rei e rainha, Flávio e Marli, em viela do PavãoPavãozinho..................................................................................... 153

Foto 31 –

Menina coroada se divertindo ao som do Rio Maracatu, na comunidade carioca Pavão-Pavãozinho........................................

154

SUMÁRIO

VIBRAÇÕES INICIAIS - INTRODUÇÃO........................................... 1

EM DIREÇÃO A UMA HUMANÍSTICA GEOGRAFIA PARA ELUCIDAÇÃO DOS LUGARES DO RIO MARACATU.....................

1.1

16

26

O lugar como conceito para compreensão da simbólica espacialidade do Rio Maracatu.......................................................

26

1.2

Rememorando e revivendo o Maracatu no Rio de Janeiro...........

32

1.3

Entre a Festa e a Regulação: Carnaval e apropriação do espaço urbano................................................................................................

38

1.3.1

Cerimônias, celebrações e “desvios” do Maracatu no Recife.............

44

1.3.2

Regulação da festa carnavalesca carioca.........................................

49

2

DESVENDANDO O MARACATU E SEUS SIGNIFICADOS NO CARNAVAL DE RUA: ENTRE RESISTÊNCIA, ESPETÁCULO E EXPANSÃO........................................................................................

55

2.1

As raízes híbridas do maracatu......................................................

55

2.2

A Coroação de Reis do Congo e sua influência no Maracatu......

59

2.3

Maracatu: diferenciações, (re)ssignificações e permanências....

65

2.4

Estaria o maracatu vivendo uma glocalização?...........................

71

3

SÍMBOLOS E LUGARES DO RIO MARACATU NO CARNAVAL DE RUA DO RIO DE JANEIRO........................................................

3.1

88

Rio Maracatu entre a Lapa e Zona Sul: a centralidade simbólica em jogo.............................................................................................

88

3.1.1

Ensaios/preparativos para o cortejo de Carnaval..............................

90

3.1.2

As oficinas do Rio Maracatu..............................................................

91

3.2

O cortejo carnavalesco do Rio Maracatu e a apropriação simbólica da orla de Ipanema.........................................................

96

3.3

Lapa: um simbólico e centenário lugar do Rio de Janeiro..........

107

3.3.1

Os cortejos na Lapa – Abertura do Carnaval e Festival LapaLê.......

115

3.4

Explorando humanisticamente o Rio Maracatu: significados vistos do seu interior.......................................................................

119

3.4.1

Maracatu como resistência, escape, regeneração e comunicação....

121

3.4.2

Maracatu como folclore, família, trabalho...........................................

122

3.4.3

Maracatu como amor, cultura, responsabilidade, comunicação.........

124

3.4.4

Maracatu

como

“religião”,

“vício”,

diversão

x

stress,

axé,

reenergização, catirina, tolerância...................................................... 3.4.5

Maracatu

como

tolerância,

tradição,

resistência,

127

felicidade,

satisfação x culpa................................................................................

135

3.4.6

Maracatu como tradição, responsabilidade, entrega, favela...............

142

3.5

As comunidades no ritmo do Rio Maracatu...................................

149

DERRADEIROS PULSARES - CONCLUSÃO...................................

155

REFERÊNCIAS..................................................................................

159

SITES CONSULTADOS.....................................................................

166

16

VIBRAÇÕES INICIAIS - INTRODUÇÃO Dentro das alas Nações em festa Reis e rainhas cantar Ninguém se cala Louvando as glórias Que a história contou Marinheiros, capitães, negros sobas Rei do congo A rainha e seu povo As mucamas E os escravos no canavial 1 Amadês senhor de engenho e sinhá Traz aqui maracatu nossa escola Do Recife nós trazemos Com alma A nação maracatu Nosso tema geral Vem do negro essa festa de reis (Reis e Rainhas do Maracatu – Clube da Esquina)

Estudar o Maracatu no Carnaval de rua da cidade do Recife e entender como essa manifestação cultural se manifesta no Rio de Janeiro, mais especificamente no grupo percussivo Rio Maracatu, um dos mais tradicionais blocos carnavalescos do Rio, não figurava desde o início nos meus planos para a elaboração do meu trabalho dissertativo de Mestrado. Em princípio, pretendia pesquisar como o bairro da Lapa se constituía enquanto lugar para duas manifestações culturais distintas: o Maracatu e o RAP. O objetivo era prosseguir nos estudos sobre RAP e espaço urbano iniciados na graduação em geografia na UFF (LIMA, 2013).

Por sugestão dos

professores durante a qualificação deste trabalho precisei recorrer a outro recorte no meu objeto de estudo. Com efeito, o fato de ter parte da família materna de origem pernambucana e de minha avó paterna ter sido ialorixá foi decisivo para esta escolha, mas principalmente adentrar em um mundo de significados do Maracatu, praticamente desconhecidos, aguçou minha curiosidade e me motivou a realizar a presente pesquisa. Foi assim que o Maracatu me conquistou. Dentro desse novo universo, colocado a minha frente, surgiram diversos questionamentos a serem elucidados. Neste nicho, GOLDENBERG (2011) alega 1

Apesar de a música retratar alguns atores dos tempos coloniais no Brasil, o termo “amadês” não consta em dois dicionários de referência histórica para o mesmo período – o Dicionário de Nomes, Termos e Conceitos Históricos, de Antonio Carlos do Amaral Azevedo, e o Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808), dirigido por Ronaldo Vainfas.

17

que “a totalidade de qualquer objeto de estudo é uma construção do pesquisador, definida em termos do que lhe parece mais útil para responder ao seu problema de pesquisa” (GOLDENBERG, 2011, p.51). Nesse sentido, privilegiei algumas questões que considero essenciais para atingir aos propósitos da pesquisa. Quais seriam as verdadeiras origens do maracatu: este folguedo secular teria surgido a partir da Igreja Católica ou do culto aos orixás em Pernambuco? Haveria uma conexão, um hibridismo, resultando na manifestação cultural aqui analisada? Como pensar a proliferação de grupos de maracatu em nível nacional e, mais especificamente, na cidade do Rio de Janeiro? Esses novos grupos estabelecem relações com os Maracatus-Nação

de

Recife?

Poderíamos

falar

em

tradições

inventadas

(HOBSBAWM, 2008) para compreender o Bloco de Carnaval Rio Maracatu? O maracatu, hoje, continua sendo resistência ou é apenas espetáculo? De que maneira o Maracatu se apropria do espaço urbano antes e durante a festa carnavalesca? Que sentimentos os integrantes e os espectadores vivenciam nos ensaios e nos cortejos desse bloco? Muito embora saibamos das manifestações do chamado meio de ano com o maracatu, quais seriam os lugares do Rio Maracatu no Carnaval de rua da cidade? Nesses termos, o presente trabalho pretende analisar os símbolos e significados do Maracatu. Mais especificamente, busca-se compreender a dinâmica do Bloco Rio Maracatu, surgido em 1997 e que se apropria da Lapa, sob e no entorno do monumento de grande expressão simbólica, os Arcos da Lapa, assim como de parte da orla de Ipanema e de algumas comunidades cariocas. Ademais, investigaremos de que maneira os integrantes e os espectadores configuram lugares antes e durante o Carnaval carioca, seja a partir da identificação com determinadas formas simbólicas (os Arcos) ou com os itinerários simbólicos atravessados pelo cortejo carnavalesco (o litoral, em sua agradabilidade, o bairro/casario da Lapa, as vielas das comunidades). Frequentemente, quando comento sobre meu tema de pesquisa com pessoas de fora da Geografia, há um estranhamento. Ora, como estudar bloco carnavalesco de maracatu geograficamente? Resolvi desempenhar esta tarefa a fim de contribuir para um diálogo entre conhecimento popular e conhecimento acadêmico. Por seu turno, CORRÊA (2008, p.1), em A Espacialidade da Cultura, sublinha: “a cultura está em toda parte em razão de sua natureza humana”, oferecendo-se como um tema de estudo para diversas ciências. Neste ritmo, a presente pesquisa

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mostra-se relevante no sentido de contribuir para os estudos acerca da relação entre espaço e cultura através de uma perspectiva geográfica e de trazer à tona um enfoque absolutamente distinto: o maracatu desenvolve um viés espacial ao delimitar lugares para o desenvolvimento de suas atividades, ainda pouco exploradas no âmbito do saber geográfico. Nestas circunstâncias, BERDOULAY (2012) realça a importância do olhar geográfico em relação à cultura, pois as práticas culturais necessitam de uma organização territorial, podendo ocorrer uma adaptação ou até mesmo uma transformação do território para que a prática aconteça. De acordo com CORRÊA (2008), considerando-se a cultura como o conjunto de significados (re)elaborados por um grupo social a partir de suas representações, estudá-la implica entendê-la a partir não somente de objetos, mas sim dos significados. Isto permite outra via de análise para o estudo de uma rua, um bairro ou outros recortes espaciais. Considerando-se o caráter construtivista dos significados, pode-se afirmar que os mesmos são instáveis. Isto permite uma múltipla interpretação, uma polivocalidade a qual pode gerar conflitos (CORRÊA, 2012, p.134) por conter “um sentido político que pode opor, em relação a uma mesma paisagem, o sentido de celebração e de contestação” (CORRÊA, 2007, p.8). Dessa maneira, torna-se primordial considerarmos em nossas análises geográficas o que CORRÊA (2007, 2012) denomina polivocalidade, essencial para as práticas científicas e cotidianas. Segundo este mesmo autor, baseando-se na discussão elaborada por Stuart Hall (1997), a polivocalidade funcionaria como um antídoto para uma versão unívoca de mundo, representando uma possibilidade de recriação da realidade, pois o mesmo fenômeno pode ser lido de distintas maneiras de acordo com o grupo social, sendo os símbolos lidos enquanto construções sociais. Nesse sentido, o trabalho dissertativo abordará a cultura como construída nas experiências coletiva e individual, a partir de significações diversas. Para compreender como a Lapa, a orla de Ipanema e algumas comunidades se constituem em lugares simbólicos, será essencial abordarmos os símbolos dos lugares, apropriados por diversos indivíduos e por uma manifestação cultural específica: o cortejo (e os arrastões) do Bloco Rio Maracatu. A delimitação espacial desta pesquisa justifica-se no sentido de as apropriações simbólicas do espaço ocorrerem em distintas dimensões, aflorando simbólicos lugares em escalas diversas que podem ser a rua, o bairro, partes da

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urbe, ou mesmo a cidade em seu todo (TUAN, 1983, MELLO, 1991; CORRÊA, 2007, TUAN, 2013). Realizar um estudo sobre os lugares do bloco Rio Macaratu no Carnaval do Rio de Janeiro demanda conhecer as origens pernambucanas do Maracatu enquanto manifestação popular, assim como a influência do processo de globalização no modo de se fazer Maracatu no espaço urbano. Dessa maneira, trabalharemos com a multiescalaridade (SOUZA, 2006), distanciando-nos de uma abordagem simplificada para compreender a dinâmica deste folguedo tão complexo. Ademais, sabendo-se do abandono, durante muito tempo, das abordagens que consideram a subjetividade humana por parte dos geógrafos, a presente pesquisa também se justifica no sentido de contribuir para tais análises acerca do simbolismo presente no universo vivido por diferentes indivíduos e grupos sociais, transformando espaços em seus lugares. Importante frisar que, mesmo quando “se apoderam de uma ‘representação coletiva’ comum” (DUVIGNAUD, 2013, p.11), os lugares definidos pelos grupos sociais como seus variam no tempo e no espaço conforme a existência de distintas interpretações (DUVIGNAUD, 2013). A fim de compreendermos como o lugar também comporta o conflito, mas mantendo o diálogo com a Geografia Cultural Humanística, consideraremos as contribuições da Geografia Cultural Crítica. A respeito desta última, BERDOULAY (2012) afirma que, apesar da utilização do objetivo principal de “denunciar as relações de poder presentes – como

‘naturais’ – na paisagem e na organização

do espaço”, alguns autores dessa corrente não reduzem a cultura apenas à ideologia enquanto instrumento de poder e apropriação de territórios. O autor enfatiza que, principalmente na geografia francófona, as ideologias não são destituídas de valores e significações, sendo consideradas “representações que visam à ação” (BERDOULAY, 2012, p.112-113). Nesse sentido, “a noção de ideologia permite analisar a interação entre a cultura e o espaço sem determinismo de uma dessas categorias sobre a outra. Ela tem também a vantagem de unir ação coletiva e ação individual.” (BERDOULAY, 2012, p.115).

Para o referido autor, o sentido das ações é compreendido e redefinido pelos indivíduos. Ou seja, a cultura não pode ser vista como totalidade coletiva, já que os sujeitos se posicionam a favor ou contra os modelos de comportamento recebidos desde sua infância. Dessa maneira, o autor afirma que a geografia cultural

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humanística mostrou que “o sujeito não é uma abstração, mas se constrói com base em e com sua experiência dos lugares” (BERDOULAY, 2012, p.120-1), permitindo que sujeito e lugar sejam coconstruções. Nestas condições, para ir além dos impasses de uma concepção estática e totalizante de cultura, é preciso fundamentar a visão geográfica na experiência e na autonomia do indivíduo. [...] A geografia cultural, aberta ao sentido e aos valores que o sujeito utiliza e modifica em seu contexto, articula-se com as preocupações da geografia política (BERDOULAY, 2012, p.125).

Considerar essas duas correntes teóricas da Geografia para compreender os lugares do Rio Maracatu no carnaval carioca mostra-se como mais um olhar, mais uma perspectiva e não como única possibilidade de estudo em relação ao tema. É importante pensarmos, sempre, nas múltiplas possibilidades de abordagens em relação ao objeto de estudo, visto que “nossas representações são fundadas sobre a aparência dos objetos e não sobre os objetos em si mesmos” (BAILY,1995, p.371. Tradução da autora). Da mesma maneira, “os símbolos [...] não expressam um único significado, ainda que haja a intenção, por parte daqueles que os criaram, de dotálos de um único sentido” (CORRÊA, 1997, p.5). Para BAILY (1995), o imaginário fornece à função lógica um valor poético, que nos permite estudar os objetos geográficos dentro de sua pluridimensionalidade. Nas palavras do autor, “o pensamento geográfico para de ser inerte, abrindo-se ao homem e à sociedade, ao mesmo tempo em que ele se cria” (BAILY, 1995, p.374. Tradução da autora). Na perspectiva de PÊSSOA (2012), com o processo de renovação da Geografia a partir dos anos 1960, surge um novo olhar para os objetos de estudo dos profissionais desta área. A partir de então, em seus trabalhos, o geógrafo retomou técnicas de pesquisas já utilizadas, como por exemplo, o trabalho de campo e a observação e acrescentou outras como a entrevista, a história oral, a pesquisaparticipante, a pesquisação, o estudo de caso, a análise do discurso, o diário de campo. “Novas trilhas” surgiram para a investigação geográfica (PÊSSOA, 2012, p.14. Grifos nossos.).

Para a realização da presente pesquisa, foi adotada uma metodologia de pesquisa qualitativa (GOLDENBERG, 2011). Como nos coloca PÊSSOA (2012), “a escolha entre a pesquisa quantitativa e qualitativa deve ser feita a partir dos objetivos que se deseja alcançar, isto é, em benefício da pesquisa e não do pesquisador” (PÊSSOA, 2012, p.10). Optar por este caráter de pesquisa nos

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permitiu uma maior conexão com o arcabouço teórico da Geografia Humanística, corrente ávida por desenredar os múltiplos significados construídos por diferentes indivíduos e grupos sociais a partir de sua experiência espacial. Para GOLDENBERG (2011), o pesquisador qualitativo não deve ter em mente apenas uma “representatividade numérica”, mas sim “o aprofundamento da compreensão de um grupo social, de uma organização, de uma instituição, de uma trajetória etc” (GOLDENBERG, 2011, p.14). A respeito da utilidade da pesquisa qualitativa nos estudos geográficos, PÊSSOA (2012) alega que o seu uso para interpretar a realidade geográfica se pauta na dialética e na fenomenologia como orientações filosóficas principais. Esta mesma autora considera bastante “importante a imersão do pesquisador no contexto de interpretar e interagir com objeto estudado e a adoção de postura teóricometodológica para decifrar os fenômenos” (PÊSSOA, 2012, p.11). Nesse sentido, esta pesquisa se iniciou a partir de revisão bibliográfica para compor nossa base teórico-metodológica a respeito da perspectiva humanística na Geografia, da Geografia Cultural, do Maracatu-Nação e dos grupos percussivos, do Carnaval, entre outros assuntos. Essa etapa foi realizada a partir da visita a arquivos de bibliotecas universitárias como a da UERJ (campus Maracanã) e da UFF (campi de Niteroi), da Biblioteca Nacional, do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, etc. Após o primeiro momento de visitas às bibliotecas, foram realizados trabalhos experienciais (NOGUÉ I FONTE, 1992), ou seja, com o contato direto, entrevistas abertas, conversas informais, como defendido pelo geógrafo espanhol NOGUÉ I FONTE (1992), antes e após o cortejo carnavalesco do Bloco Rio Maracatu, interagindo com participantes e organizadores que transformam e elegem os paços da Lapa, da orla de Ipanema ou das comunidades como seus lugares. A partir da Geografia Humanística, a experiência foi primordial para realizar este estudo acerca dos símbolos e significados do Maracatu, oriundo do Recife e ressignificado no Rio de Janeiro. GOLDENBERG (2011) nos traz a importância de se romper, de certa maneira, com a rigidez da pesquisa científica, e é exatamente levar mais sensibilidade à ciência geográfica o que busco com este trabalho. Podemos dizer que esse nosso objetivo se relaciona à “arte do desvio” ou a uma “prática desviacionista”, nos termos de CERTEAU (2012), caracterizadas por “um retorno da ética, do prazer e da invenção à instituição científica” (CERTEAU, 2012,

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p.85). Romper com a rigidez, no entanto, não significa ignorar a importância do esforço teórico e da clareza metodológica, pois compreender simultaneamente os símbolos e significados de determinada coletividade e considerar as perspectivas individuais de seus membros é uma tarefa que igualmente nos exige um arcabouço teórico-metodológico bem estruturado. Nas palavras de GOLDENBERG (2011), “a pesquisa científica exige criatividade, disciplina, organização e modéstia, baseando-se no confronto permanente entre o possível e o impossível, entre o conhecimento e a ignorância” (GOLDENBERG, 2011, p.13). Portanto, para clarear minha compreensão acerca do Maracatu, foi necessário recorrer à observação participante a fim de ganhar a confiança dos membros antes de entrevistá-los e, de certa maneira, me tornar uma insider porque “o pesquisador só pode ter acesso a esses fenômenos particulares, que são as produções sociais significantes dos indivíduos, quando participa do mundo que se propõe estudar” (GOLDENBERG, 2011, p.27). A partir dos trabalhos de campo, entrei com contato com a “infinita riqueza de uma

experiência”

(DUVIGNAUD,

2013)

impossível

de

ser

integralmente

compreendida e transmitida através de conceituações. Para DEBARBIEUX (1995), a fenomenologia da imaginação permitiu reconhecer à imaginação uma função essencial de redução da infinita complexidade do real às imagens que podem ser apreendidas. [...] Essa função imaginativa permite passar dos dados concretos da experiência às representações abstratas (DEBARBIEUX, 1995, p.882).

Dessa maneira, DEBARBIEUX (1995) realça o valoroso papel da imaginação para a atividade científica, principalmente em relação às analogias e às metáforas, afirmando que quando a imaginação é criativa, como na arte, não pode ser considerada estranha à ciência, constituindo-se como um “espaço de liberdade onde a inteligência pode inventar” (DEBARBIEUX , 1995, p.883). Neste panorama, BAILY (1995) também elucubra quando sublinha: “toda representação, quer seja popular ou científica, é um ato de criação [...]” (BAILY, 1995, p.370. Tradução livre.). Nesse sentido buscamos aproximar arte e ciência na presente pesquisa, fomentando o diálogo entre tais saberes. A vivência durante o estudo empírico, fundamental para atingir nossos objetivos referentes ao desvendamento dos simbolismos do Rio Maracatu, se

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mostrou, contudo, como uma das dificuldades encontradas na pesquisa. Como afirma TUAN (2012), em um mundo tão ricamente simbólico, os objetos e eventos assumem significados que para um estrangeiro podem parecer arbitrários. Para um nativo, as associações e as analogias estão na natureza das coisas e não necessitam justificação racional (...) Os significados de muitos símbolos são orientados pela cultura”. (TUAN, 2012, p.44)

Como uma “estrangeira” (TUAN, 2012), uma “outsider”, uma “forasteira”, não por me sentir inferior em termos de relações de poder, ou seja, não no sentido posto por ELIAS e SCOTSON (2000), mas por perceber que minha identificação ou afeição em relação ao Maracatu não era suficiente para apreender os símbolos e os significados desta manifestação cultural. Dessa maneira, esta se revelou uma tarefa desafiadora. Provavelmente, caso eu pertencesse à cultura originária do folguedo, e até mesmo se eu já fosse membro de algum Maracatu-Nação ou do bloco Rio Maracatu, qualquer cor, movimento ou canto entoado seria mais facilmente compreendido e relacionado ao todo da manifestação em questão. Ao mesmo tempo, ser uma “outsider” representou uma dificuldade e serviu de incentivo ao aguçar minha curiosidade em conhecer um mundo de novos símbolos e significados, uma cultura nova. Como afirma TUAN (2012), “a topofilia é enriquecida por meio da realidade do meio ambiente quando este se combina com o amor religioso ou com a curiosidade científica” (TUAN, 2012, p.177). Através da vivência dos trabalhos de campo realizados entre o fim de janeiro e o início do mês de maio, entre oficinas de dança e de percussão, ensaios na Fundição Progresso e cortejos, tanto na orla de Ipanema no período carnavalesco quanto na Praça dos Arcos após o Carnaval, observei como uma manifestação cultural secular como o maracatu está se (re)inventando a partir do primeiro grupo percussivo a levar essa cultura para o Sudeste do Brasil.

Notei, por meio das

aulas/oficinas, dos sons e das corporeidades, como essa (re)invenção se relaciona simultaneamente a uma ancestralidade negra, à ideia de raiz, lembrada por diversos integrantes do grupo, e a uma (re)ssignificação em um contexto de toporreabilitação (TUAN, 2012) e de expansão de tal folguedo - eleito patrimônio imaterial brasileiro em nível não somente nacional, mas internacional. Desta forma, mesmo como inicialmente “outsider”, construí meus lugares durante a pesquisa. Ao mesmo tempo,

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em mim convergiam e mesmo conviviam os lugares dos integrantes e espectadores do Rio Maracatu. Por um lado, a pesquisa empírica através da observação participante foi fundamental tanto para responder nossos questionamentos iniciais quanto para gerar novos a partir de fatos que foram descobertos através da vivência, da observação, das conversas e das entrevistas. Ao mesmo tempo, esta escolha metodológica gerou algumas dificuldades durante o processo investigativo, dentre as quais estão: 1- Combinar as ações de desfilar como catita do Rio Maracatu e fotografar o grupo como uma espectadora; 2- Conciliar a atividade acadêmica com as atribuições de professora de Geografia. Em relação ao primeiro ponto, motivo para a maioria das fotos presentes na pesquisa não serem de nossa autoria, gostaríamos de pontuar que acreditamos na ampliação da compreensão dos significados a partir de uma vivência mais ativa e mais próxima, gerando uma familiaridade com o grupo e seus lugares. Seria impossível falar sobre as subjetividades do Rio Maracatu sem experenciar os sentimentos e emoções envoltos no ato de dançar e tocar maracatu. Da mesma maneira, optamos por utilizar imagens de melhor qualidade, a maioria delas tratada pela equipe responsável pelo registro dos ensaios e cortejos (vide as fotografias de Sérgio Feijó). No caso do cortejo pela comunidade Pavão-Pavãozinho, todas as fotos escolhidas para integrarem este trabalho foram realizadas por Benjamin Tollet, DJ de música afro (DJ Mukambo), por uma razão também relacionada ao segundo ponto apontado como uma dificuldade: devido ao trabalho nas escolas, por exemplo, não pudemos comparecer ao cortejo do Rio Maracatu na comunidade, realizado em uma quintafeira à tarde. Tal ausência influenciou tanto na elaboração do mapa final, o qual retrata a comunidade como um dos lugares simbólicos do grupo, quanto na própria riqueza de detalhes acerca da prática cultural neste tempo-espaço. Apesar de as Geografias Cultural e Humanística reconhecerem as múltiplas dimensões dos chamados lugares simbólicos, elaboramos com o auxílio estrutural do LAGEPRO-Uerj três mapas a partir do software ArcGis 10.2.2, a partir de bases do Instituto Pereira Passos (IPP) disponíveis online na plataforma BaseGeo web. Não se trata de uma “fuga metodológica” ou de simples positivismo, indo contra os preceitos e objetivos básicos de ambos campos da ciência geográfica supracitados, mas sim de um esforço para facilitar aos leitores a compreensão espacial do fenômeno em questão.

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Desta forma, organizamos o presente trabalho no intuito de expandir horizontes não somente geográficos, mas igualmente de ampliar o debate acerca do maracatu em estudos relacionados às ciências humanas de maneira geral, assim como de fomentar a interdisciplinaridade, pois “aquele que realiza estudos culturais fala a partir das interseções” (CANCLINI, 2010). Nestas circunstâncias, a pesquisa encontra-se estruturada em três capítulos. No primeiro capítulo, abordaremos as múltiplas imbricações entre indivíduos, grupos sociais, memória, símbolos, sentimentos e lugares, a partir de uma perspectiva geográfica ligada ao horizonte humanístico, inicialmente e na segunda parte, revisitaremos autores que pensaram o fenômeno social das festas, sendo o objetivo principal deste capítulo o nosso direcionamento rumo à elucidação dos lugares do Rio Maracatu sob o simbolismo dos Arcos da Lapa, na efervescência cultural das comunidades cariocas e na orla de Ipanema. O segundo capítulo surgiu de uma necessidade posta a partir do questionamento acerca das supostas origens do chamado maracatu-nação pernambucano. Para compreendermos as permanências e (re)ssignificações pelas quais passam o maracatu é basilar conhecermos os símbolos e significados constituintes dessa manifestação cultural, desde os relacionados à religião católica ou aos terreiros nagô, até os chamados Lugares de Memória (MATTOS et. al., 2013, p.47) relacionados ao período escravocrata. O terceiro e último capítulo trata dos lugares do Rio Maracatu propriamente ditos, com um breve panorama acerca da centralidade simbólica do bairro da Lapa, das comunidades e da orla de Ipanema, assim como a dinâmica interna do grupo. A partir da observação participante, este último capítulo aborda desde a rotina das oficinas e ensaios, os preparativos para a festa carnavalesca até a apropriação simbólica dos referidos espaços por meio dos cortejos do bloco e as significações de alguns integrantes do mesmo, ou seja, uma visão de dentro, de seu interior, considerando não somente o grupo, mas os indivíduos desfilantes e participantes.

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1. EM DIREÇÃO A UMA HUMANÍSTICA GEOGRAFIA PARA ELUCIDAÇÃO DOS LUGARES DO RIO MARACATU.

Sol vermelho é bonito de se ver Lua nova no auge que beleza Céu de azul bem limpinho é natureza Em visão que dá muito de prazer Mas o lindo pra mim é céu cinzento Com clarão entoando o seu refrão Prenúncio que vem trazendo alento Da chegada da chuva no sertão Ver a terra rachada amolecendo A terra antes pobre enriquecendo O milho pro céu apontando Feijão pelo chão enramando E depois pela safra que alegria Ver o povo todinho num vulcão A negrada caindo na folia Esquecendo das mágoas sem lundu Belo é o Recife pegando fogo Na pisada do maracatú (Festa - Luiz Gonzaga)

Este primeiro capítulo dissertativo trata-se de um esforço teórico para a compreensão geográfica dos lugares do Rio Maracatu, bloco carnavalesco o qual revive e reinventa o folguedo pernambucano em terras cariocas. Nesse sentido, traçaremos uma reflexão a respeito do conceito de lugar, sob uma perspectiva humanística, assim como sobre o papel das festas populares, especificamente o Carnaval, para a concomitante liberdade e regulação das manifestações culturais dos negros desde os tempos coloniais.

1.1. O lugar como conceito para compreensão da simbólica espacialidade do Rio Maracatu

O lugar somente passou a integrar o campo de estudos geográficos, com afinco, a partir da década de 1970. Esse recente interesse sobre o lugar, despertado em pesquisadores das mais diversas áreas, de acordo com RELPH (2012), deve-se a várias razões. Na Geografia, relaciona-se com a chamada “virada espacial”,

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quando se buscava uma nova concepção de espaço além dos modelos cartesianos. Segundo o autor, “a defesa do lugar na geografia nos anos de 1970 e 1980 foi inicialmente uma alternativa para o achatamento da disciplina” (RELPH, 2012, p.19). O “achatamento” mencionado pelo autor refere-se à redução da ciência geográfica a apenas sua dimensão positivista, excluindo “a história, a estética, a poesia e a maioria das conexões que as pessoas têm com regiões, cidades e ambientes

naturais”

(RELPH,

2012,

p.19),

ou

seja,

desconsiderando

as

subjetividades. De acordo com BAILY (1995), os geógrafos que se distanciaram do determinismo, desejavam uma abordagem menos mecanicista do mundo. Afinal, “a geografia cultural está focalizada na interpretação das representações que os diferentes grupos sociais construíram a partir de suas próprias experiências e práticas” (CORRÊA, 2007, p. 9), mediadas por distintos simbolismos. COSGROVE (2012) afirma que os símbolos são representações criadas pelo Homem para descrever e dar sentido à vida. Pode ser um gesto, uma vestimenta ou um símbolo espacial (cemitério, igreja, shopping, floresta etc). Dessa maneira, cada grupo social que se apropria de um lugar, pode estabelecer uma relação de afetividade com o mesmo

a

partir

de

diferentes

símbolos,

produzindo,

portanto,

distintas

representações no/do lugar e (re)produzindo seu espaço a partir de formas concretas. Na perspectiva de CORRÊA (2007), toda forma é simbólica, mas vem acompanhada por um segundo elemento: econômico, religioso, político etc. O sentimento de pertencimento ao lugar pode se referir, pois, à etnicidade, à classe social, a práticas políticas, entre outros elementos. Portanto, “a produção e reprodução da vida material é mediada na consciência e sustentada pela produção simbólica – língua, gestos, costumes, rituais, artes, a concepção da paisagem, etc” (CORRÊA, 2007, p.4). BAILY (1995) alega que devido à fenomenologia e aos fundadores da sociologia moderna, e também à psicologia cognitiva, esses geógrafos tentaram considerar os processos mentais que fazem com que um espaço, uma situação, uma ação sejam percebidos depois dotados de significações, de valores. Portanto, o conceito de representação se prova como indispensável; para os geógrafos, mas não somente para eles, ele amplia a visão ao estudo das construções imaginárias ou imaginadas do espaço. Graças a esse imaginário ‘que as outras significações apreendidas sobre o plano do ritual, do mito, do onírico, da psicologia, tornam-se

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completamente inteligíveis’ (ELIADE,1957, p.159 apud BAILY,1995, p.3712).

Entretanto, o mesmo autor salienta que “uma parte da geografia continua a ignorar a diversidade psicológica e social de nossas representações espaciais”, motivo pelo qual considera a abordagem como “uma verdadeira revolução epistemológica” (BAILY, 1995, p. 73-4). Para BAILY (1995), todo estudo geográfico consiste em uma representação do mundo e a geografia é “ideologia e imagem”, tornando necessário insistir no fato “do processo cognitivo e da subjetividade de nossas representações” (BAILY, 1995, p.375, tradução da autora), pois a ciência geográfica enquanto construção humana é constantemente reconstruída a partir da subjetividade do geógrafo. Buscando ir além de uma geografia positivista, portanto, os geógrafos humanistas como TUAN, SEAMON, BUTTIMER e RELPH, inspirados na fenomenologia de HEIDEGGER e de HUSSERL, passaram a se dedicar e a estudar o lugar (RELPH, 2012, p.20). Segundo BAILY (1995, p. 377), considerar as representações nas análises espaciais permitiu uma redefinição de diversos conceitos caros à geografia, principalmente os de distância, de espaço e de lugar. O conceito de distância, por exemplo, deixou de ser explorado apenas por uma perspectiva euclidiana e abarcou, também, uma abordagem sensível aos itinerários percorridos, permitindo que se falasse, por exemplo, em distância afetiva como o fez FRÉMONT (1976) ou em itinerários simbólicos (CORRÊA, 2007). Para o espaço, considerado como social, também se verificou uma valorização múltipla, pois o conceito passa de espaço-suporte a uma combinação de “unidades espaciais ligadas pelas distâncias, e caracterizadas pelos atributos, por exemplo, funcionais, estruturais e afetivos” (BAILY,1995 p. 378, citando Beguin et Thisse). De acordo com BAILY (1995), o estudo da cognição do espaço reforça a “importância da interação entre o imaginário espacial e comportamentos, em particular pelos atores que possuem valorizações diferentes” (BAILY, 1995, p. 378). Nesse sentido, cada espaço, tornando-se substância social, é carregado pelos homens de afetividade e de símbolos, de onde vem seu valor mental (BAILY, 1995, p. 378. Tradução da autora respeitando grifos do original).

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CHAVEIRO (2012) afirma que a categoria lugar, na Geografia, não perdeu força ao longo do tempo; porém, sofreu transmutações de sentido, tendo sido reinventada. Mostra que “lugar e corpo assumem múltiplas dimensões num nível de conexão que aglutina o existencialismo-fenomenológico com a leitura da materialidade espacial de Santos” (CHAVEIRO, 2012, p.268). Tal autor lembra, também, a influência de outros autores como Merleau-Ponty, Tuan e Claval na constituição do arcabouço existencialista-fenomenológico que vai estudar a relação entre existência e lugar, entendendo que “[...] sentir é apreender o lugar, ou dotá-lo de sentido mais fundo que apenas o julgamento teórico apriorístico” (CHAVEIRO, 2012, p.264). Na perspectiva humanística, a partir dessa significação, individual ou coletiva, um espaço torna-se um lugar (TUAN, 2011 p. 5), sendo necessária a existência de uma familiaridade construída a partir da experiência com determinada porção espacial (TUAN, 2011, p, 12). Nestas circunstâncias, OLIVEIRA (2012) lembra que essa experiência pode ser simbólica e não apenas concreta; e “a pessoa se liga ao lugar quando este adquire um significado mais profundo ou mais íntimo” (OLIVEIRA, 2012, p.12). O lugar, portanto, “considerado lar, por excelência, no qual a pessoa cria, projeta, vive, ama e atua”, associa-se à ideia de claridade. Em oposição, na Geografia Humanística, a noção de espaço estaria envolta, simultaneamente, em “aventura, novas experiências, mas também em riscos” (TUAN, 2014:5). O espaço se relacionaria, portanto, com a penumbra por se vincular ao desencanto, desconhecimento e rejeição, aos “mistérios, dores e desesperanças” (MELLO, 2000; 2011, p. 8). Mas, afinal, quais seriam as principais características necessárias para que possamos definir determinada porção do espaço geográfico como um lugar, a partir de uma perspectiva da Geografia Humanística? Considerando as elucubrações de RELPH (2012), uma série de “aspectos de lugar” pode ser útil para as pesquisas acerca da relação entre os sujeitos e seus lugares. Em

suas

palavras,

o

lugar

requer

uma reunião,

não

sendo

a localização essencial para definirmos “lugar”. Nas palavras de RELPH (2012, p. 22), “um lugar ‘reúne’ ou aglutina qualidades, experiências e significados em nossa experiência imediata”. A fisionomia seria o “aspecto mais evidente do lugar para quem o vê de fora” (RELPH, 2012, p.23) e é característica de todo e qualquer domínio, ao contrário

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do espírito de lugar, presente apenas naqueles dotados de uma identidade muito forte, considerados, portanto, excepcionais. O enraizamento e as raízes surgem no sentido de o lugar ser construído a partir do pertencimento a determinada porção do espaço. Apesar de sugerirem uma imobilidade, RELPH (2012) lembra, com base na teoria rizomática de Deleuze e Guattari, que “podemos ter raízes simultaneamente em vários locais diferentes, mantendo todos conectados” (RELPH,2012, p.24). Tal autor destaca dois problemas surgidos a partir dessa fase de maior dedicação acadêmica ao “lugar”: a apropriação da ideia de “identidade do lugar” pelas corporações multinacionais, assim como as críticas provenientes de “geógrafos radicais e economistas políticos” (RELPH, 2012, p.21) direcionados aos geógrafos humanistas. Para os geógrafos como HARVEY e MASSEY, o lugar seria a manifestação local de macroprocessos econômicos, representando um nó associado a um “sentido global de lugar”. MASSEY (2008) enfatiza a importância de se considerar o espaço enquanto uma “esfera de coexistência de uma multiplicidade de trajetórias”, ou seja, nem todos os grupos sociais vivem e, portanto, produzem seu espaço da mesma maneira. Os espaços e as culturas se interconectam. A autora traz, com base em Eric Wolf (1982) e Gupta e Ferguson, um questionamento acerca do reconhecimento do espaço como “de fluxos”, diferindo do lugar/da localidade como “de reconhecimento, de pausa” etc. Como exemplo, ela afirma que os antropólogos acreditam estudar sempre “sociedades definidas-pelo-lugar”, “isolados primitivos”, considerando-as como “pré-capitalistas”; na realidade, são produtos do contato, das interconexões (Eric Wolf apud MASSEY, 2008, p.106). De fato, o lugar hoje adquire outras significações por sua natureza ter sido renovada (BERDOULAY e ENTRIKIN, 2012). Assim, o lugar atualmente carrega consigo a possibilidade de variabilidade, deixando de ser pensado apenas como expressão espacial de vínculos estáticos. Com efeito, RELPH (2012) sublinha: as críticas de HARVEY e MASSEY à concepção humanista de lugar mostraram que “a manifestação de forte apego ao lugar é uma atitude exclusivista” (RELPH, 2012, p.26), ou seja, o lugar inclui pela familiaridade e pelo vínculo, mas exclui o Outro pela diferença. Dessa maneira, o par exclusão/inclusão seria outro aspecto de lugar. Segundo o mesmo autor, “lugar e envolvimento com o lugar têm aspectos profundamente repulsivos”, podendo resultar em uma apropriação negativa e uma visão preconceituosa/discriminatória em relação a determinados habitantes desse

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lugar. RELPH traz os exemplos da limpeza étnica e dos deslocamentos compulsórios para ilustrar as situações extremas do “sentido contaminado de lugar” (RELPH, 2012, p.26). RELPH (2012) alega: a essência do lugar seria o lar; e lugar e sentido de lugar não são constantes.Para o referido autor, o lar “é onde as raízes são mais profundas e mais fortes, onde se conhece e se é conhecido pelos outros, e onde se pertence” (RELPH, 2012, p.24). A familiaridade que temos com um lugar, sendo um insider, resulta no aspecto da “interioridade”, a qual seria mais intensa quando se está em casa, para muitas pessoas, lembrando que a casa ou o lar possuem um sentido além do endereço domiciliar (RELPH, 2012). Em um sentido ontológico, o lar associa-se “ao lugar onde vivemos e crescemos, mas pode ser qualquer parte desde que seja enraizado num lugar simultaneamente especial, familiar e significativo” e é “foco de intensas experiências”, não apresentando, pois, limites precisos como na concepção positivista da geografia (RELPH, 2012, p.29). Em seu entendimento, lugar não é meramente aquilo que possui raízes, conhecer e ser conhecido no bairro; não é apenas a distinção e apreciação de fragmentos de geografia. O núcleo de significado de lugar se estende, penso eu, em ligações inextricáveis com o ser, com a nossa própria existência. Lugar é um microcosmo. É onde cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco. O que acontece aqui, neste lugar, é parte de um processo que o mundo inteiro está de alguma forma implicado. Isso é muito existencial e ontológico. Mas é também econômico e social, pois em toda parte estamos presos em maior ou menor grau nas forças neoliberais e da globalização (RELPH,2012, p.31).

