Vicissitudes do sujeito na clínica do falasser

July 11, 2017 | Autor: Adriane Barroso | Categoria: Psicanálise, Sujeito, Gozo, Clínica Psicanalítica, Hipermodernidade, Falasser
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de pós-graduação em Psicologia

Adriane de Freitas Barroso

VICISSITUDES DO SUJEITO NA CLÍNICA DO FALASSER

Belo Horizonte 2013

Adriane de Freitas Barroso

VICISSITUDES DO SUJEITO NA CLÍNICA DO FALASSER Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia. Orientadora: Dra. Ilka Franco Ferrari

Belo Horizonte 2013

Adriane de Freitas Barroso

VICISSITUDES DO SUJEITO NA CLÍNICA DO FALASSER Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia.

____________________________________________ Ilka Franco Ferrari – PUC Minas (Orientadora)

____________________________________________ Ana Maria Rudge – PUC-Rio

____________________________________________ Andrea Maris Campos Guerra – UFMG

____________________________________________ Henrique Figueiredo Carneiro – Universidade de Pernambuco

____________________________________________ Mario Elkin Ramirez - Universidade de Antioquia (Colômbia)

Belo Horizonte, 27 de novembro de 2013.

Para o Adelanir e a Regina, que me deram o mundo todo, e para o Pedro, que me deu a Nina, que me deu um mundo novo.

AGRADECIMENTOS

E a tese virou filha. O meu obrigada à Ilka Franco Ferrari, por ter acreditado desde o início que eu poderia gestar algo bom, por ter apoiado a espera com a proximidade exata e por ter deixado esta tese nascer naturalmente. A todo o pessoal da pós-graduação em Psicologia da PUC Minas – alunos, professores, funcionários –, por permitir que existisse vida além desta gestação. Ao Fundo de Incentivo à Pesquisa (FIP) da PUC Minas, por acreditar no que estava por vir. À Andréa Guerra, à Ana Maria Rudge, ao Henrique Carneiro e ao Mario Elkin, por me ajudarem a ser mais orgulhosa do que eu consegui dar à luz. Ao meu pai, por eu ser tão filha dele no que eu mais me orgulho de mim. À minha mãe, por ter ido comigo e por ter me deixado ir sozinha – tomara que eu saiba repetir a medida. À Carol e ao Bru, por guardarem o que eu sou desde o princípio. Ao Pedro, que esperei na companhia deste texto tantas e tantas vezes em aeroportos, quartos de hotel, bibliotecas – em solo brasileiro, americano, europeu, equatoriano. Por me deixar falar da psicanálise. Por ter inaugurado um novo começo. Por ter me dado a Nina, uma conclusão de doutorado muito mais bonita do que qualquer tese. À Nina, que antecipou este final, mas veio na hora certa – hoje sei que seria a hora certa qualquer momento em que você viesse. Bem vinda, filha.

A ideia de Lacan era a de que nos tornamos psicanalistas porque não podemos agir de outra forma, e que vale quando é uma escolha forçada, isto é, quando fizemos a ronda dos outros discursos e voltamos a esse ponto em que todos aparecem como falhos, e nos relançamos no discurso do analista porque não temos como agir de outra forma. (MILLER, 2011b, p. 35-36).

RESUMO Esta tese tem como objetivo percorrer a trajetória teórica lacaniana do conceito de sujeito ao de falasser, compreendendo esse percurso como resultado do diálogo ininterrupto do ensino de Lacan com a realidade social. O enfraquecimento da instância simbólica e a consequente exaltação do gozo a que assistimos nos modos de vida atuais trouxeram efeitos para a teoria e a clínica psicanalíticas, historicamente conectadas entre si e ao horizonte de sua época. Diante dessa realidade, o conceito de sujeito, que tem suas raízes em Freud e foi estabelecido formalmente por Lacan desde seu primeiro ensino, deixou em aberto uma fresta pela qual foi possível entrever um mais além. Se a noção de sujeito dividido, $, liga-se à concepção de linguagem como esvaziadora de gozo, esse esvaziamento torna-se limitado com a constatação lacaniana de que o gozo é inerente ao corpo, o que levou ao conceito de falasser. Essa nova construção, contudo, não prescinde do sujeito, cuja lógica continua central para a clínica psicanalítica lacaniana hoje, podendo, muitas vezes, operar como um tratamento para o empuxo ao gozo. Para explicitar a relação intrínseca entre esses dois conceitos, utilizamos como recurso metodológico a pesquisa teórica orientada pela exposição de um caso clínico, fio condutor que ensina sobre distinções e imbricações entre a primeira clínica de Lacan, que põe em primeiro plano o sujeito, e a segunda, que dá lugar ao falasser.

Palavras-chave: Sujeito. Falasser. Clínica psicanalítica. Gozo. Realidade social.

ABSTRACT This thesis aims to go from the Lacanian concept of subject to his late concept of parlêtre, understanding that this route shows Lacan’s constant compromise with the changes of his social reality. The weakening of the Symbolic registry and the exaltation of jouissance nowadays bring consequences for the psychoanalytic theory and clinic, always connected between each other and with the historic moment that they testify. In their practices in psychoanalytic clinic, both Freud and Lacan could notice a void in the logic of the subject, where it was possible to glimpse that there was something beyond that point. If the notion of divided subject, $, binds to the conception of language as empty of jouissance, it shows its limitation with the Lacanian statement that jouissance is inherent in the body, which lead, later, to the concept of parlêtre. This new construction, however, does not obviate the subject, whose logic remains central to Lacanian psychoanalytic practice and may often operate as a treatment for the jouissance. To clarify the intrinsic relationship between these two concepts, subject and parlêtre, we chose as methodological resource a theoretical research, combined to the study of a clinical case that teaches about distinctions and overlaps between the first Lacanian clinic, which foregrounds the subject, and the second one, that gives rise to the parlêtre.

Keywords: Subject. Parlêtre. Psychoanalytic clinic. Jouissance. Social reality.

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 1.1. Problema ............................................................................................................ 16 1.2. Objetivos geral e específicos.............................................................................. 16 1.3. Justificativa ......................................................................................................... 18 1.4. Metodologia ........................................................................................................ 19

2. PARTINDO DA CLÍNICA: UM CASO .................................................................... 24 2.1. Lucas: crer no pai, não crer na droga ................................................................. 28 2.2. A que realidade social Lucas responde? ............................................................ 34 2.2.1. A toxicomania como paradigma ...................................................................... 41

3. “BEM ANTES DE ELE NASCER...”: O QUE FREUD JÁ SABIA DO SUJEITO ..... 50 3.1. A raiz do sujeito em Freud, para além do princípio do prazer ............................ 54

4. LACAN: POR UMA PSICANÁLISE DO SUJEITO ................................................. 63 4.1. Através do espelho: o imaginário como pré-história do ensino lacaniano .......... 66 4.2. Do imaginário ao simbólico, o primeiro ensino de Lacan ................................... 70 4.3. Lacan além de Freud: especificidades do segundo ensino, na fronteira entre imaginário e simbólico ............................................................................................... 74

5. A SEGUNDA CLÍNICA DE LACAN: HÁ GOZO ..................................................... 85 5.1. A clínica borromeana e a escrita fora do sentido ............................................... 93 5.2. Sinthoma: aquilo que, do sujeito, não se cura .................................................. 100 5.3. Falasser: en corps ............................................................................................ 106

