Vícios Privados: sobre o conceito de masturbação em Freud

July 15, 2017 | Autor: Fabio Tha | Categoria: Psicanálise, Psicologia E Psicanalise
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VÍCIOS PRIVADOS Sobre o conceito de masturbação em Freud Fabio Tha

RESUMO: Este texto analisa o percurso da noção de masturbação no pensamento freudiano, desde seu aparecimento como causa da neurastenia (destacada por Freud do quadro geral das neuroses atuais) até sua formulação como conceito geral de vício primário sendo o protótipo de todos os vícios. Investiga também os efeitos dos vícios na formação do caráter provocados pela forma de satisfação auto-erótica e a consequente evitação do amor objetal. Finalmente comenta como nossa sociedade capitalista está sustentada sobre a satisfação auto-erótica.

I Desde o início de sua obra Freud dividia as neuroses em dois grandes grupos: as neuroses atuais e as psiconeuroses (ou neuroses de transferência). Nunca abandonou essa divisão e, embora não tenha dedicado nenhum trabalho específico a ela, em várias ocasiões ao longo de sua obra refere-se a ela como sendo válida e pertinente. Não me interessa nesse texto preencher essa lacuna ou explorar as nuances sutis das diferenças entre essas duas formas de neurose, embora seja um tema absolutamente contemporâneo. Vou ater-me exclusivamente a uma das formas das neuroses atuais, a neurastenia - a outra é a neurose de angústia - e mais especificamente a uma de suas causas: o hábito masturbatório praticado regularmente e “compulsivamente”. A neurastenia como quadro clínico foi estabelecida pelo médico americano George Beard que o apresentou pela primeira vez em uma conferência apresentada em 1868 na New York Medical Journal Associaton. (Tripicchio, 2007) Trabalhando clinicamente sobre esse quadro, Freud destaca dele a neurose de angústia em seu famoso trabalho de 1895 Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada ‘neurose de angústia’, texto de uma atualidade impressionante nesses nossos tempos de síndromes do pânico ... Em 1896, em Hereditariedade e etiologia das neuroses, escreve: A neurastenia propriamente dita, se destacamos dela a neurose de angústia tem um aparecimento clínico muito monótono: fadiga, pressão intracraniana, dispepsia flatulenta, constipação, parestesias espinhais, fraqueza sexual, etc... A única etiologia específica é fornecida pela masturbação (imoderada) ou por emissões espontâneas. É a ação prolongada e intensa dessa perniciosa satisfação sexual que é suficiente, por si mesma, para provocar uma

2 neurose neurastênica ou que impõe ao sujeito o selo neurastênico especial, manifestado mais tarde sob a influência de uma causa acessória incidental. (Freud, 1896: 172)

Essa posição freudiana pode parecer exagerada e ultrapassada aos olhos de hoje, uma época em que a masturbação é até cultuada como forma de satisfação sexual. Afinal, trata-se do Freud da década de 1890, antes da psicanálise. No entanto manifesta essa mesma posição em 1912, no texto Contribuições a um debate sobre a masturbação. Esse debate ocorreu na Sociedade Psicanalítica de Viena, durante nove noites, de 22 de novembro de 1911 a 24 de abril de 1912. O texto publicado de Freud é sua conclusão desse debate. Ali ele escreve, contrapondo-se a Stekel: Tenho que confessar que aqui, mais uma vez, não posso partilhar o ponto de vista de Stekel ... A seu ver, a nocividade da masturbação equivale apenas a um preconceito insensato que, devido simplesmente a limitações pessoais, não nos dispomos a rejeitar com suficiente cuidado. Acredito, contudo, que, se fixarmos nossos olhos sobre o problema sine ira et studio na medida, é claro, em que pudermos fazê-lo - seremos antes obrigados a declarar que assumir tal posição contradiz nossas opiniões fundamentais sobre a etiologia das neuroses. (Freud, 1912: 315)

Como podemos ver Freud continuou mantendo sua posição sobre a nocividade da masturbação. Porque estava ele tão convencido disso? Para responder essa pergunta é necessário fazer um rápido levantamento de suas opiniões sobre o onanismo. Uma das primeiras referências vamos encontrar esta na carta 79: “Comecei a compreender que a masturbação é o grande hábito, o ‘vício primário’, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios - álcool, morfina, tabaco, etc... adquirem existência.” (1950/ [1892-1899]: 367) Essa visão da masturbação como vício, e como vício paradigmático já que matriz de outros vícios, permanece inalterada na obra freudiana e vai adquirir importância na caracterização da principal diferença entre as neuroses atuais e as psiconeuroses. Se isso for assim a dependência química primariamente se instala como substitutivo para uma falta de satisfação sexual, exatamente como a masturbação. Mas além da dependência química as outras formas de dependência também podem ser encaradas por esse viés. É isso que Freud faz ao tratar da dependência de Dostoievski do jogo, durante o período em que ele viveu na Alemanha quando se mostrou obcecado pela mania do jogo: “O ‘vício’ da masturbação é substituído pela inclinação ao jogo ... “(Freud, 1928: 222).