TUAN (2012), igualmente, não restringe o lar ao endereço domiciliar, às paredes de uma casa, podendo estar associado, também, às experiências positivas vivenciadas por indivíduos e grupos sociais em outras e mais variadas escalas do vivido e do pertencimento. De acordo com GARCEZ (2012), cada movimento realizado, cada momento, cada ‘toada’, lugar que se dança e se toca é um campo possível para a emergência de lembranças de experiências anteriores. Em todas elas o Maracatu traz a alegria de brincar, de sorrir, de ser prestigiado e de pertencer a algum coletivo, seja a ‘nação’ ou o ‘grupo’. [...] Assim, os corpos aparecem como o lugar por onde atravessam sentimentos, pertencimentos, valores e histórias. Eles são a origem dos movimentos, sempre em relação dialógica com outros corpos e outros lugares” (GARCEZ, 2012, p.70. Grifos no original).

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1.2. Rememorando e revivendo o Maracatu no Rio de Janeiro

De acordo com TUAN (2012), “a consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar” (TUAN, 2012, p.144), portanto, a memória tem um papel relevante no laço topofílico. Para ABREU (1998), “a memória de um lugar, a memória de uma cidade, é, portanto, uma memória coletiva” (ABREU, 1998, p.82), sempre em redefinição, constituindo-se em “memória viva” (ABREU, 1998, p.13). Nesta trilha, buscando aproximações entre a ciência geográfica e a memória, DIAS (2013) afirma: o campo da memória a considera como prática individual, social e coletiva. Ela se apoia em situações que vivemos, experiências que acumulamos e em objetos que despertam nossas relações estabelecidas em algum momento e lugar. Essa perspectiva trabalha com a memória a partir de narrativas, entre o lembrar e o esquecer como operação que desenvolvemos para selecionarmos coisas do passado. Todavia, a preocupação desse campo não está só no ato de lembrar, mas também considerar que nos lembramos daquilo que é importante em nossas vidas. Neste sentido, não precisamos de indícios porque lembramos pelo afeto, daquilo que para nós pode ser considerado sagrado. A memória não é linear, não se dá no tempo cronológico, e sim, no tempo ressignificado através da prática rememorada do tempo presente (DIAS, 2013, p.14. Grifos nossos).

DUVIGNAUD (2013), no prefácio da obra de HALBWACHS (2013), afirma que este último diferencia “memória histórica” de “memória coletiva” no sentido de a primeira reconstruir “dados fornecidos pelo presente da vida social”, projetando-se sobre o “passado reinventado”, e de o segundo tipo de memória recompor “magicamente” o passado, sem relação obrigatória com o momento histórico presente (DUVIGNAUD, 2013, p.13). No pensamento de HALBWACHS (2013), a história é um “painel de mudanças” (HALBWACHS, 2013, p.109), sendo a “memória histórica”, nesse sentido, um ponto de vista externo ao grupo e, geralmente, abrangendo um longo período. Ao contrário da “memória coletiva”, relacionada, pelo autor, a um “painel de semelhanças” (HALBWACHS, 2013, p.109), constituindo-se em uma visão interna do grupo, construída ao longo do tempo médio de vida humana. Apesar dessa diferenciação, em ambos os tipos de memória, a lembrança se faz primordial, pois

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de todas as “interferências coletivas” que correspondem à vida dos grupos, a lembrança é como a fronteira e o limite: ela está na interseção de muitas correntes do “pensamento coletivo”. É por isso que sentimos tanta dificuldade para lembrar acontecimentos que só dizem respeito a nós mesmos (DUVIGNAUD, 2013, p. 13).

Segundo HALBWACHS (2013), as impressões se desenrolam em contextos temporais e espaciais. Na visão do autor, a lembrança de um lugar ocorre com maior facilidade a partir de uma revisitação ao mesmo, durante a qual se torna possível recordar não somente a disposição física dos objetos materiais que o compunham, mas também nosso “estado de espírito” quando o vimos pela primeira vez. Tudo isso a partir da repetição das trajetórias traçadas nesse mesmo lugar, tendo o olhar uma profícua atribuição no ato de percorrer aquele mesmo roteiro. De fato, “o olho não é um instrumento neutro: o que nós vemos nos agrada, nos emociona, nos amedronta. O olhar participa da experiência que temos dos lugares e de sua dimensão emotiva – por vezes estética” (CLAVAL, 2006, p.99), sendo responsável pela apreensão da fisionomia dos lugares (RELPH, 2012). Dessa maneira, o arranjo espacial dos “objetos sensíveis” (HALBWACHS, 2013, p. 53), ou seja, a ordem da disposição dos objetos espaciais que são percebidos e que contém significado para determinado grupo, portanto funcionando como símbolos

espaciais (COSGROVE,

2012)/geossímbolos

(BONNEMAISON,

2012), torna-se essencial para a recriação de itinerários simbólicos (CÔRREA, 2007) e para a fortificação da dimensão simbólica responsável pela construção identitária desse mesmo grupo. Estando novamente em tal lugar, diante da mesma disposição de objetos espaciais, ocorre o que Bergson, lembrado por HALBWACHS (2013) denomina “reconhecimento

por

imagens”,

causando

uma

“sensação

do déjà

vu”

(HALBWACHS, 2013, p.55), marcada por uma “familiaridade que temos quando um objeto visto ou evocado determina em nosso corpo os mesmos movimentos de reação que tivemos no momento em que anteriormente o percebemos” (HALBWACHS, 2013, p.55. Grifos nossos). Com efeito, HALBWACHS (2013) destaca, ainda, a possibilidade de essa lembrança do lugar ser construída e guardada em nosso “espírito” a partir de uma “evocação” (HALBWACHS, 2013, p.54.), e não somente mediante o retorno a essa mesma parcela do espaço. Podemos, neste ponto, estabelecer uma relação entre o pensamento sociológico de HALBWACHS (2013) sobre a “memória coletiva” e o pensamento de geógrafos

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humanistas acerca do conceito de lugar. Muitos autores consideram o aspecto da familiaridade como uma das bases da construção de vínculos entre indivíduos e grupos sociais com determinada porção espacial, transformando-a em um lugar, no sentido humanístico do termo, como RELPH (2012) e TUAN (2011), por exemplo. Este último autor, da mesma maneira que OLIVEIRA (2012) e MELLO (2012), considera que as relações afetuosas entre indivíduos e seus lugares podem se suceder de maneira material ou simbólica, acordando com a perspectiva de HALBWACHS (2013) a respeito da possibilidade de rememorar todos os detalhes de um lugar através da intensidade com a qual o evocamos. Ainda sobre a lembrança, DUVIGNAUD (2013) estabelece um paralelo da mesma com o espaço e o tempo, afirmando que se situaria em uma “encruzilhada de tempos sociais”, a qual por sua vez, se relacionaria a “encruzilhadas de espaço” (DUVIGNAUD, 2013, p.13). Neste ponto, o autor dá continuidade a sua linha de pensamento, alegando que este espaço entrecruzado pode ser “endurecido e ‘cristalizado’” (DUVIGNAUD, 2013, p.15), em relação ao qual os grupos imitariam “a passividade da matéria inerte” (DUVIGNAUD, 2013, p.15), ou seja, não estabeleceriam vínculos com outros grupos. Na visão do mesmo autor, este espaço, igualmente, pode se referir a “extensões vivenciadas em que os grupos se fixam, provisória ou definitivamente” (DUVIGNAUD, 2013, p.15) nas quais as relações intra e intergrupais ocorreriam. Cabe lembrarmos que, a partir de uma humanística perspectiva geográfica, não se justifica pensar o espaço enquanto “matéria inerte” (DUVIGNAUD, 2013, p.15). Mesmo um espaço sem capacidade de reunir ou quando essa capacidade é fraca, como ocorre em uma paisagem uniforme ou em um ambiente construído padronizadamente, há elementos de lugar (RELPH, 2012). Assim, o que se constitui enquanto

um

“não-lugar”

(RELPH,

2012)

ou

um

“lugar-sem-lugaridade”

(RELPH,2012) para determinado grupo ou indivíduo pode ser apropriado simbolicamente por outros a partir da vivência, tornando-se espaço vivido, um lugar mediante a criação de vínculos afetivos. Neste ponto, CHAVEIRO (2013) afirma que a materialidade espacial de determinado lugar só será detentora de sentidos a partir da vivência dos indivíduos e grupos sociais, havendo também uma diferenciação de sentidos em relação a esses, pois “ [...] um lugar com a mesma materialidade não tem os mesmos sentidos para um sujeito ou para outro” (CHAVEIRO, 2013, p.268). Nestes termos, sendo dotado de significados, um lugar é

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qualificado, ganhando expressão e diversidade no tempo e de acordo com as perspectivas dos seres humanos. Ou seja, “o lugar sempre é composto de variáveis internas e externas conforme convergências, aglutinações e conflitos” (CHAVEIRO, 2013, p.270). Ademais, afinado com os princípios humanísticos, MELLO (2012) realça a projeção do espaço em lugar, com base nas experiências vividas, valores, significados, relatos, manifestações de toda ordem ocorridas neste ou naquele perímetro de bem querência, afetividade, lutas, embates e assim por diante. Dessa maneira, não é necessária uma proximidade física para fazer de um espaço, um lugar, como aqueles advindos dos relatos, da música e assim por diante. Na defesa do autor, “[...] a distância ‘física’ não altera a afeição compartilhada por lugares espacialmente remotos” (MELLO, 2012, p.57), pois a experiência pode ser direta ou íntima, ou indireta e conceitual, mediada por símbolos e burilada no curso da própria existência, bem como transmitida na escola ou por meio dos relatos, dos meios de comunicação e da promoção da arte (MELLO, 2012, p.48).

O geógrafo Yi-Fu Tuan, em seus textos, evocara recorrentemente: a experiência com o lugar pode não decorrer de uma apreensão sensível mais direta. Nas palavras do autor, “o conhecimento indireto certamente adiciona coisas ao nosso sentido de lugar. Mais do que isso, as relações entre o tempo passado em uma localidade e a ligação com ela tem elementos complicadores” (TUAN, 2011, p.14). Segundo o mesmo autor, podemos estabelecer uma relação entre lugar e tempo, pois “o sentido de lugar é adquirido após um período” (TUAN, 2011, p.14), sendo o lugar “uma pausa no movimento” (TUAN, 2011, p.12). Cabe frisar, esse tempo varia de acordo com os atributos humanos para conhecer o lugar. No ensaio Sobre o Caminhar, por exemplo, TUAN pontua: O caminhar está profundamente arraigado na civilização Ocidental, remontando aos romanos (veja-se Timothy M. O'Sullivan, ‘Walking in Roman Culture’, 2011). Para os antigos romanos, o caminhar – como cada um caminhava – era uma marca de personalidade e da posição social. Escravos caminhavam rapidamente; de fato, eles praticamente corriam. Homens de estatura aspiravam a transparecer um ritmo imponente. Não deveria ser muito lento, pois a lentidão marcava as mulheres e os afeminados. Bastante justo enquanto etiqueta, mas os bárbaros - Espanhóis, em particular questionavam, para que os romanos caminhavam? Por que os generais romanos desandavam a caminhar no campo de batalha? Resposta: para

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demonstrar uma elevação mental condizente à seriedade do colóquio que seria encetado, hábito adquirido por eles quando civis. Pórticos eram uma parte intrínseca da arquitetura doméstica romana, cuja finalidade era a de fornecer sombra para o caminhar (TUAN, 2012).

Diante do exposto, OLIVEIRA (2012) enfatiza a relação entre lugar e tempo alegando: o “sentido de lugar implica o sentido da vida e, por sua vez, o sentido do tempo” (OLIVEIRA, 2012, p.3). Para a referida autora, lugar e tempo estão intimamente ligados, sendo o lugar um “tempo lugarizado” (OLIVEIRA, 2012, p.5) por carregar consigo a mobilidade, não sendo estanque, imutável ou vazio como na concepção aristotélica de espaço. Assim, o lugar surge como “‘balanço rítmico’ entre movimento e pausa”. E, apesar de essa vivência no lugar ser coletiva e de produzir imagens, a mesma autora salienta: “a imagem que temos do lugar é sempre pessoal” (OLIVEIRA, 2012, p.13). A experiência coletiva pode ser acompanhada apenas por uma vinculação afetiva individual, ou seja, mesmo que estejamos acompanhados em algum espaço, este pode se tornar lugar apenas para alguns e para outros permanecer indiferente ou estranho, pois cada um tem uma vivência distinta em relação a um mesmo domínio espacial. Além de HALBWACHS (2013) e DUVIGNAUD (2013), outro sociólogo construiu uma visão própria acerca de conceitos sistematizados pela ciência geográfica: CERTEAU (2012), o qual distingue “espaço” de “lugar”. Este último seria “a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência”, “uma configuração instantânea de posições” (CERTEAU, 2012, p.184), relacionando-se à ideia de estabilidade. Já o espaço comportaria “vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo” (CERTEAU, 2012, p.184), ou seja, a mobilidade. Ademais, para o autor, “o espaço é um lugar praticado” (CERTEAU, 2012, p.184. Grifo no original), podendo os pedestres transformar uma rua concebida por urbanistas em espaço através do seu uso. A esse respeito, cabe sublinhar: o pensador CERTEAU (2012), em seus estudos sobre espaço e lugar, surpreendentemente, ignorou os textos desenvolvidos por geógrafos a propósito dessas categorias espaciais. Ora, a interdisciplinaridade é um caminho que deve ser perseguido no meio acadêmico, nos mais diversos ramos científicos, na busca incessante do diálogo, sobretudo quando se sabe dos esforços que os geógrafos empreenderam, ao longo de décadas, desenvolvendo, incorporando, adicionando e ampliando a natureza desses conceitos caros à geografia.

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Para nossa pesquisa de geografia humanística, faz-se necessário, então, apesar de reconhecer o préstimo da obra de CERTEAU (2012) para os estudos geográficos, evidenciarmos a concepção do autor e amadurecermos a nossa perspectiva sobre espaço e lugar. CERTEAU (2012) aproxima o conceito de lugar a um “espaço ‘geométrico’” (CERTEAU, 2012, p.184), marcado por uma “univocidade” (CERTEAU,

2012,

p.185),

em

oposição

ao

conceito

de espaço,

“existencial” (CERTEAU, 2012, p.185) por natureza, pleno de experiências e visto a partir de uma “‘fenomenologia’ do existir no mundo” (CERTEAU, 2012, p.185). Por outro lado, para o mesmo autor, o lugar representa o “estar-aí de um morto” (CERTEAU, 2012, p.185), ao contrário de espaço, ao qual se atribuem ´operações´ de sujeitos históricos” (CERTEAU, 2012, p. 185). Consoante o arcabouço teórico da Geografia Humanística, consideraremos para a compreensão dos lugares do Rio Maracatu na urbe carioca outra perspectiva desses mesmos conceitos. No nosso entendimento, o lugar não deve ser compreendido como sinônimo de localização ou posição geográfica, não existencial ou unívoco como o fazem alguns autores como CERTEAU (2012). Ao contrário, partimos do aporte humanístico, relacionado à fenomenologia, para trabalharmos com o conceito de lugar como uma porção do espaço com a qual se estabelece uma relação de afeição a partir da experiência (direta ou indireta), como ocorre com o lar, mesmo que ultrapassando as barreiras físicas de uma residência e se expandindo para as ruas, em conformidade com o pensamento de TUAN (2011), MELLO (2000; 2011), entre outros geógrafos. Segundo CHAVEIRO (2013), “se não há lugar amorfo, não pode haver corpo ubíquo ou informe”, sendo o lugar “[...] uma edificação de ininterruptas relações, vertidas por apropriações do espaço, construídas por corporeidades em movimento” (CHAVEIRO, 2013, p.276). E, poder-se-ia afirmar que não vivemos nos lugares, mas os lugares. O lugar, portanto, é definidor de identidades. E, atualmente, “a característica dominante dos lugares no seio da modernidade é sua mutabilidade: ora, ela é igualmente característica do sujeito moderno e de seu sentido de identidade” (BERDOULAY e ENTRIKIN, 2012, p.101), isto é, o lugar hoje não pode mais ser apreendido nem como totalmente estável, nem como homogêneo tal como o considera CERTEAU (2012), devido às múltiplas significações atribuídas a uma mesma parcela do espaço, ou as complexas e simbólicas trocas vicejantes do lugar.

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1.3. Entre a festa e a regulação: Carnaval e apropriação do espaço urbano.

Neste tópico, veremos os principais aspectos do que se denomina Festa, assim como o potencial da mesma para as pesquisas no campo da Geografia. Não buscamos aqui uma nova definição de festa, mas sim compreender suas nuances e pluralidades, a fim de nos lançarmos sobre o universo do maracatu, manifestação cultural originalmente pernambucana a qual também está presente no Rio de Janeiro, sendo reinventada por alguns grupos percussivos dentre os quais se encontra o bloco Rio Maracatu, nosso objeto de pesquisa. Para começarmos a pensar nas principais expressões da festa, notadamente a espacial, nos será útil não apenas a contribuição teórica de geógrafos, mas igualmente de autores ligados à Dança e à Teatralidade, por exemplo, devido ao fato de que os corpos intermediam a relação entre os seres humanos e seus mundos. Devemos pensar a festa como uma manifestação cultural que se dá em um espaço-tempo extraordinário, relacionando-se à significação da própria vida humana, seja no intuito de ritualizar fases de transição em determinada sociedade, celebrar o presente e/ou rememorar o passado. Na perspectiva de GOMES (2008), as

festas

podem

ser

consideradas

uma “rede

de

memórias que

produzem significados para as representações do homem no seu contexto social” (GOMES, 2008, p.44. Grifos nossos.). Esta mesma autora, sobre a dimensão espaço-tempo festiva, alega que o tempo é marcado por uma efemeridade, mas “vivido com profundidade e significado” (GOMES, 2008, p.49). Para produzir estes significados, é necessário, então, que a festa possua “a capacidade de despertar e animar os sentidos. Nela o participante perde o domínio da percepção e imerge no terreno das ‘dimensões ocultas’ que o remetem, por sua vez, à dimensão do imaginário” (LOBATO, 2008, p.13). A partir do imaginário, simultaneamente além de preservar certas tradições, os indivíduos podem se despir dos papeis cotidianos que desempenham em seus respectivos grupos; portanto, a festa também se relaciona ao “possível”, à “transgressão” e ao “desafio” (LOBATO, 2008, p.14). A partir do Iluminismo, as festas e a cultura popular passaram a ser relacionadas ao “mundo arcaico” (FERNANDES, 2003, P.2), ao “pré-capitalismo” (FERNANDES, 2003, P.2) e ao “tradicional”, tendo muitos autores acreditado na

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superação das mesmas. Nesse sentido, FERNANDES (2001) comemora e realça, baseando-se em BAKHTIN, VILLAROYA E SCHULTZ, a permanência da festa na contemporaneidade, pois “a festa é um universal da civilização humana, razão pela qual não só se manteve diante da modernidade como foi necessariamente revitalizada por ela” (FERNANDES, 2001, p.4). Não podemos negar que “as festas contribuem para manter viva a memória das comunidades” (GOMES, 2008, p.44), relacionando-se às tradições. No entanto, devemos reconhecer uma adaptação, uma reelaboração da cultura popular, de “seus folguedos e brincadeiras em forma de crítica, de jogo, de festa” (GOMES, 2008, p.51) a partir da “era da informação e dos avanços tecnológicos, analisando as rápidas mudanças do mundo contemporâneo” (GOMES, 2008, p.51). Portanto, como qualquer outra manifestação cultural, as manifestações tradicionais não são um já dado ou estáticas, e cabe lembrar que uma “inovação não se torna menos nova por ser capaz de revestir-se facilmente de um caráter de antiguidade” (HOBSBAWM, 1997, p.13). O pensamento de FERNANDES (2001), ao analisar o processo de constituição e desenvolvimento das escolas de samba no Rio de Janeiro no século XX, também pode ser útil para compreendermos o maracatu enquanto festa que permanece ligada a uma tradição, ao mesmo tempo em que se renova com a globalização. Tal autor afirma que nas manifestações populares se identifica uma enorme capacidade adaptativa de aderir às condições concretas e esgarçantes da vida moderna, e se observa ao mesmo tempo sua recriação e resistência às incessantes mudanças (FERNANDES, 2001, p.11).

A geógrafa Amélia Cristina Alvez Bezerra afirma que através da festa “são (re)atualizadas,

ritualizadas

e

celebradas

as

experiências

sociais

e

as

representações identitárias locais” ( BEZERRA, 2008, p.7). Dessa maneira, ao mesmo tempo em que as festas, enquanto manifestações culturais, são influenciadas pelos fluxos globais de informação, representam uma maneira de afirmação cultural, resistindo a essa mesma globalização, e de “colocar em evidência o significado das tradições, o papel da memória na preservação do patrimônio cultural” (GOMES, 2008, p.51). Ademais, nosso interesse geográfico acerca das festas tem sentido por uma questão bastante simples. É no espaço, em sua materialidade e em seu simbolismo,

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que “a festa promove um recorte e constrói um cenário que pode ser social, religioso, militar entre outros, identificado pelos símbolos da tradição onde as pessoas vão interagir se vestindo, se movendo, cantando e dançando como personagens de uma cena” (LOBATO, 2008, p.14. Grifos nossos.). Isto posto, podemos afirmar que a festa se dá mediante a apropriação espacial através dos corpos, das “práticas corporais extracotidianas” (GOMES, 2008, p.50), também chamadas de “performance” (GOMES, 2008, p.50), as quais se referem “a um entendimento do corpo como um espaço de inscrição da memória pela performance corporal, vinculando o homem com a cultura, a religiosidade, o lúdico e o ritual”. (GOMES, 2008, p.50). Antes de os corpos entrarem em festas ou em “performances”, preparam-se para ser observados. Em seu trabalho, Laís Garcez (2012) caracteriza as performances como uma série de pensamentos e emoções os quais emergem em expressões verbais ou não verbais e que são oriundas de experiências corporificadas, tanto dentro ou fora do tempo do ritual do carnaval” (GARCEZ, 2012, p.35). Segundo Célia Gomes, todo comportamento de troca humana em que a pessoa se organiza para ser visto é uma forma de ligação com a comunidade (GOMES, 2008, p.50). Em confluência com a perspectiva desta última autora, FERNANDES (2001) considera como basilar a existência de um público, de espectadores, para que ocorra uma festa. A festa, no Brasil, geralmente aparece em registros associada ao “cenário urbano, onde os espaços públicos, a exemplo da rua e da praça, se colocam como os locais privilegiados das festividades” (BEZERRA, 2008, p.8). Os espaços públicos, na perspectiva de GOMES (2013), atuam como espaços da visibilidade, nos quais observar e ser observado são parte do espetáculo urbano, assim como espaços da copresença, tornando necessários determinados comportamentos associados à ideia de civilidade. Como afirma FERNANDES (2001), a cidade e a festa são fenômenos primordiais e indissociáveis da civilização, porque nelas os homens sempre alcançam os mais altos níveis de sociabilidade. [...] quando pensamos no sentido mais profundo da cidade, podemos dizer que os homens construíram-na para poderem realizar suas festas (FERNANDES, 2001, p.2)

Atualmente, a Geografia já tem as festas como pauta de pesquisa dentro dos campos Cultural e Humanístico, relacionando espaço, lugar e cultura. Essa relação

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entre ciência geográfica e festas se iniciou com o estudo das festas sagradas, mas no presente, “como geógrafos, já não temos que pedir perdão para estudar temas como uma festa popular e profana na sua relação com a cidade e a própria identidade nacional” (FERNANDES, 2001, p.8). Este mesmo autor argumenta, inclusive, que se a Geografia permanecesse guiada apenas por uma visão supraorgânica de cultura, a aproximação com a cultura popular, especialmente nas grandes cidades, seria bastante difícil. Em sua visão, “nem mesmo a geografia humanística, apesar de suas preocupações com as categorias de modo de vida e lugar considerou mais atentamente tais problemas” (FERNANDES, 2003, p.9-10). Para uma compreensão geográfica das festas não é interessante pensar o espaço apenas enquanto materialidade ou simples localização. Como afirma HALBWACHS (2013), assim como “tumultos” e “cerimônias nacionais”, as festas populares [...] que transformam as ruas de uma cidade podem ser pensadas de dois pontos de vista diferentes. São fatos singulares em seu gênero, que modificam a existência de um grupo. Entretanto, por outro lado, esses fatos se transformam em uma série de imagens que trespassam as consciências individuais (HÁLBWACHS, 2013, p.79).

Devemos considerar as festas populares como mediadoras da relação homem/meio, como expressões do “modo como os grupos sociais pensam, percebem e concebem seu meio ambiente, valorizam mais ou menos certos lugares” (FERNANDES, 2001, p.8-9). A festa, entendida como expressão cultural nos permite analisá-la a partir de seus significados, ensejando, como colocado pela geógrafa Amélia Cristina Alves Bezerra, perceber os signos espacializados pelos quais os grupos sociais se identificam a contextos geográficos específicos que fortificam sua singularidade. (BEZZERA, 2008, p.9). Indo de acordo com o pensamento desta última autora, Aureanice de Mello Corrêa alega: “a festa, diante dessa perspectiva geográfica, permite descobrir signos espaciais que, ao assumirem a condição de geossímbolos, estabelecem um vínculo a partir de uma identidade existente entre o grupo social que festeja e o espaço” (CORRÊA, A.M., 2013, p. 207. Grifos nossos.). Os símbolos, de acordo com COSGROVE (2012) podem ser vestimentas, gestos ou símbolos espaciais, ou seja, formas espaciais (CÔRREA, 2007) com uma significação específica para os

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indivíduos ou grupos sociais, os geossímbolos dos quais nos fala BONNEMAISON (2012). Vimos, a partir de FERNANDES (2001) e BEZERRA (2008) que festa e espaço urbano dialogam, estabelecendo uma relação riquíssima para os estudos geográficos. Ademais, com base nas ideias de Mumford, tal autora afirma ser “possível dizer que o primeiro germe da cidade é, pois, o espaço de encontro cerimonial, é a festa” (BEZERRA, 2008, p.7). Outro autor que enfatiza essa conexão entre festas, cultura popular e espaço urbano é FERNANDES (2001), quando estabelece que o estudo das festas e da cultura popular podem interessar muito aos geógrafos, principalmente para aqueles que admitem sua presença no cenário da modernidade. A cidade não pode ser compreendida em termos materiais e simbólicos sem a consideração de suas dinâmicas e instituições festivas específicas (FERNANDES, 2003, p.16)

Considerando-se que “cidade significa civilidade” (TUAN, 2012, p.310), para compreendermos como o maracatu se apropriou das ruas do Recife desde o seu surgimento até a apropriação das ruas cariocas a partir da década de 1990 por meio dos processos de (re)ssignificação e de espetacularização, é necessário atentarmos para os distintos significados deste folguedo ao longo do tempo, assim como para o papel da regulação do carnaval na apropriação do espaço público e, de certa maneira, na promoção dos lugares mais atualmente. O maracatu, manifestação cultural com fortes raízes negras, é atualmente a marca do Carnaval Multicultural pernambucano, especialmente das cidades de Recife e Olinda. Em nossa pesquisa, buscaremos compreender as permanências e as (re)ssignificações do maracatu-nação a partir do grupo percussivo Rio Maracatu, bloco carnavalesco carioca existente há 18 anos. Nesse sentido, torna-se necessário pensarmos como a festa carnavalesca, cujas raízes geralmente são associadas à cultura negra (FERREIRA, 2005), se espacializa em duas das cidades brasileiras mais conhecidas pela magnitude de seus carnavais: Recife e Rio de Janeiro. Maria Laura Cavalcanti, no prefácio da obra de FERREIRA (2005), refere-se ao Carnaval como “parte crucial de redefinições e disputas simbólicas pela ocupação urbana”, como uma “festa civilizatória”, uma “loucura coletiva e multifacetada, paradoxalmente regrada” (FERREIRA, 2005, p.11). Ao mesmo tempo

43

em que a festa popular se apropria simbolicamente de espaços, transformando-os em lugares, é regulada a partir de interesses de grupos sociais dominantes. De acordo com HOEFLE (2012), pode-se traçar uma semelhança entre lugar e território, visto que, depois dos anos 2000, o conceito de lugar foi ampliado, não sendo mais considerado somente como um espaço dotado de sentimento, mas podendo, inclusive,

ser

palco

de

conflitos.

Por

este

motivo,

o

binômio exclusão/inclusão também é considerado por RELPH (2012) como um dos “aspectos de lugar” mais significativos. A respeito da festa, CORRÊA (2013), baseando-se na perspectiva de Durkheim, reitera a sua função de reafirmação da unidade do grupo que festeja e afirma que “o ato de festejar está envolto no binômio permissão/interdição” (CORRÊA, 2013, p.205). Nesse sentido, torna-se necessário analisar de que maneira o maracatu enquanto “festa na cidade” (SANTANA, 2012) funcionava, simultaneamente, como um transbordamento/fruição submetido à contenção e ao controle. Como afirma Marina de Mello e Souza, a liberalidade que podia cercálos, com a tolerância a uma inversão de lugares característica do tempo da festa, quando a ruptura do cotidiano permite que o mundo, mesmo numa sociedade escravista, fosse posto de cabeça para baixo, tinha como contrapartida a solicitação de medidas repressoras (SOUZA,2005, p.87)

Por meio de sua corporeidade no tempo-espaço da festa, os “sujeitos celebrantes” (FERNANDES, 2001) transformam a realidade, muitas das vezes de maneira irônica e jocosa. Destarte, “o corpo festivo é assim o elemento detonador do ‘espírito de festa’ que, associado ao riso, permite o estabelecimento de um território a parte, onde não permanecem as questões cotidianas” (CARNEIRO, 2008, p.38). Esse pôr do avesso do cotidiano, portanto, a possibilidade de transgressão é considerada pela maioria dos autores como uma marca das festas, independente da época em que ocorrem. E, pensando nas festas populares atuais, especificamente, é possível afirmar que as mesmas se renovam ao passo que buscam raízes. Como afirma FERNANDES (2001), “as classes populares, na construção de seu mundo, são obrigadas, como todo grupo humano em condições adversas, a ressignificar, a filtrar e reorganizar o que vem da cultura hegemônica, fundindo-a com a sua memória histórica” (FERNANDES, 2001, p.11). O maracatu, visto como “festa na cidade”

(SANTANA,

2012),

assim

como

outras

festas

é

responsável,

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simultaneamente, pela produção de identidade, assim como um diferencial no mercado de cidades brasileiras (BEZERRA, 2008), sendo “a festa, nesse contexto, [...] um dos veículos através do qual a identidade local é (re)atualizada e sintetizada” (BEZERRA, 2008, p.10).

1.3.1. Cerimônias, celebrações e “desvios” do Maracatu no Recife

Desde seu surgimento, associado à cerimônia de coroação de reis do Congo no Brasil colonial, o maracatu convive com a dualidade permissão/ interdição, controle/folga, o que se repetiu até o século XXI. A regulação da festa permaneceu, entretanto, sua forma e seus agentes se alteraram ao longo dos séculos. No Brasil escravocrata, ao lado dos senhores dos escravos, a Igreja Católica exercia esse papel regulador através de suas Irmandades, responsáveis pela catequização, pela socialização dos negros e pela organização da coroação de reis e rainhas negros, contribuindo tanto para a afirmação cultural destes quanto para o seu controle (SANTANA, 2012). Esta mesma autora considera a “tolerância e a dissimulação” (SANTANA, 2012, p.99) enquanto táticas de controle e dominação. Por uma perspectiva geográfica, Paola Verri de Santana discorre sobre o papel das festas e procissões organizadas pela Igreja do Rosário para “o uso e formação de um lugar da cultura popular” (SANTANA, 2012, p.97), tendo importância simbólica o interior e o “entorno da igreja”, determinadas “ruas, pátios e outras construções da cidade” (SANTANA, 2012, p.97). Configuravam-se, portanto, lugares e itinerários simbólicos (CORRÊA, 2007) vinculados, simultaneamente, ao catolicismo e ao candomblé, tendo esse “caráter ambíguo” (SANTANA, 2012, p.98) um papel de proteção da “vida religiosa com aspectos africanos” (SANTANA, 2012, p.98). De acordo com a autora, o maracatu liga-se às festas do Brasil Colonial porque traduz o processo de negociação e conflito próprio da formação social brasileira. Embora a seita africana tenha dado o tom da dança e da música, era o espaço urbano, produzido na lógica do europeu, que definia por onde o cortejo devia passar. (...) o uso do espaço apropriado pelos negros, na hierarquia escravista, exigiu negociação e conflito (SANTANA, 2012, p.99).

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SANTANA (2012), com base em depoimentos do historiador Leonardo Dantas Silva, relata que “maracatu” era um “lugar de sociabilidade dos negros, pois seus cultos eram acompanhados de batuque e danças” (SANTANA, 2012, p.90), maracatus eram inicialmente tratados como reuniões. No entanto, a palavra passou a ser utilizada em matérias jornalísticas de cunho policial de maneira negativa, como sinônimo de “barulho, macumba, bagunça e briga” (SANTANA, 2012, p. 90), elementos rechaçados pela elite local, devendo ser combatidos pelas autoridades policiais, portanto. Maracatu passa, então, de lugar frequentado pelos negros, no qual se realizavam os “batuques” (TINHORÃO, 2012), a uma prática associada à desordem pela sociedade escravocrata. OZANAM e GUILLEN (2014), a partir da análise de jornais do início do século XX, como A Província, Diário de Pernambuco, Jornal Pequeno e Jornal de Recife, nos trazem um panorama da relação entre as manifestações culturais de rua e a regulação policial da qual as mesmas dependiam, assim como as imagens criadas pela opinião pública/imprensa a respeito do maracatu. Geralmente, os jornais relatavam brigas no folguedo antes e durante os dias de carnaval, classificando o praticante do maracatu como “desordeiro”. OZANAM e GUILLEN (2014) destacam, ainda, que o maracatu se aproximava de outro cortejo quanto à forma. Os desfiles de bandas de música em Recife também ultrapassavam as notícias policiais e “eram quase invariavelmente apresentados como o lugar por excelência de exibição e confrontos entre os ‘capoeiras’ da cidade” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.308). De acordo com estes mesmos autores, os letrados da época associavam os chamados “divertimentos populares” à ideia de “desordem” urbana, pois diversas manifestações que faziam da rua o seu lugar eram dirigidos por indivíduos conhecedores de movimentos corporais típicos da capoeiragem, considerada crime. A regulação policial dos maracatus ocorria a partir de “licenças, proibições e itinerários preestabelecidos”, ou seja, interferindo nos seus lugares e itinerários simbólicos. A presença/ação reguladora evidencia, portanto, a convivência entre festa/celebração e conflito. Na perspectiva de OZANAM e GUILLEN (2014), no início da década de 1900, “a expectativa positiva na imprensa dividiria espaço com a apreensão, explícita ou não, quanto à ordem pública e à segurança individual nos dias de carnaval” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.311).