6. UMA NOVA CLÍNICA: ONDE ESTÁ O SUJEITO? .............................................. 113 6.1. Há clínica?........................................................................................................ 127

7. CONCLUSÕES ................................................................................................... 135

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 146

ANEXOS ................................................................................................................. 162 Anexo 1. Parecer do comitê de ética da PUC Minas ............................................... 163

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1. INTRODUÇÃO Uma verdade de fato é o centro único em que meu discurso encontra sua coerência interna, e pelo qual pretende ser para vocês o que será, se fizerem o obséquio de recorrer a ele em nossos trabalhos futuros: esse ABC, esse rudimento cuja falta às vezes se faz sentir num ensino sempre comprometido com algum problema atual, e que concerne aos conceitos dialéticos – fala, sujeito, linguagem – nos quais esse ensino encontra suas coordenadas, suas linhas e seu centro de referência. Isso, não para lhes propor esses conceitos em definições formais nas quais vocês encontrariam uma oportunidade para renovar as entificações que eles almejam desfazer, mas colocando-os a seu alcance no universo de linguagem em que eles se inscrevem a partir do momento em que eles pretendem reger o movimento desse universo, pois é ao se referirem à articulação deles nesse discurso que vocês perceberão o emprego exato em que poderão retomá-los, na nova significação em que lhes será facultado servirem-se deles. (LACAN, 1953/2003, p. 153).

O trecho acima ilustra um dos diversos momentos em que Lacan, ao longo de seu ensino, enfatiza tanto sua preocupação em estar conectado a questões atuais de sua época quanto a importância de impedir a coagulação de conceitos e a mitificação de ideias em psicanálise. O autor buscava garantir à teoria a maleabilidade necessária para permitir sua ligação estreita, de diálogo constante, com a clínica psicanalítica, reiteradamente atualizada pela realidade social1 de cada tempo. Não poderia ser diferente, considerando-se a trajetória desse campo de saber. Freud sempre fez suas descobertas teóricas em movimento de espiral, construindo-as e desconstruindo-as a partir do que se presentificava em sua prática. Lacan, nessa mesma linha, mostrou-se, desde o início, atento ao fato de que, na psicanálise, não se trata de derrubar com novas construções o que foi anteriormente erguido, mas de permitir que seu alicerce teórico seja continuamente alterado por articulações com as construções seguintes. Isso significa um avanço não em linha reta de conceitos, mas em um espaço que se organiza topologicamente, em várias dimensões, fazendo coabitar leituras temporalmente distintas. Significa não a

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Por acreditarmos na linguagem como pano de fundo imprescindível da teoria psicanalítica, adotamos a expressão “realidade social”, do linguista americano John Searle: “todo o trabalho de Searle sobre a construção social da realidade estrutura-se no fato de que a sociedade se funda sobre um ato de fala em dado contexto [...], a linguagem tem sua importância até mesmo no trabalho com o real” (FERRARI, 2008, s.p.). Laurent e Miller (2005) destacam, no trabalho de Searle, sua consideração sobre a capacidade biológica do ser humano de simbolizar e sobre a incidência inevitável da linguagem no real.

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eliminação de formas de pensamento que poderiam ser tomadas como obsoletas, mas a ideia de que criar conceitos é proceder inéditos recortes do real, abrindo janelas adicionais às anteriores, de forma a permitir um ponto de vista a mais (MILLER, 2008a). Elia (2007), contudo, alerta para o fato de que a categoria de “conceito” não poderia ser aplicada ao sujeito da psicanálise – nem, consequentemente, ao falasser2 – se tomada exclusivamente do ponto de vista filosófico e científico. Isso porque ele não é, como pressupõem esses saberes, um construto concebido para conferir inteligibilidade a um recorte específico da realidade empírica. A categoria de sujeito em psicanálise só ganha o estatuto de conceito se levada em conta em relação ao que Freud (1915a/1996) chama de Grundbegriff, traduzido do alemão para “conceito fundamental”. Trata-se de algo que decorre muito mais da experiência, do trabalho do analista e do que dele resulta como construção. O sujeito como conceito impõe-se à experiência analítica não como um dado prévio, mas apenas a partir de seus efeitos, como, por exemplo, as formações do inconsciente. Se tratamos como conceito o sujeito e, nessa mesma linha, o falasser, é porque nos alinhamos a Elia (2007) ao compreendê-los como conceitos fundamentais, definição que parece pertinente à maneira psicanalítica de fazer teoria, fundando-a a partir do real que surge da prática. O sujeito foi uma consequência lógica, uma conclusão que Lacan, a posteriori, pôde fazer advir do que já estava ali como condição de possibilidade, mesmo antes de ser circunscrito. É dele que parte a clínica e, ao mesmo tempo e no caminho reverso, é a experiência analítica que lança luz sobre ele. Isso explica que Lacan possa ter localizado o sujeito nas entrelinhas do texto freudiano como um pressuposto, apesar de Freud nunca o ter formalizado, contentando-se em associar o termo Subjekt (no original, em alemão) quase sempre indistintamente, à noção de autor ou participante ativo de uma ação, como determinava sua formação médica, cartesiana. O sujeito do inconsciente, bem como a teoria psicanalítica em que ele se apoia, não seria possível senão após a emergência do sujeito unívoco de Descartes. Essas duas concepções, a princípio tão distintas, podem ser tomadas como inscritas 2

Em francês, parlêtre, termo criado por Lacan a partir da conjunção entre o verbo parler (falar) e o substantivo être (ser).

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em uma mesma superfície, à maneira da banda de Moebius3: com Lacan (19691970/1992), entendemos que o discurso do mestre que apoiou o surgimento da ciência cartesiana não é o oposto do discurso analítico, mas dialoga com ele na condição de avesso.

FIGURA 1. Banda de Moebius na ilustração do artista gráfico holandês Escher FONTE: CRATO, 1999.

A psicanálise parte da abordagem de sujeito de Descartes, mas propõe uma torção. O descentramento da razão e o abalo da noção de unidade trazidos pelo inconsciente freudiano foram indícios do que, mais tarde, Lacan estabeleceria formalmente como sujeito em psicanálise. Não digo que Freud introduz o sujeito no mundo – o sujeito como distinto da função psíquica, a qual é um mito, uma nebulosa confusa – pois é Descartes quem o faz. Mas direi que Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo – Aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, sol Ich werden.4 (LACAN, 1964/1998, p. 47).