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O problema do vício da masturbação é sua forma de satisfação, obtida através das atividades auto-eróticas da primeira infância, regida pelo princípio do prazer com a evitação sistemática do princípio da realidade. Mais adiante veremos o que isso quer dizer. O fato é que esse vício, na opinião de Freud, corrompe o caráter pois, em primeiro lugar, “acostuma o indivíduo a atingir objetivos importantes sem esforço e pelos meios mais fáceis, e não através de uma ação vigorosa, ou seja, obedece ao princípio de que a sexualidade constitui o protótipo do comportamento.” (1908: 204). Em segundo lugar porque na fantasia masturbatória o objeto sexual é elevado a níveis de perfeição e complacência irreais. Freud cita a propósito uma anedota de Karl Kraus, um espirituoso escritor de um jornal vienense: “A copulação nada mais é do que um substituto insatisfatório da masturbação.” (1908: 204) Considerar que a sexualidade constitui o protótipo do comportamento significa dizer que nossa forma de satisfação sexual, isto é, que envolve o corpo enquanto descarga, molda nosso caráter. É nesse sentido que masturbação para Freud, de denominação de um ato, passa a ser encarada como um conceito genérico, que abriga vários atos similares entre si. A masturbação não é nada definitivo - somática ou psicologicamente - não é um ‘agente’ real, mas simplesmente o nome para certas atividades. ... E não esqueçam que a masturbação não deve ser igualada à atividade sexual em geral: ela é atividade sexual sujeita a certas condições limitantes. (Freud, 1912: 316)

Nesse texto de 1912, o mais completo sobre o assunto, Freud lista os três tipos de danos que podem ocorrer a partir das práticas masturbatórias, agora o nome genérico das atividades praticadas durante os comportamentos de dependência, ou seja, durante os vícios. O primeiro evidentemente é o prejuízo orgânico. O segundo é o estabelecimento de um padrão psíquico, ao qual nos referimos acima, pelo qual não há necessidade de passar pelas agruras da alteração do mundo externo para obter a satisfação. E o terceiro é a persistência de um infantilismo psíquico, no dizer de Freud, o que significa a disposição para a ocorrência de uma neurose. A atividade masturbatória, como realizadora da fantasia - “aquela região a meio caminho, inserida entre a vida de acordo com o princípio do prazer e a vida de acordo com o princípio da realidade” (Freud, 1912: 317), predispõe à neurose, seja em função de um refúgio da vida de fantasia sem conflito, o que resulta em uma neurose atual, seja em função de um conflituoso refúgio na vida de fantasia, o que resulta em uma psiconeurose.

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E aqui reencontramos a diferença entre as duas formas de neurose. Nesse mesmo texto Freud declara: “Nada vejo que nos obrigue a abandonar a distinção entre ‘neuroses atuais‘ e psiconeuroses e não posso encarar a gênese dos sintomas, no caso das primeiras, senão como tóxica.” (1912: 312) Eis o fato: os sintomas das psiconeuroses são determinados em função da emergência de um conflito psíquico, conflito que opõe no sujeito sua vida de desejo e os limites impostos pela realidade à suas formas de satisfação, ou seja os sintomas tem um estatuto simbólico, logo interpretáveis. Já nas neuroses atuais os sintomas são frutos de intoxicação, vale dizer, o sujeito está intoxicado pela fantasia e pela forma de satisfação obtida com ela, da qual tornou-se dependente. Aqui não há conflito. Isso tem reflexos sobre o tratamento: A essência das teorias a respeito das ‘neuroses atuais’ que apresentei no passado e estou defendendo hoje reside na minha declaração, baseada em experimentos, de que seus sintomas, diferentemente dos psiconeuróticos, não podem ser analisados. Isto equivale a dizer que a prisão-de-ventre, as dores de cabeça e a fadiga do neurastênico não admitem serem remontadas, histórica ou simbolicamente, a experiências operantes, e não podem ser compreendidas como substitutos da satisfação sexual ou como conciliações entre impulsos instintuais opostos, como é o caso dos sintomas psiconeuróticos (ainda que os últimos talvez possam ter a mesma aparência). Não acredito que seja possível contrariar esta declaração com o auxílio da psicanálise. Por outro lado, admitirei hoje aquilo em que fui incapaz de acreditar anteriormente - que um tratamento analítico pode ter um efeito curativo indireto sobre sintomas ‘atuais’. (1912: 314)