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SANTANA (2012) igualmente salienta a relação entre o interesse das classes dominantes e as medidas de controle dos cortejos de maracatu. Em uma das fontes de sua pesquisa, o editorial do Diario de Pernambuco, de 1880, os maracatus eram retratados como “extremamente incomodativos”. De acordo com a autora, “a fama dos maracatus era de que sempre acabavam em briga” (SANTANA, 2012, p.72), pois os foliões brincavam o carnaval envoltos em um “espírito de competição” o qual seria regulado, posteriormente, com concursos de fantasias promovidos pela Federação Carnavalesca Pernambucana2, antiga Liga Carnavalesca do Recife3, por exemplo. A festa era regulada espacial e temporalmente pelas autoridades policiais e da prefeitura. As licenças eram restritas a um período, geralmente, os três dias de folia. Se algum grupo as desrespeitasse, como o Maracatu Oriente Pequeno o fez em 1901, o cortejo era convidado a se dispersar, com práticas coercitivas ou não. Espacialmente, a regulação policial poderia ocorrer a pedido de moradores que julgassem imprópria tal manifestação cultural, seja pelo barulho ou pela relação de integrantes com atividades ilícitas. Dessa maneira, podemos afirmar que o maracatu era considerado uma prática “bárbara” (OZANAM e GUILLEM, 2014), desordeira, desajustada e violenta, habitualmente vista “como um folguedo estúpido e infame, além de triste, a relembrar o passado escravista” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.313). Nas palavras dos mesmos autores, “dos maracatus não se esperava muita coisa além de briga, confusão e correrias”. Sabe-se que “as festas e as religiões atuam como uma linha de fuga das vicissitudes promovidas pelas normas sociais constrangedoras, que tornam o ser humano prisioneiro da vida em sociedade, impondo-lhe o trabalho do dia a dia” (CORRÊA, A.M. 2013, p.205) e que, desde o século XVI, os chamados batuques eram para os africanos escravizados em terras brasileiras “um dos raros momentos de livre exercício de seus costumes originais” (TINHORÃO, 2012, p.55). No século XIX, a burguesia via com péssimo olhar esses momentos de fruição vivenciados pelos escravos. O jornal A Província (1877), por exemplo, retratava o povo majoritariamente formado por negros- de maneira racista como uma “horda de

2

De acordo com SANTANA (2012), tal Federação foi reconhecida como sociedade de utilidade pública a partir da Lei n.212 de 3 de Dezembro de 1936. 3 Criada em 1935, com o objetivo de ordenamento da Festa de Carnaval. “Um dos argumentos era manter o controle de brigas entre os valentões que rivalizavam entre uma nação e outra de maracatu” (SANTANA, 2012, p.72).

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escravos vadios”, incapazes de brincar o carnaval “civilizadamente”. Os batuqueiros dos maracatus (geralmente negros ligados ao culto aos orixás) foram considerados “bárbaros”, representando um grande risco para a “civilização” (OZANAM e GUILLEN, 2014). Estes autores enfatizam a importância da análise dos significados da categoria “capoeira” ao longo do tempo para historicizar a capoeira do Recife. Não somente para a História a consideração dos significados é relevante, mas também para o nosso estudo dos múltiplos sentidos através dos quais o maracatu se apropria do espaço. Os significados variam no tempo e no espaço. A repressão aos chamados capoeiras era bastante comum no Recife entre as duas últimas décadas do século XIX, pois o termo “capoeira” era “sinônimo de violência política” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.321) ocorrida em “grandes aglomerações de homens, sobretudo adversários políticos, em frente a bandas de música” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.320). Já entre os anos 1900 e 1910, “capoeira” adquire novos significados devido à “valorização dos esportes de luta nacionais e da educação física como área do conhecimento”, sendo associada cada vez menos a atividades contraventoras (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.321). Atualmente, a roda de capoeira já é considerada Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN

4

e Patrimônio

Cultural Imaterial da Humanidade, título recebido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) em Novembro de 20145 . 4

Disponível em: . Acesso dia 15/08/2014. 5 Disponível em: . Acesso dia 20/12/2014.

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1.3.2. Regulação da festa carnavalesca carioca

“Uma cidade desperta atenção para si mesma, alcançando poder e eminência, através da proporção e solenidade de seus ritos e festivais. [...] Não é necessário dizer que a visibilidade de uma cidade moderna carece de ocasiões públicas em que as pessoas saem às ruas e transformam-nas em palcos.” (TUAN, 1983, p.192)

O carnaval brasileiro e mais especificamente o carioca iniciou sua trajetória com o Zé Pereira, português pançudo que de tamancos batia bumbo pelas ruas da cidade, mais notadamente, na lendária Rua do Ouvidor, nos idos de 1870 como nos relata a pesquisadora Eneida de Moraes, em sua obra sobre a História do Carnaval Carioca (MORAES, 1987). Capital do país e vitrine, o Rio de Janeiro projetou sua maneira de festejar o período de Momo e assimilou outras de diversas procedências. Nesta berlinda, a folia evoluiu entre sambas, batuques, marchinhas, tambores, escolas de samba, blocos de frevo, grandes sociedades e outras brincadeiras. Para FERNANDES (2001), no Rio de Janeiro, “o domínio sobre as grandes festas populares como o Carnaval, parece ter sido tão premente e importante para o controle e desenvolvimento da cidade quanto o era a adoção de ferrovias, planos urbanísticos, posturas municipais, medidas de higiene etc., o que nos leva a concluir que, como sempre, desde o princípio, as transformações urbanas não se resumem à sua materialidade mas também às suas dimensões imateriais e do imaginário” (FERNANDES, 2001, p.15)

Felipe Ferreira traça um panorama do Carnaval da cidade do Rio de Janeiro, estabelecendo três fases distintas da festa carnavalesca carioca e evidenciando suas

diversas

temporalidades

e

espacialidades

as

quais

conviviam

e,

simultaneamente, conflitavam (FERREIRA, 2005). Da mesma maneira, como atesta FERNANDES (2001), “o mais certo seria reconhecer que quase sempre existiram também outras formas de brincar o Carnaval, sendo que muitas delas atravessaram diversas etapas” (FERNANDES, 2001, p.16). A primeira dessas fases apontadas por FERREIRA (2005), denominada Entrudo, caracterizava-se por uma série de brincadeiras durante as quais as pessoas molhavam umas às outras. De acordo com o autor, o Entrudo surgiu no Brasil no século XVI, sendo uma brincadeira de origem lusitana a qual se transformou na “grande manifestação festiva nacional no período carnavalesco”

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(FERREIRA, 2005, p.29) da qual participavam todas as camadas da sociedade. No entanto, FERREIRA (2005) ressalta a existência de “vários ‘entrudos’” (FERREIRA, 2005, p.30) na cidade do Rio de Janeiro. Diferenciados pelo poder aquisitivo e pela distinção entre o espaço privado – no qual as famílias abastadas brincavam, estabeleciam e reforçavam relações e acordos de interesse familiar e comercial- e o espaço público – lugar dos negros, das prostitutas, dos pobres, dos ambulantes-, os entrudos que marcam a primeira fase da festa carnavalesca reforçavam a segregação social. A partir de 1830, a elite passa a considerar o entrudo e toda a sua agitação como “uma festa que teria que ser extinta” (FERREIRA, 2005, p.32) e a ter um profundo

desejo

de

“organização

purificadora”

(FERREIRA,2005,

p.32). A

apropriação das ruas do centro do Rio de Janeiro durante a festa carnavalesca tornava necessário à elite regulamentar esse espaço urbano. Dentre as medidas tomadas, estavam: a proibição por meios legais das brincadeiras no espaço público, as autuações e prisões de quem ousasse desrespeitar as novas leis e a associação desta festa com o atraso e com as camadas mais baixas da população. Cabe aqui uma reflexão sobre o entrudo no Brasil, feita por FERNANDES (2001), quando diz: “curioso país o Brasil, país da festa e do Carnaval, mas também país que proibiu e declarou fora da lei, por todo o sempre, a sua festa mais longeva, da qual participavam todas as suas classes sociais.” (FERNANDES, 2001, p.17). No entanto, “condenar o entrudo não significava necessariamente condenar todos os tipos de entrudo” (FERREIRA, 2005, p.39). O entrudo familiar permanecia aceito e bem visto. O entrudo das ruas, na década de 1850 ainda resistia, inclusive com anúncios da venda de limões de cheiro e laranjas –em ruas centrais - nos jornais e periódicos (FERREIRA, 2005). Nas palavras deste autor, ao que parece, além de punir, de condenar e de tentar isolar a festa entrudística, a sociedade da época tinha elaborado outro processo para exterminar a indesejável brincadeira. Se a população da cidade insistia em lançar os velhos limões de cheiro, se o impulso de diversão não conseguia ser contido nos dias que antecedem à Quaresma, talvez uma nova forma de brincadeira, uma nova festa, um novo Carnaval, conseguisse a proeza de substituir as molhaças pelo menos por algo mais digno de uma sociedade civilizada. (FERREIRA, 2005, p.38)

A elite carioca do pós-Independência, em busca dessa civilidade e do distanciamento de Portugal – e, por conseguinte, da ideia de atraso colonial-, passa a se espelhar e ser cada vez mais influenciada culturalmente pela França,

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principalmente no “setor de divertimento” (FERREIRA, 2005, p. 43). O espaço urbano também recebe essa influência francesa, bastante perceptível em ruas do centro como a Rua do Ouvidor. A partir de 1855, o Carnaval carioca passa por uma reformulação durante a qual se buscava a semelhança cada vez maior com o Carnaval parisiense, com uma associação “à ideia de progresso e de civilização” (FERREIRA, 2005, p.28), assim como um distanciamento do Entrudo – primeira fase do Carnaval no Rio de Janeiro (FERREIRA, 2005). A segunda fase do Carnaval do Rio de Janeiro, de 1840 a 1930, portanto, é caracterizada pelos bailes carnavalescos, pelas grandes sociedades, por ser uma festa da elite. (FERREIRA, 2005, p.19). O Carnaval da burguesia carioca, a partir de então, passa a festejar o Carnaval com os desfiles de carruagens e os bailes mascarados – tendo ocorrido o primeiro em 1840 - os quais “mantinham, basicamente, o espírito da brincadeira ‘sadia’ do entrudo ‘familiar’ sob uma nova roupagem mais civilizada” (FERREIRA, 2005, p.40). A “missão civilizadora” (FERREIRA, 2005, p.52) dos bailes mascarados poderia ser identificada desde os regulamentos para as fantasias a serem utilizadas até as normas de etiqueta para os mascarados abordarem uns aos outros. Entretanto, na década de 1880 passou a haver uma distinção entre os bailes aristocráticos –privados e sofisticados- e os bailes públicos “entregues à própria sorte, ou seja, à esculhambação geral promovida pela mistura ‘indecente’ com a classe média carioca” (FERREIRA,2005 ,p.53), tendo a polícia poder de intervenção tanto nas ruas quanto em ambos os tipos de baile à fantasia. O cortejo carnavalesco deste Carnaval elitizado (desfiles de clubes e sociedades carnavalescas) é comparado pelo autor com as festas processionais devido à apropriação simbólica comum a ambos, tendo sido uma maneira de manipulação e valorização do espaço (FERREIRA, 2005). Nas palavras do autor, para a população da cidade, que não participa diretamente da organização desse divertimento, ter sua rua incluída no roteiro dos passeios torna-se um privilégio e uma forma de se integrar à brincadeira. Além do reconhecimento tácito do valor simbólico do logradouro ‘ocupado’ pela sociedade, outras vantagens, mais objetivas, serão rapidamente percebidas. (FERREIRA, 2005, p.78)

De acordo com o mesmo autor, as sociedades foram as responsáveis pelo início da “projeção internacional da festa da cidade” (FERREIRA, 2005, p.75). Além disso, a importação das promenades (passeios) parisienses alterou a estrutura

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espacial do Carnaval carioca, atribuindo-se um papel hegemônico ao espaço urbano do Rio de Janeiro no desenvolvimento da festa. O aburguesamento da festa carnavalesca no Rio de Janeiro foi acompanhado por uma seletividade espacial, pois se concentrou em espaços privilegiados por quem organizava o Carnaval. FERREIRA (2005) menciona, inclusive, o surgimento de uma “nova geografia carnavalesca da cidade” marcada por disputas entre as ruas em termos de decoração, até mesmo de anúncios em jornais, para atrair os olhares e serem selecionadas como parte do roteiro das sociedades carnavalescas. Os benefícios, caso escolhidas, ocorreriam tanto no plano simbólico quanto no material, como os lucros decorrentes do comércio. Este autor considera a Rua do Ouvidor o principal exemplo de como “o prestígio de uma rua (...) poderia também estar associado à presença, no logradouro, de casas de pessoas ou sedes de entidades que, de um modo ou de outro, tivessem importância para a sociedade que por ali passaria” (FERREIRA, 2005, p.98). Na prática, o projeto de renovação do Carnaval agenciado pela burguesia ainda era acompanhado por brincadeiras diversas caracterizadas pela imprensa burguesa como entrudo, sem diferenciação alguma. Tudo o que não se encaixava nos moldes novos era considerado impróprio, bárbaro, “incômodo”, “ofensivo” e típico de “vadios” (FERREIRA, 2005, p.114). Outro termo bastante utilizado a partir da década de 1870 para desqualificar as manifestações carnavalescas as quais não se enquadravam nas sociedades era “Zé-pereiras”, conjunto de brincadeiras consideradas selvagens e barulhentas. Na realidade, como colocado por FERREIRA (2005), “zé-pereira” foi, por algum tempo, sinônimo de “bater do bumbo” (FERREIRA, 2005, p.130), estando presente, inclusive,

em manifestações

carnavalescas consideradas mais elitizadas, como os passeios. O geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes, em seu trabalho sobre escolas de samba no Rio de Janeiro, afirma que o surgimento destas, no final dos anos de 1920, demonstrou como “a cidade secular” pode ser extremamente fértil para os rituais festivos, assim como a ideia de modernidade aplicada ao espaço urbano carioca, através das grandes reformas urbanas ocorridas no início do século passado, não pôs fim às manifestações da cultura popular em tempos carnavalescos. Em suas palavras, nesta cidade a modernização enriqueceu tremendamente o Carnaval, inclusive pela decidida participação das elites [...]. Mas foi sobretudo pela

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enorme capacidade das classes populares para renovar sua participação nestas festividades que o Rio de Janeiro se tornou palco de uma das maiores celebrações do século XX. E para tal avaliação é preciso ter em conta uma orientação bastante generalizada no pensamento político que se desenvolve desde meados do século XIX (Velloso, 1988: 9), a partir da qual costumes e festas populares passaram a sofrer censura e perseguição. A primeira proibição do entrudo no século acontece em 1818, mas, como todas as outras medidas idênticas tomadas ao longo daquele período, fracassou, fazendo com que tal folguedo só saísse de fato da cena carioca após as reformas urbanas de Pereira Passos, na primeira década do século XX. O próprio samba e os rituais afro-brasileiros têm suas páginas de perseguição policial.” (FERNANDES, 2001, p.5-6)

FERREIRA (2005) salienta a “forte influência negra” em boa parte das brincadeiras realizadas ao longo do período carnavalesco, assim como o papel das irmandades religiosas (especialmente pelo culto aos santos negros, como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito) para a celebração festiva dos escravos na cidade. Ao lado das festas religiosas negras, permitidas por constituírem uma estratégia de cristianização dos escravos, estes praticavam muitas danças oficialmente proibidas no Rio de Janeiro, mas toleradas por serem consideradas uma maneira de evitar tensões, rebeliões, ou seja, como solução para “a organização interna entre os escravos de diferentes origens” (FERREIRA, 2005, p.140), assim como ocorria em Recife. O estudo realizado pelo referido autor sobre o Carnaval carioca entre os anos de 1840 e 1930 embasou-se em “novas concepções do conceito geográfico de lugar – ligadas a questões que associam referências globais e locais e à interconexão de diferentes elementos num processo em constante mutação” (FERREIRA,2005, p.2122), visto que considera a cidade do Rio de Janeiro uma “verdadeira articuladora do fluxo de capitais, pessoas, bens e cultura entre centro e periferia” (FERREIRA,2005, p.21). Segundo este autor, o Carnaval carioca se projetava em nível internacional desde os idos de 1910, sendo caracterizado como “festa síntese da brasilidade”, “festa brasileira por excelência” (FERREIRA, 2005, p.165). Essa fama do Carnaval do Rio de Janeiro continua até os dias atuais, mas com algumas mudanças no conteúdo carnavalesco, configurando uma nova etapa da festa momesca. De fato, como analisado por Maurício Abreu, “a ‘memória urbana’ é hoje um elemento fundamental da constituição da identidade de um lugar. Busca-se com grande afã recuperá-la” (ABREU, 1998, p.81).

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De acordo com a temporalidade do Carnaval estabelecida por FERREIRA (2005), a atual fase do Carnaval carioca seria a terceira, denominada “Carnaval Popular” ou “Pequeno Carnaval”, marcado por uma busca de identidade, uma busca da tradição evidenciada por “manifestações de raízes negras, como cordões, blocos e escolas de samba” (FERREIRA, 2005, p.18). Como visto no Rio de Janeiro, na atualidade, há um frenesi pré- carnavalesco com desfiles de blocos gigantescos que se apossam das ruas da cidade, outrossim, no carnaval, como o Cordão da Bola Preta, o Bloco da Preta, a Banda de Ipanema, Escravos da Mauá, entre outros, afora desfiles aqui e ali, como os cortejos do Rio Maracatu, além do “maior espetáculo da Terra”, com os desfiles das escolas de samba, na Avenida Darcy Ribeiro, a Marquês de Sapucaí ou Sambódromo. Nesses ecos e compassos, o maracatu advindo do Recife tornou-se outra manifestação, de meio de ano ou carnavalesca, e ganhou as ruas da urbe carioca nos anos de 1990. Podemos entender as alterações orquestradas pela polícia e pela prefeitura nos trajetos dos maracatus-nação em Recife como uma “dimensão concreta dessa luta simbólica” (FERREIRA, 2005, p.12), assim como ocorre no Carnaval carioca, desde os tempos coloniais. A fim de compreendermos como o maracatu se insere no carnaval de rua do Rio de Janeiro, configurando lugares pela cidade, optamos por estudar humanisticamente o Bloco Rio Maracatu. Mas, para entendermos sua dinâmica atual, é necessário revisitarmos suas origens coloniais e pernambucanas.

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2. DESVENDANDO O MARACATU E SEUS SIGNIFICADOS NO CARNAVAL DE RUA: ENTRE RESISTÊNCIA, ESPETÁCULO E EXPANSÃO. Vejam em noite de gala As nações africanas Que o tempo não levou É maracatu Olhem quanto esplendor Na festança real Vêm as nações importantes Saudando a rainha, Dona Santa Cantarolando num baque virado alucinante Ô, ô, ô, ô Olha a costa velha no batuque do tambor Ô, ô, ô, ô Maracatu Elefante chegou Perto do pálio da soberana Um festival em cores Enfeita a nação Vejam a garbosa rainha Na matriz do Rosário Depois da coroação Chegou maracatu no Império original Maracatu tradição do carnaval (Samba Enredo G.R.E.S. Império Serrano, “Dona Santa, Rainha do Maracatu”, 1974)

O presente capítulo aborda a trajetória e os significados do maracatu, folguedo surgido em épocas coloniais, com forte influência negra, oriundo de Pernambuco. A fim de compreender essas transformações e permanências de símbolos e significados, será necessário, também, revisitar a chamada cerimônia de coroação de reis do Congo, realizada no Brasil escravocrata. E, posteriormente, o capítulo analisa como ocorre o processo de expansão do maracatu em diversas cidades brasileiras e estrangeiras a partir das últimas duas décadas.

2.1.

As raízes híbridas do maracatu

O maracatu é uma manifestação cultural de origem pernambucana, muito ligada à cultura negra, estabelecendo também “relações ambíguas com a religião católica e com a religião afro-indígena conhecida como ‘jurema’” (SANTANA, 2012. p.15). Tendo surgido no início do século XVIII, em Olinda, ainda em tempos

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escravocratas, o maracatu é um folguedo cujas raízes residem no processo de ressignificação de rituais africanos em terras brasileiras, possuindo “uma força histórica acumulada” (SANTANA, 2012, p.38). Nesse sentido, podemos considerar o maracatu como uma das “canções da saudade brasileira” (CERTEAU, 2012, p.71. Grifo no original) e como patrimônio imaterial dos “lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil” (MATTOS et. al., 2013). De acordo com TINHORÃO (2012), documentadamente, o tráfico de escravos para o Brasil começou em 1511 e a presença sistemática do trabalho escravo de negros no Brasil se deu a partir do início da ocupação produtiva do território, com o cultivo e exportação de cana de açúcar na década de 1540. Durante o período escravocrata, cerca de 4 milhões de africanos foram transportados para o Brasil. Já em fins do século XVI, os negros eram “entre 24% e 34% da população global da colônia” (TINHORÃO, 2012, p.27). Isto posto, seria impensável considerar que tamanho contingente de negros não contribuísse de alguma maneira para a cultura brasileira. Assim como brancos e índios, os negros também podiam “cantar e folgar em estilo visivelmente fora do modelo das atividades lúdico-religiosas criadas pelos jesuítas para promover a catequese, ou tradicionalmente presas ao calendário das festas da Igreja importadas de Portugal” (TINHORÃO, 2012, p.32) e não abdicaram “de suas práticas religiosas apenas por viverem no Brasil como escravos” (TINHORÃO, 2012, p.34-35). Para TINHORÃO (2012), “no Pernambuco ocupado pelos holandeses da terceira década dos anos seiscentos os escravos africanos conseguiam, em certas ocasiões, exercitar seus ritmos e danças (e quase certamente, embora de forma dissimulada, também seus rituais religiosos), através de manifestações à base de ruidosa percussão, que os portugueses definiam genericamente sob o nome de batuques” (TINHORÃO, 2012, p.35-36. Grifos nossos.)

Os “sons dos negros” no Brasil Colônia, vindos de variados toques percussivos, e conhecidos como batuques confluíam, muitas das vezes, em lazer nos momentos de folga e em resistência cultural. O que aparentava ser apenas diversão para os portugueses também poderia ser uma combinação de variadas práticas religiosas e danças ligadas ao candomblé. Uma diferenciação maior nesse sentido somente começou a ocorrer no século XVIII, sendo alguns destes batuques considerados moralmente impróprios. Exemplo disto é o pedido do Tribunal da

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Inquisição ao governador de Pernambuco em 1780, José César de Meneses, de proibir “‘as danças supersticiosas em Pernambuco’” (TINHORÃO, 2012, p.51), pelo fato de os batuques serem considerados contrários aos bons costumes da época. O então governador de Pernambuco concluiu que alguns batuques deveriam ser reprimidos, como aqueles realizados, geralmente às escondidas em terreiros ou em locais abertos nas matas (roças), pelos “Pretos da Costa da Mina” (TINHORÃO, 2012, p.52), com ialorixás6 e pejis7; por outro lado, “os batuques da área urbana ou da periferia dos núcleos povoados da zona rural” (TINHORÃO, 2012, p.55), considerados como diversão, poderiam ser liberados. No século XVIII, portanto, os cortejos de maracatu eram um momento para se “bater tambor para os deuses, cantar para espantar a saudade” 8. De acordo com MATTOS et. al. (2013), “por todo território, ao longo do período colonial e de todo o século XIX, o catolicismo tornou-se também africano” (MATTOS et. al., 2013, p.47); no entanto, os negros em tempos pretéritos, aparentando se relacionar apenas com a Igreja Católica a partir de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, se libertavam de amarras sociais e podiam cultuar seus orixás e sua ancestralidade africana. BEZERRA (2011) 9, lembra que através dessas brechas encontradas no calendário das festas católicas, os negros produziam suas comemorações paralelas que, aliás, podiam ser também católicas. Nestas, a independência dos negros se instalava por estarem juntos, e daí transbordava para o trato com os senhores, autoridades brancos em geral. A festa os reunia e lhes fortalecia o espírito, ajudando-os a não sucumbir moralmente diante da tragédia da escravidão e de quem os escravizava (Reis, 2002) (BEZERRA, 2011, p.6)

O folguedo, para o escravo, se constituía enquanto um “alívio de seu cativeiro” (ANTONIL apud SANTANA, 2012, p.95), um “escapismo” (TUAN, 2000) 6

Também chamadas de Mães-de-santo. De acordo com Eduardo Fonseca Júnior, autor do Dicionário Antológico da Cultura Afro-Brasileira (JÚNIOR, 1995), pejí pode ser entendido como o “local de iniciação de noviços e noviças nos rituais afro brasileiros. Camarinha., como “santuário dos candomblés (nagô)”, sendo o pêji-gã “o dono do altar, teoricamente responsável pela sua conservação e pelo seu aspecto festivo nas cerimônias religiosas”. O dicionário traz, ainda, a definição de peji-orixá, como o “local onde são colocados os ‘assentamentos dos Orixás. Local sagrado onde são feitas as invocações para os Orixás’”, sendo localizado na Camarinha, “onde somente os sacerdotes e seus auxiliares têm acesso”. Acreditamos que no trecho de TINHORÃO (2012), o termo peji possa ter os dois primeiros sentidos destacados por JÚNIOR (1995). 8 Descrição utilizada pela rádio pública nacional da Áustria Ö1, em chamada para programa especial sobre o Maracatu, exibido em 23 de Janeiro de 2015. Disponível em . Acesso dia 28/01/2015. 9 Artigo disponível em: . Acesso dia 13/01/2015. 7

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não questionado pela Igreja Católica, a qual exigia que os negros tivessem um dia de descanso para cumprir suas obrigações religiosas, para socializarem nas Irmandades, como a do Rosário, responsáveis simultaneamente pela convivência e pelo controle dos negros, assim como para renderem mais no trabalho e não se rebelarem contra o sistema escravocrata. GARCEZ (2012) mostra que, apesar de as cerimônias de coroação de reis negros, em Recife, se associarem “às Irmandades Católicas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, com o passar dos anos as coroações deixaram de acontecer e a relação com as Igrejas Católicas também perderam sua força, desse modo em meados dos anos 1930 o Maracatu é relacionado aos cultos religiosos afro descendentes e duramente perseguidos” (GARCEZ, 2012, p.23).

A autora considera, ainda, que a proposição de alguns autores acerca da inexistência de documentos comprobatórios do vínculo entre maracatu e rituais religiosos, tendo sido essa relação com as religiões de matriz africana “socialmente construída ao longo do século XX” (GARCEZ, 2012, p.28), um posicionamento o qual desconsidera um importante documento histórico, a corporeidade, sendo o corpo “produtor e negociador de tradições e processos criativos” (GARCEZ, 2012, p.37). Portanto, dialogando com o pensamento antropológico de Júlio Tavares, autor que trabalha a corporeidade enquanto arquivo, Laís Garcez atesta que “a corporeidade nos permite compreender a religiosidade não somente como a sabedoria de rituais específicos, mas também como um sistema de crenças culturais presentes em qualquer prática social, seja uma ‘nação’ ou um ‘grupo’ de Maracatu” (GARCEZ, 2012, p.28). Devemos considerar, aqui, a corporeidade por um viés geográfico, admitindo também o corpo enquanto um “arquivo de lugares”, uma “memória-arquivo” (CHAVEIRO, 2012, p.253), ou melhor, um “arquivo-vivo-memória” (CHAVEIRO, 2012, p.253), reflexo e condição da reprodução das desigualdades sociais (de classe, gênero, étnicas, dentre outras) no espaço/lugar. Nesse sentido, CHAVEIRO (2012) enfatiza o caráter intencional por parte de todas as instituições (escola, fábrica, igreja etc) em relação aos corpos. Esses lugares de controle têm o poder de produzir sentimentos negativos como o medo, o egoísmo, além de causar traumas e desmotivações que agem justamente na capacidade de ação dos corpos. “O corpo doente encerra em suas dores, esmaece diante de obstáculos pessoais”

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(CHAVEIRO, 2012, p.255), tornando a capacidade de insurgência e/ou de criação quase nula. Portanto, o candomblé desfrutava de um poder libertador, sobre o qual a geógrafa Aureanice de Mello Corrêa afirma que o negro incorporado com seu orixá protetor não é mais um escravo, não ocupa uma posição subalterna na sociedade (...) Ele é ‘despossuído’ de seu papel social e se torna um humano divino, visto que baila, por meio de si, seu deus. (CORRÊA, A.M., 2013, p.216).

De acordo com Marina de Mello e Souza, as ruas das cidades coloniais e os terreiros das fazendas eram apropriados pelos negros - escravos, livres ou libertos “com procissões, cantos, danças e encenações toleradas e às vezes até apreciadas pelos senhores, pelos brancos, pelos pardos embranquecidos pela ascensão social” (SOUZA, 2005, p.86). Para TINHORÃO (2012), esse aumento da “participação de brancos e mulatos das camadas mais baixas das cidades e vilas nesses ‘batuques de negros’” (TINHORÃO, 2012, p.55-56) resultou em adaptações, hibridismos musicais, devido à combinação “da percussão, da coreografia e do canto responsorial africano-crioulo”, um canto de improviso “em resposta a estribilhos fixos” (TINHORÃO, 2012, p.65), com danças, melodias e instrumentos introduzidos pelos “herdeiros nativos da cultura europeia” (TINHORÃO, 2012, p.55-56), como a viola.

2.2. A Coroação de Reis do Congo e sua influência no Maracatu

Antes de constituir-se enquanto uma tradição ligada aos escravos africanos e seus descendentes no Brasil, a coroação de reis do Congo era “a mais antiga criação cultural dos africanos subequatoriais no próprio território de Portugal, a partir de meados do século XV” (TINHORÃO, 2012, p.107), relacionando-se às confrarias de Nossa Senhora do Rosário. Em Portugal, os negros de Lisboa envolviam-se com tal confraria desde 1505 na capela da Igreja de São Domingos de Lisboa; entretanto, “de portas afora” (TINHORÃO, 2012, p.108). De acordo com o mesmo autor (TINHORÃO, 2012), o auto de coroação existe desde 1520, embora sem tanta certeza, tendo a primeira notícia do funcionamento da Confraria de Nossa Senhora

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do Rosário dos Homens Pretos em Portugal apenas surgido no ano de 1533. Conforme nos relatam VAINFAS e SOUZA (1998), a famosa “festa de coroação de Reis Congo”, difundida no Brasil ao longo do século XIX, é a ponta do iceberg de uma história que só se pode esclarecer com o deslocamento no espaço e no tempo. Deslocamento rumo à África, ao antigo reino do manicongo, e retorno ao século XV, século da conversão do primeiro soberano congolês ao catolicismo” (VAINFAS e SOUZA, 1998, p.2).

O chamado Reino do Congo compreendia a “região entre o rio Congo ou Zaire, ao norte; rio Bengo, na altura da atual Luanda, em Angola, ao sul ; e linha do rio Cuango, pelo interior” (TINHORÃO, 2012, p.109). Consoante SILVA (2005), quando descoberto o reino do Congo englobava “o Norte do território actual de Angola, uma parte da República Democrática do Congo e outra do Congo actual. Este território englobava os Reinos do Congo e de Angola” (SILVA, 2005, p.1), pois o reino do Congo dominou Angola até 1575. O reino do Congo era composto de diversas províncias cujo domínio era exercido por uma nobreza local ou “eram administradas por chefes escolhidos pelo rei dentre a nobreza que o cercava na capital” (VAINFAS e SOUZA, 1998, p.2). TINHORÃO (2012) estabelece que o primeiro contato entre portugueses e este reino se deu em 1481, quando “o navegador Diogo Cão atingiu a região do rio Zâmbia” (TINHORÃO, 2012, p.108-109). Por outro lado, SILVA (2005), assim como VAINFAS e SOUZA (1998), consideram que o reino do Congo tenha sido descoberto pelos portugueses no ano de 1483. De todo modo, os principais objetivos dos colonizadores naquela região, quando da chegada de Diogo Cão, eram “o comércio, principalmente de escravos, e o controle das minas, sempre aquém das expectativas” (VAINFAS e SOUZA, 1998, p.4). Chantal Luis da Silva, por sua vez, estabelece que “as relações entre os Portugueses e as elites locais deram origem a uma aliança económica, diplomática e religiosa entre o Reino do Congo e o Reino de Portugal” (SILVA, 2005, p.1). Diogo Cão chegara com uma “proposta de ‘pazes’’’ a qual fez Muemba Nzinga, filho de Joao I, então rei do Congo, se batizar com nome português de Afonso I, o qual seria rei entre os anos de 1506 e 1543, após a morte de seu pai e disputa pelo trono com seu irmão (VAINFAS e SOUZA, 1998). Afonso I esperava obter, após sua conversão ao catolicismo, “os mesmos privilégios que o rei de Portugal’’ obtinha do Papa

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(SILVA, 2005, p.3), tendo sido considerado, a partir de então, irmão do rei de Portugal (TINHORÃO, 2012). Segundo tal autor, a arma política utilizada pelos portugueses para a dominação do reino do Congo era a conversão dos povos desta região à fé católica. SILVA (2005) nos coloca que a conversão do soberano Muemba Nzinga foi a primeira conversão ao catolicismo ocorrida no reino do Congo, no ano de 1491, seguida da de seus súditos congoleses. Entretanto, VAINFAS e SOUZA (1998) afirmam que “durante todo ano de 1490 os enviados do rei do Congo permaneceram em Portugal, aprendendo o português, os mandamentos da fé católica e os costumes da sociedade portuguesa” (VAINFAS e SOUZA, 1998, p.4), ou seja, Afonso I (Muemba Nzinga) provavelmente não foi o primeiro congolês a seguir a fé católica, pois anos antes seu pai já havia se convertido e, inclusive, enviado congoleses para Portugal durante seu reinado. Como a disputa pelo trono era grande, “o Cristianismo passou a ser um instrumento de consolidação do poder’’ (SILVA, 2005, p. 3), na medida em que os portugueses e a Igreja apoiavam os candidatos a rei do Congo os quais fossem favoráveis ao catolicismo. Essa importância interessada dada pelo governo de Portugal ao antigo reino do Congo foi a motivação para a encenação teatral da coroação de reis negros em solo português devido a “certo sentimento de superioridade por parte dos antigos súditos” (TINHORÃO, 2012, p.109) de Afonso I. Ademais, Portugal serviu de inspiração para o Estado congolês o qual perdeu, aos poucos, “as características tradicionais de confederação ou chefatura pluritribal para assumir, ainda que no plano das instituições e da etiqueta política, aspectos da monarquia ocidental” (VAINFAS e SOUZA, p.7). Dessa maneira, distribuíram-se diversos “títulos da nomenclatura hierárquica do sistema monárquico europeu” (TINHORÃO, 2012, p.113) aos soberanos das províncias do reino do Congo, como duques, condes e marqueses. Este mesmo autor salienta a relação existente entre o hibridismo religioso e político pelo qual passava o ritual de coroação dos reis do Congo na África e o surgimento em terras brasileiras, a partir do século XVII, de uma “multidão de juízes de nações, mordomos, mordomas, secretários de Estado, marechais, generais, tenentes-generais, brigadeiros, coronéis” (TINHORÃO, 2012, p.114), ao lado dos simbólicos reis do Congo das irmandades de Nossa Senhora do Rosário e também de São Benedito (SOUZA, 2005). Essas irmandades leigas, marcadas pela

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“convivência de elementos sagrados e profanos” (ALVIM, 2008, p.23), se incumbiam principalmente do “enterro dos irmãos” negros e da “realização da festa anual em homenagem ao seu orago, ou seja, santo de devoção”, durante a qual o rei saía em cortejo pela cidade, acompanhado “de sua corte, de seus músicos, de seus dançadores, que podiam apresentar encenações” (SOUZA,2005, p.82). Segundo Valeska Alvim, “desde a chegada em nossas terras, essas irmandades foram reconhecidas como uma forma de afirmação cultural” (ALVIM, 2008, p.23) se forem consideradas as ações que contribuíram para a integração dos negros. O ritual de Coroação de Reis do Congo pode ser considerado, portanto, como uma das “dramatizações da vida cotidiana” (TINHORÃO, 2012, p.107), origem de diversos autos e danças do carnaval e do folclore brasileiros, sendo acompanhada por toques percussivos e danças. Conforme nos descreve SOUZA (2005), acompanhando os reis e suas cortes vinham tocadores de instrumentos de origem tanto européia quanto africana: diferentes tipos de tambores, pianos de dedo, marimbas, instrumentos de corda, além dos que dançavam com passos e gestos tipicamente africanos, descritos com espanto e repugnância pela maioria dos registros. Muitas vezes, junto aos personagens reais com trajes de estilo europeu, vinham outros, vestidos de maneiras africanas, envoltos em peles, carregados de colares, pulseiras, guizos, e penas na cabeça à semelhança dos sacerdotes centro-africanos. As músicas tinham ritmos africanos e as letras misturavam palavras africanas com um português com gramática e sintaxe alterados (...) O auge dos cortejos festivos era a dança dramática (SOUZA,2005, p.87).