Se o inconsciente psicanalítico é a invenção de Freud, o sujeito é marca da originalidade do ensino5 de Lacan, que, apesar de apoiar-se no argumento de

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Precursora do campo matemático da topologia, a banda de Moebius opera uma subversão no espaço comum de representação, ao apresentar uma continuidade entre direito e avesso. A materialização desse espaço topológico pode ser obtida pela colagem das duas extremidades de uma fita após se efetuar nela uma meia volta. Lacan referiu-se a essa figura em vários momentos de seu ensino. 4

As variações na tradução e na compreensão desta frase freudiana serão discutidas ao longo do presente trabalho. Miller (2003a) afirma que Lacan nunca usa a expressão “minha teoria”, mas “meu ensino”, por compreender que haveria nele várias teorias distintas que dialogam entre si, como este trabalho procura explicitar. 5

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retorno ao texto freudiano, não se ateve à sua releitura6. Mais do que isso, Lacan estabelece com Freud um movimento de metáfora – primeiro, a substituição dos significantes freudianos por seus próprios e, mais tarde, desses seus significantes iniciais por outros, de forma a produzir constantemente novos efeitos de significação (MILLER, 2005a). O tema do sujeito em psicanálise é explorado já nos primeiros seminários lacanianos, que procuram alusões, em Freud, ao que seria sua raiz ou pré-história. Naquele momento, Lacan já considerava o simbólico como a sede do sujeito, e resgatava, para sustentar suas ideias, elaborações freudianas como representações (vorstellungen), traços de memória (erinnerzeichen) e signos de percepção (wahrnehmungszeichen), que faziam referência à linguagem (ELIA, 2007). O organismo só se humanizaria quando sulcado por essas marcas provenientes do Outro, que são significadas a posteriori e precipitam um sujeito que é, ao mesmo tempo, convocado pelo significante e resposta a ele. A partir de seu “Seminário 11” (1964), Lacan vai expor uma concepção modificada do sujeito, situando-o menos como estritamente determinado pelo simbólico e mais como resultado do encontro da linguagem com o circuito pulsional. Essa constatação parte da afirmação, garimpada por ele no texto de Freud (1915a/1996), a respeito do aparecimento de “um novo sujeito” (ein neues Subjekt) ao término do trajeto da pulsão do eu ao objeto. Mais tarde, especialmente a partir do “Seminário 20” (1972-1973), Lacan ressalta ainda mais a dimensão do real como suplemento necessário ao sujeito como produto da linguagem, uma vez que passa a entender que é o corpo, daí em diante, o suporte indispensável do gozo. Essa virada teórica foi tão significativa que modificou conceitos lacanianos centrais – como corpo e linguagem, para citar alguns – e abriu espaço para novas construções teóricas, dentre as quais destacamos o falasser.

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Alinhamo-nos à afirmativa de Santos (2002) de que o ato de redizer sempre promove uma separação, fazendo surgir algo inédito e próprio de quem lê. O argumento também é usado pela autora para constatar o que seria uma separação de Jacques-Alain Miller do ensino de Lacan, que vem sendo apontada – e, muitas vezes, criticada – por diversos autores da psicanálise. Esse debate abrange uma série de questões, não apenas epistemológicas, mas também políticas, que fogem ao interesse desta pesquisa e do que entendemos ser o foco de uma tese acadêmica. Vale dizer, contudo, que, como fica evidente ao longo do texto, alinhamo-nos à leitura de Miller sobre o ensino de Lacan, fazendo dele referência fundamental e um dos autores centrais deste trabalho.

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Por essa via de leitura, que mostra as alterações no conceito de sujeito ao longo do texto lacaniano, chegamos ao esboço do que costumamos chamar de três ensinos de Lacan. No primeiro, a ênfase recai sobre o sujeito barrado e o Outro. No segundo, o que se acentua é a articulação entre esse sujeito e o objeto a. Finalmente, o último ensino traria a dominância do gozo do Um, desconectado do Outro e incidindo sobre o corpo, que gera a nova concepção de falasser. Como todo avanço da teoria psicanalítica, o falasser é pode ser tomado como fruto de impasses clínicos surgidos diante de um dado contexto. A realidade social da civilização de que Freud (1930/1996) foi testemunha, marcada pelo mal-estar causado pela repressão social exercida sobre o sujeito, teve que ser relida a partir do surgimento de modos de vida7 inéditos, que expõem o enfraquecimento do simbólico e a consequente amplificação do gozo. Com Forbes (2009), afirmamos que o complexo de Édipo funcionou por um século, convencendo-nos de que o mundo era edípico, mas essas novas configurações dos laços sociais – que Lacan podia antever ao final de seu ensino – convocaram a psicanálise a ir além. Laurent e Miller (2005) explicam que, ao contrário do que se poderia pensar em Freud, o Édipo não se funda fora da relatividade sociológica, estando a função do pai ligada à prevalência de uma determinação social particular, a da família paternalista. Quando mudam os tempos, torna-se fundamental a construção de uma nova lógica, que ultrapassa a concepção do sujeito barrado, para que a psicanálise continue operando. Na trilha de Freud e Lacan, que sempre caminharam na atualidade de suas épocas, buscamos, nesta tese, retomar a trajetória teórica do sujeito ao falasser para fazê-la dialogar com uma realidade social que viu serem modificadas suas experiências de tempo e espaço, as relações humanas e, consequentemente, a clínica psicanalítica. Se cada momento tem produções discursivas específicas, por conta da natureza plástica da ligação pulsional do sujeito com seus objetos de

Engels e Marx empregaram a expressão “modo de vida” na análise das formações sociais précapitalistas. Para eles, a maneira pela qual os homens produzem seus meios de subsistência portaria aspectos subjetivos e objetivos, e a vida cotidiana alteraria a significação dada pelas sociedades e pelos indivíduos a essas atividades (HELLER, 1977). Partindo dessa concepção, usamos o termo “modo de vida” para definir atividades e valores de uma realidade social, com seus aspectos objetivos – as condições oferecidas em cada momento – e subjetivos – as invenções que cada um pode realizar com isso que lhe é dado socialmente. 7

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satisfação, temos também posições subjetivas e modos de gozo próprios a cada um deles. O inconsciente é histórico porque é um fenômeno de linguagem – quando a linguagem se transforma, transforma-se o inconsciente. Ele é, portanto, um discurso8, conjunto infinito de enunciados produzidos em um período dado e em um dispositivo particular (IRIZAR, 2008). Do acúmulo desses enunciados, gerado pela prática da palavra pelos seres falantes, produz-se o laço social e as possibilidades de endereçamento ao Outro sob certa formatação. A questão com que se confrontam os analistas é política, portanto. Abordar e tratar o sujeito do inconsciente, diz Pinto (2009), implica em ler continuamente as consequências trazidas pelos laços simbólicos e pelo tipo de controle predominante em cada momento, de forma que seja possível posicionar-se em relação aos efeitos cerceadores da linguagem e dos significantes mestres em diferentes realidades sociais. É por isso que a resposta clínica a ser dada pela psicanálise varia com o passar do tempo, pois seu interesse é proporcionar que cada sujeito construa um modo próprio de lidar com os impasses impostos pela formação discursiva daquele momento da civilização. Isso significa que a psicanálise se posiciona politicamente, por ser, de fato, um laço social que se dispõe a tratar esses impasses como efeitos de um dado movimento simbólico. O desejo do analista não é puro, nem mesmo neutro. Ele já traz uma marca política, pois visa a alterar os efeitos tirânicos do significante que colocam o sujeito em sofrimento. Devido a isso, a psicanálise procura ser uma clínica criativa e inventada a partir de cada analisante. (PINTO, 2009, s.p).