Em resumo, os comportamentos induzidos pelos vícios não são sintomas no sentido analítico do termo, ou seja, o vício não é um símbolo, como as pernas doloridas de uma histérica. O vício é uma intoxicação de satisfação, ou de gozo, se preferirem. O objeto do viciado não é o outro ao alcance da mão. Pelo contrário, é a recusa do outro. O viciado não tolera o mundo externo e refugia-se em sua satisfação imaginária autoerótica, solitária. O vício é sempre privado. O viciado quase que realiza o programa do princípio do prazer, ilustrado pela ficção do ovo, como Freud a enuncia em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental: Um exemplo nítido de um sistema psíquico isolado dos estímulos do mundo externo e capaz de satisfazer autisticamente (...) mesmo suas exigências nutricionais é fornecida por um ovo de pássaro, com sua provisão de alimento encerrada na casca; ... (1911: 279)

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Os vícios, ou as atividades masturbatórias, podem adquirir várias formas, mas todas elas resultam em satisfação auto-erótica alcançada através de sua derivada imediata, a satisfação narcísica. Convenhamos, no fundo toda a satisfação é auto-erótica, uma vez que não há satisfação fora do corpo. Mas esse auto designa justamente as formas de descarga sem contornar o objeto no mundo externo, ou dito mais propriamente sem passar pelo amor objetal. A satisfação alcançada através do objeto amoroso não deixa de ser também uma derivada da satisfação auto-erótica, porém uma derivação secundária, pois necessita do concurso do princípio da realidade. É assim que um homem convive com um casamento insatisfatório e infeliz durante muitos anos graças ao MSN. Lá ele encontra mulheres com quem realiza seu ideal narcísico, confidenciando seus segredos a elas, mas, principalmente, ouvindo delas suas confidências, sendo para elas O homem, fora da série de seus semelhantes. Essa satisfação o ‘consola’ e alimenta sua insensata tentativa de obter o mesmo de sua mulher. Ou então o jovem iniciante que convive com uma angústia de longa data e, diante da premência de seu desejo sexual, apavora-se com a proximidade amorosa e sexual de uma mulher. Graças ao MSN, arrisca ver a nudez da parceira e despir-se diante dela, exibir seu membro e masturbar-se diante da telinha. A propósito, esse jovem tendo podido galgar importantes passos no caminho do amor objetal, passou a se sentir angustiado após suas práticas masturbatórias e, a partir dai, ousou encarar sua ‘fobia’ de frente. Ou ainda a jovem com importantes dificuldades físicas que consegue catalizar o interesse e até o amor de uma amiga fazendo-se passar por quem não é, seja via torpedos seja via MSN. Esses exemplos poderiam ser multiplicados, mas neles não é difícil reconhecer o padrão da satisfação masturbatória, mesmo que ela esteja encoberta pela satisfação narcísica. Afinal, o que pode querer dizer o chek-in do Facebook, senão denunciar o desejo de que todos saibam onde EU estou e que coisas maravilhosas SOU capaz de fazer. II Os vícios privados estão no fundamento do liberalismo, o solo de nossa civilização capitalista atual. Vícios privados, benefícios públicos. Essa é uma observação do próprio pai do liberalismo econômico, Adam Smith: O indivíduo só pensa em obter pessoalmente uma maior segurança; e ao dirigir essa indústria de maneira que seu produto tenha o maior valor possível, ele só pensa em seu próprio ganho; nisso, como em muitos outros casos, ele é conduzido por uma mão invisível a cumprir um fim

6 que não entra de modo algum em suas intenções; ... Ao buscar apenas o interesse pessoal, ele costuma trabalhar de maneira bem mais eficaz pelo interesse da sociedade que se tivesse realmente por objetivo nela trabalhar. (Dufour, 2008: 87)