Segundo TINHORÃO (2012), as primeiras notícias sobre essa dramatização no Brasil, mais especificamente no estado de Pernambuco, datam do século XVII, mas tal prática cultural somente ganhou sua “feição de auto popular definitivamente integrado à tradição” (TINHORÃO, 2012, p.110) nos dois séculos posteriores. De acordo com VAINFAS e SOUZA (1998), “a região do Congo-Angola foi daquelas que mais forneceu africanos para o Brasil” (VAINFAS e SOUZA, 1998, p.1-2) desde o século XVII até o século XIX. Tal solenidade era aproveitada pelos colonizadores para conter os escravos através da “atribuição de uma parcela de autoridade aos potentados simbólicos” (TINHORÃO, 2012, p.110), ou seja, alguns escravos eram nomeados reis do Congo simbolicamente e ganhavam certo poder de polícia, auxiliando no controle dos próprios companheiros escravos. De acordo com Rosane Volpatto, em texto publicado no site da Imperial Irmandade de Nossa Senhora do

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Rosário e São Benedito dos Homens Pretos10 do Rio de Janeiro, o negro eleito rei do Congo “era o rei sem trono e sem coroa”, sendo muito respeitado e representando, portanto, “um grande e inestimável auxílio à manutenção da ordem” no Brasil colonial, “um arcabouço de coerção e de controle

sobre os

afrodescendentes” (SOUZA, 2005, p.86). Segundo o Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil, organizado por professores do curso de História da Universidade Federal Fluminenses, as igrejas pertencentes a irmandades de ‘Homens Pretos’ devem ser consideradas mais que patrimônio arquitetônico, pois “representam hoje marcos visíveis dos africanos no conjunto da população católica” (MATTOS et. al., 2013, p.47), ou seja, formas simbólicas do catolicismo negro brasileiro. Na perspectiva de SOUZA (2005), para os negros africanos traficados para o Brasil, a experiência do catolicismo também era um elo com a África natal (crescentemente idealizada à medida que se afastava no tempo), devido à existência de chefes que se diziam católicos no Congo e em Angola e à incorporação de ritos e objetos de culto do catolicismo por algumas populações centro-africanas. Essa familiaridade anterior com formas de catolicismo africano ajudou a construção de uma identidade elaborada e reproduzida por meio dos reinados negros realizados nas irmandades (SOUZA,2005, p.83)

O ritual de coroação de reis do Congo no Brasil contribuía, portanto, para o empoderamento e fortalecimento da cultura dos africanos e seus descendentes em terras brasileiras, pois “a encenação dos momentos fortes da existência coletiva através de cerimônias, de rituais e de festas permite ao grupo se realimentar, fazendo apelo a seus mitos fundadores” (CLAVAL, 2006, p.110) e, neste caso, recuperava-se a “África (...) pela memória, pelos mitos” (CORRÊA, 2013, p.210). Ademais, os simbólicos reis do Congo eleitos em terras brasileiras “eram pólos aglutinadores de comunidades que construíam novas identidades a partir dos seus legados africanos, acomodados à estrutura da sociedade escravista brasileira” (SOUZA, 2005, p.83), ou seja, a coroação representava para os senhores uma possibilidade de disciplinar seus escravos.

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Disponível em: . Acesso em 23/07/2014.

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Em Olinda, já existia uma confraria do Rosário desde 1552 (TINHORÃO, 2012), sendo a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada no bairro de Bonsucesso, “fruto da religiosidade católica de matizes africanas dos primeiros séculos da colonização” (MATTOS et.al., 2013, p.48). Já em Recife, apenas entre 1662 e 1667 começou a ser construída a capela da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos (TINHORÃO, 2012; MATTOS, et.al., 2013). Desde 1770, sua igreja está localizada no bairro de Santo Antônio, “mais populoso bairro da vila do Recife dos séculos XVII e XVIII” (MATTOS, et.al., 2013, p.49). A partir de 1674 até 1708, nos documentos de tal Irmandade, a expressão “reis do Congo” foi substituída por “reis dos Angolas”, pois “durante a ocupação holandesa na África, o reino do Congo afastou-se dos portugueses, chegando a declarar-lhes guerra duas vezes” (TINHORÃO, 2012, p.111). Em 1665, ao término da segunda guerra entre congoleses e portugueses - a batalha de Mbwila (Ambuíla), estes últimos, interessados no controle do território “que seria passagem para as cobiçadas minas de ouro e prata” (VAINFAS e SOUZA, 1998, p.10) do reino do Congo, saíram vitoriosos por seu superior poder bélico, a toponímia daquela região foi alterada para “Angola” a fim de apagar a memória de Muemba Nzinga (TINHORÃO, 2012). TINHORÃO (2012) declara, ainda, que a partir do século XIX o auto de coroação de reis do Congo foi perdendo, aos poucos, sua função simbólico-social. Isto se deveu à perda de referência dos próprios negros em relação ao significado do que era representado, resultando em um desmembramento do auto em outras festas, como as congadas, os cucumbis (bastante comuns no Rio de Janeiro), e os “desfiles de séquito real, ressurgidos em Pernambuco sob a forma dos maracatus carnavalescos” (TINHORÃO, 2012, p.119). Assim, os maracatus, “na segunda metade do século XIX, (...) representando cortejos régios, começaram a marcar presença nos carnavais através de suas associações festivas” (MATTOS et.al., 2013, p.109). Em Pernambuco, o maracatu despertou diferentes visões, inclusive no início do século XX. De acordo com OZANAM e GUILLEN (2014), com base em opiniões veiculadas em jornais de época do final do século XIX e início do século XX, “os maracatus oscilam nessas notícias entre dois polos: a indolência e a nostalgia dos antigos africanos saudosos da terra natal e a violência cotidiana que perpassa a vida dos negros ‘incivilizados’” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.314). Ou seja, desde sua

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constituição no Brasil colonial, o maracatu, expressão das comunidades negras, foi tolerado mediante a regulação, pois tais comunidades sempre foram consideradas “potencialmente ameaçadoras” (SOUZA, 2005, p.84).

2.3. Maracatu: diferenciações, (re)ssignificações e permanências

A partir dos toques e padrões percussivos, o maracatu costuma ser classificado em dois estilos diferentes: o “de baque virado” ou “nação” (remetendo à homogeneidade), cujas características se assemelham mais às matrizes africanas; e o “de baque solto”, também chamado de “rural”, “de caboclo” ou de “orquestra” por estabelecer laços religiosos indígenas e por ter sido difundido por trabalhadores das lavouras de cana na migração para Recife e Olinda, incorporando instrumentos de orquestra (FERREIRA, PITRE-VÁSQUEZ, 2010; SANTANA, 2012). Nas palavras dos primeiros autores, “esse folguedo possui sentido coletivo, conteúdo simbólico, fator facilitador, que pode permitir a transferência de geração em geração” (FERREIRA e PITRE-VÁSQUEZ, 2010, p.3). Os maracatus-nação, hoje, se mantêm como expressão da cultura negra de Pernambuco, mantendo um hibridismo entre a Igreja Católica e o culto nagô, visível durante a Noite dos Tambores Silenciosos na igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Olinda, onde “se processa diante dela um culto realizado por representantes de terreiros e maracatus da Cidade de Olinda na segunda-feira anterior à semana do Carnaval”, além das cerimônias católicas tradicionais (MATTOS et.al., 2013, p.48). No inventário organizado pelos mesmos autores, esse hibridismo se apresenta igualmente na igreja da mesma irmandade em Recife, situada na Rua Estreita do Rosário, considerada palco dos mais vastos reinados negros da capitania de Pernambuco, os quais eram controlados desde fins do século XVII por ‘Angolas’ e ‘Crioulos’. Como decorrência desses antigos reinados, dali partiam no século XIX os principais maracatus do Recife, a exemplo do Leão Coroado, fundado em 1863 e ainda hoje ativo (MATTOS et.al., 2013, p.49).

Em Pernambuco, de acordo com SANTANA (2012), o maracatu “de caboclo” se relaciona com a Jurema e o maracatu “nação” com o candomblé, mais especificamente com o culto nagô. A respeito do candomblé, Aureanice de Mello

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Corrêa o caracteriza como uma “festa dos orixás e dos homens” (CORRÊA, A. M., 2013, p.204). No entanto, atualmente, os chamados maracatus do tipo nação em Pernambuco possuem uma conexão não somente com a religiosidade, mas também com os festejos profanos (SANTANA, 2012), sendo “o centro das atenções do carnaval da capital” (KOSLINSKI, 2011, p.2). De acordo com Eugenia de Freitas Maakaroun, após uma temporada visitando e registrando as práticas e vivências de diversas nações de maracatu de Recife para a elaboração de um vídeo documentário, afirma que o Maracatu configura um sincretismo sagrado e profano no que diz respeito à influência religiosa e outras manifestações afro-brasileiras amalgamadas à música, à dança e outros rituais celebrados. Através de cultos, cerimônias e representações alegóricas, o povo busca obter a proteção dos Orixás, e garantir o sucesso dos desfiles e dos rituais festivos (MAAKAROUN, 2005, p.14-15)

A busca pelo envolvimento religioso não é a única marca do maracatu atualmente, fazendo com que a festa perca um pouco de seu sentido (SANTANA, 2012), pois “a festa sempre perde alguma parte importante dela mesma quando um de seus rituais desaparece” (CARNEIRO, 2008, p.40). Na verdade, devemos atentar para o fato de a festa não apenas perder significados, mas se (re)ssignificar, ganhando novas expressões e sentidos. Exemplo disso é o fato de as loas (cantos) serem entoadas primeiramente pela rainha ou pelo rei, geralmente ialorixá e babalorixá11 da Nação de maracatu, e em seguida respondidas pelas catirinas12, enquanto o baque seria tocado pelos batuqueiros, necessariamente ogãs13 daquela Nação (MAAKAROUN, 2005). Atualmente, nos chamados grupos percussivos, não é um pré-requisito ser ialorixá ou babalorixá para puxar as loas, assim como não é necessário a feitura de santo para uma mulher ser catirina nos grupos de maracatu irradiados pelo Brasil e pelo exterior. Ademais, algumas nações de maracatu aceitam a participação de pessoas “de fora”14 para aprenderem a tocar o ritmo em oficinas dadas pelos mestres, com o objetivo de custear os gastos das nações as 11

Também chamados de Pais-de-santo. Também chamadas de Filhas-de-santo. 13 De acordo com Eduardo Fonseca Júnior, autor do Dicionário Antológico da Cultura Afro-Brasileira (JÚNIOR, 1995), o ogã (afro-bras.) é um “protetor civil do candomblé, escolhido pelos Orixás e confirmado por meio de festa pública, com a função de prestigiar e fornecer dinheiro para as festas sagradas”, possuindo também a “função de segurar todas as ‘cargas’ que forem mandadas”, necessitando, portanto, de “uma ‘feitura’ muito mais complicada do que os noviços comuns”. 14 Na perspectiva de SANTANA (2012), a expressão “de fora” é utilizada para se referir aos membros não pertencentes ao candomblé. 12

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quais vêm ganhando um espaço maior no Carnaval Multicultural de Recife. GARCEZ (2012), ao estudar etnologicamente o Maracatu Estrela Brilhante de Recife, cuja sede está localizada no bairro Alto José do Pinho, e fugindo dos dualismos, não estabeleceu uma fragmentação tão rígida quanto o fez SANTANA (2012), afirmando que hoje se vive em uma conjuntura em que há um processo de integração e diferença entre os indivíduos que compõem o universo do Maracatu. Não há uma separação rígida entre os que são de dentro ou de fora, mas há movimentos que ora agregam e ora distanciam. Lá se encontram indivíduos de classe média e alta que vem do sul e do sudeste, são negros e brancos que nasceram e foram criados na comunidade, são religiosos e outros não e por aí vai... (GARCEZ, 2012, p.48)

De fato, “o maracatu é parte da vida urbana recifense, oferecido como qualitativo da cidade”, reforçando a função mercadológica da cidade do Recife com base em seus atributos culturais (SANTANA, 2012, p.22), como desenvolveremos mais adiante. Segundo Anna Beatriz Koslinski, as nações de maracatu são localizadas em comunidades afro-descendentes de periferia da cidade do Recife e arredores, possuindo como lideranças na maioria dos casos pessoas de uma mesma família, e contando com a participação das pessoas residentes da comunidade dentro do batuque e da corte. A dimensão religiosa dos maracatus se dá através dos vínculos que essas nações têm com os terreiros do xangô (nome da religião de culto aos orixás em Pernambuco) ou jurema (religião que cultua mestres, caboclo, exus e pombagiras) (MOTTA, 1997), onde prestam algumas obrigações (KOSLINSKI, 2011, p.2).

MAAKAROUN (2005) estabelece que os orixás15, o ori e os eguns16 constituem as “três categorias principais de seres sobrenaturais” com as quais se faz contato durante a prática ritual da crença xangô (MAAKAROUN, 2005, p.17). Os orixás são divindades as quais carregam consigo a energia de forças da Natureza (JÚNIOR, 1995); o ori é a cabeça, a consciência. A calunga, boneca geralmente feita de cera ou de pano, e carregada pela dama–do–paço à frente dos cortejos de maracatu-nação é um exemplo de egun, representando a ancestralidade de todas as

15

O Dicionário Antológico da Cultura Afro-Brasileira (JÚNIOR, 1995) relaciona o termo Ôrixá (afrobras.) a uma “personificação e divinização das forças da natureza, que bem pode ser traduzida por santo, na acepção católica. A origem etmológica do termo é: Orí = Cabeça e Xá = Guardião, tornando o Orixá um “Anjo da guarda, Guardião da Cabeça. Divindade elementar da natureza”, constituindo-se como a “figura central dos cultos afro-brasileiros”. 16 Os eguns representam a energia da ancestralidade, os espíritos dos desencarnados. Nas nações de maracatu, por exemplo, as calungas são considerados eguns, associados à energia de orixás específicos.

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ialorixás rainhas da Nação as quais estão falecidas; por este motivo, a calunga sempre recebe um nome feminino como Dona Joventina e Dona Erundina, calungas do Maracatu – Nação Estrela Brilhante do Recife. No documentário Maracatus – Ritmos Sagrados17, produzido por MAAKAROUN (2005), Dona Rainha Yvanize, rainha do Maracatu Nação Encanto da Alegria, chega a afirmar que “a dama de paço dança pela boneca. Ela não dança, quem dança é a boneca”. Pode-se afirmar que a prática do maracatu configura o balé do lugar (MELLO, 2000, 2012; SEAMON, 2013) ou dança-do-lugar (SEAMON, 2013) onde acontece, pois além de compreender os movimentos específicos dos chamados trabalhos e a afro diáspora (GARCEZ, 2012) do maracatu, envolvendo as oficinas de percussão, a costura das roupas, a rotina religiosa das nações, esse mesmo maracatu se caracteriza por um cortejo real acompanhado por instrumentos de percussão, tendo expressividade a corporeidade herdada dos africanos. O balé do lugar também pode ganhar um caráter de resistência, pois “há uma comunicação corporal na dança e na música que resiste sob as condições adversas, como proibição oficial recomendada pelo Tribunal da Inquisição” (SANTANA, 2012, p.45). Hoje, o maracatu se apresenta no formato de desfiles ou até mesmo em palcos e seus dançarinos continuam possuindo

um

papel

de

destaque

(KOSLINSKI,

2011;

PITRE-VÁSQUEZ,

FERREIRA, 2010). Nas palavras de SANTANA (2012), “o aspecto social é definidor no vivido, na medida em que há uma apropriação do espaço público (ruas, largos, praças), usado para festividades apresentadas por toques, danças, cantorias corpóreas dos cortejos de maracatu e seus participantes.” (SANTANA, 2012, p.32)

Nesse sentido, podemos falar na configuração de itinerários simbólicos e de lugares simbólicos do maracatu, pois no cortejo carnavalesco, comumente as nações pernambucanas visitavam um ou mais terreiros, assim como Igrejas associadas aos negros, passando estrategicamente por sedes de autoridades locais. Da mesma maneira, é possível associar a prática cultural dos grupos percussivos com a transformação de espaços em lugares por meio de sua apropriação simbólica.

17

O documentário produzido por Eugênia Maakaroun encontra-se dividido em duas partes. A primeira encontra-se disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=wp3MgPmNmB0>. Já a segunda parte pode ser assistida a partir de .

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Alguns personagens e objetos são sagrados nos maracatus-nação de Pernambuco, podendo ser considerados como os principais símbolos desta manifestação cultural. Para TUAN (2012), os símbolos são um conjunto de significados constantemente reconstruídos e acumulados ao longo do tempo. Nas palavras do referido autor, um símbolo é uma parte que tem o poder de sugerir um todo (...) Um objeto também é interpretado como um símbolo quando projeta significados não muito claros, quando traz à mente uma sucessão de fenômenos que estão relacionados entre si, analógica ou metaforicamente. (TUAN, 2012, p.43)

Nos maracatus-nação pernambucanos, os principais símbolos são o rei e a rainha, protegidos pelo pálio, um guarda-sol grande e colorido; a calunga, uma boneca enfeitada e carregada pela dama do paço, uma mulher pertencente à religião de culto aos orixás à frente do cortejo, sendo símbolo de proteção e dos ancestrais africanos; e os tambores, também chamados de alfaias, geralmente tocados por homens e fruto do “conhecimento simbólico dos artesãos” (SANTANA, 2012). Tais símbolos possuem um caráter sagrado para o grupo que se expressa através do maracatu. Tanto a dama do paço quanto os batuqueiros devem estar “limpos” espiritualmente. De acordo com KOSLINSKI (2011), a visibilidade obtida por esta manifestação cultural alterou desde a organização social até a religiosidade da mesma. SANTANA (2012) destaca a perda de sacralidade do tambor, assim como da música proveniente de seu toque. Isso se deve à evolução do carnaval no Brasil e ao fato de pertencer ao candomblé não ser mais um requisito para a participação no maracatu. Atualmente, os grupos percussivos não seguem, necessariamente, todos os preceitos e exigências dos antigos maracatuzeiros. Em seu trabalho sobre o maracatu enquanto festa na cidade, a mesma autora nos traz um questionamento importante: “Se os objetos e personagens acima mencionados parecem essenciais para identificar um maracatu-nação, então, na ausência de um deles não existe maracatu?” (SANTANA, 2012, p.41). OZANAM e GUILLEN (2014), a respeito da prática do maracatu entre fins do século XIX e início do XX, deixam em aberto “se os maracatus podem ser pensados como estratégias de integração dos negros ou como forma de ser aceitos na sociedade que se racializa. Mas não se pode negar que se tratava de uma manifestação cultural da qual alguns grupos de negros não abriram mão (...) e que

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eles lutaram para se manter no carnaval, apesar das adversidades e das perseguições” (OZANAM e GUILLEN, 2014, p.314). Na perspectiva de CORRÊA, A. M. (2013), o culto aos orixás nos terreiros de candomblé instituídos no Brasil em tempos coloniais representava “a necessidade e o desejo de libertação do africano de distintas etnias que veio para o Brasil, por migração voluntária ou involuntária, sob a égide de uma sociedade escravocrata” (CORRÊA, A. M., 2013, p.209). SANTANA (2012) afirma que “a antiga festa vem sendo reproduzida desde os tempos coloniais. À época, a forma espetacular tinha fins ideológicos, invertia representações de poder, planejava o controle da sociedade” (SANTANA, 2012, p.105. Grifos no original.). Dessa maneira, devemos reconhecer a contestação e a celebração (CORRÊA, 2007) concomitantes na prática do maracatu, pois na bibliografia sobre o maracatu-nação, tal manifestação cultural é tratada, por um lado, como periférica, constituindo-se enquanto resistência cultural à globalização. Por outro lado, “os maracatus nação se inserem num contexto mundial de valorização das culturas populares através de sua espetacularização e transformação em produto no mercado cultural” (KOSLINSKI, 2011, p.3; SANTANA, 2012). Por fim, devemos atentar quanto à ideia de origem ou raiz vinculada apenas às nações de maracatu. Pensemos na seguinte questão colocada às nações de maracatu hoje: “como se expandir para o mundo, semear o Maracatu em outras cidades, lidar com os novos ‘grupos’ e não perder sua ‘autenticidade’?” (GARCEZ, 2012, p. 44). Certamente, é necessário o estabelecimento de novas relações – culturais, políticas e econômicas- e uma (re)ssignificação. Concordamos, nesse sentido, com o posicionamento de GARCEZ (2012), visto que “não se trata de uma ‘origem’ estática, mas de uma estratégia política de sobrevivência” (GARCEZ, 2012, p.22), portanto, se refere a uma “invenção política” (GARCEZ, 2012, p.22), tornandose a religiosidade um “critério de legitimação da ‘autenticidade’ dessas nações” (GARCEZ, 2012, p.27). Entretanto, quando a referida autora fala em “trânsito”, “deslocamento”, “circulação”, não se refere apenas aos fluxos materiais de indivíduos e instrumentos de determinada nação, incluindo, da mesma forma, os fluxos imateriais, isto é, considera como parte da ramificação atual do maracatu os movimentos de transferências e compartilhamentos de simbologias e corporeidades (como na relação entre ‘nação’ e ‘grupos’). Em suma, tratase de uma conjuntura em que os bens simbólicos de determinada localidade encontram-se com outros configurando uma circulação infinita de trocas e

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negociações que redefinirão fronteiras e discursos políticos verbais e não verbais (GARCEZ, 2012, p.40-41).

A expansão vivenciada pelo maracatu atualmente, com a disseminação dos chamados grupos percussivos em nível global, não pode ser compreendida apenas em termos de descaracterização de uma “cultura de raiz” autêntica, tornando primordial a consideração da renovação polissêmica gerada a partir do trânsito desta linguagem (GARCEZ, 2012). Quando SANTANA (2012) questiona sobre a (in)existência de maracatu quando não estão presentes os símbolos geralmente associados às nações de maracatu como rei, rainha, calunga, pálio, etc. , podemos afirmar

que



uma

(re)ssignificação

desta

manifestação

cultural,

com

transformações e permanências as quais possibilitam o reconhecimento do Maracatu, não importando o espaço do qual essa cultura esteja se apropriando. Como afirma GARCEZ (2012), [...] se tratando de uma corporeidade afro diaspórica percebe-se a manutenção da relação com instrumentos percussivos, com uma complexidade rítmica forte e presente em suas danças e músicas, além dos cantos em perguntas e coros de respostas (DANIEL, 2002, p.40). Essa estrutura é compartilhada no mundo inteiro permitindo identificar o que é um Maracatu, mesmo em constantes trânsitos. (GARCEZ, 2012, p.42. Grifo no original.)

2.4. Estaria o maracatu vivendo uma glocalização?

Diante do exposto no tópico anterior, acreditamos que não faz sentido buscarmos uma única raiz ou uma fonte para o maracatu, seja a Igreja Católica ou o candomblé (culto nagô pernambucano). Talvez seja mais apropriado dizer que o maracatu já nasce como uma “cultura híbrida” (CANCLINI, 2013). Consideremos a perspectiva deste autor, o qual entende como hibridação os (...) processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras (CANCLINI, 2013, p.XIX).

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Desta maneira, analisar o maracatu como uma cultura desde sempre híbrida e, atualmente, possivelmente glocalizada, nos permitiu fugir do “risco de delimitar identidades locais autocontidas ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à sociedade nacional ou à globalização” (CANCLINI, 2013, XXIII). Nestor Garcia Canclini afirma que os conflitos nas Ciências Sociais são organizados por pares, como “tradição-modernidade, norte-sul, local-global” (CANCLINI, 2013, p.XVII) os quais, por sua vez, foram impactados pelos estudos que consideram o processo de hibridação. Este autor acredita que o conceito de “(...) hibridação não é sinônimo de fusão sem contradições, mas sim, que pode ajudar a dar conta de formas particulares de conflito geradas na interculturalidade recente” (CANCLINI, 2013, p.XVIII). Geralmente surgida a partir da criatividade, tanto individual quanto coletiva, “a hibridação, como processo de interseção e transações” (CANCLINI, 2013, p.XXVII), possibilita, na visão do autor, uma conversão da segregação em interculturalidade. Portanto, pensamos que o maracatu já nasce como híbrido, inicialmente marcado pela segregação (CANCLINI, 2013) de uma sociedade escravocrata e atualmente caracterizado mais por uma interculturalidade (CANCLINI, 2013). A segregação tornava-se visível mediante a conexão entre um folguedo organizado por Irmandades católicas (principalmente as de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito), durante o qual os negros, inclusive escravizados se vestiam como membros de uma corte, utilizando roupas inspiradas em veste europeias, mas simultaneamente cultuando suas origens africanas e seus orixás por meio de toques percussivos e danças. Quando pensamos o maracatu pela perspectiva da hibridação, concordamos com CANCLINI (2013) igualmente, pois esse viés não nos limita à busca por uma essência ou origem pura do maracatu, apesar de os maracatus-nação pernambucanos ainda serem considerados “autênticos” tanto pelas nações quanto pelos grupos percussivos, como colocado por GARCEZ (2012). De fato, o maracatu, a partir dos anos de 1990, passa por uma (re)ssignificação através do diálogo entre resistência e aceitação, tradição e modernidade, no sentido de sofrer uma espetacularização com fins turísticos ao mesmo tempo em que reatualiza tradições históricas essenciais para reforçar a identidade dos grupos que festejam, mesmo que durante o carnaval se unam batuqueiros “de dentro” e “de fora”, redefinindo o sentido de fazer maracatu (SANTANA, 2012).

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O historiador Michel de Certeau afirma que as “ressurgências das práticas ‘populares’ na modernidade industrial e científica” (CERTEAU, 2012, p. 82), como no caso do maracatu, não se restringem mais ao passado, às zonas rurais ou aos povos tradicionais - outrora considerados “primitivos” (CERTEAU, 2012, p. 82); a cultura popular, hoje, igualmente se apropria de áreas centrais da economia contemporânea, como bem demonstrou FERNANDES (2001). Essa popularização do gênero musical ocorreu com o sucesso de alguns artistas recifenses como Alceu Valença e, posteriormente, com a cena manguebeat consolidada na década de 1990, especialmente a partir da banda Chico Science e Nação Zumbi. Na perspectiva de AVELAR (2011), a cena manguebeat se relaciona diretamente com o processo de renovação da cidade de Recife enquanto polo musical, pois sua originalidade contribuiu para a (re)ssignificação da cidade, então conhecida como “quarta pior cidade do mundo” (AVELAR, 2011, p.137). A inserção de Recife no contexto pós-moderno de valorização das cidades a partir do viés cultural se deu a partir da iconografia dos mangueboys - marcada por caranguejos urbanos e antenas enraizadas na lama-, sugerindo simultaneamente uma modernização de uma cidade cujo sítio é de área alagada e uma conexão dos seus cidadãos aos fluxos globais de informação. Recife, então, deixa de ser simbolizada apenas pelos canaviais e passa a se associar a uma “cidadania cultural ao mesmo tempo local e global” (AVELAR, 2011, p.147) a partir de sua vinculação ao signo dos caranguejos urbanos. O manguebeat é considerado uma “música jovem” (AVELAR, 2011, p.141), mas sem muitas restrições em relação ao que era considerado tradicional, uma “cena local”, mas sem rejeitar a música estrangeira. De acordo com o mesmo autor, o manguebeat foi, portanto, uma ave rara, que realizou combinações nunca antes tentadas: enraizado localmente, mas ferozmente global; radical e demolidor mas claramente aberto à tradição; visivelmente político porém consciente dos limites da política na música (AVELAR, 2011, p.142).

A principal banda da cena manguebeat foi Chico Science e Nação Zumbi, a qual inovou no sentido de unir instrumentos típicos de gêneros musicais distintos como nunca havia sido feito anteriormente, em uma mescla “insólita e contagiante, polissêmica e ao mesmo tempo concisa” (AVELAR, 2011, p.134). Embora tocados simultaneamente, cada gênero combinado preservava sua identidade e intensidade. Science não foi o primeiro a unir os tambores estrondosos do maracatu ao trio

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clássico do rock formado por guitarra, baixo e bateria; entretanto, foi ele quem “consolida e extrai as consequências do diálogo” (AVELAR, 2011, p.134) entre esses gêneros. SANTANA (2012) nos coloca que o manguebeat “trouxe tendências consideradas típicas da pós-modernidade” (SANTANA, 2012, p.82). Conforme afirma AVELAR (2011), a referida banda era transcultural, estabelecendo a partir do diálogo rítmico, assim como das letras “radicais, surreais, ultrajantes, tecnófilas” (AVELAR, 2011, p.135) e das vestimentas de seus integrantes, uma relação instigante e favorável ao processo de globalização. Ao mesmo tempo em que a banda incorporava elementos da cultura negra internacional, como o Hip Hop, mantinha referências regionais bem evidentes, justaposição que pode ter resultado em uma “glocalização” (ROBERTSON, 1999) do gênero anteriormente considerado apenas local e/ou, no máximo, regional, como abordaremos adiante. Tamanha foi a influência de Chico Science no processo de ressurgimento e revalorização do maracatu pernambucano em múltiplas escalas espaciais que, após seu falecimento em um acidente de carro em 2 de Fevereiro - domingo anterior ao carnaval de 1997-, o cantor “virou mito” (SANTANA, 2012, p.83), quando “pela primeira vez na história do carnaval de Recife, as principais nações do maracatu desfilaram em silêncio pela cidade, acompanhadas por uma multidão estarrecida” (AVELAR, 2011, p.136). SANTANA (2012) ressalta o papel da morte de Chico Science no desencadeamento de um processo de atração pelas nações de maracatu, de certa maneira esquecidas na década de 1980, assim como uma reafirmação do local diante do global a partir da revalorização do maracatu, anteriormente ignorado por quem se afirmava moderno justamente pelo fato de o gênero representar o passado (SANTANA, 2012). A partir dos anos 1990, então, “contraditoriamente, os olhares se voltam para a ‘fonte’, para encontrar as ‘raízes’” (SANTANA, 2012, p.85). No âmbito da ciência geográfica, tal autora destaca a nova espacialidade alcançada pelo maracatu antes restrito a Pernambuco: a manifestação cultural sai do regional, redefinindo suas fronteiras, inclusive em nível internacional, através de turnês de grupos e nações (SANTANA, 2012). Na perspectiva de GARCEZ (2012), o maracatu vive uma “conjuntura específica atual que se dá pela consolidação de redes que ultrapassam as fronteiras de Recife e fixam o Maracatu em outros lugares do mundo” (GARCEZ, 2012, p.44. Grifos nossos.).

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Para se verificar essa disseminação do Maracatu em nível internacional, podemos citar dois exemplos. O primeiro deles é a iniciativa de Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu de Baque Virado, plataforma digital criada através da parceria entre o portal Maracatu.org.br e a equipe de organização do evento chamado Encontros de Maracatu, realizado em 2012. O objetivo é reunir o máximo de informações sobre maracatus-nações e grupos percussivos ao redor do mundo de maneira georreferenciada. O projeto disponibiliza, também, um acervo sonoro de Maracatu, com entrevistas e toadas. De acordo com o portal, foi utilizada a ferramenta “para WordPress Mapas de Vista, criado pelo HackLab. Ela permite a criação de pontos nos mapas para receberem conteúdos”18, ou seja, com a vinculação de dados ao GoogleMaps. Estão mapeados, até agora, 97 coletivos de maracatu (percussivos ou nações) pelo projeto. Sendo um trabalho contínuo, os grupos e Nações que quiserem ser mapeados devem responder a um questionário, fornecendo dados acerca de suas denominações, breve histórico do grupo, emails, sites, perfis nas redes sociais, local de ensaio, cores do grupo, número de integrantes e, caso haja, os demais ritmos trabalhados pelo grupo além do maracatu. Quando os grupos ou nações informam seus sites, a plataforma digital permite o acesso rápido aos mesmos, selecionando-se o ícone do grupo ou da nação, seguido do clique na opção “site”, logo abaixo do texto informativo fornecido. Mapa 1 - Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Informações sobre o Grupo Rio Maracatu (Rio de Janeiro - RJ).

Fonte: http://maracatu.org.br/2012/12/15/mapeamento-do-maracatu/.

18

Disponível em: . Acesso dia 18/06/2014.

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Também há a opção de se especificar a pesquisa no portal de mapeamento, selecionando-se filtros. Quando escolhido o filtro “Grupos no Exterior”, aparecem cadastrados cinco grupos percussivos, dentre os quais quatro no continente europeu e um na América Anglo-Saxônica: Maracatu Mar Aberto (Toronto, Canadá); Maracatu Estrela do Norte (Londres, Inglaterra); Tamaracá (Paris, França), Maracatu Mandaracu (Barcelona, Espanha) e Quebra Baque (Áustria). Mapa 2 - Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Grupos Percussivos no Exterior cadastrados no projeto

Fonte: http://maracatu.org.br/2012/12/15/mapeamento-do-maracatu/.

Através do filtro “Grupos no Brasil”, verifica-se uma concentração de grupos percussivos na região Centro-Sul do país. Já as Nações de Maracatu cadastradas localizam-se todas no estado de Pernambuco, aglomeradas principalmente em Recife e Olinda.

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Mapa 3 - Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Grupos Percussivos no Brasil cadastrados no projeto.

Fonte: http://maracatu.org.br/2012/12/15/mapeamento-do-maracatu/. Mapa 4 - Mapeamento de Grupos e Nações de Maracatu – Nações de Maracatu em Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes (PE).

Fonte: http://maracatu.org.br/2012/12/15/mapeamento-do-maracatu/.

Para GARCEZ (2012), “o Encontros permitiu a sustentação da discussão do Maracatu em diáspora, em trânsito. E, como diante dessa dispersão, os mestres e integrantes da ‘nação’ se colocam como ‘detentores de uma cultura’” (GARCEZ, 2012, p.15). O segundo exemplo da expansão do Maracatu é um programa sobre o folguedo o qual foi ao ar pela rádio pública nacional austríaca em Janeiro de 2015. No anúncio do programa, falou-se desde a atual situação econômica do Nordeste brasileiro, contrastante com seu riquíssimo panorama cultural, até a caracterização

78

do maracatu enquanto manifestação do candomblé e da resistência dos negros em tempos escravocratas. A reportagem de 13 minutos sobre Maracatu foi possível devido à contribuição de Ulla Ebner, austríaca de Graz e percussionista do bloco carioca Rio Maracatu, que fez gravações na Noite do Dendê. Esta última trata-se de uma festa realizada pelo Maracatu-Nação Porto Rico, desde 1914, no bairro recifense Bairro do Pina. A festa é símbolo de “tradição, religião, fundamento e resistência”19, sendo celebrada tanto por autoridades católicas, como o frei da paróquia de Nossa Senhora do Rosário (Igreja do Pina), quanto por líderes do candomblé, como Ialorixá Elda Viana - rainha do Maracatu-Nação Porto Rico e “última rainha coroada por um líder católico, na Igreja do Rosário dos Homens Pretos”20 - e por demais ialorixás e babalorixás do bairro. O hibridismo fica evidente até os dias de hoje, pois a abertura da Noite do Dendê21 é realizada pelo frei católico e, posteriormente, os batuqueiros realizam um cortejo até o pátio do evento, onde se realiza o xirê, cerimônia religiosa durante a qual “são chamados os orixás, um a um, para dançar ao som das cantigas (...) que evocam episódios da história das divindades, revivem suas lendas e destacam seus atributos” (CORRÊA, A.M., 2013, p.213). Além das entrevistas realizadas com o Maracatu-Nação Porto Rico, Ulla Ebner também conversou com o Maracatu Baque Mulher, grupo formado em 2008. No programa da rádio austríaca, foram tocadas músicas das Nações Porto Rico, Estrela Brilhante e Leão Coroado. De acordo com Vincent Berdoulay, “o estudo geográfico das relações entre espaço e cultura propõe repensar a herança do passado” (BERDOULAY, 2012, p.122), utilizando-se principalmente da noção de patrimônio cultural ou histórico, o qual possui sempre uma localização, mesmo quando se trata de um legado considerado imaterial, como saberes, celebrações, formas de expressão e lugares – bens culturais imateriais de acordo com o Decreto Nº 3.551, de 4 de Agosto de 2000. Nas palavras do autor,

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Disponível em < https://www.facebook.com/noitedodende/info?tab=page_info>. Acesso dia 27/01/2015. O ritual de coroação dos Reis e Rainhas do Congo, criado pelos portugueses, foi extinta em 1981. Disponível em . Acesso dia 27/01/2015. 21 É possível encontrar uma breve descrição da Noite do Dendê disponível em < http://www.cultura.pe.gov.br/canal/culturapopular/vi-noite-do-dende-sera-realizada-este-sabado-289/>. Acesso dia 27/01/2015. 20

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a memória, tal como exercida pelos diversos atores sociais, intervém, efetivamente, retendo certos elementos do passado e recompondo-os em representações julgadas pertinentes. Correlativamente, o esquecimento, voluntário ou não, está indissociavelmente a ele ligado. É o uso seletivo da memória que redefine o que é patrimônio dentro do que o passado deixou como testemunha de outros tempos. Isso contribui para essa reinvenção das tradições que vemos emergir atualmente em muitos países e que corresponde a um processo geral. (BERDOULAY, 2012, p.122-3).