Forbes (2000) explica que a clínica de Freud e a primeira clínica de Lacan buscam tratar o sofrimento do sujeito da era industrial, marcado pelas identificações verticais, enquanto a segunda clínica lacaniana propõe a abordagem de sintomas resultantes de sua conexão com a globalização, que desembocam na quebra dos ideais e podem ser expressos pelo matema a/I: o predomínio da pulsão sobre os ideais da civilização. Diagnósticos como toxicomanias, transtornos alimentares, hiperatividade e depressão demonstram que há um novo mal-estar, agora ligado à

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Apesar de consideramos a questão dos discursos em Lacan fundamental e estreitamente ligada ao tema desta pesquisa, optamos por buscar uma abordagem sobre o momento presente que não seguisse por esse caminho de maneira direta, uma vez que o assunto é extenso e exigiria mais esforços do que as limitações de nosso estudo permitiriam.

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impotência da palavra, que sucumbe ao curto-circuito de um gozo ampliado e alçado à condição de imperativo. Quando caem os ideais que sustentavam a sociedade embasada pelo discurso do mestre, passamos de uma experiência psicanalítica como busca pelo saber a uma clínica que explicita o limite do saber e do sentido. De uma psicanálise calcada na universalidade da estrutura a uma clínica borromeana, que enfatiza a singularidade e o caso a caso. Para essa nova clínica, descendente de uma nova realidade social, um novo significante: falasser. O novo, contudo, faz-se a partir de seus antecedentes, nunca prescindindo deles. Na teoria psicanalítica, especificamente, novo e antigo coexistem em um espaço não linearmente organizado, como não são lineares as alterações provocadas por sucessivos traços no inconsciente. Torna-se pertinente, portanto, perguntar o que resta do sujeito na clínica do falasser que adentra o século XXI e como coabitam topologicamente esses conceitos lacanianos, emblemáticos de realidades sociais distintas. Se levamos em conta o fato de que eles não guardam com o outro uma relação de superposição ou ultrapassagem, parece-nos importante indagar qual é o tipo de aproximação que alimentam e de que maneira dialogam hoje. Onde está o sujeito na clínica do falasser?

1.1. Problema Assim podemos resumir nosso problema de pesquisa: 

qual o lugar do conceito de sujeito na clínica psicanalítica que o conceito de falasser testemunha, resposta à realidade social marcada pela exaltação da vertente do gozo, e como operar com ele?

1.2. Objetivos geral e específicos Temos como objetivo geral, a partir do norteamento dado por um caso clínico, pesquisar a trajetória teórica do sujeito ao falasser no ensino de Lacan, de maneira a questionar, na clínica psicanalítica, o lugar que o conceito de sujeito continua a ocupar na realidade social a que o falasser responde. Como objetivos específicos, citamos:

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apresentar um caso clínico e buscar iluminá-lo por leituras distintas, tanto a partir das questões levantadas pelo conceito de sujeito quanto pelo de falasser, servindo-nos desse recurso, ao longo de todo o trabalho, para levantar pontos de enigma e de desvendamento do caso que poderiam ser trazidos pelo ensino de Lacan em seus diferentes momentos;



explicitar as especificidades e os entraves referentes à construção de um caso clínico pela via do discurso analítico;



abordar a realidade social a partir da leitura de Lacan e de autores lacanianos que enfocam a questão da ascensão do objeto, que determina o consumo como significante-mestre atual e estabelece, assim, as novas formas de mal-estar que se apresentam na clínica psicanalítica;



investigar, no texto freudiano, a pré-história do sujeito em Freud, de maneira a focar, em seguida, a centralidade do simbólico em Lacan e a leitura que a primeira clínica lacaniana permite do caso clínico apresentado, a partir do conceito de sujeito;



levantar as particularidades do último ensino de Lacan, enfatizando o lugar do corpo como suporte à escrita traçada pelo gozo, o que enfatiza, a partir daí, a orientação pela instância do real e desemboca na construção do sinthoma e no conceito de falasser;



apresentar as dificuldades e as proposições trazidas pela segunda clínica de Lacan à prática psicanalítica, colocando em questão a sustentação da própria ideia de clínica diante da lógica do sinthoma e do falasser, uma vez que a questão da universalidade da estrutura é posta em questionamento por esses conceitos;



explicitar a relação dialética existente entre sujeito e falasser, tomados como via de mão dupla que permite a compreensão de um como mais além do outro, em relação suplementar, o que possibilita, dependendo da abordagem escolhida, leituras

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distintas

na

clínica

psicanalítica,

sempre

definidas

na

especificidade de cada caso.

1.3. Justificativa Não será possível fazer no futuro uma história das mentalidades do nosso século sem que a enorme influência da psicanálise seja ressaltada. Nos primórdios de sua difusão, Freud recriminava o esforço de Jung em torná-la mais suave aos ouvidos dos resistentes através do sacrifício das "verdades penosamente adquiridas da psicanálise". Perto do fim da vida, em 1933, ele já alertava para os perigos da transformação da psicanálise numa Weltanschauung9. O que Freud diria hoje? Como não temos resposta, cabe a nós o esforço de manter – mesmo num mundo que resiste pela adesão – o gume afiado que retenha a originalidade da experiência psicanalítica. (BEZERRA JR., 1989, p. 238).

A pertinência do trabalho de pesquisa aqui proposto sustenta-se a partir de diversos pontos de vista. Primeiramente, ressaltamos a necessidade de empenho constante na tarefa de releitura de conceitos da teoria psicanalítica à luz do horizonte de cada época e da clínica que o testemunha, como fizeram Freud e Lacan. Especificamente quanto aos esforços para iluminar os pontos obscuros e de difícil abordagem do último ensino de Lacan, somamo-nos a diversos autores da psicanálise que, atualmente, se debruçam sobre esses entraves na tentativa de clareá-los tanto em sua vertente teórica quanto em sua aplicação clínica. A atualidade do tema, portanto, é um dos vieses para justificar a existência desta pesquisa. Além

disso,

ressaltamos

de

maneira

ainda

mais

enfática

que

o

questionamento constante de conceitos psicanalíticos a partir das exigências da clínica, do que cada caso explicita sobre o que ultrapassa a teoria, como propomos proceder com o caso clínico apresentado neste trabalho, é essencial tanto para a manutenção do ponto vivo do edifício teórico da psicanálise, impedindo-a de cair na pura repetição, quanto para pôr à prova a pertinência e o diálogo desse campo com realidades sociais distintas. Lacan (1953/1998, p. 240) já alertava para o risco de que a cristalização de conceitos freudianos levasse a um formalismo que desencorajaria a iniciativa em prol de uma “[...] prudência dócil, onde a autenticidade da pesquisa se embota antes de se esgotar”.

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Termo alemão que pode ser livremente traduzido como “visão de mundo” ou “ideologia”.

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Logo, a pesquisa como investigação crítica, conectada aos movimentos da clínica, é ferramenta fundamental para deslocar a forma estéril de cientifização que assola o nosso tempo, percebida claramente no recente ideal classificatório que invadiu as ciências, provocando a exclusão de toda visão não alinhada a ele – o que traz, como consequência, o banimento do inconsciente das leituras propostas sobre os modos de vida atuais. É por buscarmos outra via de construção de saber que elegemos nesta tese um caminho metodológico em que a ciência é tomada, como é fundamental, sem abrir mão do rigor que lhe é essencial, mas considerando inevitável a existência, em seu corpo, de um furo, uma impossibilidade, de forma a evitar leituras dogmáticas e absolutizantes. Se o nascimento da psicanálise desnudou o avesso do discurso moderno, do mestre, trabalhamos para manter como motor desta pesquisa a permanente desconfiança quanto aos significantes dominantes, que se alojam em identificações pré-estabelecidas e generalizantes: “nada é menos seguro do que quando se constata a obsolescência acelerada das teorias em relação ao que se mantém, eventualmente se transforma, da prática” (MILLER, 2003a, p. 15).