Segundo Dany-Robert Dufour, em seu livro O divino mercado: a revolução cultural liberal a criação do liberalismo foi de Bernard de Mandeville, um médico holandês de origem francesa que radicou-se em Londres em 1691 . Trabalhando sobre as ‘doenças da alma’ percebeu que elas deviam-se ao refreamento excessivo das paixões. Percebeu o que a psicanálise iria teorizar mais de duzentos anos depois como a primazia da sexualidade na causa dos sintomas. Mas foi mais além e percebeu também o que comentamos acima, de que a sexualidade constitui o protótipo do comportamento. E foi além do privado, relacionando-o com o público na seguinte máxima: “Seja tão ávido, egoísta, gastador para o seu próprio prazer quanto você puder ser, pois assim fará o melhor que puder fazer para a prosperidade de sua nação e a felicidade de seus concidadãos.” (Dufour, 2008: 261) A nossa sociedade, que muitos gostam de chamar de pós-moderna, realizou essa máxima em plenitude. Elevou o auto-erotismo à uma máxima de mercado, instaurouo como padrão de felicidade, e percebeu que, quanto mais estimular a busca dos objetos que propõe para a satisfação fácil pelo viés egoísta, mais a sociedade cresce, ou seja, acumula capital. Instaurou-se dessa forma uma corrida desenfreada em busca da felicidade, entendida como satisfação narcísica, o que tem aprisionado o homem cada vez mais em sua adoração a seu próprio eu, enquanto que a pobre Eco chama, chama em vão. Com auxílio da tecnologia aquilo que era pura fantasia pode adquirir uma realidade, virtual, mas realidade. Esse é um fato cujo alcance ainda estamos longe de perceber em todas as suas consequências. A realidade virtual dá continente, oferece um espaço público, e com isso a ilusão de realidade, a um eu forjado na fantasia, logo, à projeção de um ideal. Sabemos que esse ideal é uma ilusão. Mas é dessa ilusão que o homem pós-moderno passa a viver. O resultado é o preconizado por Freud para o masturbador viciado: o estabelecimento de um padrão psíquico, pelo qual não há necessidade de passar pelas agruras da alteração do mundo externo para obter a satisfação, quer dizer, um enfraquecimento do amor objetal, e a persistência de um infantilismo psíquico, ou seja, o enfraquecimento da razão crítica e da tolerância ao sofrimento. É nessa realidade virtual que o homem contemporâneo está cada vez mais imerso, formando uma espécie de rebanho cego, dirigido pela mão invisível do mercado,

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iludindo-se de que é cada vez mais livre e autônomo. A essa forma de organização social Dany-Robert Dufour chama de egoísmo gregário. As pessoas se agregam, formam bandos, mas cada um só está ali pela própria satisfação. (Dufour, 2008: 23) Um bando de onanistas convictos. III Talvez seja desnecessário dizer o quanto isso nos diz respeito na clínica, e isso por várias razões. 1- O saudável conflito psíquico que pode tornar as pessoas neuróticas, mas que as impulsiona no sentido de uma vida melhor e menos sofrida está mais raro. Como há uma série de recursos para se lidar com a angústia, muitas vezes parece que as pessoas não conseguem evoluir para a dimensão simbólica do sintoma. É como se o conflito, nesses casos, ficasse en soufrance, para usar uma expressão de Lacan. É como se voltássemos um passo atrás: Freud dizia que a análise serve para transformar o sofrimento neurótico em sofrimento comum. Parece que temos que transformar o “sofrimento autista” em sofrimento neurótico. 2 - Enfrentamos um problema de mercado, sem dúvida. Mas isso não é novidade para a Psicanálise. Afinal, o futuro é sempre da religião, dizia Lacan. Entre nós e a mão invisível do mercado é muito provável que ela ganhe. 3 - O que nos coloca realmente em desvantagem nessa luta com a religião do mercado, a meu ver, é uma questão de caráter. O homem contemporâneo não quer pensar, tem pressa em conseguir o bem estar. E isso o torna intolerante à lentidão da razão crítica e às desilusões e sofrimentos que essa atividade de separar-se de si mesmo comporta. Nos casos promissores parece que há um período pré-analítico de ‘educação’.

REFERÊNCIAS Dufour, Dany-Robert. (2009) O divino mercado: a revolução cultural liberal. Rio: Companhia de Freud. Freud, S. (1895). Sobre os critérios para destacar da neurastenia uma síndrome particular intitulada ‘neurose de angústia’. ESB, vol. III. Rio: Imago (1896) A hereditariedade e a etiologia das neuroses. ESB, vol. III. Rio: Imago (1908) Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna. ESB. vol. IX. (1911) Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. ESB, vol. XII (1912) Contribuições a um debate sobre a masturbação. ESB, vol. XII (1928) Dostoievski e o parricídio. ESB, vol. XXI (1950/[1892/1899]) Extratos dos documentos dirigidos à Fliess. ESB. vol. I

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Tripicchio, Adalberto. (2007) A insólita história da síndrome da fadiga crônica e o poder persuasivo dos gigalaboratórios farmacêuticos - parte I. http://www.redepsi.com.br/ portal/modules/smartsection/item.php?itemid=637.

Balneário Camboriu, 22 de novembro de 2011

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