Pode-se verificar que essa seletividade da memória se relaciona com a cultura do maracatu, considerado pelo Ministério da Cultura como uma “forma de expressão que congrega relações comunitárias, compartilhamento de práticas, memória e fortes vínculos com o sagrado”22 até os dias atuais, o que se evidencia, por exemplo, na cerimônia religiosa denominada A noite dos tambores silenciosos, a qual ocorre no Pátio do Terço (centro histórico de Recife), considerado “o mais importante ponto de encontro das nações” (SANTANA, 2012, p.79). Esse lugar de memória foi incorporado ao inventário sobre tráfico atlântico de escravos e história de africanos escravizados no Brasil (MATTOS et.al., 2013), tendo sido descrito da seguinte maneira: Em Recife (PE), no Pátio do Terço, situava-se a casa das tias do Terço (Sinhá, Yayá e Badia), importante terreiro da religião nagô. D. Santa, uma importante rainha do Maracatu Elefante, costumava passar na casa de Badia durante o carnaval para prestarlhe as devidas homenagens. É ainda no Pátio do Terço, local da Igreja de Nossa Senhora do Terço, que são realizadas as apresentações dos grupos de maracatus na Noite dos Tambores Silenciosos, realizada toda segunda-feira de carnaval em homenagem aos ancestrais escravizados (MATTOS et.al., 2013, p.109).

Nesse sentido, o maracatu-nação representa uma rememoração do passado de resistência à escravidão através de mitos e ritualizações ligadas ao candomblé, cujos terreiros surgem no Brasil com os “sentidos de liberdade e de ação – ação que festeja a liberdade” (CORRÊA, A.M., 2013, p.209). Portanto, celebrar o maracatu é rememorar a sua história de luta, simultaneamente conservada e renovada por meio da tradição oral, o que o torna 22

Dados disponibilizados pela Assessoria de comunicação do Ministério da Cultura, com informações do IPHAN. Disponivel em: . Acesso em20/12/2014.

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uma cultura imaterial, pois “a comunicação é o alicerce da intersubjetividade, ou seja, os valores e as crenças compartilhados constituem a imaginação coletiva e definem a cultura como imaterial” (COSGROVE, 2012). A certos indivíduos e grupos sociais, não seria interessante exaltar e manter viva uma memória dos escravos e seus descendentes, dos negros e das classes sociais mais baixas. Dessa maneira, o Maracatu (tanto o Nação quanto o Rural), com mais de dois séculos de existência, somente foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial do Brasil, isto é, como possuidor de “relevância nacional para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira”

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, além de “continuidade histórica”, em 03/12/2014 pelo

Conselho Consultivo do IPHAN, responsável pelos processos de tombamento e registro. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, o Inventário Nacional de Referência Cultural (INRC) - documento inicial de pedido para que um bem cultural seja registrado - do Maracatu ocorreu entre 2011 e 2013, a pedido da Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco para que o Conselho Consultivo o analisasse. Como reforça o Inventário dos Lugares de Memória do Tráfico Atlântico de Escravos e da História dos Africanos Escravizados no Brasil, a presença dos africanos no Brasil contemporâneo pode ser identificada na vivência de um patrimônio cultural, expresso em memórias, músicas, versos, cantos, danças e perfomances, associado aos marcos de sua História. A valorização recente do patrimônio imaterial por políticas públicas culturais tem proporcionado maior visibilidade à herança africana no Brasil, assim como maior reconhecimento do passado escravo e negro. O patrimônio imaterial africano é reconstruído por diversas comunidades e torna-se bandeira de luta por direitos e afirmação da identidade negra (MATTOS et.al., 2013, p.107)

Outrossim, o maracatu, considerado folclore por quem é “de fora”, coloca-se como um produto no mercado cultural; porém, sendo consumido por “um novo mercado consumidor” o qual busca enraizamento, pertencimento ao lugar (SANTANA, 2012). Nesse sentido, sua prática continua sendo um processo de idas e vindas ao tempo passado e ao tempo presente na configuração de identidades de seus integrantes sejam eles considerados “de dentro”, isto é, quando há vínculo religioso, ou “de fora” (SANTANA, 2012). Na concepção da mesma autora, “contraditoriamente, uma nova geração parece produzir o espaço de modo a manter o sentido da festa do Maracatu” (SANTANA, 2012, p.77), o que é possível através 23

Requisitos para que um bem cultural seja considerado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, segundo o IPHAN, publicados no Art.I, parágrafo II do Decreto Nº 3.551, de 4 de Agosto de 2000.

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de uma preparação e de um aprendizado sistemáticos por meio de oficinas, visitas, leituras, entre outros. Na perspectiva de CANCLINI (2013), nunca houve tantos profissionais ligados à cultura popular por dois motivos: o primeiro se trata de suas “funções tradicionais”, como empregar povos tradicionais – o autor cita os indígenas e os camponeses; em nosso caso, devemos considerar os maracatuzeiros das diversas nações pernambucanas. O segundo motivo se refere às “funções modernas”, como a atração de “turistas e consumidores urbanos que encontram nos bens folclóricos signos de distinção, referências personalizadas que os bens industriais não oferecem” (CANCLINI, 2013, p.22). Em obra anterior, este mesmo autor acentuou: [...] a globalização não é um simples processo de homogeneização, mas de reordenamento das diferenças e desigualdades, sem suprimi-las: por isso, a multiculturalidade é um tema indissociável dos movimentos globalizadores (CANCLINI, 2010, p.11)

Analisando as relações dos maracatus-nação pernambucanos com o sentido da festa e a religiosidade, e as mudanças ocorridas no contexto de globalização, KOLINSKI (2011) destaca o papel da recente visibilidade dessa manifestação para o surgimento dos chamados grupos percussivos, também chamados de “maracatus para folclóricos” e compostos principalmente por pessoas de classe média. Na perspectiva

da

autora,

esses

grupos

possuem

uma

prática

apenas

de

entretenimento, desvinculando-se do sentido religioso, das relações de vizinhança e da ancestralidade. No entanto, é destacado também o fato de muitos pessoas não diferenciarem “maracatuzeiros” de “grupos percussivos”, inclusive muitos integrantes desses últimos, configurando-se uma disputa entre as duas vertentes no mercado cultural. Como “festa na cidade”, SANTANA (2012) afirma que a unidade entre os diversos grupos de maracatu que se multiplicam deve-se ao ritmo, ao tambor, este adquirindo muitas vezes um papel de centralidade que pertencia à calunga nos maracatus-nação pernambucanos. Para se solidificarem, os grupos percussivos “se respaldam com as experiências adquiridas em oficinas com mestres das nações que ora viajam para esse fim ora os recebem nos ensaios durante os meses e semanas que antecedem o carnaval” (SANTANA, 2012, p.169).

82

A partir de trabalho etnográfico realizado junto ao Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife, GARCEZ (2012) sustenta que o maracatu encontra-se, atualmente, em diáspora. Ao lado da categoria diáspora, a autora utiliza a corporeidade e o movimento para caracterizar a atual fase vivida pelo maracatu nação, fornecendo a este a qualidade de uma linguagem em trânsito, em que a linguagem refere-se a gestuais que constituem a corporeidade, isto é são reconhecidas e compartilhadas no mundo todo as dimensões estruturais e perceptivas, que configura a linguagem do Maracatu de baque virado. Enquanto o trânsito refere-se à conjuntura diaspórica que possibilita os encontros, trocas e negociações que configuram as transformações possíveis dessa linguagem em constante movimento (GARCEZ, 2012, p.20)

Nesse sentido, a mesma autora traça reflexões com o objetivo de problematizar essa redefinição do maracatu, na qual é travado um “movimento entre o formato e a novidade” (GARCEZ, 2012, P.33). Em sua perspectiva, essa manifestação cultural não é analisada como “cultura popular”, mas enquanto “expressão corporal de uma cultura localizada em região periférica, porém em movimento”

(GARCEZ,

2012,

P.30.

Grifo

no

original.),

sem

direções

predeterminadas. Fugindo de dualismos, tal autora afirma que o que identifica o maracatu hoje é a “grande rede de trocas entre nações e ‘grupos’” (GARCEZ, 2012, p. 21) a qual, por sua vez, gera uma “multiplicação das formas de vivê-lo – então dançá-lo” (GARCEZ, 2012, p. 21. Grifo no original.). Em nosso terceiro capítulo, falaremos da (re)ssignificação dos movimentos corporais no maracatu, inspirados em algumas posturas de orixás, feita pela professora da Oficina de Dança do Rio Maracatu, Aline Valentim; essa (re)ssignificação seria um exemplo do que GARCEZ (2012), denomina “linguagem em trânsito”, caracterizada por “semânticas encarnadas sempre passíveis de mudanças” (GARCEZ, 2012, p.38). GARCEZ (2012) dialoga com autores que pensam acerca da apropriação das culturas populares, a exploração dos patrimônios culturais imateriais do Brasil e da espetacularização do Maracatu, como Ivaldo Marciano de França Lima e José Jorge Carvalho, enfatizando o posicionamento deste último a respeito da relação entre indústria cultural e culturas populares, assim como entre os membros da classe média cuja maioria é de pesquisadores das culturas populares, um público igualmente de classe média branca, divergindo dos “sujeitos celebrantes” (FERNANDES, 2001) negros e de classe baixa responsáveis por “uma tradição

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performática de origem africana [...] criada historicamente para fortalecer uma alteridade enfraquecida (ao mesmo tempo que construída) pela violência da escravidão” (CARVALHO, 2004 apud GARCEZ, 2012, p.25). Neste ponto, a autora se posiciona de maneira a expandir a visão acerca da atual fase vivida pelo Maracatu, fugindo de maniqueísmos culturais. Nesse sentido, vale considerarmos sua longa, porém, valiosa elucubração: [...] a expansão do Maracatu abre um novo mercado para a sua atuação onde são redefinidas relações de poder e revisados discursos verbais e não verbais de tradição. Nesta posição, me aproximo da concepção de Canclini (2009) sobre a “interculturalidade”. Para o autor, no atual mundo globalizado a “interculturalidade” refere-se aos modos como indivíduos e coletivos se constituem em meio a intensas negociações e encontros. Esta noção, portanto, chama atenção para as diferenças e semelhanças que ordenam as dispersões e revisam as fronteiras culturais. Tal configuração atual exige que visualizemos as transformações culturais a partir do seu contato com novas relações sociais e simbólicas. Por fim, conjuntura reafirma uma realidade intercultural ao enfatizar a existência de um processo de hibridização entre variadas culturas, no qual o corpo percebe e reage. Diferente do modo como sugere Lima (2010) e Carvalho (2004), a argumentação da “interculturalidade” ilustra o debate que teremos sobre o Maracatu em diáspora, pois falamos de um universo em constante movimento. Isso fica claro quando Clifford (1994) explica que as comunidades diaspóricas são sustentadas por conjunturas históricas híbridas que proporcionam uma variedade de experiências transnacionais e interculturais. Isto é, diáspora configura redes de pessoas dispersas pelo mundo que compartilham experiências históricas comuns de deslocamentos, adaptações e de alianças transnacionais. (GARCEZ, 2012, p.25)

Na

perspectiva

de

tal

autora,

sustentar

uma

argumentação

de

descaracterização do Maracatu a partir de sua expansão é desconsiderar as incertezas inerentes aos processos sociais, assim como admitir uma “noção mítica de um modelo original e estanque de Maracatu” (GARCEZ, 2012, P.27). Dessa maneira, a partir da ideia de linguagem em trânsito proposta em seu trabalho, Laís Garcez salienta a função de estímulo, de “mola propulsora” (GARCEZ, 2012, P.27) adquirida por essas ambiguidades e imprevisibilidades da vida, tanto de manter quanto de transformar a cultura do Maracatu. A afro diáspora pela qual passa o Maracatu, de acordo com a autora em questão, vai além das relações com o exílio, os mitos e o desejo de retorno a uma terra natal ou a exclusão social no local de destino de determinados grupos ou indivíduos, referindo-se, igualmente, aos “movimentos de dispersões e fluxos que geram encontros interculturais” (GARCEZ, 2012, P.36). Como exemplos de tais

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fluxos, temos os deslocamentos de integrantes das nações para ministrarem oficinas e/ou apresentações, saindo de Recife e expandindo seus lugares pelo Brasil e pelo mundo. A partir desses fluxos componentes da diáspora atual do maracatu, ocorrem dispersões de signos , elementos, práticas e sujeitos que se relacionam com performances e imaginários históricos de matrizes africanas – como os cultos de Xangô e Jurema, a relação entre dança e toque, o improviso e a organização das performances a partir do jogo de pergunta e resposta dos cantos. Isso não quer dizer, no entanto, que isso se mantenha de forma pura, pelo contrário, está sempre em movimento (GARCEZ, 2012, p.36-37)

Nessa dispersão, o Maracatu se torna ainda mais polissêmico, em um “movimento entre o formato e a novidade” (GARCEZ, 2012, P.33), fazendo com que a ideia de autenticidade das nações de maracatu seja, ao mesmo tempo, relativizada devido as suas intensas relações com os grupos percussivos, e “sustentada como um argumento político e uma estratégia de reconhecimento” (GARCEZ, 2012, p.48). A atual fase de expansão vivida pelo maracatu engloba, também, modificações de caráter espacial. Consideremos o posicionamento desta mesma autora a esse respeito: a localidade “original” do Maracatu, nos seus movimentos (ou fluxos globais) é mais relacional e contextual do que espacial-geográfica - o que dá sustentação a perspectiva diaspórica e não à linear ou estática. Os sujeitos envolvidos nesses fluxos, que têm o Maracatu como ponto em comum, incorporam as diversas possibilidades de relações, simbolismos, geografias, histórias e trocas para imprimirem suas localidades e suas tradições em seus corpos (GARCEZ, 2012, p.70. Grifos no original.).

A partir da análise mais atenta do trecho acima, verificamos que a autora em questão relaciona a ideia de localidade primária ou “original” (GARCEZ, 2012) do Maracatu a uma característica “espacial-geográfica” (GARCEZ, 2012), em oposição aos movimentos e fluxos globais considerados pela mesma como uma marca da atual fase vivida pelo Maracatu, mais especificamente pelo Maracatu Nação Estrela Brilhante De Recife.

Ora, devemos ampliar duas visões bastante comuns nas

Ciências Sociais: a primeira delas diz respeito à pressuposição geralmente feita – tanto em termos econômicos quanto culturais-, entre espaço e fixidez ou inércia; a segunda se refere à utilização dos termos “local” ou “localidade” como sinônimos de “lugar”. Hoje, deve-se considerar a multiescalaridade (GOMES, 2006) presente nos processos econômicos e culturais, assim como se deve analisar o espaço geográfico, atentando para a fluidez característica do processo de globalização.

85

Dessa maneira, é crucial que consideremos o espaço geográfico, ou mesmo o lugar – humanisticamente falando- não como estáticos ou estanques, como a autora o fez, mas sim por uma perspectiva reticular, mais afinada ao atual contexto de globalização, caracterizado pela intensificação das trocas econômicas e culturais. Trocas as quais são, inclusive, basilares no trabalho desta mesma autora (GARCEZ, 2012). ROBERTSON

(1999)

argumenta

que

as

diversas

perspectivas

que

consideram uma superposição do processo de globalização em relação à localidade, geralmente neglicenciam “o grau com que aquilo que é chamado de local é, em grande parte, construído em bases translocal ou extralocal. Em outras palavras, a promoção da localidade é, na verdade, feito de cima ou de fora” (ROBERTSON, 1999, p.247). O referido autor amplia a noção japonesa de glocalização, inicialmente ligada apenas à ideia de diferenciação dos consumidores por meio da aquisição de “produtos e serviços de base global ou quase-global em escala local e para mercados específicos” (ROBERTSON, 1999, P.251), geralmente associada à possibilidade de expansão do chamado capital cultural do qual fala Bourdieu, a partir de certa “‘invenção’ das ‘tradições do consumidor’ (das quais o turismo, demonstradamente a maior ‘indústria’ do mundo contemporâneo, é, sem dúvida, o exemplo mais claro)” (ROBERTSON, 1999, p.251). Assim como este último autor, o qual acredita que “a diversidade vende” (ROBERTSON, 1999, p.251), HAESBAERT (2013) igualmente considera o interesse da globalização capitalista nesta diferenciação, pois “o capitalismo não sobrevive sem uma determinada ‘produção da diferença’” HAESBAERT, 2013, p.40), mas salienta que não é qualquer tipo de diferença a qual atrai consumidores. Expandindo os horizontes acerca da questão local-global, ROBERTSON (1999) não se prende à ideia de polaridade entre essas escalas, como se a localidade sempre funcionasse como um contraponto ao global, afirmando, inclusive, que “(...) não pode haver cosmopolitas sem que haja locais” (ROBERTSON, 1999, p.252). Neste sentido, o local torna-se apenas um aspecto do processo de globalização, passando a haver uma simultaneidade e uma interpenetração das escalas local e global (ROBERTSON, 1999). A esse respeito, HAESBAERT (2013) traz uma grande contribuição, quando ressalta que

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o próprio capital tem interesse na promoção (e recriação) da diferença, criando assim novos nichos de mercado. Por outro lado, muitas vezes a propalada homogeneização modernizadora gera seu contrário, uma espécie de retorno ou reatualização de valores ‘tradicionais’, como os de identidades étnico-nacionais e religiosas [...] A cultura ocidental hegemônica nunca se impõe unilateralmente, devendo sempre dialogar com as culturas e os valores locais (HAESBAERT, 2013, p.48).

ROBERTSON (1999) considera que o processo de globalização ocasionou uma “conexão de localidades” (ROBERTSON, 1999, p.260) e, inclusive, uma “‘invenção’ da localidade” (ROBERTSON, 1999, p.260), no sentido genérico de “invenção” da qual fala HOBSBAWM (2008). Desta forma, “a globalização envolveu a reconstrução, e de certo modo a produção, do ‘lar’, da ‘comunidade’ e da ‘localidade’ (...)” (ROBERTSON, 1999, p.253). Como afirma HAESBAERT (2013), a dimensão cultural da globalização não pode ser reduzida a um contraponto de duas faces: o sentido homogeneizador de uma cultura de raízes ocidentais que tenta se projetar globalmente e o sentido diferenciador de grupos culturais que resistem a esta cultura global padronizada. Isto porque não só a ‘globalização cultural’ não é uma via de mão única como os ‘localismos’ e ‘regionalismos’ culturais não podem ser considerados simplesmente como resistências à globalização. As relações podem ser muito mais híbridas do que parecem. A mescla inter ou mesmo transcultural é a tônica em várias regiões do mundo. Tanto a globalização impõe certos padrões culturais quanto se apropria e mesmo fortalece outros, ‘locais’, que, inclusive, podem assim também, pelo menos em parte, tornarem-se ‘globais’ [...] E vice-versa: as ‘resistências’ locais de algumas culturas podem almejar não simplesmente sobreviver enquanto tais mas se ampliar como ‘projetos alternativos’, também com pretensões globalizadoras [...] (HAESBAERT, 2013, p.37)

Nesse sentido, podemos afirmar que, no atual contexto de globalização, os enraizamentos continuam ocorrendo, mas não a partir de raízes fixas, e sim de rizomas, como propunham Deleuze e Guattari. Este pertencimento a uma nação ou grupo de maracatu está envolto em sensações corpóreas, eternizadas nas memórias coletiva e individual, não restrito a fronteiras intransponíveis. Desta forma, agora um grupo social ou indivíduo pode estabelecer vínculos identitários e/ou afetivos com variados espaços, criando, portanto, humanísticos e distintos lugares. Ao mesmo tempo, considerando a prática do maracatu por todos os grupos e nações mapeados pelo evento Encontros, ou seja, ponderando “quando o local torna-se globalizado” (CANCLINI, 2010), poderíamos pensar em uma “glocalização” (ROBERTSON, 1999) do maracatu? O Maracatu, hoje, se definiria por uma “glocalidade” (BENKO, 1990; CANCLINI, 2010)? Esses são questionamentos fundamentais para a compreensão da dinâmica atual deste folguedo, mas que serão

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respondidos em trabalhos futuros. Por enquanto, o foco desta pesquisa se encontra nas práticas, nas sensações, nos símbolos e significados, nos lugares do Rio Maracatu.

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3.

SÍMBOLOS E LUGARES DO RIO MARACATU NO CARNAVAL DE RUA DO RIO DE JANEIRO

“[...] Nesse dia o sol tava lascando e o maracatu continuava E eu dançava me esquentando E todo mundo que chegava ia cantando” (Batuque na Praia – Carlos Abreu ou Carlos Cachaça)

O presente capítulo trata, especificamente, da dinâmica do bloco Rio Maracatu,

de

seus

ensaios,

oficinas,

bem

como

das

permanências

e

ressignificações ocorridas, tendo como referência os símbolos do maracatu-nação pernambucano. Nesta trilha, serão abordados, igualmente, os lugares do Rio Maracatu na cidade do Rio de Janeiro a partir de uma perspectiva interna, construída por meio da experiência de campo e dos relatos de alguns integrantes do grupo. Lapa, Ipanema e comunidades se configuram enquanto lugares simbólicos da cidade, sendo apropriados pelo maracatu e influenciando a visibilidade deste folguedo.

3.1. Rio Maracatu entre a Lapa e orla carioca: a centralidade simbólica em jogo.

Um dos diversos grupos de maracatu surgidos no impulso da “cena pernambucana” Brasil afora, foi o bloco Rio Maracatu, fundado por músicos cariocas e pernambucanos, em 1997, na cidade do Rio de Janeiro. Atualmente, tal grupo não é o único a pesquisar e (re)inventar o maracatu de baque virado em terras cariocas, convivendo com o Bloco Maracutaia, o Bloco Tambores de Olokun, entre outros. Entretanto, nossa escolha se motivou pelo fato de ser o mais antigo grupo de maracatu no Rio de Janeiro, originando todos os demais que surgiram na cidade, assim como de ter sido o primeiro a praticar o maracatu de baque virado na Região

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Sudeste do Brasil24. Isto posto, nos preocuparemos apenas em compreender a dinâmica, os significados e os lugares do Rio Maracatu, deixando os demais grupos para possíveis futuras pesquisas. A experiência, a pesquisa e o aprendizado são bastante valorizados, sendo essencial a troca de conhecimento com os mestres de maracatu de Recife, como o mestre Walter França do Maracatu Nação Estrela Brilhante e o mestre Afonso Aguiar do Maracatu Nação Leão Coroado, pesquisado por SANTANA (2012). O Rio Maracatu realiza oficinas destinadas a jovens e adultos na Fundição Progresso, na Lapa, com a participação desses mestres referência para o universo do maracatu. Além do ensino das “origens, ritmos, danças e cantos do Maracatu de Baque Virado”25, as oficinas do Rio Maracatu também se dedicam a outras manifestações populares como o cavalo marinho, o samba, o coco e a ciranda. De acordo com Lúcia Lobato, “a festa tem uma lógica interna que a constitui e para compreendê-la é necessário o estado presencial. É preciso vivenciá-la, respirar o seu ambiente” (LOBATO, 2008, p.14). Nesse sentido, em nossa pesquisa, buscamos, a partir da observação participante, compreender como este grupo percussivo de Maracatu se diferencia dos maracatus-nação como KOLINSKI (2011) e SANTANA (2012) defendem, ou seja, em termos de símbolos, objetivos, identidade do grupo e da prática cultural em si. Considerando-se a subjetividade dos indivíduos envolvidos com a prática do maracatu, buscamos compreender como essa manifestação cultural contribui para a configuração de lugares na cidade do Rio de Janeiro, seja dentro da sede das oficinas ou apropriando-se da Praça dos Arcos, no bairro da Lapa, seja em parte da orla de Ipanema ou em algumas comunidades cariocas, em uma temporalidade própria. Os espaços públicos, na perspectiva de GOMES (2013) se configuram enquanto espaços de visibilidade. Entretanto, este mesmo autor salienta que “socialmente estabelecemos lugares onde essa visibilidade deve ser praticada, segundo complexas escalas de valores e significações” (GOMES, 2013, p.23), isto é, determinadas condições simbólicas podem influenciar na dimensão projetiva do que é exibido e observado. Na obra Espaço e Lugar, TUAN (1983) dedica um capítulo para abordar a importância da visibilidade na criação de lugares. Na perspectiva deste autor, a

24

Informações obtidas a partir das entrevistas concedidas por Adriano Sampaio e Monique Pereira à autora desta pesquisa. 25 Informação disponível no site do grupo Rio Maracatu .

90

notoriedade visual é um atributo facilitador para a configuração de lugares, mas não é imprescindível, podendo existir lugares “altamente significantes para certos indivíduos e grupos” (TUAN, 1983, p.180) com pouca expressividade cênica. Nesta seara, vale acrescentar, o simbolismo desses lugares apropriados pode estar associado tanto à “singularidade locacional” quanto “à força de sentimentos criados em razão da afirmação do status de um grupo social ou da identidade étnica ou religiosa” (CORRÊA, 2008). O mesmo autor diferencia dois tipos de lugares simbólicos: os lugares da retórica e os lugares vernaculares. Os primeiros seriam espaços públicos onde há manifestações para celebrar a memória oficial, enquanto os últimos são espaços nos quais se realizam manifestações culturais que cultivam a memória popular. Neste balanço, o Rio maracatu configura lugares vernaculares, mesmo ao se apossar de parte de lugares de alta renda como Ipanema, pois representa uma prática cultural ligada à memória popular.

3.1.1. Ensaios / preparativos para o cortejo de Carnaval

A corporeidade é de extrema importância na configuração de lugares, podendo ser estudada geograficamente. Os ensaios do Rio Maracatu, nesse sentido, constituem-se em uma etapa de consciência, preparação e treino intensivo dos corpos. Nesta direção, CHAVEIRO (2012), um dos geógrafos que pensou a relação entre corpo-lugar, ampliou as possibilidades de estudar tal relação a partir de diferentes matrizes teórico-filosóficas, tendo como pauta o paradigma socioespacial e se remetendo a autores como Milton Santos, David Harvey, Sartre e MerleauPonty no intuito de evidenciar a importância do corpo e da corporeidade enquanto concretude e sensibilidade, assim como possibilidade de transformação no âmbito de uma sociedade global repleta, inclusive, de estratégias de mercantilização do corpo. Além disso, o autor reforça a relação intrínseca entre a experiência corpórea e o espaço e seus componentes, sendo o espaço “[...] a categoria de mediação na relação de experiência do corpo com o mundo por intermédio daquilo que é possível, portanto vivenciável e experenciável: o lugar” (CHAVEIRO, 2012, p.250). Em sua concepção, os lugares, assim como os corpos teriam sua essência no devir, visto

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que “não há vida humana sem fluxo, movimento, relações” (CHAVEIRO, 2012, p.251). O corpo é considerado, simultaneamente, singular e universal; representando um instrumento de contato do sujeito social com o mundo durante todas as fases da vida e, transformando-se, portanto, em um arquivo de lugares, uma “memóriaarquivo” (CHAVEIRO, 2012, p.253), ou melhor, um “arquivo-vivo-memória” (CHAVEIRO, 2012, p.253). Para Célia Gomes, “o corpo comunica por meio de uma linguagem

simbólica

e

subjetiva

os

saberes

e

experiências

transmitidas

simbolicamente” (GOMES, 2008, p.49) através do tempo. Nesse sentido, “qualquer corporeidade, assim, é, ao mesmo tempo, dispositivo da ação e testemunho de vivências” (CHAVEIRO, 2012, p.253). Baseado no existencialismo de Sartre, este autor afirma que “o homem existe com seu corpo” (CHAVEIRO, 2012, p.262), ou seja, é através dele que se lança nos lugares e os vivencia; simultaneamente, “ao agir sobre o mundo, o homem age sobre si mesmo” (CHAVEIRO, 2012, p.263), sendo o corpo “ [...] esse presente contínuo que vibra e vive, apalpa o mundo para ser e é entrelaçado aos lugares” (CHAVEIRO, 2012, p.263). Lembrando que toda sociedade existe em um espaço e vice-versa, CHAVEIRO (2012) alega que as corporeidades se apropriam do lugar e, ao mesmo tempo, são condicionadas por eles.

3.1.2. As oficinas do Rio Maracatu

As oficinas de dança do Rio Maracatu (ODRM) ocorrem na sala “Atmosfera”, na Fundição Progresso, nas terças e quintas, das 19 horas às 20 horas e 30 minutos, e são ministradas pelas professoras Aline Valentim e Isabela de Castro. Antes do início de todas as aulas é realizado, além do alongamento, um trabalho de equilíbrio, respiração e consciência corporal. Como a rotatividade das alunas é grande, há uma preocupação por parte dos professores em preparar os alunos novos em termos de movimentos, gestos e posturas para que se empoderem do espírito e da proposta do maracatu e apresentem-se de maneira uniforme durante o cortejo carnavalesco.

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Já as oficinas de percussão ocorrem no espaço Arena da Fundição Progresso, às segundas e terças-feiras sempre no horário de 19h às 20h30 para ao batuqueiros iniciantes e de 20h30 às 22h para aqueles que se encontram em nível mais avançado. É primordial pensarmos no fato de um bloco carnavalesco exigir um preparo para que, de fato, possa se apropriar das ruas durante o Carnaval. Além dos ensaios ao longo do ano e dedicação de cada integrante, também é necessária a resolução de eventuais problemas financeiros e/ou logísticos. No carnaval de 2015, uma das inquietações do grupo foi como custear os cortejos do bloco após o corte do patrocínio por parte da Ambev, que custeava o grupo desde seu primeiro carnaval, cobrindo os gastos com aluguel do carro de som, entre outros. Da mesma maneira, foi necessária a criação de uma estratégia alternativa de arrecadação, como a rifa de um xequerê/agbê (Foto 5) por dez reais, para a vinda do Mestre Maurício Soares, no rito da inversão carnavalesca, baiana rica do Maracatu Nação Estrela Brilhante, para desfilar com o Rio Maracatu em 2015. Podemos afirmar que o Rio Maracatu e seus integrantes resistem a partir de dois vieses. O primeiro deles se refere à criação de uma estrutura alternativa de arrecadação de fundos, através da realização de festas, como a ocorrida no dia trinta de Janeiro na sede do Cordão do Bola Preta, na Lapa, contando também com a presença do bloco carnavalesco Orquestra Voadora. Os professores da ODRM incentivaram bastante as catitas durante as aulas para que, além de comparecerem, divulgassem para o máximo possível de pessoas.

Muito embora o Rio Maracatu

não tenha vínculos diretos com o candomblé ou o catolicismo, a resistência do grupo também se relaciona com a sua existência há dezoito anos, em um contexto de intolerância religiosa, notadamente com respeito aos cultos de matriz africana. Para a saída do bloco durante o carnaval, é necessária uma preparação dos corpos não somente em relação aos movimentos da dança, mas às vestimentas, como as saias de maracatu e as blusas de catita criadas especialmente para a arrecadação de fundos para a ODRM. A roupa de catita é de responsabilidade de cada integrante da oficina, sendo um requisito para participar do cortejo carnavalesco. Durante os ensaios, também foi ressaltada, tanto nas oficinas de dança quanto nas de percussão, a importância da união entre canto, baque e dança, assim como dos silêncios para a percussão e para os passos a serem criados. Um

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exemplo disto é o gestual utilizado na dança durante a toada “Princesa dos Orixás”, de autoria de Shacon Viana, mestre da Nação Porto Rico. Nesta toada, se canta “meu baque é lento/ vem das ondas do mar/ vou levar flores pra minha mãe Iemanjá/ toque elujá pra Xangô/ toque ijexá pra Oxalá/ Oxum é deusa do ouro/ Princesa dos Orixás”. Assim como as catitas realizam gestuais associados aos orixás Xangô, Oxalá (Foto 1) e Oxum quando a toada os menciona, os batuqueiros alternam o ritmo da percussão, acompanhando os comandos da música “toque elujá” e “toque ijexá”. Como afirma SANTANA (2012), Incorporar o sentido do que seja nação de maracatu é sentir o som, a dança e as toadas, é tocar, dançar e cantar em conjunto. Essas condições somente são alcançadas com o tempo e com a compreensão de seus significados históricos e religiosos (SANTANA, 2012, p.86) Foto 1 – Aluna da ODRM dançando ijexá, durante o Ensaio Geral do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Durante o Ensaio Geral do Rio Maracatu, realizado no dia dez de Fevereiro, houve dois momentos para o grupo da dança. O primeiro deles ocorreu na sala Atmosfera da Fundição Progresso. Inicialmente, as catitas fizeram um círculo e deram as mãos, e ao fecharem os olhos, a professora Aline falou por alguns minutos sobre o significado histórico do Maracatu, alertando para que cada uma o buscasse

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e, ao mesmo tempo em que se divertisse, se conectasse com a ancestralidade e a força que o maracatu emana. Em seguida, a professora pediu licença à Nação que representa (Estrela Brilhante) e aos orixás – principalmente a Exú, o qual se relaciona com a rua, a abertura de caminhos - para que tudo corresse bem durante o cortejo carnavalesco. É importante lembrar que, dentro da chamada tradição oral, “quase em toda parte, a palavra tem um poder misterioso, pois palavras criam coisas” (VANSINA, 2013). O segundo momento aconteceu no espaço Arena da Fundição Progresso, onde se situa o palco. Este ensaio geral contou com equipe de foto e filmagem, sendo os registros realizados por Sérgio Feijó. Quando as catitas chegaram, os batuqueiros já ensaiavam e o diretor Leo Araripe reforçava aos alunos o papel da simultaneidade entre o canto das toadas e o toque dos instrumentos. Formaram-se duas fileiras de catitas protegendo a corte, já experimentando um arranjo semelhante ao do cortejo carnavalesco, mas dançando ao redor da percussão. Após uma hora e meia de ensaio, a professora Aline Valentim nos reuniu em roda (Foto 2) e incentivou novamente todas as catitas para o desfile da terça de carnaval. Foto 2 – Reunião de catitas ao fim do Ensaio Geral do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Em ambas as oficinas, verificamos a ocorrência de algo bastante presente na cultura popular tradicional: “a aprendizagem se faz por meio da convivência, da observação e imitação, fortalecida pela identificação que as pessoas têm com as

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manifestações das quais fazem parte” (CARNEIRO, 2008, p.40). Mesmo quem estava há poucas semanas no grupo, mediante a observação dos professores e a tentativa de imitação de seus movimentos, somado à conexão com a história e a cultura do maracatu, assimilava e desenvolvia os conhecimentos transmitidos. De fato, as informações comunicadas entre os indivíduos para que uma cultura se constitua, se transmitem pela observação e imitação, pela palavra ou pela escrita. Os instrumentos têm, assim, um papel importante nesse domínio: eles foram concebidos para guiar os gestos e tirar partido dos ritmos naturais do corpo, de modo que se adquire ao manipulá-los, o know how daqueles que os conceberam (CLAVAL, 2006, p.94-95).

Neste ponto, é possível estabelecer uma relação entre a perda da sacralidade da alfaia (SANTANA, 2012) no maracatu e a concomitante importância adquirida por esse instrumento para o diálogo com o passado, com o considerado tradicional. HOBSBAWM (1997) estabelece duas diferenciações importantes em seu estudo sobre a invenção das tradições. A primeira diz respeito à distinção entre a tradição e o costume, sendo a tradição caracterizada pela invariabilidade – mesmo quando inventada. Já o costume abre-se às inovações, inclusive quando pertencente a uma sociedade considerada “tradicional”. A segunda diferenciação refere-se à oposição entre tradição, a qual possui uma função simbólica importante e imutável, e o que o pensador denomina de rotina ou convenção, sem função simbólica ou ritual, podendo ser adquirida, ocasionalmente, por meio da repetição pragmática (HOBSBAWM, 1997). Considerando-se os ensaios do Rio Maracatu - durante os quais o aprendizado da percussão ocorre principalmente pela repetição intensa dos movimentos -, poderíamos dizer, então, que o tambor de maracatu se insere apenas no que HOBSBAWM (1997) denomina rotina? Ou mesmo com novos significados continuaria constituindo a tradição dos batuqueiros de maracatu? Da dinâmica dos ensaios, passemos para a festa carnavalesca.

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3.2. O cortejo carnavalesco do Rio Maracatu e a apropriação simbólica da orla de Ipanema.