1.4. Metodologia Em psicanálise, o acesso ao mundo é tido como mediado tanto pelo universal do simbólico quanto pelos modos de gozo, sempre singulares, ainda que respondam, em certa medida, ao discurso de cada tempo. Essa dupla interposição modifica a concepção de verdade que embasa a pesquisa nesse campo. O viés subjetivo inerente à lógica psicanalítica põe em questão aspectos científicos clássicos, como, por exemplo, a aplicabilidade da generalização de resultados. Essa especificidade, contudo, não dispensa a pesquisa em psicanálise de um método que comporte a ancoragem em conclusões e a ampliação de seus frutos para além do caso a caso. À maneira de Freud, devemos encarar, no que é próprio do singular da clínica, o desafio de extrair pontos fixos que possam ser incorporados à teoria, ganhando estatuto de universalidade (FIGUEIREDO; NOBRE; VIEIRA, 2011). Afinal, é a possibilidade de generalização que permite que existam tipos de sintomas e, consequentemente, que seja possível falar em uma clínica psicanalítica em sentido estrito, diz Lacan (1975a/2003).

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A psicanálise insere-se no ponto em que a ciência tomada como ideal rateia, deixando um resto intratável. Freud, diz Vieira (2001), fez dessa aparente fragilidade o fundamento de seu texto, buscando construir mais os andaimes do que o edifício teórico, no sentido de se orientar pela busca, nos casos clínicos, de elementos mínimos que podem ser elevados à condição de universalidade, mas estão em diálogo constante com as construções que se sucedem. No presente estudo, buscamos uma edificação em que a teoria encontra sua razão de ser na clínica, convergindo-as sem precedência de uma sobre a outra e sem temer que pressupostos teóricos sejam discutidos pela prática (FIGUEIREDO; NOBRE; VIEIRA, 2011). Por isso, associamos desde o início a pesquisa teórica aqui empreendida a um caso clínico, que pode viabilizar a apropriação de conceitos e sua articulação, mas que, principalmente, permitiu que visássemos à extração de um ponto enigmático, de um furo, a partir do qual um avanço original seria possível. Lacan já atentava para o fato de o texto freudiano dever ser lido sem a obrigação de consenso entre seus diferentes períodos, orientação que buscamos aplicar também à leitura do ensino lacaniano. Assim, lançamos luz no caso clínico apresentado tanto pelo viés do conceito de sujeito quanto a partir da concepção de falasser, não situando-os em contraponto ou oposição, mas em diálogo e proximidade topológica. [...] esta confissão assaz cândida, segundo a qual as concepções de Freud não concordam, no final das contas, assim tão bem entre si, e que precisam ser sincronizadas. São justamente os efeitos desta sincronização do pensamento de Freud que tornam necessária uma volta aos textos. Na verdade, ela parece-me ter uma lastimável ressonância de um botar nos eixos. Para nós, não se trata de sincronizar as diferentes etapas do pensamento de Freud, nem sequer de pô-las em concordância. Trata-se de ver a que dificuldade única e constante respondia o progresso desse pensamento, constituído pelas contradições de suas diferentes etapas. (LACAN, 1954-1955/1985, p. 188-189).

Freud (1912/1996) sustentou permanentemente a necessidade de tratamento e investigação andarem lado a lado na pesquisa psicanalítica. Todo estudo teórico em psicanálise deve, em alguma medida, tocar a clínica, pois, por um lado, parte dela para retomar e reformular conceitos e, por outro, altera, com seu edifício conceitual, a prática. Partindo dessa constatação, Lacan e Freud não se furtaram a subverter constantemente a teoria em nome da experiência analítica, fazendo das conclusões de seus textos, diz Miller (2003a), rebotalhos, restos que não impediam a promoção de constantes ultrapassagens.

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A pesquisa na psicanálise só poderá progredir assim de modo dual, demonstrando os efeitos do feliz encontro entre um arcabouço clínico conceitual específico e o material da experiência (proveniente do funcionamento de um dispositivo não menos específico). (VIEIRA, 2001, s.p.).

Nesse sentido, entendemos porque a construção do caso clínico em psicanálise não tem a função de demonstração direta da teoria, visando muito mais a um enodamento com ela, de forma a transmitir também o impossível de teorização trazido pela singularidade dos arranjos de cada caso. Há algo de provisório no que se constrói a partir da clínica, uma vez que é necessário deixar a teoria psicanalítica sempre aberta a suas novas ressonâncias, aos novos elementos que dela podem advir. Assim, um caso pode ser descrito de muitas maneiras, é sempre construção provisória, sujeita ao surgimento de novos elementos e construi-lo supõe organizá-lo para produzir certos efeitos. Efeitos que, segundo o ângulo, podem também ser acadêmicos. Porém, nele não pode faltar - nas várias maneiras de construí-lo e que por não ser única permite aos que o escutam ou leem também fazer conjecturas sobre novas construções - a consideração em torno de que real a operação, a construção do sujeito se produz. (FERRARI, 2010, p. 43).

Ramírez (2004) lembra-nos de que uma investigação clínica em psicanálise, por conta de sua relação imprescindível com a dimensão do singular, visa sempre a uma elaboração que é, em certa vertente, inédita. Esse aspecto difere o psicanalista de um investigador no sentido positivista e distancia-o da lógica do discurso universitário, que implica que se siga religiosamente a busca por uma verdade. Lacan (1964/1998) enfatiza a necessidade de rigor na investigação psicanalítica, mas imprime a ela a lógica explicitada pela frase de Picasso: “eu não busco, encontro”. Segundo Ramírez (2004), está aí implícito o fato de que investigar em psicanálise não é igual a buscar, por exemplo, a confirmação de um pressuposto, mas a encontrar uma nova articulação significante, uma expressão inédita do real que, até aquele momento, restava fora de qualquer elaboração. Levando-se em conta que essa tarefa exige do pesquisador um esforço para se se autorizar a ir além do sabe, optamos pela apresentação de um caso colhido na prática clínica da pesquisadora como analista. A escolha foi feita, a princípio, por conta dos efeitos que a apropriação de conceitos inerentes ao último ensino de Lacan, ao longo da pesquisa, trouxe em nossa escuta analítica. Além disso, acreditamos que o desafio de incluir o diálogo entre sujeito e falasser na experiência viva da psicanálise mostra-se mais original e profícuo do que a retomada de casos

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clássicos, já amplamente estudados. Riscos inerentes a essa escolha não nos passam despercebidos – destacamos, entre eles, a implicação da pesquisadora também como analista, o que pode dificultar a análise crítica de alguns pontos –, mas acreditamos que eles são suplantados pelos benefícios trazidos pela colocação em funcionamento da conexão entre a teoria e a clínica em caráter de originalidade. Diferentemente do método hipotético-dedutivo, em que o empirismo é usado para ilustrar a teoria e confirmá-la, optamos por traçar um percurso que parte do caso clínico para, paulatinamente, enlaçá-lo à teoria, iluminando com ele categorias emergentes ali onde não se sabe, onde o saber prévio e formalizado encontra seus limites. O que é mais íntimo à clínica será radicalmente exterior ao campo teórico. Existe uma teoria sobre a clínica, mas teoria impossibilitada de ser totalizada devido à inapreensibilidade daquilo que se encontra no cerne da prática clínica, isto é, a falta no universo de discurso que fundamenta a estrutura inconsciente. Não é objetivo da pesquisa psicanalítica produzir saberes que preencham completamente o espaço faltoso, isto é, que totalizem a prática clínica. Qualquer tentativa de fazê-lo se mostrará insuficiente e acusará uma inconsistência [...]. (D’AGORD; TRISKA, 2009, s.p.).

Procuramos demonstrar como, à maneira da primeira clínica de Lacan, o analista pode utilizar-se de um matema ou uma formalização do impasse trazido pelo sujeito e, para além dessa leitura, pode também lançar mão de um espaço que põe em cena o indizível, abrangendo o real, como ensina a segunda clínica lacaniana (VEIRA, 2001). São vertentes distintas, sempre presentes em todo caso clínico, aguardando escuta. Justapondo-se à interpretação como atribuição de sentido, marca da clínica do sujeito, temos, pelo viés do falasser, a busca por uma interpretação que visa à relação peculiar entre interior e exterior trazida pelo real, a um ponto cego na trama do discurso, que resta êxtimo ao significante. Não há preponderância, a priori, de uma vertente sobre a outra. Resta, no caso a caso, encontrar uma leitura original, que permita a cada um o melhor arranjo com o sofrimento inerente a seu modo de vida. Ao considerarmos os objetivos propostos, construímos os capítulos desta pesquisa da seguinte maneira:  No capítulo que segue esta introdução, o caso clínico escolhido é apresentado, abrindo espaço para levantar os impasses e as particularidades

trazidos

pela

construção

do

caso

em

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psicanálise. Nele também fazemos uma discussão da realidade social a que assistimos e dos modos de vida que lhe são próprios e que orientam a clínica psicanalítica hoje.  Iniciamos, então, nossa trajetória teórica em Freud, partindo da trilha que vai sustentar, embrionariamente, o conceito de sujeito em Lacan. Visamos a localizar a concepção freudiana de que haveria algo no aparelho psíquico que ultrapassaria a vertente da interpretação, dando lugar ao que, mais tarde, Lacan poderá trabalhar pela via do real.  Apresentamos, em seguida, uma leitura do conceito lacaniano de sujeito no primeiro e segundo ensinos, que testemunham a transposição simbólico,

de

conceitos

definindo

a

freudianos

supremacia

do da

imaginário

ao

linguagem,

e,

gradativamente, sua aproximação da vertente pulsional.  No caminho que percorremos, o falasser é discutido no ponto em que o ensino de Lacan passa a seu terceiro momento, trazendo a possibilidade de uma leitura de novos aspectos do caso clínico escolhido, de forma a clarear pontos deixados intocados pela abordagem na vertente do sujeito.  Propomos, finalmente, apresentar a configuração atual da clínica psicanalítica, que nos leva a repensar o próprio conceito de clínica, levando-se em conta que, diante do falasser, a singularidade

sobrepõe-se

à

lógica

da

estrutura

e

da

classificação. Ao final, apresentamos nossas conclusões e considerações e buscamos também destacar os pontos que restam em aberto nesta tese e que podem servir como motor para a proposição de novos trabalhos sobre o tema.

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2. PARTINDO DA CLÍNICA: UM CASO Sou incapaz de fornecer um relato puramente histórico ou puramente temático da história de meu paciente; não posso escrever um histórico nem do tratamento nem da doença, mas sinto-me obrigado a combinar os dois métodos de apresentação. É sabido que não se encontram meios de introduzir, de qualquer modo, na reprodução de uma análise, o sentimento de convicção que resulta da própria análise. Exaustivos relatórios textuais dos procedimentos adotados durante as sessões não teriam qualquer valia; e, de qualquer maneira, a técnica do tratamento torna impossível elaborálos. (FREUD, 1918/1996, p. 25).

Uma das dificuldades centrais no percurso desta pesquisa foi chegar a uma compreensão do papel do caso clínico eleito para o trabalho em seu escopo e, consequentemente, da abordagem que se pretendia para ele. Sabíamos, desde o início, que seu lugar não poderia ser, de forma simplista, o de um exemplo que ilustrasse a aplicação da teoria na prática, porque ressoava em nós o alerta de Freud (1912/1996) de que, em psicanálise, pesquisa e tratamento coincidem. Além disso, levávamos em conta as particularidades inerentes à aproximação entre discurso universitário e discurso analítico e o fato de que a utilização de um caso clínico em uma tese acadêmica ressalta a importância da distinção entre eles e da ética própria a cada um. Há especificidades no caso clínico em psicanálise. Em oposição ao campo fenomênico-descritivo, que estabeleceu o modelo “diagnóstico-prognóstico-regras de conduta” (PERES, 2002) para o relato de caso, a dimensão do inconsciente exigiu a subversão de conceitos como diagnóstico e tratamento, especialmente porque alterou radicalmente a noção de sintoma, inviabilizando a referência a padrões nosológicos. Sintoma e sujeito passam a estar inevitavelmente ligados. O caso clínico em psicanálise torna-se, então, diferente de um compilado de acontecimentos em sequência, assim como o tratamento deixa de ser tomado como uma consequência do diagnóstico: “[...] diagnóstico e tratamento seriam indissociáveis e intercambiáveis: o tratamento também definiria o diagnóstico e não apenas o contrário” (FIGUEIREDO, 2004, p. 77). Se nos afastamos da assepsia do relato de caso em seu sentido médico, é porque precisamos focar, pela via do discurso, as produções do sujeito. Em lugar da objetividade, somos levados então a pensar pela lógica da construção, do arranjo particular dos elementos trazidos por cada caso. A plasticidade e a incompletude da

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cadeia significante previnem a psicanálise da crença na aplicação mecânica de conceitos prévios como forma de ordenar a totalidade do saber. Há um núcleo de real que resiste como uma falha que não é acidental ou reparável. É dele que emerge o sujeito (PAULINO, 2004) – e, em relação dialética, como seu avesso e sua continuidade, também o falasser. Cada caso clínico, portanto, convoca, em alguma medida, à reinvenção da psicanálise, uma vez que imprime ao saber acumulado leituras originais, aplicáveis apenas àquele contexto. Por esse motivo, Elia (1999) pensa o analista como um autor, como aquele que garante sua marca na escrita do caso por ser quem autoriza os significantes do sujeito. Sua presença é ativa nessa construção e, nela, ele é constantemente interrogado. A clínica psicanalítica deve consistir em interrogar não somente a análise, mas em interrogar aos analistas, a fim de que eles prestem contas do que sua prática tem de arriscada, que justifique a existência de Freud. A clínica psicanalítica deve nos ajudar a relativizar a experiência freudiana. É uma elucubração de Freud. Tenho colaborado, o que não é razão para manterme aí. É preciso darmo-nos conta de que a Psicanálise não é uma ciência, não é uma ciência exata. (LACAN, 1956/1977, p. 14).