Com toponímia indígena, a Vila Ypanema foi preparada para integrar a parte nobre da sofisticada Zona Sul do Rio de Janeiro. Como acentuado pelo geógrafo Maurício Abreu (2008), já em 1911 existiam ruas pavimentadas e iluminadas em meio ao areal, enquanto os subúrbios estavam à míngua sem calçamento e outros melhoramentos urbanos. Tempos depois, no balanço da bossa de Tom & Vinícius e a garota de Ipanema “...cheia de graça...”, o bairro ganha projeção nacional e internacional, tornando-se um dos principais points da urbe carioca. Nesses e em outros compassos e batidas diferentes, o maracatu, como há vários anos, desfila, exultante, a sua arte na principal artéria do bairro, a oceânica Avenida Vieira Souto, no carnaval de 2015. De acordo com o geógrafo humanista Yi- Fu Tuan, “durante o último século, as praias tornaram-se muito populares, mas, saúde e prazer, que não são produtos do mar, foram as maiores atrações” (TUAN,2012, p.165). A maioria dos integrantes do Rio Maracatu entrevistados durante a presente pesquisa demonstrou contentamento em desfilar na orla de Ipanema. Essa afeição pelas praias, ainda na perspectiva de TUAN (2012) deve-se, primeiramente, à forma das orlas marinhas, pois “por um lado, as reentrâncias das praias (...) sugerem segurança; por outro lado, o horizonte aberto para o mar sugere aventura” (TUAN, 2012, p.163). A respeito do simbolismo das praias cariocas no imaginário social da cidade, GOMES (2013) afirma: “Em torno das praias da Zona Sul, foram construídas imagens associadas a um hedonismo moderno, um estilo confortável e uma convivência prazerosa e pacífica” (GOMES, 2013, p.253). Na perspectiva deste mesmo autor, as praias da Zona Sul reconstroem relações socioespaciais urbanas, pois “grupos afastados podem, na praia, encontrar-se em vizinhança” (GOMES, 2013, p.253), configurando-se, dessa maneira, em espaço público, espaço da copresença e da visibilidade. O tão esperado cortejo de carnaval do Rio Maracatu ocorreu no dia 17 de Fevereiro de 2015, na chamada terça-feira gorda do tríduo Momesco. Os integrantes se concentraram próximos ao Posto 8, a partir das oito horas da manhã, para finalizarem os detalhes de maquiagem da corte e das rainhas negras (Foto 3), assim

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como das catitas, as quais enfeitaram suas cabeças com coloridos turbantes de chitão, se abrilhantaram com purpurinas e se alongaram para as duas horas de apresentação e folguedos. Como festa, o carnaval do Rio Maracatu também possui determinadas regras, como a participação nas oficinas, a utilização de camisas do grupo – tanto para batuqueiros quanto para catitas e profissionais de apoio -, saias e turbantes de chita para embelezar as catirinas. Diante desse quadro, a desfilante e antropóloga Laís Garcez (2012) alega que “um corpo não é corpo a não ser na sua presença no mundo diante de outros corpos” (GARCEZ, 2012, p.18). Dessa maneira, como aponta Célia Gomes, em seu artigo Festas, Memórias e Representações (2008), na festa o curso da vida cotidiana dá lugar a uma experiência estética que enseja outras formas de representação social; o corpo se prepara com figurino e gestual apropriado, se metamorfoseando para construir cenas que denotam certa ruptura com o contexto do dia-a-dia (GOMES, 2008, p.45). Foto 3 – Últimos preparativos de maquiagem das Rainhas Negras.

Fonte: Coletivo Baobá, 2015.

A concentração, também, foi o momento para os batuqueiros afinarem seus instrumentos e organizá-los na Avenida, assim como ocorreu no ensaio geral na semana anterior (Foto 4), com três fileiras de alfaias, sendo uma ao centro – e duas fileiras de caixas e ganzás.

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Foto 4 – Disposição dos instrumentos percussivos no ensaio geral do Rio Maracatu na Fundição Progresso.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Os xequerês (agbês) vão à frente nos ensaios (Foto 5) e, nos desfiles, ousam se misturar aos demais participantes da bateria. Ou seja, há uma localização espacial específica para cada instrumento percussivo. Nesta trilha, o agogô, tradicionalmente tido como “licença” em yorubá, assomando à frente nos cortejos do Maracatu Nação Leão Coroado, por exemplo, no Rio Maracatu, isto não ocorre, estando sua ressonância postada e se mesclando com a ala dos batuqueiros. Para Adriano Sampaio, um dos professores de percussão do grupo, cada bateria de maracatu se organiza de maneira única, carregando consigo características reconhecíveis por quem a escuta. Assim como as baterias das escolas de samba cariocas desenvolvem seu “estilo”, suas “paradas”, os batuqueiros de maracatu de cada nação e de cada grupo possuem igualmente seus próprios padrões de toques percussivos, de baques. No Rio Maracatu, os alunos de percussão aprendem os baques característicos de diversas nações de maracatu, ainda mais aprimorados quando da vinda de mestres de percussão diretamente de Recife para a realização de oficinas com o grupo percussivo carioca.

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Foto 5 – Aluna da Oficina de Percussão tocando xequerê/agbê no Ensaio Geral do Rio Maracatu, em Fevereiro de 2015.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Assim como os batuqueiros se agrupam e “marcam sonoramente o seu caminhar” (CARNEIRO, 2008, p.39), a corte, as rainhas negras, as baianas e as catirinas também o fazem. Alinhadas em duas grandes fileiras as quais servem de fronteira entre o público e a corte, as rainhas negras e as baianas ricas, as catirinas possuem a função de proteger esses integrantes a partir de seus movimentos de braços e de seus giros (Foto 6).

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Foto 6 – Fileira de catirinas margeando o cortejo e protegendo as baianas ricas

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

A participação das rainhas negras (Foto 7) foi idealizada pela professora Aline Valentim, com o propósito de ampliar a representatividade e o protagonismo do negro em uma manifestação cultural de forte influência de sua cultura. Algumas são membros de grupos ligados aos empoderamentos feminino e negro, como o Grupo Cultural Balé das Yabás, o Panteras Negras (homenageando o movimento estadunidense) e o Coletivo Rainhas Negras. Com vestimentas e acessórios com inspiração na moda afro, destacavam-se por constituírem uma ala formadas apenas por mulheres negras, em meio às catitas, majoritariamente brancas. Foto 7 – Rainhas negras dançando durante o cortejo.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

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Uma das rainhas negras desfilantes, Vall Neves, inclusive, desfila há alguns anos com o Rio Maracatu, representando o orixá Iansã, geralmente simbolizada pelas cores vermelho e amarelo (Foto 8). Foto 8 – Vall Neves, representando Iansã, durante cortejo carnavalesco do Rio Maracatu em 2015.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Recorrendo novamente às palavras de Célia Gomes (2008), as pessoas evidenciam no seu gestual, nos cânticos, nos rituais coletivos, os elementos que simbolizam sua cultura e sua visão de mundo. A vivência do corpo é a vivência de impulsos, sentimentos, movimentos, memória, que corporificada explicita os interstícios e as simbologias da trama coletiva: Podemos conceber que todas as formas de representar o corpo, para nós e sob o olhar do Outro, traduzem nossa maneira de ser no mundo, como se o corpo não fosse nada sem o sujeito que o habita (GOMES, 2008, p.49).

Na perspectiva desta mesma autora, as festas podem ser consideradas como “ritos espetaculares”, pois nelas “os participantes e os espectadores participam ativamente da produção do evento” (GOMES, 2008, p.50). A festa, para FERNANDES (2001) se diferencia do jogo justamente por ter “como condição

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necessária, um público espectador” (FERNANDES, 2001, p.3). No cortejo do Rio Maracatu em Ipanema, fazem parte do espetáculo tanto os integrantes, quanto o público da orla, dos quiosques e das janelas e coberturas dos apartamentos luxuosos localizados na Avenida Vieira Souto. Foto 9 – Dama do leque e baiana fazendo o movimento inspirado em Oxum.

Fonte: Sérgio Feijó.

Podemos, aqui, guardadas as devidas proporções, traçar um paralelo com a descrição de Célida Mendonça sobre a festa de Senhor do Bonfim, na Bahia, afirmando haver “durante o trajeto, muita adrenalina, água e suor” (MENDONÇA, 2008, p.54), e que chegando à Colina Sagrada, momento clímax da festa, ainda assim “ninguém revela sua fadiga, talvez porque estejam todos anestesiados” (MENDONÇA, 2008, p.55). De fato, no cortejo carnavalesco do Rio Maracatu, o clímax ocorre quando os integrantes avistam o Posto 9 da Orla de Ipanema, após duas horas de sol forte, batucadas e giros, aliviados pela grande ingestão de água mineral - distribuída durante o desfile pela equipe de apoio - e pela satisfação em participar do espetáculo, pela sensação de dever cumprido (Foto 10).

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Foto 10 – Equipe da dança ao fim do cortejo carnavalesco do Rio Maracatu, com a ilustre presença do Mestre Maurício Soares, ao centro da foto.

Foto: Luísa Aguiar, 2015.

Observamos na pesquisa de campo durante o cortejo de Carnaval do Rio Maracatu que, apesar de o grupo manter “a alegria e as cores dos maracatus”26 e de realizar por onde passa “um espetáculo repleto de simbologias e marcado pela riqueza estética e pela musicalidade”27, alguns símbolos associados ao maracatunação se mantiveram e outros sofreram uma (re)ssignificação. Como exemplo da primeira situação, podemos citar os personagens da rainha e do escravo, responsável por abrigá-la com o pálio (Foto 11).

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A Fundação Cultural Palmares é vinculada ao Ministério da Cultura e foi a primeira instituição pública criada no intuito de promover e preservar a cultura afro-brasileira, entre as quais se encontra o maracatu. Disponível em: . 27

Op.cit.

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Foto 11 – A rainha, o rei e o escravo, parte da corte do Rio Maracatu em 2015.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Na galeria de exemplos de símbolos os quais foram (re)ssignificados pelo grupo Rio Maracatu estão o Rei e a Dama do Paço, que não necessariamente precisam ser negros. Na realidade, há uma alternância em relação aos integrantes que desfilam estes personagens, muito envolvida com a disponibilidade daqueles nos dias e horários dos cortejos e arrastões. Ou seja, os personagens de rei, damado-paço e escravo não são sempre interpretados pelos mesmos membros do Rio Maracatu. Igualmente, neste nicho, figuram as catitas, as quais não precisam ter um vínculo obrigatório com o candomblé, assim como a calunga, carregada pela Dama do Paço (Foto 12).

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Foto 12 – A Dama do Paço e professora da ODRM Isabela, com a calunga do Rio Maracatu, dançando na orla de Ipanema.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

A calunga, nos maracatus-nação de Pernambuco, considerada sagrada, possui “poderes e funções para a prática do culto afrorreligioso” (SANTANA, 2012, p.65), representando os eguns, espíritos dos antepassados africanos que permaneceram após a morte. Portanto, a calunga pode ser carregada somente por uma pessoa preparada para tal ação. No cortejo de Carnaval do Rio Maracatu, a calunga que vai à frente do bloco foi tocada por diversas dançarinas no momento de concentração, mas não como um gesto de proteção, pois foram tiradas diversas fotos com a boneca, em clima de descontração (Foto 13). Neste universo, SANTANA frisa: “não é qualquer pessoa, em qualquer lugar, que pode brincar com a boneca, embora o maracatu tornado entretenimento possa banalizá-la” (SANTANA, 2012, p.65).

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Foto 13 – Catirinas posam com calunga na concentração do Bloco Rio Maracatu.

Fonte: Yeda Zotz, 2015.

Em prosseguimento, e especificamente ao final do cortejo, no Rio de Janeiro, o grupo realizou um show, na própria Avenida Vieira Souto, em Ipanema, sem a presença de todos os integrantes, pois muitos destes se dispersaram no intervalo. Durante a apresentação, pós interregno, as catitas se voltaram em direção ao mar, de costas para os prédios, e dançaram para o público que ali permaneceu, em um clima de bastante alegria e empatia, apesar do cansaço físico. No início do mês de abril deste ano, o vídeo oficial28 do cortejo carnavalesco do grupo foi publicado no perfil RioMaracatuOficial, no portal Youtube. Além de ser um importante registro no intuito de preservar a história do grupo no ano em que completa dezoito anos, tal publicação favorece a divulgação do trabalho realizado pelas equipes de percussão e de dança. Ademais, o vídeo serviu, também, para realizar um agradecimento a todos os indivíduos e grupos que auxiliaram o Rio Maracatu para que o desfile de 2015, mesmo sem o patrocínio da Ambev, ocorresse. Ao final do vídeo, surge a seguinte mensagem: “Gostaríamos de agradecer a todas nações de Maracatu de Pernambuco...Afinal, sem eles nada disso aqui existiria. Agradecemos especialmente a todos os nossos apoiadores..Ao mestre Maurício Soares, 28

O vídeo, intitulado “Rio Maracatu carnaval 2015 - 18 anos de maracatu no Rio”, compartilhado no Youtube pelo perfil RioMaracatuOficial, encontra-se disponível em: .

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baiana rica da nação Maracatu Estrela Brilhante do Recife e a todos da família do Rio Maracatu. Sem vocês nada seria possível também.”

Dessa maneira, podemos afirmar que o Rio Maracatu, desfilando na orla de Ipanema suas cores, personagens e movimentos ressignificados, semiografa o espaço. E, ao entoar as loas das principais nações pernambucanas de maracatu de baque virado, se fortalece enquanto grupo, criando seu itinerário simbólico e, igualmente, seus lugares, como retratamos no mapa abaixo: Mapa 5 – Itinerário simbólico do bloco Rio Maracatu durante o Carnaval.

Fonte: A autora e Evelyn Meirellles (LAGEPRO – Uerj), 2015.

3.3. Lapa: um simbólico e centenário lugar do Rio de Janeiro.

A Lapa, tradicionalmente, tem sido um ponto do Rio de Janeiro de expressiva vocação cultural e bem querência. Isto pode ser evidenciado quando se lembra do Aqueduto inaugurado nos idos de 1750, servindo para transportar água e emoldurando o bairro, pleno de mangues, morros, lagoas e planícies retificados pela ação humana. No século XIX, seus clubes já despontavam com vigor nas Grandes

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Sociedades como o persistente Clube dos Democráticos. Mais do que isso: em 1855, como aponta FERREIRA (2005), o bairro já figurava nos roteiros dos cortejos de clubes e sociedades carnavalescas da elite carioca. Consideremos, pois, na “rolança do tempo”, como no título do livro de um dos seus mais ilustres moradores, o escritor, ator e compositor Mário Lago, o Rio Maracatu se esbaldando sob os Arcos da Lapa, neste início de milênio. No entanto, é preciso um introito para a compreensão da geografia deste bairro/centro de lazer e entretenimento da área periférica do Centro do Rio de Janeiro. A noção de bairro não é fixa, variando de acordo com “o tipo e a intensidade da experiência” espacial de seus moradores e de seus frequentadores (TUAN, 2012, p.295). Para este geógrafo humanista, o bairro é “o distrito no qual nos sentimos em casa” (TUAN, 2012, p.296. Grifo no original), ou aquele que “conhece razoavelmente bem, quer pela experiência ou pela fama” (TUAN, 2012, p.296). MELLO (2012) afirma que o lugar não pode ser apreendido ou delimitado a partir de unidades de medida, mas sim através de sua conectividade, ou seja, o que o destaca e o singulariza é a sua importância enquanto centro simbólico. O bairro da Lapa, desde o início do século XX, tornou-se emblemático em relação à cultura e funcionou como lugar de encontro de músicos e artistas em geral, além de muitos intelectuais da cultura brasileira, recebendo até mesmo a nobre presença do Rei Alberto da Bélgica, em 1929. Isto posto, a música esteve presente nas práticas espaciais e persiste na memória coletiva (HALBWACHS, 2013) sobre a Lapa há cerca de um século. A partir do século passado, a memória simbólica do lugar - envolvendo sua aura e sua gente – se consolidou e se propagou através da literatura, da música, principalmente, mas também se (re)produziu mediante outros meios de expressão e comunicação, afora a mitológica malandragem, uma das suas marcas. Muito dessa memória sobre a Lapa permanece até hoje, em meio a sua (re)invenção. Nestes termos, pode-se afirmar: há uma política locacional orquestrada por quem concebeu as formas simbólicas, fazendo com que estas e os lugares simbólicos se influenciem mutuamente (CORRÊA, 2012) de maneira positiva. A respeito do aspecto “construção dos lugares”, entendido como “uma estratégia básica para conter a uniformidade da expansão de lugares-sem-lugaridade, proteger ou recuperar patrimônios e para fazer agradáveis ambientes construídos (RELPH, 2012, p.26), o autor complexifica o debate acerca do lugar, afirmando que

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“diferentes lugares só podem ser feitos por quem vive e trabalha neles” (RELPH, 2012, p.26). Isto significa que o lugar provém do espaço vivido e não do espaço concebido de planejadores e arquitetos, enclausurados em seus gabinetes no afã de ditar o design, a fisionomia, os contornos e as práticas dos/nos lugares vividos por toda gente. Na perspectiva do autor, estes profissionais “não podem fazer lugar, mas se forem sensíveis às condições locais, podem prover de infraestrutura e construir ambientes que facilitem a criação de lugares por aqueles que vivem neles” (RELPH, 2012, p.26). Já o aspecto “fabricação de lugar” relaciona-se à mercantilização da identidade do lugar e da diferença, geralmente manipuladas ou mesmo inventadas no intuito de expandir os lucros de empresas e políticos a partir de investimentos e dos fluxos turísticos. RELPH (2012) salienta que “identidades de lugar podem ser baseadas em uma vaga ligação histórica ou fictícia” (RELPH, 2012, p.26), em uma tradição inventada nos termos de HOBSBAWM (2008). De fato, “a história é construída por determinado grupo a fim de evitar a ‘erosão permanente da mudança’” (DUVIGNAUD, 2013, p.14); deste modo, mesmo inseridos no fluxo pósmoderno de investimentos voltados à renovação urbana, alguns lugares simbólicos recebem diversos projetos cujo intuito é a preservação da identidade e da cultura locais, como é o caso da Lapa. Na perspectiva de RELPH (2012), o interesse contemporâneo no “lugar” também se deve ao aumento das preocupações com a preservação do patrimônio, principalmente na Europa e na América do Norte (RELPH, 2012, p.20). Ademais, os estudos sobre o lugar se expandiram academicamente por volta dos anos de 1990, quando “lugar” passa a ser “fonte e expressão da diferença” (RELPH, 2012, p.20). A partir de então, inclusive disciplinas que contribuíram para a “perda da diversidade e das identidades geográficas” através de demolições de bairros e edifícios antigos, como a Arquitetura e o Planejamento Urbano, passaram a se dedicar às tradições e às identidades dos lugares (RELPH, 2012, p.21). Segundo POLLICE (2005), em texto traduzido por OLIVEIRA, CRIONI e OLIVEIRA (2010), a identidade, considerada como fenômeno processual, dinâmico e interativo, pode atuar como sujeito e objeto de processos de inovação em escala local. A manutenção da identidade do grupo se reforça através da iconografia, constituída pelo “conjunto de símbolos abstratos” (Gottman apud POLLICE, 2005, p.14). O autor realça, ainda, que mesmo havendo uma “manipulação dos valores

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identitários” imposta por outsiders, é a percepção do grupo enquanto específico, único, que gera o compartilhamento de valores ou a coesão social; ou seja, tudo depende de como o próprio grupo se vê. A Lapa, atualmente, é um bairro carioca metamorfoseado a partir da implementação de diversas políticas públicas ligadas à cultura e ao turismo as quais, desde a década de 1980, adentram no âmbito de uma tendência global a um novo modo de ver e gerir as cidades, denominada “empreendedorismo urbano” (HARVEY, 2006). Tal forma de gestão urbana transforma a cidade em mercadoria a partir do que TUAN (2012) denomina “promocionismo”, quando se cria uma imagem da cidade para se atraírem investimentos externos. A valorização de um bairro pode decorrer de uma “consciência de vizinhança” – tendo a rua um papel importante para a existência desse sentimento-, da atribuição de valores econômicos, estéticos e sentimentais (TUAN, 2012, p.294). A Lapa se insere no bojo de tal perspectiva, na medida em que os jovens ocupam suas ruas, notadamente à noite e de madrugada, contribuindo para sua pulsação e efervescência. O recente ciclo de prosperidade no bairro baseia-se, principalmente, em sua forte tradição cultural e na (re)apropriação de símbolos associados à vida noturna do mesmo (ARAUJO, 2009; HERSCHMANN, 2007; GUTERMAN, 2012) como o malandro e a ideia de boemia, ambos remetendo a uma Lapa das décadas de 1920 e 1930, resultando em uma “toporreabilitação” (TUAN, 2012). No entanto, essa exaltação de tradições passadas não é experimentada da mesma maneira por todos que vivenciam a Lapa, pois o modelo de renovação traz consigo a questão do consumo cultural (GUTERMAN, 2012). Tais (re)invenções de tradições não são introjetadas por todos os segmentos, indivíduos e grupos sociais. Pode-se afirmar, portanto, que a memória exaltada se relaciona à produção do espaço urbano na Lapa, na medida em que apropriada pelos “fabricadores do lugar” (RELPH, 2012), como o Estado e os empresários, contribui para a venda dos lugares. Na realidade, como afirma HERSCHMANN (2007) “as representações do passado são utilizadas para legitimar o status atual do bairro” (HERSCHMANN, 2007, p.35). O passado, para ABREU (1998), se mantém “vivo na cultura e no cotidiano dos lugares” (ABREU, 1998, p. 79) e por este motivo pode se apresentar enquanto um diferencial, fornecendo um status positivo no uso renovado dos lugares. Tal

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autor, a respeito da influência do processo de globalização nos lugares, afirma: “a tendência à abolição do lugar enquanto singularidade reforça justamente a busca desta última” (ABREU, 1998, p.79), sendo o passado essencial para a construção dessa peculiaridade urbana. Nesse sentido, reiteramos a perspectiva do autor na medida em que a guerra dos lugares, hoje, ao mesmo tempo procura inseri-los nas redes globais e almeja manter ou reinventar suas singularidades, muito comumente fortalecendo seus aspectos culturais. Como afirma ROBERTSON (1999), “[...] nós parecemos viver em um mundo no

qual

as

expectativas

de

singularidade

se

tornaram

crescentemente

institucionalizadas e globalmente difundidas” (ROBERTSON, 1999, p.250). Assim sendo, essa “busca da identidade dos lugares, tão alardeada nos dias de hoje, tem sido fundamentalmente uma busca de raízes, uma busca de passado” (ABREU, 1998, p.79). A Lapa, nesse sentido, foi forjada através do empreendedorismo de vários indivíduos, grupos sociais e o Poder Público. Com efeito, aproveitando as elucubrações de MELLO29, recorrendo a BUTTIMER, 1985; ABREU, 2008; CORRÊA,1999; e MELLO, 2002 , o malandro da Lapa em sua magnitude e esplendor, não apenas contribuiu para organizar os espaços e os lugares do bairro mencionado, como ainda hoje, calcado na mitológica malandragem, o bairro sofre uma espécie de toporreabilitação (Tuan, 1980), referente às ações de resgate em busca de melhores dias, não restritos na exuberância de imponentes sobrados, emoldurados pelos famosos Arcos da Lapa (o aqueduto de 1750, refuncionalizado em 1896, como via para os bondes para o bairro de Santa Teresa). Na esteira desse passado fabuloso da malandragem, o centro de lazer em tela vive momentos de grande pulsar. Trata-se de uma das centralidades do Rio e o simbolismo da malandragem mostra que, no passado e mesmo no presente, o malandro continua organizando espaços do medo, da rejeição, como também lugares de expressivo vigor. Nestes termos, pode-se afirmar que o malandro integrante do “... sindicato dos inimigos do bactente...”, continua organizando espaços e lugares, como pode ser evidenciado nos ecos da velha Lapa de outrora ou no alarido da Lapa do presente.

Dessa maneira, podemos afirmar: a Lapa passou por uma renovação, isto é, por uma “toporreabilitação” nos termos de TUAN (2012), muito calcada no resgate simbólico de um passado pulsante mediante um processo de “promocionismo”. De acordo com este autor, “o promocionismo pretende criar uma imagem favorável e pouco respeita a complexidade da verdade. Mas a imagem, por ser eficaz, deve ter 29

Artigo inédito disponível em: http://neghario.wordpress.com/.

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algum fundamento nos fatos. Um traço forte representa a personalidade toda” (TUAN, 2012, p.281). Na verdade, a Lapa passou por diversas fases de declínio e ascensão. Atualmente, algumas formas contribuem para colocar a Lapa sob os refletores: o casario antigo, os sobrados de fachadas reformadas abrigando novas funções e os famosos Arcos podem ser considerados formas simbólicas (CORRÊA, 2012) do bairro, inserindo-o nos cartões postais da cidade do Rio de Janeiro. O geógrafo humanista Yi- Fu Tuan, a respeito das imagens urbanas favoráveis estampadas em cartões postais, afirma: os cartões postais retratam aspectos da cidade de modo que se acredita que deem créditos a ela. Ocasionalmente, uma cena típica de rua é mostrada, mas, na maioria das vezes, os cartões acentuam os pontos de interesse – as partes que captam a atenção, que têm muita imaginabilidade. Os cartões postais nos dizem algo sobre a imaginabilidade (TUAN, 2012, p.281-2).

Em trabalho anterior (LIMA, 2013), apontamos a relação do atual ciclo virtuoso pelo qual a Lapa passa com o consumo do lugar e da cultura local, vendidos principalmente pelas casas de show do bairro as quais mesclam tradição e modernidade, tanto em suas formas quanto em seus conteúdos. Diversas casas noturnas são decoradas, por exemplo, com imagens dos arcos da Lapa ou que fazem referência à malandragem, ao samba e à boemia, na tentativa de criar um ambiente adaptado às atuais demandas por tradições passadas (LIMA, 2013, p.31).

É o caso de estabelecimentos como o Carioca da Gema, o Lapa 40 graus, assim como o do secular Democráticos, entre outros. Dos espaços internos, passemos a circular nas vibrantes ruas do bairro. A apropriação das ruas da Lapa por meio de manifestações artísticas faz parte da vitalidade que fornece ao bairro esse caráter plural no que se refere às atividades culturais. Podemos afirmar que há uma mútua contribuição entre o espaço público e o espaço privado. As atividades culturais que ganham e agitam as ruas da Lapa se derramam para além do espaço público, influenciando a animação do bairro e, portanto, auxiliando bares e restaurantes a atraírem consumidores. Aqueles, por sua vez, configuram formas simbólicas do lugar, divulgadas por diversos meios de comunicação como parte da aura boêmia da Lapa e animando as ruas com os sons que transbordam de seu interior.

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O bairro da Lapa, como merece ser sempre mencionado e repetido, exerce forte influência na centralidade cultural da cidade do Rio de Janeiro. De acordo com MELLO30, tendo como guia o pensamento de TUAN (1980), no caso particular da centralidade existem eixos e áreas centrais que, aproveitando e combinando a reputação de outrora, continuam expondo as marcas do passado ainda que substituindo as suas prerrogativas e funções centrais de outros tempos. A memória recuperada sob a forma de centros culturais e cultuada em templos e edifícios de estimado valor histórico perfilam nessa toporreabilitação, constituindo um restauro de geografias pretéritas (MELLO, 2000)”

Ainda no mesmo trabalho, o autor enfatiza que a centralidade não apenas se refere a um ponto disponibilizando bens e serviços e, consequentemente, às interações dos lugares centrais e sua área de influência, mas também pode ser entendida a partir de uma abordagem etnocêntrica, isto é, podemos analisar a centralidade simbólica dos lugares através dos valores e do dinamismo do mundo vivido, base sobre a qual se estabelece uma diferenciação simbólica do espaço (BUTTIMER, 1985; CORRÊA, 2012). Neste particular, JACKSON (1989) denominou tal quadro de mapas de significados. Por “diferenciação simbólica” consideramos a qualidade e a pluralidade dos símbolos atribuídos a determinado lugar. De acordo com TUAN (2012), um símbolo urbano pode ser tanto uma “estrutura funcional” como uma “construção não utilitária” (TUAN, 2012, p.273). A Lapa, por exemplo, se diferencia simbolicamente de demais bairros cariocas pela ideia de malandragem, boemia, ritmos e pelos vistosos Arcos, além do descortinamento dos seus sobrados. Ao mesmo tempo, trata-se de um bairro que simboliza a cidade do Rio de Janeiro, inclusive internacionalmente. Nesse sentido, podemos afirmar que a densidade simbólica da Lapa contempla as marcas do passado, expressas em sua aura boêmia e em seus sobrados refuncionalizados, conhecidos além-mar, assim como seus bares e casas de shows como os seculares Democráticos, Capela e Bar Brasil. Ao lado dessas simbólicas centralidades, a Fundição Progresso, transformada em recinto gigantesco para feiras e boates, avizinha-se do Circo Voador e do restaurante/casa de shows Carioca da Gema, estes, igualmente, símbolos, por excelência, de grande afluência do bairro.

30

O artigo inédito “Rio dos símbolos” encontra-se disponível no site http://neghario.files.wordpress.com/2011/02/o-rio-dos-sc3admbolos.pdf, consultado em 28 de agosto de 2014 e 03, 08 e 10 de setembro de 2014.

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A partir de Debarbieux (1995), podemos pensar a relação homem-espaço por intermédio de componentes espaciais indispensáveis à ação humana. Esses componentes podem ser de dois tipos: uns se relacionam à materialidade do espaço; e outros se relacionam às significações culturais e sociais do lugar, a sua imaterialidade. Em relação ao nível estrutural/material, podemos considerar a necessidade de cada indivíduo tomar alguns objetos geográficos como referência para se orientar em um espaço como “os eixos estruturantes (rotas, grandes vias de comunicação)” e “as relações entre esses eixos (cruzamentos)” (Baily,1995, p.376), por exemplo. Já em relação ao nível cultural e social, Baily (1995) afirma que “todo lugar é carregado de múltiplas significações, por suas coordenadas [...], por seus limites (culturais, históricos, simbólicos...), por seus valores e, enfim, por suas propriedades simbólicas e/ou funcionais que lhe são atribuídas” (BAILY, 1995, p.377. Tradução da autora.). A Lapa, nesses termos, se coloca como um lugar de grande centralidade, pois é uma área de fácil acesso em relação a diversos outros bairros cariocas e a municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, pelo fato de os Arcos serem um ponto de referência para o deslocamento de veículos e transeuntes no bairro, assim como por sua carga simbólica. Torna-se importante considerar que essa centralidade simbólica também pode ser esporádica, no sentido de ocorrer apenas durante o período de ocorrência de determinada manifestação cultural que se apropria do lugar, como trataremos adiante em nosso painel pertinente ao desvelamento do grupo Rio Maracatu. Para fins de localização, elaboramos um mapa dos dois principais lugares do Rio Maracatu na Lapa, a Fundição Progresso, sede do grupo, e a Praça Cardeal Câmara, mais conhecida como Praça dos Arcos, grande símbolo espacial do bairro:

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Mapa 6 – Lugares do Rio Maracatu no bairro da Lapa (RJ).

Fonte: A autora e Evelyn Meirelles (LAGEPRO – Uerj), 2015.

3.3.1. Os cortejos na Lapa – Abertura do Carnaval e Festival Lapa Lê.

O Rio Maracatu se apropria do entorno dos Arcos da Lapa no período précarnavalesco, como se fora uma espécie de aquecimento ou “esquenta” e no póscarnavalesco, como parte de preparação, vitrine e culminâncias de oficinas com mestres de Recife. Antes do Carnaval, o grupo costuma realizar arrastões ou cortejos com a meta de ensaiar e, até mesmo, dar boas-vindas à folia momesca, como ocorreu este ano em que o Rio Maracatu foi um dos blocos participantes da abertura do Carnaval carioca, ao lado do Céu na Terra. O evento de abertura oficial do carnaval foi registrado pela grande mídia, especificamente pelo O Globo. Em uma das matérias deste jornal, a chamada era “Blocos Céu na Terra e Rio Maracatu abrem folia de rua na Lapa” 31, trazendo fotos e elogios a ambos os grupos. De acordo com reportagem intitulada “Eventos fazem 31

Disponível em: Consultado em 07/01/2015.

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cidade entrar no ritmo do carnaval”32, produzida por Rafael Galdo, do jornal O Globo, “o pontapé do carnaval na Lapa foi cheio de musicalidade” e os “foliões seguiram um colorido cortejo pelas ruas próximas aos Arcos”, dançando “ao som de marchinhas e clássicos de Noel Rosa, Pixinguinha e Lamartine Babo [...], além da batucada contagiante do Rio Maracatu”. O desfile pré-carnavalesco do Rio Maracatu integrou a programação do Concurso Nacional de Marchinhas da Fundição Progresso, o qual ocorre há uma década. Foto 14 – Rio Maracatu na Praça dos Arcos

Fonte: O Globo, 2015.

Após o Carnaval, o grupo volta a se apropriar simbolicamente da Praça dos Arcos, mas dessa vez participando da programação da Feira Literária Lapa Lê, nos dias 25 e 26 de Abril de 2015, organizada pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e pela Secretaria Municipal de Cultura, sendo parte das comemorações do aniversário de 450 anos do Rio de Janeiro e do centenário do bairro da Lapa (Foto 15). Dois dos debates programados para ocorrerem durante o evento se intitulavam “A Lapa está voltando a ser o ponto maior do mapa”, remontando ao samba A Lapa de Herivelto Martins e de Benedito Lacerda, composto no bojo da reabertura da Lapa, em 1950, e “A Lapa de hoje e a Lapa de outrora que revivemos agora”, citando incidentalmente o samba da do Grêmio Recreativo Escola de Samba 32

Disponível em: . Acesso dia 13/01/2015.

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Portela, imortalizado por Paulinho da Viola.

Como afirma o geógrafo Maurício

Abreu, “o passado das cidades brasileiras está sendo revalorizado e a preservação/recuperação/restauração do que sobrou das paisagens urbanas anteriores é um objetivo que vem sendo perseguido por inúmeros agentes, destacando-se aí os governos municipais.” (ABREU, 1998, p.81) Foto 15 – Logo do evento LapaLê.

Fonte: http://lapalefestival.com.br/.

Verificamos, a partir do evento LapaLê como o Rio de Janeiro vem acompanhando o processo de valorização e “preservação do que sobrou do seu passado” (ABREU, 1998, p.79), assim como de que maneira os “fabricadores do lugar” (RELPH, 2012), como a Prefeitura Municipal, atuam no sentido de realizar o “promocionismo” (TUAN, 2012) da cidade, pois a Lapa após um século, figura e reforça o seu papel como um dos símbolos da urbe carioca. Ora, considerando-se a cidade como um lugar da memória, como na perspectiva de ABREU (1998), deve-se pensar esta mesma memória urbana como relacionada a um conjunto de lembranças. Como afirma CERTEAU (2012), “o memorável é aquilo que se pode sonhar a respeito do lugar” (CERTEAU, 2012, p.176). Nesse sentido, a Lapa se mostra como lugar simbólico por ser memorável, por permanecer na lembrança, não somente dos “fabricadores de lugar” (RELPH, 2012), mas dos “construtores de lugar” (RELPH, 2012), ou seja, por quem vivencia o bairro. Neste desenrolar e como alguns dos participantes da criação do lugar (MELLO, 1991), os membros da corte e as catitas do Rio Maracatu, antes do desfile, se maquiaram e se enfeitaram e, após, juntamente com os demais integrantes se concentraram em frente à Fundição Progresso, conversando e, inclusive, consumindo cerveja em clima de descontração. Neste momento, vimos mais uma

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vez que o grupo Rio Maracatu não se caracteriza por um vínculo religioso como as nações de maracatu pelo fato de eu mesma, autora deste texto, como catita, ter segurado a calunga, por alguns minutos, antes de descermos para encontrar os batuqueiros ao lado de fora da Fundição Progresso. Foto 16 – Calunga do Rio Maracatu, antes do cortejo do bloco no evento LapaLê.

Fonte: A autora, 2015.

Quando nos direcionamos, margeando a Fundição Progresso, para a Praça Cardeal Câmara (Praça dos Arcos), mesmo sem o batuque, em um primeiro momento, as pessoas começaram a se aproximar e a se posicionar com a intenção de assistir ao cortejo do grupo. Ao contrário do desfile na orla de Ipanema, o cortejo da Lapa durou menos tempo, não contando com tantos integrantes, nem com equipe de segurança, assim como não segregou os membros do Rio Maracatu do público através da famosa corda. Ou seja, a festa teve uma troca maior entre os espectadores, batuqueiros, corte e catirinas. Exemplo dessa troca é o fato de alguns moradores de rua alegremente assistirem à apresentação bem de perto, e como “donos da rua”, pedindo licença aos demais espectadores para que o cortejo passasse, assim como se identificando culturalmente com o maracatu a batucar. Um

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desses moradores de rua, provavelmente um migrante nordestino, chegou a exclamar, feliz: “Isso é do Norte, rapá!!”. Foto 17 – Cortejo do Rio Maracatu na Praça dos Arcos, durante o festival LapaLê.

Fonte: Renata Rodrigues, 2015.

A semelhança entre os dois cortejos, apesar da diferença de dimensão entre ambos, foi a notável presença de fotógrafos, profissionais e amadores, assim como de equipe de reportagem da grande mídia, a Globo News, gerando a produção de um vídeo sobre o festival LapaLê, o qual “joga luzes no reduto boêmio da Lapa” 33.