O inconsciente é campo de pesquisa profícuo, se entendemos a pesquisa não apenas como repetição de um saber estabelecido, mas como um movimento em direção ao não saber e ao novo. Valemo-nos, por isso, da afirmativa freudiana de que se deve escutar cada caso como se fosse o primeiro (FREUD, 1912/1996), sem crer demasiadamente no saber prévio. O fio condutor do texto que é produto do inconsciente é flexível e comporta rupturas e desvios, pois deve transmitir também pontos que restam intocados por qualquer tentativa prévia de teorização, exigindo do analista elaborações originais. Apesar dessas considerações, o que constatamos no cotidiano da prática é a redução do caso clínico em psicanálise a uma verificação do já sabido, que parece permear a maior parte da produção nesse campo. Peres (2002) acredita que a dificuldade de se sair dessa vertente do caso como ilustração ou demonstração da teoria deve-se, entre outras coisas, à imposição superegoica de fabricação de trabalhos que sempre se ancorem em um saber seguro, inabalável, que visa à compreensão do quadro como um todo: As tentativas de explanação de casos ou fragmentos clínicos sempre buscam demonstrar, ilustrar, dentro de um padrão de compreensibilidade, o nosso fazer e o nosso pensar, ou seja, a nossa intervenção, a nossa

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interpretação e o nosso saber teórico, mesmo que tenhamos por assegurado que a compreensibilidade do sujeito do inconsciente está sempre a escapar. (PERES, 2002, p. 33).

No último ensino de Lacan (1976-1977/inédito), esse apego excessivo ao sentido e à verdade é atribuído pelo autor a uma debilidade inerente ao ser falante, que crê no simbólico como se ele fosse capaz de recobrir todo o real, mesmo não sendo: “só há verdade na medida em que ela apenas pode ser dita pela metade, tal qual o sujeito que ela comporta” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 31). Para se prevenir da angústia diante da constatação da falta de um significante derradeiro no Outro, o sujeito coloca-o no lugar de mestre, e é a essa estratégia que responde a afinidade que nossa realidade social tem com a ciência. Como saída para esse funcionamento, Lacan destaca a importância de se saber ler nas entrelinhas, uma vez que um sentido nunca é fixo ou completo. Essa constatação deixa clara a importância de a pesquisa em psicanálise e a construção de um caso clínico tocarem, ao mesmo tempo, o sentido que reside na teoria e o sem sentido que resta para além de todo discurso. Deve-se alinhar a decifração à construção, que se vale da topologia de um furo, distinguindo-se de uma falta de significantes que deveria ser preenchida e aproximando-se mais do objeto inevitavelmente perdido como causa. Fazemos, assim, dialogar repetição e singularidade, buscando ir além das classificações por estarmos atentos ao fato de que há sempre algo que não é generalizável nas manobras de cada um com seu sintoma. É verdade que, para ter a idéia do novo, é necessário conhecer o acumulado. Pesquisar é buscar, esperar o novo. Sendo assim, há uma dialética entre estas duas vertentes. Costuma-se dizer: “espere o novo", procure o bom encontro, o achado. Isto obedece a um outro regime diferente da repetição docente pois naquela vertente estamos na contingência onde não há segurança. Na repetição temos segurança, mas, na vertente da pesquisa, não. Esta somente pode ser tratada, como nas "ciências duras", organizando lugares e produzindo encontros, lugares onde idéias e pessoas se cruzam e se manifestam ao acaso. Isto é tão importante como tudo aquilo que diz respeito ao sistemático. É a esta vertente que me dirijo deixando de lado todo o sistemático, o fundamental que sustenta toda a atividade, mas que somente interessa na medida em que dá lugar ao asistemático e ao singular. (MILLER, 2003b, p. 20).

Isso explica e valida nossa decisão de iniciar este trabalho com a exposição do caso clínico escolhido, orientando com ele, em cada capítulo, o rumo das investigações acerca do problema levantado. Inaugurando assim nosso texto, partimos do não saber para trançá-lo, posteriormente, ao já estabelecido da teoria,

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buscando nela seus meandros e os pontos em que o saber acumulado não alcança a invenção sintomática, singular e original, do sujeito em questão. Em nossa apresentação do caso, procuramos dar destaque às intervenções do analista para explicitar a direção do tratamento, alinhando-nos a Figueiredo (2004) na constatação de que um caso clínico em psicanálise escapa ao relato linear da história do paciente, na medida em que põe em jogo seus significantes como inevitavelmente ligados às respostas que o analista lhe oferece em ato: A psicanálise não é o efeito de um saber do Outro sobre uma história e, sim, o feliz encontro entre as ferramentas conceituais do analista – pulsão e objeto, por exemplo – e as contingências de uma história, produzindo um caso e, no melhor dos casos, um novo sujeito. Buscamos, assim, estar próximos da possibilidade de constituir enunciados positivos sobre este saber propriamente psicanalítico, singular e inventado a cada nova situação. (FIGUEIREDO, 2004, p. 81).

Miller (2012a) segue nessa direção ao afirmar que o caso clínico no campo psicanalítico não existe como produto apenas do relato dos significantes de um sujeito, porque é resultado, acima de tudo, de uma implicação ineliminável do analista, por conta do lugar central dos efeitos da transferência. É fundamental, por isso, que o analista possa se localizar no quadro geral do caso. Em uma palavra, isso lhes obriga a pintar vocês mesmos no quadro clínico. É como Velázquez, ao representar a ele mesmo, com o pincel na mão, junto aos demais seres, com que povoa a tela As Meninas10, o que é algo que produz desorientação. Isso porque, fica claro que ele não pode se situar a não ser que se veja retratado como dividido. Vocês sabem que é um quadro que chamou a atenção de Lacan, seguindo a esteira de Michel Foucault. Eu diria que, em psicanálise, todo caso clínico deveria ter a estrutura de As Meninas. (MILLER, 2012a, s.p.).

O quadro “Família de Filipe IV”, mais conhecido como “As Meninas”, foi pintado no século XVII pelo pintor espanhol Diego Velázquez. É uma das mais analisadas e comentadas obras de arte, pela diversidade de planos e interpretações que apresenta, pela complexidade da composição do espaço e pela inclusão, na cena retratada, do próprio pintor. 10

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FIGURA 2. Reprodução em preto e branco do quadro “As meninas”, de Velázquez. FONTE: JONES, 2013.

No caso clínico que apresentamos a seguir, buscamos seguir a regra de deixar aparecer tanto a participação do analista nas construções em análise quanto as relações singulares do sujeito com o objeto, sem a pretensão de apreender essas últimas a partir de recomendações técnicas que, quando simplesmente aplicadas, universalizam-nas e apagam sua manifestação singular, diz Vorcaro (2006). É nesse viés que podemos entender que a escrita da clínica aproxima-se da literatura, sendo, ambas, estilos de “[...] cifrar na escrita o mapa da presença do real, a emergência do acidente singular” (VORCARO, 2006, s.p.).