3.4. Explorando humanisticamente o Rio Maracatu: significados vistos do seu interior

Nesta pesquisa qualitativa, acompanhando um referencial teórico da geografia humanística, em que os significados da cultura possuem grande

33

O vídeo da Globo News sobre o Lapa Lê se inicia com a referia descrição do festival. Disponível em: . Acesso em 27 de Abril de 2015.

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relevância, demos preferência ao aprofundamento do entendimento das concepções e das emoções sentidas pelos integrantes do Rio Maracatu, a fim de obtermos uma visão interna do grupo. Portanto, a “representatividade numérica” (GOLDENBERG, 2011, p.14) não se constituiu enquanto nosso enfoque. Como CLAVAL (2006) destaca, a geografia cultural moderna, ao fazer do homem o centro de sua análise, foi obrigada a desenvolver novas abordagens. Ela se construiu em torno de três eixos que são igualmente necessários e complementares: primeiro, ela parte das sensações e das percepções; segundo, a cultura é estudada através da ótica da comunicação, que é, pois, compreendida como uma criação coletiva; terceiro, a cultura é apreendida na perspectiva da construção de identidades,insisti-se então no papel do indivíduo e nas dimensões simbólicas da vida coletiva.” (CLAVAL, 2006, p.92)

É exatamente no sentido exposto por CLAVAL (2006) que buscamos compreender a cultura do Rio Maracatu por uma perspectiva geográfica. Explorar os significados do bloco só seria possível a partir da pesquisa empírica, através de trabalhos de campo, nos quais se praticou a observação participante, foram realizadas entrevistas abertas e estabelecidas conversas informais com intuito de analisar as visões dos indivíduos e do grupo como um todo, destacando suas emoções, percepções, além de compreender de que maneira o grupo reatualiza tradições e saberes de maneira a criar identidades e coesão. Convém lembrar o papel da memória individual de cada um dos integrantes entrevistados na configuração da memória do grupo, justamente porque “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes” (HALBWACHS, 2013). O texto que se segue foi elaborado, portanto, a partir dessa metodologia, já descrita com maiores detalhes na introdução do presente trabalho dissertativo, e se apresenta dividido de acordo com os relatos fornecidos durante as entrevistas e conversas engendradas.

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3.4.1

Maracatu como resistência, escape, regeneração e comunicação.

Entre as alunas da oficina de dança encontram-se Sabrina e Camila.

A

primeira reside em Itaboraí, mas durante a semana permanece no Rio devido à residência de enfermagem realizada no INCA, ao lado de sua amiga de faculdade e trabalho Camila, moradora de São Gonçalo, a qual igualmente integra Oficina de Dança do Rio Maracatu, desde março de 2015. O primeiro contato de Sabrina com o bloco ocorreu “por acaso”, há aproximadamente dois anos, quando chegou tarde para o desfile do bloco Carmelitas em Santa Teresa e retornou à Lapa, deparando-se com o Rio Maracatu. O que mais lhe chamou atenção foi a “alegria” propagada pelo grupo. Já Camila, tendo conhecido o bloco através de Sabrina no ano de 2015, presenciou pela primeira vez um cortejo do grupo no pré-carnaval deste ano, quando o Rio Maracatu abriu os festejos carnavalescos da cidade, nas ruas da Lapa, quando também se contaminou pela “alegria contagiante” transmitida pelo grupo. Camila não pôde dizer se há uma diferença entre o cortejo pré-carnavalesco na Lapa e aquele em Ipanema, pois só esteve presente no primeiro. Por outro lado, Sabrina, tendo assistido a ambos afirmou não ter sentido emoções distintas nesses dois locais, ou seja, a “alegria” configurou lugares nessas duas localidades. Ambas afirmaram que o Rio Maracatu significa resistência e que o maracatu representa a história e a cultura dos negros. No entanto, timidamente realizaram uma observação a respeito da questão étnica (ainda muito forte nos maracatus de Pernambuco), reparando que apenas as duas eram negras na turma da Oficina de Dança do Rio Maracatu (ODRM), afora a autora deste texto. Católica praticante, Sabrina alegou que sua religião não influenciou a procura pelo Maracatu, assim como Camila, católica não praticante, cuja família possui diversos membros adeptos ao candomblé.

Ademais, as duas dançarinas se

mostraram conscientes da relação estreita entre maracatu e candomblé, o que não se configurou, entretanto, como um empecilho para seu interesse pelo bloco. Camila, inclusive, alegou não ser surpresa o vínculo dos movimentos da dança com o culto aos orixás, sendo esses “movimentos corporais”, juntamente com a “comunicação diferenciada com o público” o que mais chamou sua atenção durante o primeiro contato com o Rio Maracatu no desfile pré-carnavalesco. De acordo com

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Sabrina e Camila, a principal motivação para participarem da ODRM foi a possibilidade de “arejar a mente”, de espairecer, portanto, de renovação em relação às energias e às pessoas com as quais se relacionam em um ambiente de tratamento do câncer, considerado pelas mesmas como “pesado”, assim como de ampliação de suas redes sociais para além de seus colegas de trabalho os quais convivem e residem próximo a elas e estudam na mesma Universidade.

O

maracatu, nesse sentido, adquire simultaneamente o significado de: 1 - resistência; 2 - fuga, escape, desprendimento; 3 - avigoramento, regeneração; 4 relacionamento, comunicação.

3.4.2 Maracatu como folclore, família, trabalho.

Professor de percussão no Rio Maracatu há quatro anos, Alexandre é carioca, morador de Santa Teresa. Todavia, sua vivência com o maracatu é mais antiga, iniciada, aproximadamente no ano de 2008, quando participava do grupo percussivo Estrela do Sul, em Curitiba, tendo passado, também, pelos grupos de “quase todas as capitais brasileiras”, devido à rede de contato estabelecida entre batuqueiros. No Rio de Janeiro, toca em mais de um grupo, mas considera o Rio Maracatu uma “referência” e, em sua opinião, cada grupo é único. Assim como os integrantes mais antigos entrevistados durante esta pesquisa, Alexandre já desfilou em Pernambuco como batuqueiro do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife. Um dos pontos levantados pelo percussionista foi a necessidade de possuir outra profissão além de batuqueiro de maracatu, pois esta última não garante a renda suficiente para se manter somente através da música. Budista, Alexandre afirma que, apesar de já ter desejado conhecer o candomblé, em seu caso, o maracatu não possui relação alguma com a religião, sendo caracterizado como “algo folclórico”. Durante a entrevista concedida à autora, algumas palavras-chave surgiram para compreendermos os lugares do Rio Maracatu, considerando-se uma perspectiva humanística. Em sua opinião, o Rio Maracatu associa-se à “casa”, “amigos”, “família”. Portanto, para Alexandre existem vínculos pessoais e afetivos

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entre ele e o grupo, possibilitando a configuração de lugares na Fundição Progresso, seu local de trabalho. Na fase dos ensaios, o batuqueiro admite sentir “ansiedade e cansaço”, devido ao ritmo intenso de trabalho no período que antecede o carnaval. Alexandre afirma, ainda, que seria bom que o Rio Maracatu fizesse, no mínimo, um cortejo por mês para “ser visto”, pois “quem não é visto não é lembrado”. De fato, os espaços públicos, apreendidos enquanto “lugares de exposição”, garantem grandeza e legitimidade à visibilidade do que ali se apresenta (GOMES, 2013). Entretanto, ir para a rua e se apropriar de diferentes lugares da cidade causa distintas emoções e sensações. O batuqueiro alega que tocar em Ipanema (Foto 18), durante o carnaval, “só vale pela praia”. Foto 18 – Alexandre tocando caixa durante cortejo carnavalesco com o Rio Maracatu.

Fonte: Alexandre Ruas, 2015.

Em seguida, espontaneamente, mencionou sua preferência pelos cortejos realizados nas comunidades cariocas, onde “o axé é totalmente diferente”. O professor estabeleceu, ainda, uma similitude entre as vielas dessas comunidades e as ladeiras de Olinda, pois em ambos os casos os percussionistas precisam “se espremer” ao longo do cortejo. Ou seja, os aspectos físicos do lugar, como a topografia e o traçado das ruas, podem servir de referências identitárias.

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3.4.3 Maracatu como amor, cultura, responsabilidade, comunicação.

Morador de Laranjeiras, nascido no Horto, o professor de percussão do Rio Maracatu, Adriano Sampaio, é carioca, e apesar de seus pais serem ligados à música clássica sempre teve interesse pela cultura popular. Violonista, evoluiu para a condição de percussionista, a partir do contato com o maracatu, em 1996. Este foi um ano emblemático da banda pernambucana Chico Science e Nação Zumbi, a qual realizou diversos shows no Rio de Janeiro. Neste momento, Adriano e alguns amigos começaram a se interessar por aquela diversidade expressa pela banda, com uma combinação de elementos do maracatu de baque virado e do maracatu de baque solto – inclusive a figura do caboclo de lança -, assim como batidas de afoxé pernambucano, fato que descobriram apenas após sua ida a Pernambuco e anos de estudo. Nesta visita, conheceram o Francisco, conhecido como Chicote, cuja família se mudou para o Rio de Janeiro em seguida. A partir de então, surgiu a iniciativa de formarem um grupo de estudos de maracatu em terras cariocas. Inicialmente, o grupo de amigos adaptou instrumentos de samba da maneira possível na época. Apesar de reconhecer no Rio Maracatu a existência de um vínculo entre o folguedo e o candomblé, Adriano, quando da fundação do grupo juntamente com seus amigos, teve como motivação o “amor pela música”, e não uma questão espiritual. Na realidade, o devotamento religioso que possui atualmente se dá em relação à “santería cubana” (vertente do candomblé), pela qual mantém interesse justamente por não possuir nenhuma casa que exija sua presença e sua obrigação constantes em termos espirituais, como ocorrem nos centros de candomblé, por exemplo. Utilizando as palavras do falecido mestre Humberto (carioca, frequentador do início do Rio Maracatu), Adriano afirma que “tambor é igual física quântica” por ter o poder de mexer com as partículas dos corpos que sentem o seu toque, a ponto de algumas pessoas mais sensíveis entrarem em transe. Portanto, acredita no “poder comunicador do tambor”, poder este que somente conheceu com o tempo e por meio do estudo. Enfatizou, entretanto, que essa é uma opinião pessoal, pois outros batuqueiros não reconhecem da mesma maneira. Para ele, o Rio Maracatu possui significados distintos se considerarmos sua trajetória pessoal ou se pensarmos o papel do grupo de maneira mais geral. No

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primeiro caso, o Rio Maracatu representa uma retomada de sua prática musical efetiva, tocando de fato, o início no mundo da percussão. Já em termos mais amplos, o grupo representa, em sua visão a continuidade de uma cultura de quase 200 anos, tendo sido o primeiro grupo a trazer o maracatu para o Rio de Janeiro, apresentando também expressiva importância na região Sudeste. Isso se deve ao fato de, na época (1997), o Rio Maracatu ter se desenvolvido paralelamente a alguns grupos de São Paulo. Quanto à localização do cortejo do bloco ser na orla de Ipanema, ele afirma que no início do grupo, esse cortejo ocorria também em Santa Teresa e que a escolha por Ipanema não se motivou pela visibilidade, mas sim por uma questão logística, pois a maioria dos integrantes morava na Zona Sul; ademais, Adriano alegou que a largura da Avenida Vieira Souto facilita o cortejo. Assim como para o Alexandre, conhecido como “carioca”, desfilar na Lapa e em Ipanema são vivências diferentes, pois “cada experiência é uma experiência”; Ipanema é o lugar do cortejo de fato, causando uma expectativa grande, por saber da carga de responsabilidade para que tudo ocorra da melhor maneira possível com os

envolvidos,

seus

alunos

da

percussão

etc.

Acrescentou

e

reforçou,

espontaneamente, que apesar do sítio urbano não facilitar um cortejo de fato, devido à estreiteza de suas vielas, sair em cortejo pelas comunidades, como o Complexo do Alemão, Cantagalo ou Pavão-Pavãozinho (Foto 19) é totalmente distinto, sendo muito bom quando os moradores curiosamente abrem suas janelas para saberem o que está ocorrendo quando ouvem o batuque.

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Foto 19 – Professor Adriano Sampaio e criança experimentando o batuque em sua alfaia, durante apresentação do Rio Maracatu na comunidade Pavão-Pavãozinho, em Março de 2015.

Fonte: Benjamin Tollet, 2015.

Afirmou que o Rio Maracatu foi o primeiro grupo a fazer a conexão com os mestres de Recife, convidando-os para as oficinas. De acordo com VANSINA (2013), “as tradições requerem um retorno contínuo à fonte”. As oficinas são consideradas por Adriano como um reconhecimento de quem detém um saber valioso o qual também pode ser capitalizado. Quando um mestre vem ao Rio de Janeiro, além de ter a estadia e a passagem pagas, recebe por isso. É exatamente sobre isso que trata GARCEZ (2012), quando afirma que no contexto das transformações e expansões atuais do Maracatu tenta-se tornar legítimo os discursos de ‘autenticidade’ da ‘nação’ em busca de reconhecimento histórico dos que não tem acesso a outros bens materiais ou simbólicos. Esse reconhecimento aparece, por exemplo, sob o discurso da exigência de respeito aos ‘detentores dessa cultura’ (GARCEZ, 2012,p.24)

Para Adriano, essa é uma maneira de valorizar o seu trabalho, assim como de não acharem que o Rio Maracatu se trata apenas de uma “apropriação da cultura afro-brasileira por pessoas de classe média e, em sua maioria, brancas”. Como afirma HOBSBAWM (1997), “toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza

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a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal” (HOBSBAWM, 1997, p.21). Verificamos, da mesma maneira, uma conexão com o pensamento de GARCEZ (2012), quando realça a importância do reconhecimento e da valorização dos “trabalhos” para facilitar o relacionamento entre nações e grupos, “para que a ‘nação’ realize os movimentos de saída de sua localidade geográfica e receba, nesta mesma, indivíduos de outros lugares” (GARCEZ, 2012, p.46)

3.4.4 Maracatu como “religião”, “vício”, diversão x stress, axé, reenergização, catirina, tolerância.

Monique Pereira, de 28 anos, reside em Senador Camará, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, e participa do grupo Rio Maracatu há seis anos. Inicialmente, o que a motivou a participar da ODRM foi a prática de alguma atividade física próximo ao local de trabalho. Formada em jornalismo, à época trabalhava na TV Brasil, na Lapa, próximo à Fundição Progresso. Atualmente, Monique trabalha na área audiovisual e esta sua habilidade contribuiu bastante tanto para a divulgação on line dos trabalhos do grupo Rio Maracatu quanto para a captação de recursos neste carnaval sem o patrocínio da Ambev. Responsável pela organização do material audiovisual (como flyers de divulgação de eventos, a logo da camisa utilizada pelas catitas no cortejo carnavalesco de 2015 e para as aulas da ODRM (Foto 20), a comunicação no perfil da Dança do Rio Maracatu no facebook), ela igualmente se mostra proativa para animar as catirinas quando há alguma apresentação e auxilia o bloco assumindo o papel de monitora na oficina de dança, quando alguma professora precisa se ausentar.

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Foto 20 – Camisas com a logo idealizada por Monique Pereira estampando sua frente

Fonte: Monique Pereira, 2015.

Tamanha é sua identificação com a dança no maracatu que, após ter criado o símbolo da catita para estampar as blusas da ODRM usadas no cortejo carnavalesco deste ano, Monique o tatuou na panturrilha, pois para ela, "a catirina é o maior símbolo do maracatu, em termos de dança". A loja montada com a Luísa, em uma semana, foi decisiva para sua escolha. Ambas as integrantes da ODRM organizaram a loja de camisas pra aproveitar a festa de pré-carnaval pra vendê-las (cada camisa custou vinte e cinco reais) e, a partir disso, levantar fundos pra oficina. Após já ter sido apresentada ao jongo durante as oficinas de dança, a monitora teve a oportunidade de visitar o quilombo São José, em Valença, e vivenciou a festa comemorativa de 13 de Maio, no ano de 2010. Segundo Monique, “a festa foi uma influência grande” na sua decisão de mudar o tema de pesquisa de seu trabalho de conclusão de curso sobre manicômio para pesquisar o jongo34, dança popular de origem negra, assim como o maracatu. Em seguida, ela procurou o Jongo da Serrinha, em uma apresentação do grupo no Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, no bairro da Tijuca, e voltou ao quilombo São José durante a pesquisa, trabalhando ativamente na festa e coletando informações importantes através de conversas informais, como na hora de preparação do almoço. Quanto ao questionamento feito por algumas pessoas em relação a uma 34

A pesquisadora Monique Pereira expõe algumas informações sobre o jongo em um vídeo organizado pelo Canal Curta intitulado Curta Danças Regionais – Jongo – Monique Pereira, disponível em: .

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maior divulgação e possível descaracterização da festa nessa comunidade tradicional de jongo, acusando-a de ter se “vendido” e se transformado em “jongo de palco”, Monique se posiciona afirmando que os jongueiros “respiram aquilo, no mínimo eles têm que ganhar por aquilo”. Neste ponto, cabe a seguinte reflexão: devemos ver a “perda do sentido da festa” a partir do processo de expansão dos grupos percussivos de maracatu, como alegado por SANTANA (2012), apenas pelo sentido do desvio e do perecimento, ou seria melhor pensarmos essa disseminação do maracatu enquanto possibilidade de sobrevivência deste folguedo, assim como Monique caracteriza a problemática atual do jongo? A desfilante alega ser difícil estabelecer uma conexão espiritual quando participa das oficinas de dança, mas quando vai pra rua, é comum sentir uma “energia diferente”. Mesmo considerando quem não possui uma espiritualidade, segundo Monique, não há como se negar que na rua os corpos, em catarse, emanam energia, nem que seja apenas uma energia física, como liberação de suor, “calor humano” para o público em volta etc. Nunca tendo seguido a fundo alguma religião, afirma ter sido batizada na Igreja Católica quando criança e, na adolescência, se batizou na Igreja Universal devido a um antigo relacionamento amoroso, tendo feito parte desta última instituição apenas por um ano em consequência de divergências de posicionamentos. Ademais, Monique afirma ser atualmente, mais propensa a se conectar com religiões afro-brasileiras. Apesar de nunca ter estado em um centro de umbanda ou candomblé, afirma que o tambor é bastante forte. Além disto, quando começou a dançar, descobriu a “força espiritual” da dança, “catártica”, e passou a entender que possui uma afinidade maior com as religiões de origem afro por sempre ter acreditado na filosofia da troca de energia, ao contrário da filosofia da culpa associada às religiões cristãs. Monique estabeleceu uma curiosa conexão entre a sua dança e a religião, declarando que as semelhanças se referem ao fato de se sentir mal, caso não dance, assim como um fiel se sente quando não comparece ao espaço sagrado para a sua religião e, igualmente, pela maneira pela qual se entrega à dança, nunca à toa, do mesmo modo que um religioso não comparece ao seu templo sem um propósito. Neste ponto, a dançarina descreveu sua participação no cortejo carnavalesco do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife, como uma “peregrinação”. Seu relato, transcrito exatamente como nos contou, segue abaixo:

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“Eu já senti uma força muito forte de eu tá na rua com o Rio Maracatu e, num desfile sinistro, tipo Ipanema e tal, que a gente faz, e toca lá no fundo, sabe, e você sente uma energia muito bacana. Mas no Estrela, cara, a lágrima descia sem sentir. Quando eu via, tava tudo encharcado [...] e eu me segurando, porque tu não pode sair desembestado rodando porque esse giro não existe...mas a minha onda na minha dança [...], mais ainda no maracatu que é onde você gira, gira muito, é o girar endoidado, mesmo. [...] Aí lá, cara, eu ficava louca. Eu tenho uma toada que é preferida, que essa não teve jeito, aí pronto...desceu a lágrima, assim.. era como se eu tivesse lá indo pra Aparecida do Norte, se eu fosse católica e tivesse de joelhos, fazendo um caminho lá, me esfolando toda ”. (Entrevista concedida à autora, em Abril de 2015).

Monique afirma haver maior facilidade para membros do Rio Maracatu desfilarem, em Pernambuco, no Estrela Brilhante de Recife basicamente por dois motivos. O primeiro deles é o contato existente entre os membros do Rio Maracatu com essa nação. Já o segundo se refere à estrutura, pois, quando convidado para a realização de oficinas e/ou apresentações no Rio de Janeiro, geralmente Mestre Maurício Soares se hospeda na casa de Laís Garcez; ademais, tal mestre já está preparado para receber os integrantes deste grupo percussivo carioca quando os mesmos vão a Pernambuco com vistas a aprender e a desfilar com sua nação. Tendo saído de catita no Maracatu Nação Estrela Brilhante, ao comparar tal desfile com o cortejo carnavalesco do Rio Maracatu em Ipanema, Monique alega que a primeira experiência é menos cansativa, pois o asfalto é mais liso e o cortejo ocorre de noite, ao contrário do caso carioca, em que os integrantes cortam a Avenida Vieira Souto debaixo de um sol escaldante de verão, o que exige mais esforço dos mesmos. Em relação às diferenças entre desfilar como catita em Recife e no Rio de Janeiro, Monique afirma que ambas são mais livres devido às roupas mais leves (se comparadas às vestimentas de princesa, por exemplo), mas apenas no Rio a catita pode girar à vontade, o que seria um empecilho para as catitas do Estrela, geralmente senhoras mais velhas. Acima das catitas, estão as princesas, personagens já assumidas por duas outras integrantes do Rio Maracatu, quais sejam Michele (presente no cortejo do Lapa Lê) e Laís Garcez (pesquisadora dos "movimentos do Maracatu Estrela Brilhante de Recife" e desfilante da corte no carnaval deste ano com o Rio Maracatu, em Ipanema). Sobre esta participação como princesas, Monique ressaltou que "é algo que, assim, é aberto, desde que você se dedique. Você não vai chegar do nada e vai sair com o cetro na mão" (sic.). De acordo com a dançarina, o cordão de catitas no Estrela é pequeno, realizando inúmeras voltas ao redor do cortejo inteiro, passando pela avenida

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diversas vezes. Os demais personagens desfilam apenas uma vez durante o tempo de 1h30, o que resulta em cerca de 20 minutos para cada ala. Já as catitas têm a oportunidade de experimentar a sensação de dançar, serem vistas e desfrutar do baque diversas outras vezes ao longo desse tempo. Sobre sentir-se de maneira distinta nos ensaios e nos cortejos, a monitora afirma que, mesmo nos primeiros, principalmente naqueles em que há percussão, nunca "dançar por dançar", mas sentir o baque e deixar ser levada pela dança em si, não se preocupando apenas na "mecânica dos passos". Como colocado, "até você pegar a sequência, é tudo muito comedido, aquela coisa controlada, mas eu nunca me esqueço de fazer a parte do dançar de verdade, nem que seja pra mim só" (sic.). Neste ponto, citou o fato de sempre às terças, quando as catitas se juntam à percussão, ela permanecer nos últimos trinta minutos no espaço da arena da Fundição Progresso para dançar e girar livremente. Em sua perspectiva, “ir pra rua é algo importante", não somente em termos de divulgação de trabalho dos professores, nem de obrigação de apresentar alguma coreografia de fim de ano - como ocorre em escolas de dança-, mas para os alunos das oficinas transbordarem o conhecimento/aprendizado adquirido ao longo dos meses. Apropriar-se da rua é relevante, também, pela presença do chamado “povo de rua”, pela troca, pois "[...] se você se sente tomado pela energia da coisa, você sente qual é a importância de ir pra rua e você vai pra rua porque você gosta e não porque você é obrigado a ir, entendeu?" (sic.). Para a catita Monique, o Rio Maracatu significa "cachaça", no sentido de vício o qual não consegue abandonar. Em 2015, além de ter desfilado como "dama do leque" (Foto 21) no Rio Maracatu, saiu pela primeira vez com o Bloco Maracutaia, tendo sido bem recebida por ter maior experiência em dança de rua, assim como por já conhecer diversos integrantes, pois "todos que são do maracutaia, são ex-Rio Maracatu".

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Foto 21 – A dama do leque Monique Pereira, durante cortejo carnavalesco em Ipanema

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Em sua opinião, não pode faltar diversão nos cortejos, revelando-nos uma de suas recomendações às catitas mais novas: "Quando vai pra rua, é outra coisa...é mais isso, ainda...quando vai pra rua, a gente costuma falar: sabe tudo aquilo que vocês treinaram? Esquece! [...] Se diverte!", salientando que a diversão recomendada não é aquela somente com um sentido superficial, mas de "não deixar o stress tomar conta". Em relação ao stress, Monique relata ser mais comum em cortejos grandes, como o ocorrido em Ipanema, devido às preocupações em relação ao andamento do bloco, ao espaçamento de suas alas, à relação com a Guarda Municipal, assim como ao tempo total do desfile, que não deve ultrapassar às duas horas. Pelo contrário, nos cortejos menores, como o do evento Lapa Lê, "todo mundo se diverte". Além deste desprendimento proporcionado pelos momentos de divertimento, Monique aponta como uma das marcas do maracatu o axé, no sentido deste ser "toda aquela força, aquela energia que você dispende , não só pelo que você tá sentindo, como você tá carregando, sabe? Você ali é uma pilha. Você carrega e descarrega, entendeu? Isso pra qualquer dança, mas em

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termos de maracatu,que ao mesmo tempo que é coletiva, ele é muito individual porque você tá ali no seu eixo, girando em torno de você, do que você tá pensando, do que você fazendo.. Ao tempo que eu carrego, girando pra um lado, eu descarrego, girando pro outro e aí eu faço as duas direções, entendeu?...e se eu tiver precisando, eucostumo até pensar no que eu quero descarregar quando eu giro pro lado que eu descarrego e no que eu quero carregar, quando eu giro pro lado que eu carrego... é uma metáfora minha." (sic.).

Monique afirma que, apesar de se dedicar ao máximo na dança, não sai cansada, mas sim recarregada das aulas, com uma "energia boa". Além disso, quando está se sentindo muito mal, simplesmente não dança, pois acredita estar "contaminando" sua dança, "cometendo uma heresia". Podemos relacionar a fala de Monique a respeito do caráter simultaneamente individual e coletivo do maracatu enquanto dança com o pensamento de GARCEZ (2012, p.33), quando afirma que "os movimentos dos corpos individuais integram e movem os corpos coletivos, e vice e versa". Segundo GARCEZ (2012), as distintas realidades e o compartilhamento de experiências possível por conta do movimento diaspórico irão compor as semelhanças e diferenças entre as corporeidades do Maracatu em diferentes lugares, o que engendrará formas de pertencimento. Por exemplo, nos casos em que indivíduos de todo o país fazem oficinas de percussão e de dança tanto em Recife como em suas cidades, participam do desfile do carnaval em Recife e ajudam na construção do carnaval da "nação" em sua comunidade. Esses são casos em que um processo vivido é compartilhado contribuindo para a construção da corporeidade da "nação". Ao mesmo tempo, há, porém, uma dimensão que permite percebermos as distinções que passam pelo habitus e experiências individuais de seus agentes." (GARCEZ, 2012, p.43)

GARCEZ (2012) lembra, ainda, que os fluxos culturais responsáveis pela configuração do maracatu enquanto uma linguagem em trânsito, apesar de não possuírem direções predeterminadas, se guiam por "relações de identificação, o compartilhamento de histórias e experiências – nos casos entre ‘nação’ e ‘grupo’, por exemplo" (GARCEZ, 2012, p.41), sendo "criados laços de amizade, respeito e gratidão" (GARCEZ, 2012, p.45). Dessa maneira, o estabelecimento desses laços de pertencimento gera uma familiaridade (RELPH, 2012), conduzindo a uma redefinição e expansão dos lugares do maracatu. Como moradora da Zona Oeste, não se sente diferente quando desfila com o Rio Maracatu na Lapa ou na Zona Sul. Quanto ao stress, ela admite poder ocorrer tanto na Lapa quanto em Ipanema, dependendo do tamanho do cortejo. Apesar de

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reconhecer a existência de uma diferença de público entre esses dois lugares, a "dama do leque" afirma que, em ambos, o público que procura pelo maracatu ainda é muito "universitário/ alternativo/ morador da Zona Sul e do Centro". É interessante a comparação do público de maracatu no Rio de Janeiro e em Recife, feita a partir de suas experiências ao longo desses 6 anos de envolvimento com o folguedo: "O que você percebe de mais gritante quando vai pra Recife...Quando você vai assistir ao maracatu lá ou viver ou participar, aqui é completamente o oposto. Lá, o maracatu é coisa de favelado; aqui, é coisa de gente Cult [...] rico ou universitário, classe média, gringo, entendeu? [...] Lá, pra você tá no maracatu, você tem que subir a favela. E ninguém gosta de ir pra favela, aí ninguém vai... A classe média do recife é completamente alheia à cultura popular.. maracatu, cavalo-marinho..não sabe. Aqui, eles não sobem em favela porque não acontece em favela. Aqui, eles vão pra Fundição Progresso, entendeu? Pergunta se alguém procura o jongo da Serrinha na Serrinha..não. Eles vão no Jongo da Serrinha, quando a Serrinha tá no Trapiche, quando a Serrinha vai se apresentar na Tiradentes... Se a Serrinha não saísse da Serrinha, o jongo já tinha morrido na Serrinha [...] Vai falar pra subir um morro que não seja Santa Teresa, pra ver se eles sobem...é ruim, hein! Vai falar pra eles cruzarem com o fuzil lá na Serrinha...cruza nada!" (sic.)

Neste ponto, espontaneamente enfatizou a necessidade que alguns integrantes sentem de ir pra lugares mais "carentes de cultura, de cultura popular, de cultura de rua, de entretenimento grátis", como as abordagens feitas na Comunidade do Guarda, localizada em Del Castilho, assim como no Pavão-Pavãozinho, entre Copacabana e Ipanema. De acordo com Monique, uma das motivações para o Rio Maracatu serpentear as vielas dessas comunidades é a questão da tolerância étnico-religiosa, pois muitas crianças ao ouvir o baque e ao assistir a dança, questionam se o que observam é "macumba". Neste contexto, a catita alerta: "Aí você fala: não, não é macumba, é dança. Macumba é outra coisa e não é ruim, não [...] aí, você dá abertura pra essa de discussão, sabe? Então, é outro tipo de experiência, com certeza..." (sic.). Dessa maneira, podemos dizer que os grupos percussivos não objetivam apenas o entretenimento em todos os casos. O Rio Maracatu mostra exatamente isso quando realiza trabalhos educativos e/ou de desconstrução de preconceitos em relação à cultura negra, arraigados na sociedade brasileira e na população carioca, especificamente, inclusive na população moradora de comunidades, que é majoritariamente negra.

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3.4.5 Maracatu como tolerância, tradição, resistência, felicidade, satisfação x culpa

Tiago Magalhães se intitula como “carioca-mineiro”, pois, apesar de já ter residido em São Paulo, nasceu no Rio de Janeiro e se identifica muito com Minas Gerais por ter frequentado, quando criança, o interior deste estado. Atualmente, mora em Santa Teresa, no Rio de Janeiro. Sendo um dos fundadores do grupo, ao lado de Francisco “Chicote”, Bruno e Adriano Sampaio, já assumiu diversas funções ao longo desses 18 anos de Rio Maracatu. Desde o início, é professor de percussão no Rio Maracatu, mas já esteve mais à frente da parte administrativa, apesar de não ter abandonado essa atribuição por completo. Outra atividade exercida intensamente por Tiago há alguns anos foi a de pesquisa com as nações de Recife. Como todas as viagens do Rio Maracatu são custeadas pelos próprios integrantes, durante quatro anos em que os demais membros não podiam arcar com esses custos de deslocamento, hospedagem e alimentação, Tiago assumiu a responsabilidade de estabelecer contato e pesquisar o maracatu-nação, trazendo um retorno do conhecimento construído em Recife. O percussionista afirmou, também, que o grupo nunca elaborou um projeto em busca de financiamento para as idas a Pernambuco, visto que “o grupo sempre foi independente, entre aspas, né? Porque a gente não queria nem, necessariamente, ser independente. Quer dizer, a gente queria, tanto é que a gente manteve um perfil que não foi muito pop [...] mas a gente nunca conseguiu apoio financeiro, sacou? Nem pra dar aula nem pra... então muitas vezes as pessoas criticavam: ‘Po, vocês cobram pra dar aula?! Maracatu é uma coisa popular’... Eu falei: ‘se a gente não cobrar, o grupo vai morrer, cara’.. [...] Então, o grupo sempre teve dificuldade de sobreviver por ser um grupo independente” (sic. Entrevista concedida à autora.)

Hoje, é responsável, também, pela direção artística do grupo. Neste ponto, Tiago relatou que outros integrantes já pensaram em alterar a roupagem musical da percussão, buscando uma aproximação com o que hoje é o Monobloco e ele se posicionou de maneira contrária. Em sua visão, houve “uma polarização na época. A galera queria fazer um troço mais pop, mais moderninho” (sic.) e, ao discordar, o grupo acabou se embasando mais e se diferenciando no carnaval carioca. Para Tiago, o Rio Maracatu foi um dos pioneiros no processo de reapropriação das ruas pelos blocos carnavalescos no Rio de Janeiro, pois, como relata,

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“O movimento de blocos, no Rio, era muito ínfimo quando a gente começou. Eu tenho certeza que a gente ter tocado na Lapa, num bloco, desde 97...nessa época não tinha mais carnaval de rua no Rio. Tinha alguma coisa na Rio Branco, ali...e era alguma coisa meio que ... sobrevivia e tinha a Sapucaí lá, né? E aí, eu acho que pelo fato de Recife ter muito essa cultura e a gente tá em contato com aquilo ajudou a gente, também, a ter um papel preponderante nesse retorno do carnaval de rua. Não que não fosse acontecer isso naturalmente, eu acho que ia acontecer normalmente [...]” (sic. Entrevista concedida à autora).

O batuqueiro declarou que o Rio Maracatu, quando não possuía sede fixa, já ensaiou em diversos espaços da cidade. Inicialmente, ensaiava no Parque dos Patins, na Lagoa, antes de serem instalados os quiosques com música ao vivo em sua orla. A partir daí, o forte som dos instrumentos de percussão começou a incomodar e as reclamações surgidas acabaram expulsando o grupo. Quando tocavam neste bairro, muitos passantes interrompiam alguns dos integrantes para perguntarem se o que ouviam era “olodum” ou, até mesmo, “samba atravessado”, evidenciando um desconhecimento do Maracatu enquanto ritmo. Além da Lagoa, nesta primeira fase itinerante, outros bairros em que o bloco tinha como lugar de ensaio eram Santa Teresa e Laranjeiras (na casa de uma amiga dos integrantes). Então, no ano de 2002, Tiago e Leo Capela, o qual não faz mais parte do Rio Maracatu, foram até a Fundição Progresso pleitear um espaço para guardar os instrumentos percussivos do grupo. Perfeito Fortuna, o qual estava voltando a assumir a Fundição, aceitou e, a partir de então, o grupo se fixou na Lapa, mas ainda assim, não tinha espaço definido dentro da Fundição, o que foi positivo no sentido de o aluguel cobrado ser barato (atualmente, é cobrado um pouco mais de trezentos reais para a realização das oficinas às segundas e terças-feiras) . De acordo com o percussionista, nesta época, a Fundição era apenas “ruínas”, pois ainda não havia sido refuncionalizada em um espaço cultural. A partir disto, iniciouse o “movimento de tocar na Lapa”, o que, segundo Tiago, “retroalimentou o trabalho porque aqui [Lapa] é um lugar bom pra estar, pra esse tipo de manifestação. Então, começa a ter a galera que quer ouvir, porque, quando a gente saía aqui na rua, vinha uma galera ver, mesmo sem ter nenhuma noção porque na época ninguém imaginava o que era maracatu. Hoje em dia, você sai com o maracatu e muita gente já sabe ‘ih! Isso é maracatu!’.. A gente criou essa cena. Eu falo isso modestamente.” (sic. Entrevista concedida à autora.)

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A partir de tal fala, podemos perceber como o Rio Maracatu contribuiu, por meio da apropriação de espaços públicos, para que houvesse um maior reconhecimento do maracatu no Rio de Janeiro. Ir para a rua também possibilitou que muitos nordestinos, moradores de rua na cidade, se identificassem culturalmente ao ouvir o bloco tocar, aproximando-se de alguns integrantes e afirmando conhecer certos personagens ilustres dos maracatus-nações, como Dona Santa, a qual foi dona do Maracatu Nação Elefante. Para Tiago, “uma questão interessante no maracatu do Rio de Janeiro [...] a gente se apropriou de uma parada que era das comunidades de Recife. Então, existe um mérito nisso porque é legal a gente ter ido pesquisar nas comunidades, a gente estar nas comunidades de Recife.. Todo mundo falava ‘cara, não passa naquelas ruelas ali não, hein’...nossos amigos de classe média de Recife falavam.” (sic.)

Tiago relata, ainda, que por ser constituído, em sua maioria, pela classe média residente na Zona Sul do Rio de Janeiro, o Rio Maracatu começou a ser questionado e cobrado, tanto por pessoas de Recife quanto pelo Movimento Negro carioca em relação a essa apropriação cultural. Ao mesmo tempo em que os mestres aprovavam a ação do Rio Maracatu, algumas pessoas afirmavam que o grupo não poderia se apropriar de tal cultura. A partir de então, o grupo precisou repensar o que poderiam ou não fazer e a sua função, passando a refletir e se embasar ainda mais para responder a essas demandas, diferenciando-se da maioria dos blocos carnavalescos cariocas os quais dificilmente serão questionados a respeito de seu trabalho. Tiago afirma que o vínculo religioso do maracatu “a priori, no início, era macumba de rua”, sendo necessário participar do xangô pernambucano para tocar ou, no caso das mulheres, dançar o maracatu. A relação musical entre candomblé e tal folguedo, além das letras das toadas as quais falam de orixás e obrigações religiosas, é reafirmada quando o percussionista alega que: “A maneira de tocar tem muito a ver com o candomblé deles, entendeu? [...] Macumba é ketu [...] Você vai num terreiro de candomblé, você vai entender a peixarada: ‘caracatum caracatum tchacatum traaaa traaa traaa tugudum caracatum tum tum’. Da mesma forma, também, ‘tum tucatum tum tum tucutum tucutum’...” (Sic. Entrevista concedida à autora.)

Já a relação do Rio Maracatu com a religiosidade afro é expressa da seguinte maneira pelo percussionista:

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“No caso do Rio Maracatu, o que eu acho que aconteceu: as pessoas que tinham um interesse pela religião afrobrasileira ou já tinham relação, começaram a se interessar mais...No meu caso, foi muito pela percussão em si, entendeu? Não exatamente pelo maracatu, isso já vinha de mais tempo.. Mas eu não sou uma pessoa, vamos dizer assim, de dentro da religião [...] Eu estudo os ritmos afro-brasileiros, candomblé, como se tocar pra um orixá dançar...Quando eu vou com os meus professores, que são Dofono e Ney d`Oxósse, no candomblé e eles me mandam tocar, me falam pra tocar, eu sento e toco..Eu tenho uma relação com isso..Eu estudei o afrocubano, também, santeria... Já fiz jogo, já me relacionei e relaciono com essa religião, mas você vai entrando na religião e você vai até onde você quer, também tem isso. Mas tem uma hora que eles falam ‘Ou você faz isso ou você fica aqui’, entendeu? Eu parei num determinado ponto.” (Sic. Entrevista concedida à autora)

Tiago enfatiza, ainda, que o Rio Maracatu auxilia no processo de “desarmamento de preconceitos” em relação à religião do candomblé, pois observa uma mudança de perspectiva de alguns alunos de percussão que permaneceram no grupo por cinco ou dez anos e começam, inicialmente, a respeitar, às vezes chegando a se envolver e, inclusive, tocar em Recife com outros membros do grupo. E, sair em uma nação de maracatu requer que os batuqueiros estejam em contato com símbolos do candomblé, como “estátuas” de orixás e ebós35, por exemplo, pois se faz o “batuque aqui e atrás tem o terreiro do batuque, entendeu?” (Sic. Entrevista concedida à autora.). Em relação à ida de integrantes do Rio Maracatu para Recife, assim como Monique Pereira, o batuqueiro igualmente enfatiza a importância da rede entre nações e grupos, alegando que “se você tiver o contato, a pessoa vai te pegar pela mão e te botar dentro do terreiro”, podendo participar de maneira mais próxima da cultura da nação que visitar. Sua primeira vez em Recife foi como batuqueiro do Maracatu Nação Leão Coroado, com sede no bairro de Águas Compridas. Mas atualmente, costuma batucar com o Maracatu Nação Porto Rico durante o evento Noite do Dendê, pois este ocorre em um período diferente em relação ao carnaval. Assim sendo, verifica-se um grande leque de sensações e sentimentos vivenciados pelo batuqueiro Tiago quando toca com o Rio Maracatu em diferentes localidades. Como o mesmo afirma, “depois que a gente teve a consciência, pelos questionamentos que vieram, pelo fato de a gente tocar maracatu e que, pó.. isso é uma coisa que vem das comunidades de Pernambuco, depois de 18 anos tocando e pensando 35

São as oferendas feitas aos orixás.

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isso, isso faz com que eu tenha uma sensação completamente diferente quando eu toco na Lapa, quando eu toco em Ipanema, que é o máximo da Zona Sul carioca, e quando a gente vai tocar em alguma comunidade, entendeu?” (Sic. Entrevista concedida à autora.)

Na visão de Tiago, a Lapa “é um lugar bom pro Rio Maracatu”, por ser um bairro de encontro de diversas classes sociais, pela existência do “povo da rua” e onde é onde se sente “em casa, tocando”, configurando um humanístico lugar ou lar para o batuqueiro. Já a Zona Sul “caracterizou o Rio maracatu desde o início”, mas o ato de desbravar a Avenida Vieira Souto não acarreta somente sentimentos positivos no músico, o qual afirma ter “[...] uma sensação de que você tá mostrando pra uma classe diferente, pra um perfil diferente, uma cultura que eles acabam achando mais palatável porque somos cariocas, meio playboys e tal...Ao mesmo tempo em que eu me sinto culpado, entendeu? Por ter abraçado essa cultura e representar o cara que se apropria da cultura do negro [...] A gente traz mestres, a gente leva pessoas pra Recife, e isso acaba criando coisas positivas pra eles, não é só mais uma usurpação. Mas eu me sinto culpado em tocar maracatu na Zona Sul, em Ipanema, ao mesmo tempo eu falo ‘que maneiro, a gente tá mostrando pra eles um troço que é totalmente candomblé, que é de Pernambuco, de comunidade e tá mostrando aqui’.. E, muitas vezes, tem pessoas de Pernambuco que são das comunidades de Maracatu, os mestres [...] que vão ali, que tão ali mostrando, tão ali representando aquilo. [...] É uma coisa descontextualizada que a gente coloca ali [...] É uma invasão que tem uma coisa muito positiva [...] porque você pode abrir um canal de comunicação com essa cultura tão maltratada pela história.” (Sic. Entrevista concedida à autora.).

Dessa maneira, podemos afirmar que desfilar os símbolos do maracatu (Foto 22), enquanto manifestação cultural de raízes negras e nordestinas, pela orla de Ipanema, bairro de classe alta do Rio de Janeiro e conhecido internacionalmente, é fomentar a visibilidade, o conhecimento e a valorização que tal folguedo pode ganhar mediante a criação de uma semiografia no espaço.

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Foto 22 – As principais nação de Maracatu desfilaram junto à alfaia de Tiago, no cortejo de Ipanema.

Fonte: Yeda Zotz, 2015.

Ao contrário dos demais integrantes do Rio Maracatu que já serpentearam pelas comunidades cariocas, Tiago (Foto 23) afirma nem sempre serem bem acolhidos por todos os moradores. Ao mesmo tempo em que há pessoas que gostam de ouvir o maracatu, e em algumas comunidades “a resposta é imediata”, em outras, ocorre de, ao ouvir o estrondo da percussão, os moradores abrirem suas janelas e, em seguida, fechá-las. Um dos motivos pra essa rejeição por parte de alguns moradores, de acordo com o percussionista, é a intolerância religiosa por parte de evangélicos. Apesar dessas situações, Tiago afirma se sentir bastante feliz em tocar nas comunidades, citando, inclusive, um de seus trabalhos como professor de percussão em Guadalupe. Ademais, em sua opinião, “o Rio Maracatu tem obrigação de tocar em comunidade”.

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Foto 23 – Tiago tocando alfaia na orla de Ipanema, durante cortejo carnavalesco.

Fonte: Coletivo Baobá, 2015.

Para o percussionista, os significados do maracatu estão relacionados à tradição e à resistência negras. Em suas palavras, maracatu significa “uma tradição dentro do Brasil que serve de resistência... uma cultura super menosprezada, mas que é uma das bases da cultura brasileira. Então, o maracatu [...] é uma coisa importantíssima [...] é uma das coisas que representam o Brasil, né, como estofo cultural que tá disponível, mas que ao mesmo tempo tá escondida.” (Sic. Entrevista concedida à autora)

Já o grupo Rio Maracatu estaria mais ligado à oportunidade de aprofundamento dentro dessa cultura de resistência. Como afirma o batuqueiro, o Rio Maracatu significou “uma conquista de ter, minimamente, essa vivência que eu valorizo tanto, que eu, humildemente valorizo tanto” (sic.).

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3.4.6. Maracatu como tradição, responsabilidade, entrega, favela.

Quando o Rio Maracatu começou, havia apenas o grupo da percussão. A dança foi sendo incorporada aos poucos, inicialmente sem a corte, e se firmou a partir da entrada, primeiramente, de Isabela de Castro (membro do grupo até hoje), Clarice e Luciano (já egressos do Rio Maracatu), e, posteriormente, de Aline Valentim. Aline é bailarina, coreógrafa e professora de dança afro contemporânea, assim como de distintos ritmos tradicionais brasileiros, como o coco, o cavalo marinho, o jongo e o maracatu. Carioca, nascida e criada no bairro de Botafogo, moradora de Santa Teresa há, aproximadamente, quinze anos, a dançarina é membro do Rio Maracatu desde 1999, mas começou sua trajetória no grupo, tocando gonguê. Apesar de ter sido criada em uma família católica e ter feito, inclusive, a primeira comunhão quando criança, não se considera pertencente a nenhuma religião. Atingindo a idade adulta, aproximou-se do candomblé por uma questão de interesse cultural, de identidade negra e por seu trabalho dentro da ODRM. Dessa maneira, Aline se considera uma simpatizante, aproximando-se mais dos cultos afrobrasileiros. Mesmo não sendo iniciada no candomblé, já se relacionou com esta religião ao tomar cuidados básicos em relação à proteção dos orixás e a agradecimentos aos mesmos. Conforme explica, “o Maurício lá do Estrela, que é o nosso mestre... quando a gente vai pra lá dançar maracatu, eu sempre faço algumas coisas com ele, porque ele tem um trabalho religioso, espiritual, na casa dele. Então, eu sempre faço uma consulta lá com as entidades dele, sempre faço algum tipo de ritual, algum tipo de banho para sair no maracatu. Alguma coisa, assim, bem tranquila que ele oferece pra gente e que quem fica a fim de fazer, faz. Quem não, também, não é obrigação pra sair no maracatu, nem no de lá. Eu faço porque eu gosto.” (Sic. Entrevista concedida à autora.)

Podemos conectar a fala da dançarina a respeito dos rituais de purificação, proteção e/ou agradecimento em um terreiro de xangô específico, com a perspectiva de CANCLINI (2014), quando este autor afirma que “hoje existe uma visão mais complexa sobre as relações entre tradição e modernidade. O culto tradicional não é apagado pela industrialização dos bens simbólicos” (CANCLINI, 2014, p.22), típica de nossa contemporaneidade.

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De acordo com o site36 de divulgação do trabalho de Aline, inicialmente, a Cia. de dança do Rio Maracatu buscava ser fiel às danças regionais. Entretanto, atualmente, as bailarinas se interessam muito mais em realizar uma releitura e estabelecer diálogos, constituindo “uma estética híbrida impar, com formas e conteúdos estudados, revirados e re-agrupados com criatividade e consistência”. Dessa maneira, os movimentos de dança realizados durante a toada “Princesa dos Orixás” não são exatamente as posturas dos orixás. Trata-se, na verdade, de uma representação, uma releitura idealizada pela professora Aline, a qual explica uma importante diferenciação entre a dança nas nações de maracatu, nos terreiros e nas oficinas do Rio Maracatu: “Tem uma coisa que é a dança do maracatu e a dança do Rio Maracatu. E tem, por exemplo, também, o que é a dança dentro do terreiro e o que é a dança representando os orixás, mas fora do terreiro. [...] O Rio Maracatu, hoje em dia, criou uma linguagem de dança de maracatu que é uma mistura, tanto da referência do tradicional, que a gente tem bastante com a figura do Maurício do Estrela Brilhante, que sempre foi nosso mestre [...] junto com uma linha que vem do maracatu estilizado, que já junta uma série de movimentos...porque o maracatu tradicional, ele tem uma gama de gestual de movimentação bastante simples [...] não é melhor nem pior, só tem menos repertório de movimento, mas não quer dizer que seja menos rico.”

Neste ponto, a dançarina ressaltou as nuances da dança do mestre Maurício Soares, mesmo sendo o passo básico do chamado maracatu tradicional, grosseiramente, um único. Tais nuances nos movimentos, consideradas riquíssimas por Aline, variam de acordo com as suas distintas intenções ao dançar. A professora afirma, ainda, que os maracatus mais contemporâneos, inclusive de Recife, já começaram a utilizar gestuais inspirados na dança dos orixás, realizada nos terreiros, mas de maneira “mais estilizada”, “levada pra palco”, muitas das vezes de um modo mais exagerado com o intuito de transmitir determinadas ideias aos espectadores, como força ou a ideia de guerreiro, por exemplo. Na perspectiva de Valeska Alvim, o termo tradição constantemente relacionado com o antigo, o resistente, o herdado vem do latim tradere, e quer dizer “trazer”. Buscar de uma época passada e trazer para a contextualização atual, ou seja, o campo das tradições abarca práticas que possuem seus significados primeiros em lugares do passado, mas que se relacionam de forma intercambiável com o presente, adaptando a prática tradicional a um contexto histórico atual (ALVIM, 2008, p.24). 36

Alguns dados acerca do trabalho de Aline .

Valentim

estão

disponíveis

na

página:

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Assim sendo, a dança afro contemporânea possui uma “base que parte do terreiro”, do que é considerado tradicional, mas se apresenta enquanto uma releitura, fornecendo uma nova roupagem para a corporeidade negra. Como exemplo dessa atualização da dança afro, temos o movimento realizado pelas catitas durante os ensaios e o cortejo carnavalesco do Rio Maracatu (Foto 24), inspirado em Oxum, cujo símbolo é um leque com espelho, sendo um orixá associado à beleza, à sensualidade, à maternidade e à riqueza. Na referida foto, as dançarinas fazem uma alusão à vaidade associada à Oxum, como se estivessem a mirar espelhos e a se embelezar. Foto 24 – Catirinas dançando, representando Oxum e protegendo a corte, as baianas e as rainhas negras.

Fonte: Sérgio Feijó, 2015.

Dessa maneira, podemos considerar que “toda essa gama de gestos, ritmos, cores e atitudes está assim repleta de uma carga ancestral” (CARNEIRO, 2008, p.40), configurando uma (re)invenção da tradição. Conforme afirma Valeska Alvim, a atualidade, com seu ritmo acelerado, permitiu algumas mutações nas tradições, mas não extinguiu o desenvolvimento das culturas tradicionais, apenas as deixou mais sincréticas, menos cerradas, mais provocativas em seus significados e significantes. (ALVIM, 2008, p.24)

Ora, a cultura é resultante de uma infindável construção pelos indivíduos (CLAVAL, 2006), pois pode ser analisada como o conjunto de significados

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(re)elaborados por determinado grupo a partir de suas representações (CÔRREA, 2008), ou seja, estes significados são (re)criados para atender às distintas demandas de tal grupo ao longo do tempo. Dessa maneira, [...] muitas alterações no conteúdo das práticas culturais tradicionais se fazem necessárias como forma de reorganizar os sentidos, o que, de certa forma, explica a dinamicidade e reinvenção cotidiana de manifestações da cultura popular (ALVIM, 2008, p.24).

Apesar dessas recriações nos movimentos da dança do maracatu, Aline Valentim empenha-se em conectar seu trabalho com a tradição e a história do folguedo, buscando “atualizar essa memória” negra para que o Rio Maracatu não se encerre apenas como mais um dos blocos presentes na festa carnavalesca, isto é, “pra não virar moda, pra não esvaziar”. Dessa maneira, no período précarnavalesco,

durante

os

ensaios,

a

professora

revela

sentir

“muita

responsabilidade”, pelo fato de ser negra, por lidar “com uma tradição tão antiga” e por liderar um “grupo de maioria branca”, conforme expôs durante entrevista: “Então, eu tenho uma responsabilidade muito grande [...] por isso eu tento trazer esse peso dessa negritude, um peso positivo, mas um peso que tem que ser levado em consideração porque a gente vive numa cultura, assim, que é um pouco cruel, a brasileira, que ao mesmo tempo em que é super linda, a gente tem aquele perigo, também, da democracia racial, da mestiçagem, esse elogio da mestiçagem [...] a gente sabe que na vida real não é assim.” (Sic. Entrevista concedida à autora.).

Aline confessa que parte dessa cobrança interna para que tudo seja organizado e ocorra da melhor maneira possível se deve a certa demanda externa, oriunda de “outros negros engajados” que observam o seu trabalho. Sente-se no foco dos olhares, o que a motiva a se dedicar ainda mais para que seu projeto não seja percebido apenas como apropriação cultural. “Quando tá na avenida, pra mim, assim, é um momento...é um momento que eu tento, ao máximo, me desligar disso tudo, como se eu tivesse ‘ah, eu já fiz o meu trabalho, agora eu vou ter o meu momento de realmente viver e me entregar pra esse ritmo, pra essa expressão, pra essa energia’ e tento. Pra mim é um grande esforço [...] eu não consigo muito desligar totalmente, viver o meu momento..eu tô sempre meio que coordenando [...] esse meu momento de dança, mesmo, tá sempre um pouco cortado por essa coisa da professora, por essa responsabilidade.” (Sic. Entrevista concedida à autora).

Estar na rua, para Aline se associa à entrega, a sentir-se soberana, mas ao mesmo tempo, à responsabilidade em relação às demais integrantes da ODRM. Como afirma, “na avenida, é isso, eu tento me entregar ao máximo, de viver o meu

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momento, ali, de...rainha, mesmo não sendo rainha [...] e, ao mesmo tempo, coordenar.”. Da mesma maneira, a mestra Aline Valentim considera essa responsabilidade com o Rio Maracatu relacionada ao compromisso de integrar o grupo de maracatu mais antigo no Rio de Janeiro, tendo a consciência do possível “desgaste natural do tempo” e da necessidade de realimentação contínua, ou seja, de constantemente criar um diferencial em relação aos demais grupos percussivos. A dançarina, ao relatar sobre as distintas sensações provocadas pelos espaços apropriados pelo Rio Maracatu (Ipanema, Lapa e comunidades) evidenciou uma identificação com todos, entretanto, demonstrou uma maior conexão com as comunidades, repletas de significações. A orla de Ipanema é representada de maneira bastante positiva, configurando um lugar para Aline e, simultaneamente, um símbolo da urbe carioca (Foto 25), pois, em sua opinião, “Ipanema é aquela coisa, né, aquele glamour, Zona Sul, natureza, delícia, leveza... só coisa boa, também, mas muito mais leve. Natureza, sol, praia, Rio de Janeiro total.” (Sic. Entrevista concedida à autora.). Foto 25 – A mestra Aline Valentim desfilando na Avenida Vieira Souto.

Foto: Agatha Rey Fotografia, 2015.

A Lapa igualmente se constitui como um lugar, a partir da identificação com a negritude, assim como pela semelhança estabelecida com o Recife Antigo pelo fato de ambos serem bairros históricos (Foto 26). Nas palavras de Aline Valentim,

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a Lapa também é Rio de Janeiro total, mas aí, nesse sentido, até se aproxima um pouco mais de Recife porque, quando a gente sai em Recife com os maracatus, a gente sai no centro da cidade, não sai do lado da praia... não tem maracatu em Boa Viagem, na praia de Boa Viagem, é no Recife Antigo. Então aqui, já tem um peso histórico, já tem uma negritude maior do que em Ipanema, já tem uma mistura, já tem um povão, então eu me sinto mais próxima à raiz do maracatu... E aparecem uns ‘bebuns’, uns doidos, umas entidades...então, isso é mais pé no chão. E maracatu lida com essas energias.” (Sic. Entrevista concedida à autora.) Foto 26 – Aline Valetim rodando sua saia sob ao Arcos da Lapa, em cortejo durante o evento Lapa Lê, em Abril de 2015.

Fonte: Cristiane Mendes, 2015.

Já as comunidades, na visão de Aline, possuem uma forte significação, pois a dançarina afirma que “é onde faz sentido”, onde pensa “isso é maracatu” (Foto 27). Neste ponto, verifica-se como maracatu ainda pode possuir o significado de lugar, como em tempos coloniais era considerado o lugar de sociabilidade dos negros e em que ocorriam seus batuques (SANTANA, 2012), e não apenas da prática cultural em si.

148

Foto 27 – Aline dança e é observada em uma das ruas da comunidade Pavão-Pavãozinho.

Foto: Benjamin Tollet, 2015.

O cortejo no Pavão-Pavãozinho, especialmente, causou um impacto muito positivo na professora, pois a mesma afirma que passava por uma fase de questionamentos em relação aos rumos do Rio Maracatu. Desfilar pelas vielas a remeteu a Recife, pois nesta cidade as sedes das nações de maracatu se localizam em comunidades, ao contrário do Rio de Janeiro. Em seu relato, afirmou: “Quando eu subi, eu falei ‘Caraca, tô em Recife! Tô no Alto José do Pinho!’... Aí a gente chegou na casa da moça que recebeu a gente [...] aí ela sentou na porta da casa dela e segurou a calunga, uma moça bem preta [...] quando ela sentou na porta e segurou a calunga, entende, ela não precisava fazer mais nada, ela não precisava saber dançar maracatu, ela não precisava saber a história do maracatu..ela era o maracatu! A história do maracatu tava na pele dela, na expressão daquele corpo negro” (Sic. Entrevista concedida à autora). (Foto 28)

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Foto 28 – Dona Telma, cheia de alegria, segurando a calunga do Rio Maracatu, antes do cortejo pelas vielas da comunidade Pavão-Pavãozinho.

Fonte: Benjamin Tollet, 2015.

Dona Telma, que abriu as portas de sua casa para os integrantes do Rio Maracatu se enfeitarem para o cortejo, foi convidada para desfilar com o grupo no próximo carnaval. Dessa maneira, verificamos que as comunidades poderiam ser consideradas um dos símbolos do maracatu e lugares do Rio Maracatu no Rio de Janeiro, por serem espaços de resistência e espaços do encontro.

3.5. As comunidades no ritmo do Rio Maracatu

As comunidades do Rio de Janeiro nasceram com o nome de favela. Esta surge como uma alternativa para a moradia e ocupando, sobretudo, as encostas dos morros da cidade. A primeira delas foi construída no Morro de Santo Antônio, em 1893, elevação esta mutilada nos anos cinquenta e situada junto ao núcleo central de negócios (ABREU, 2008). Mais a seguir, em 1897, soldados egressos de Canudos se instalam na vertente do Morro da Providência, construindo seus barracos com restos de madeira, zinco, papelão, latas de querosene e outros materiais. Como não conseguiam receber o soldo na capital da República, recorriam

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a esta maneira de construção de suas casas, imediatamente copiada pela população de baixa renda. A favela cresceu em ritmo e criatividade e derramou sua cultura pelo Rio e pelo país, fazendo ecoar o samba nos mais diversos rincões do Brasil. Aproveitando tal aura, abertura de portas e a rua como extensão das casas, o maracatu serpenteia sua música e sua dança em algumas comunidades cariocas, com expressiva receptividade. Optamos por denominar de comunidade este tipo de ocupação do solo urbano, a qual se confunde com o tecido urbano e a alma carioca, pois hodiernamente esses lugares diferem muito da fisionomia e da estrutura do casario original, na medida em que são construções de alvenaria e dotados em seus interiores de bens de consumo como eletroeletrônicos. Ao lado disso, convém frisar os vínculos de amizade e apadrinhamento muito presentes entre os moradores desses lugares. As favelas no passado e comunidades nos dias de hoje são plenamente cantadas pelo cancioneiro popular brasileiro, aproximando as relações morro-asfalto. Neste contexto, a presença do Rio Maracatu nas comunidades cariocas (Foto 29) ocorreu a partir da ideia de pluralizar o público do maracatu no Rio de Janeiro, predominantemente branco e de classe média. Foto 29 – Rio Maracatu se apresentando no Terraço Cultural do Museu de Favela, na comunidade carioca do Pavão-Pavãozinho.

Fonte: Benjamin Tollet, 2015.

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Até o mês de Abril de 2015, o grupo Rio Maracatu realizou dois cortejos em comunidades da cidade, realizados em comemoração à primeira década do Concurso Nacional de Marchinhas da Fundição Progresso, evento anterior ao carnaval, quais sejam: Guarda (Del Castilho) e Pavão-Pavãozinho (Copacabana). O concurso de marchinhas carnavalescas é patrocinado pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, através da Secretaria de Cultura, pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura, assim como por empresas de ramos estratégicos como a Petrobras, a Lamsa – concessionária responsável pela administração da Linha Amarela- e o Metrô Rio. Tais cortejos foram registrados pela empresa Páprica Fotografia e divulgados em forma de vídeo 37. Cabe ressaltar que, apesar dos prováveis interesses econômicos por parte do Estado e das referidas empresas na divulgação desta ação social realizada pelo Rio Maracatu, os integrantes do grupo percussivo, ao relatarem suas experiências em tais comunidades cariocas, se mostraram realizados, radiantes devido à sensação de “retorno” às origens negras do maracatu. Assim sendo, podemos afirmar que eles construíram lugares nesses espaços da cidade. Como durante as entrevistas a maioria dos integrantes demonstrou uma identificação mais forte com o Pavão-Pavãozinho, localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Copacabana, elaboramos somente um mapa desta comunidade, para fins de localização. No mapa abaixo, apenas constam os limites do Pavão-Pavãozinho e não o itinerário realizado pelo Rio Maracatu em suas vielas nem alguns dos espaços apropriados pelos integrantes, como o terraço do Museu de Favela. Isto porque, tratando-se de uma ocupação não regularizada pelos órgãos públicos, a comunidade não possui um mapeamento detalhado como os demais bairros ao seu redor (Copacabana, Ipanema). Nas imagens de satélite, apenas constam georreferenciadas a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP- Cantagalo e Pavão-Pavãozinho) e alguns hostels e pousadas. Como explicitado na introdução do presente trabalho, uma das limitações desta pesquisa foi a impossibilidade de ir a campo durante o cortejo do grupo na localidade, o que acabou influenciando na pouca minúcia em nosso mapa final, a ser melhor desenvolvido nas próximas pesquisas.

37

O vídeo encontra-se disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=x1H6Lr2QJcM>. Acesso dia 12/04/2015.

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Mapa 7 – Lugares Simbólicos do Rio Maracatu – Comunidade do Pavão-Pavãozinho (RJ).

Fonte: A autora e Evelyn Meireles (LAGEPRO- Uerj), 2015.

Os membros do Rio Maracatu, durante as entrevistas e conversas informais travadas ao longo desta pesquisa, espontaneamente fizeram um paralelo entre as comunidades cariocas, especialmente a do Pavão-Pavãozinho e os bairros de Recife em que se situam as sedes das nações de maracatu. Tal identificação em termos de “fisionomia do lugar” (RELPH, 2012) contribuiu para o enriquecimento desta experiência cultural de fazer maracatu nas comunidades cariocas.

153

Foto 30 – O casal de rei e rainha, Flávio e Marli, em viela do Pavão-Pavãozinho.

Fonte: Benjamin Tollet, 2015.

Benjamin Tollet, DJ de música afro que acompanhou o Rio Maracatu no cortejo do Pavão-Pavãozinho, registrou em fotos o desfile e afirmou que, as crianças presentes na oficina do Museu de Favela, ao se depararem com um casal de reis negros, se impressionaram, exclamando: “Uau! Um rei e uma rainha negros!” (Sic.).

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Foto 31 – Menina coroada se divertindo ao som do Rio Maracatu, na comunidade carioca PavãoPavãozinho.

Fonte: Benjamin Tollet, 2015.

Dessa maneira, a apropriação das diversas vielas pelo Rio Maracatu contribui para a fertilidade dos intercâmbios culturais, mostrando, sobretudo, a importância da representatividade para a construção e/ou afirmação da identidade negra em tempos de tamanha intolerância, assim como tal ação possui um caráter de empoderamento pois, ao dançarem músicas com forte influência negra e não acharem este fato negativo e ao se admirarem por ver um casal de reis negros, as crianças negras passam por um processo de elevação de sua autoestima.

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DERRADEIROS PULSARES – CONCLUSÃO

Esta dissertação evidenciou a edificação de lugares a partir de uma perspectiva cultural, qual seja, o Rio Maracatu com seus desfilantes, espectadores, ritmos, cores, movimentos, danças, símbolos, chamamentos e sons. Apoiando-se nas diretrizes da geografia humanística, o trabalho procurou aprofundar as relações e

significados

do

Rio

Maracatu

com

os

espaços

vividos,

percorridos,

metamorfoseados em lugares. De modo geral, a compreensão da dinâmica do grupo estudado foi facilitada pela pesquisa qualitativa, durante a qual se priorizou com quem dialogamos, que informações obtivemos para construir nosso trabalho e não quantas pessoas entrevistamos, coerentes com a valorização dos indivíduos e dos grupos sociais, seguindo os princípios da vertente humanística. Optamos por incluir em nosso referencial teórico autores cujas perspectivas de espaço e lugar são totalmente diferenciadas, se comparadas ao viés da geografia humanística, com intuito de fomentar a reflexão e o debate, mostrando como esta corrente

do

pensamento

geográfico,

também,

pode

contribuir

para

a

problematização, o pensar e a construção desses dois elementos conceituais. Diante do exposto, ao longo do trabalho, e neste fecho inconcluso, procurando responder

aos dois primeiros questionamentos inscritos

na parte

introdutória, podemos afirmar que o Maracatu já surge como uma manifestação sincrética, pois combinou elementos culturais europeus, indígenas e negros. Durante as festividades católicas com vistas à devoção de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, os negros cultuavam, também, seus orixás a partir de seus cantos e batuques. Mas, foi somente a partir da década de 1930 que o folguedo passou a ser associado às religiões de matriz africana, sendo, até mesmo, perseguido (GARCEZ, 2012). Nesse contexto, acreditamos não fazer sentido buscar uma única raiz ou fonte para o maracatu, seja a Igreja Católica ou o candomblé (culto nagô pernambucano). É mais apropriado dizer que o maracatu nasce como uma cultura híbrida. Isto posto, consideremos a perspectiva de CANCLINI (2013), o qual entende como hibridação os

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“(...) processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Cabe esclarecer que as estruturas chamadas discretas foram resultado de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras” (CANCLINI, 2013, p.XIX).

Baseando-nos no autor acima, pensamos que o Maracatu nasce híbrido. O Maracatu emergiu em meio ao autoritarismo, controle social e segregação de uma sociedade escravocrata.

Fazendo frente a tal processo coercitivo, o Maracatu

floresce, evolui e prospera repaginando símbolos católicos e do candomblé. O folguedo organizado por Irmandades católicas, sobretudo as de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, durante o qual os negros, inclusive escravizados se vestiam como membros de uma corte, utilizando roupas inspiradas em veste europeias, conectava os sujeitos celebrantes (FERNANDES, 2001) à terra natal, através do culto às suas origens africanas e seus orixás por meio de toques percussivos e danças. Concordamos com CANCLINI (2013) igualmente quando elucubramos, vale repetir, o maracatu pela perspectiva da hibridação, o que não nos limita à busca por uma essência ou origem pura do maracatu, apesar de os maracatus-nação

pernambucanos

ainda

serem

considerados

“autênticos”,

“tradicionais” tanto pelas nações quanto pelos grupos percussivos, como colocado por GARCEZ (2012). Atualmente, comungando e reaproveitando as ideias de Nestor García Canclini, o Maracatu-Nação tem sido caracterizado pela interculturalidade, por meio da disseminação de grupos percussivos os quais (re)ssignificam as bases dessa manifestação. Mais do que isso, tais grupos ganham notoriedade, se espraiando por várias cidades brasileiras, e mesmo no exterior, além de construir distintos lugares no Rio de Janeiro como enfocado pela presente pesquisa. Com efeito, analisar o maracatu como uma cultura de origens híbridas e, atualmente,

em

expansão,

possivelmente

sofrendo

uma

“glocalização”

(ROBERTSON, 1999), ou “glocalidade” como no tratamento teórico de BENKO (1990, p. 65), nos permitiu fugir do “risco de delimitar identidades locais autocontidas ou que tentem afirmar-se como radicalmente opostas à sociedade nacional ou à globalização” (CANCLINI, 2013, XXIII). Além de estabelecer relações com diversos outros grupos percussivos pelo Brasil, o Rio Maracatu interage com as nações de Recife, especialmente com o Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife, através de oficinas, pesquisas, bem

157

como da participação de mestres de maracatu nos cortejos carnavalescos do bloco e de integrantes deste nos cortejos em Pernambuco.

O conceito de “tradições

inventadas” (HOBSBAWM, 2008) foi de extrema valia para compreendermos o Bloco de Carnaval Rio Maracatu, no sentido de seus membros utilizarem o discurso da ancestralidade, da valorização do conhecimento tradicional e assim por diante. Não podemos dicotomizar o maracatu em resistência, associada às nações de Recife, ou espetáculo, quando o foco se volta para os grupos percussivos. O bloco Rio Maracatu, por exemplo, ao mesmo tempo em que vivencia lugares de expressiva visibilidade do Rio de Janeiro, os quais figuram nos cartões postais e integram estratégias de “promocionismo” (TUAN, 2013) - como Lapa e Ipanema-, busca intensamente o diálogo com nações de maracatu e realiza um trabalho de valorização da cultura negra em comunidades da cidade. Os grupos percussivos, nesse sentido, também podem atuar como práticas culturais de resistência. O Rio Maracatu se apropria do espaço urbano carioca ao longo do ano, colorindo as ruas da Lapa e de algumas comunidades, assim como realizando shows fora do espaço público. Durante o carnaval, os lugares do Rio Maracatu são forjados, também, na orla de Ipanema. Os desfiles se configuram de maneiras distintas nos referidos espaços tornados lugares, possuindo diferentes objetivos e público e originando múltiplas sensações em quem vivencia a festa. A partir das entrevistas, verificamos que quanto mais elementos e características dos espaços apropriados pelo Rio Maracatu (a Lapa, a orla de Ipanema ou as comunidades cariocas) são comparados aos de Recife, maior é a identificação dos integrantes deste grupo percussivo e, portanto, maior é o sentido de lar ou lugar, mesmo fora do circuito de lazer de maior visibilidade na cidade. Como afirma TUAN (1983), “podemos dizer que lugares muito queridos não são necessariamente visíveis, quer para nós, quer para os outros” (TUAN, 1983, p.197). Um exemplo disto são as relações afetuosas estabelecidas pelos integrantes do Rio Maracatu com as comunidades visitadas, evidenciadas através de suas falas transcritas na presente pesquisa. A respeito dos sentimentos e sensações experimentados pelos integrantes nos ensaios e nos cortejos do Rio Maracatu, podemos afirmar que são majoritariamente

positivos,

como

alegria,

amor,

força,

reenergização,

responsabilidade. Mas também existem aqueles relacionados ao cansaço físico, ao stress e à ansiedade. A combinação de toda essa gama de estados de espírito

158

permite que se configurem lugares por onde o cortejo passa, pois, as emoções positivas e negativas convivem e estas últimas tendem a desaparecer, ao término, devido à sensação de dever cumprido. Ademais, os integrantes do grupo percussivo ainda enxergam o maracatu como resistência, tradição, ancestralidade. Neste balanço, o Rio maracatu configura “lugares vernaculares” (CORRÊA, 2007), mesmo ao se apossar de parte de bairros de alta renda como Ipanema, pois representa uma prática cultural ligada à memória popular. Como visto através da documentação fotográfica, podemos constatar elementos relevantes para a análise geográfica do bloco: em Ipanema o público espectador é muito maior do que o da Lapa ou das comunidades. No litoral da zona sul, este público, inclusive, encontra-se segregado de maneira mais visível com o emprego de cordas que separam desfilantes e plateia. Nos outros referidos simbólicos lugares esta separação é bem mais sutil, sendo as fronteiras mais fluidas. A corda, neste contexto, atua como uma demarcação, mas, considerando as ilações de Yi-Fu Tuan (2006) em Paisagens do Medo, “de modo geral, todas as fronteiras construídas pelo homem na superfície terrestre – cerca viva no jardim, muralha na cidade, ou proteção do radar – são uma tentativa de manter controladas as forças hostis. As fronteiras estão em todos os lugares porque as ameaças estão em toda parte: o cachorro do vizinho, as crianças com sapatos enlameados, estranhos, loucos, exércitos estrangeiros, doenças, lobos, vento, chuva” (TUAN, 2006, p.12-13).

No caso do Rio Maracatu, algumas atitudes como transposição da corda para tirar fotos, em Ipanema, ou mesmo a simpática interação da população de rua, na Lapa, não deixa de ser invasiva em relação ao desfile de maneira geral.

Mas,

transpondo os limites da corda, no seu todo, o Maracatu engendra lugares em ambos os lados da fronteira, ou seja, entre os desfilantes e aqueles que apreciam o cortejo. Se a corda não se constitui em elemento impeditivo para a criação de lugares em Ipanema, igualmente na Lapa e nas comunidades sem este recurso de isolamento, lugares são vividos e edificados em temporalidades próprias, podendo ser intimamente carregados e rememorados.

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