2.1. Lucas: crer no pai, não crer na droga Quando chega ao consultório pela primeira vez, aos quinze anos de idade, Lucas havia sido flagrado pela polícia com uma pequena quantidade de maconha. Por ser menor de dezoito anos, estaria sujeito a alguma das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990/2008) para adolescentes autores de ato infracional. O juiz responsável por seu

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caso, contudo, decide dar a ele “uma chance”11: não cumpriria medida formalmente, desde que fizesse um acompanhamento psicológico. É sua mãe que liga para a analista para agendar o atendimento do filho. Com um ar de absoluto desinteresse e certa apatia, Lucas chega ao consultório. Declara não querer estar ali, não ter nada a dizer. Mostra-se irônico com qualquer tentativa de intervenção da analista e afirma estar apenas cumprindo ordens, mas não as do juiz: “vim só porque minha mãe mandou”. Quando a analista pergunta sobre o episódio que gerou o flagrante da polícia e a detenção, Lucas traz um relato seco, em que parece não ter qualquer implicação no que diz. Conta, em uma fala monótona e ensaiada, que estava apenas com uma quantidade de maconha para uso pessoal, afirmando que não é “traficante” nem “viciado”, e que não via nada de atípico no que tinha feito. É esse o ritmo de quase todo o seu discurso, a não ser em um ponto específico: quando conta que a mãe teve que buscá-lo na delegacia após sua apreensão. Nesse momento, emociona-se visivelmente e diz, com a voz embargada: “tive pena de ver ela ali, no meio de um monte de homem, tendo que me tirar daquela situação”. A analista percebe aí uma brecha, e é fazendo uso dela que diz a Lucas que então, sobre a mãe, ele tinha, sim, algo a dizer, encerrando a sessão logo em seguida. Lucas retorna na sessão seguinte, uma semana depois, com o mesmo tom blasé inicial em sua fala, mas, aos poucos, consente em contar um pouco mais sobre sua apreensão: “eu estava com os meninos da minha rua, fumando maconha, como sempre faço. A gente sempre fuma junto, a polícia passa e até vê às vezes, mas não mexe com a gente. Dessa vez era pra ser igual, mas eu rodei”. Foi o único pego em flagrante, porque os demais conseguiram fugir. Assume que é, sim, quem vende a droga para esses “chegados”, mas não entende a atividade como tráfico: “vou comprar pra mim, aí compro a mais pra eles e ponho o meu [lucro] no valor que repasso. De boa, sem neuras”. Explica que usa a droga regularmente, mas “sem exageros” e para se “desligar dos problemas”: sem ela, sente-se “impulsivo”. Quando o corpo se agita, fumar maconha desliga-o. O grupo com quem fuma é formado apenas por homens: 11

Entre aspas, nesta seção, apresentamos algumas das falas trazidas pelo sujeito e algumas intervenções da analista ao longo da trajetória da análise.

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“mulher enlouquece muito a gente, põe a gente em confusão”. Não acredita que a droga o atrapalhe em nada, embora seu desempenho na escola seja pífio e não tenha planos de trabalhar ou fazer algum curso superior. Também diz ter certeza que maconha não vicia, porque pesquisou, procurou saber sobre a substância antes de usá-la. Conclui: “é uma diversão, sem consequências”. A analista pontua: “mas você rodou. Para você, ao contrário das outras vezes, houve consequências”. O episódio com a polícia não foi o primeiro. Já havia sido interpelado por policiais antes, por conta de brigas e agressões na rua, todas relacionadas a conflitos causados por drogas ou a mulheres. Naquelas vezes, contudo, não houve detenção ou a necessidade de responder juridicamente – foi revistado, deram-lhe “uma dura” e foi liberado em seguida. A rua, como se vê, é o cenário em que sua vida se desenrola. Não gosta de estudar, não tem outros amigos fora do círculo de uso da maconha, nutre uma relação difícil com os familiares e, por isso, faz da turma de “chegados” seu habitat. Vem de uma família de classe média, em que a mãe, ele diz, “se mata para dar tudo pra mim e pra minha irmã, para não deixar faltar nada”. Depois que os pais se separaram, quando Lucas era criança, a mãe responsabilizou-se inteiramente por prover todo o necessário aos filhos, trabalhando em uma longa jornada diária em uma empresa do ramo de eventos. De toda forma, o pai não contribuía financeiramente com a casa durante o tempo em que o casamento durou, pois vivia de bicos e trabalhos temporários, em uma situação precária tanto do ponto de vista financeiro quanto de saúde. O divórcio veio por conta de sucessivas agressões à mãe, geradas pelo uso excessivo de álcool. O pai chegava em casa bêbado e violento, e, depois do fim do casamento, seu estado de saúde apresentou piora significativa. Seus excessos culminaram em sua morte por cirrose quando Lucas tinha 13 anos, após dias internado em estado grave e péssimas condições físicas. Este é outro momento em que Lucas aparece implicado no que diz: emociona-se muito ao contar sobre o falecimento do pai. Diz que sente saudades e que ele havia lhe ensinado muitas coisas, apesar de ser “louco, sem limite, de não saber se controlar”. Quando termina de contar sobre sua morte, diz não saber falar mais nada sobre o pai. A sessão é encerrada com a analista dizendo que o esperava na semana seguinte para ele continuar falando sobre o nada que sabia do pai.

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Lucas retorna na data marcada, contando que, após a morte de seu pai, isolou-se muito de qualquer contato mais afetuoso com a família. Assume junto à única irmã, quatro anos mais nova, o papel de pai autoritário, frio, que veta namoros, amizades e outros programas sem motivo aparente e sem negociação. A relação, que guarda nas entrelinhas algo de incestuosa (Lucas diz não querer ver a irmã longe de seu domínio e “na mão de outros homens”), faz com que a menina fuja dele, amedronte-se, ressinta-se, reclame, peça a ajuda da mãe. Ele permanece inabalável na posição de quem dita uma lei inflexível, e a mãe mostra-se muito passiva para conter os excessos do filho. Quanto a essa mãe, apesar da distância que tenta estabelecer, Lucas diz ter por ela uma admiração intensa e um amor incondicional, “mas ela me irrita muito, fala muito na minha cabeça, me cobra as coisas. Não sou como ela queria que eu fosse”, constata. Após a exposição dos rudimentos desse seu romance familiar, depois de três meses de uma análise marcada por muitas ausências e longos silêncios, Lucas interrompe suas vindas sem aviso prévio. As tentativas de contato que se sucederam mostraram-se infrutíferas. A analista decide que não seria o caso de ligar para a mãe demandando o retorno de seu filho, mas avisa a ela sobre sua ausência e faz um relatório sucinto para ser entregue à instância jurídica. Nele, constam dados objetivos, além do tempo em que Lucas permaneceu frequentando o consultório, uma observação sobre a importância de um atendimento clínico para o sujeito e o fato de os contatos posteriores não terem sido bem-sucedidos. Cerca de um mês depois, a mãe envia à analista uma mensagem via celular agradecendo e dizendo que o juiz havia consentido em encerrar o caso de Lucas. Foi com muita surpresa, portanto, que a analista recebeu, cinco anos depois, nova ligação da mãe de Lucas solicitando a marcação de uma sessão para ele. A repetição dessa cena – a mãe ligando para marcar um atendimento para o filho, mesmo este tendo, agora, vinte anos – fez com que a analista supusesse imediatamente que se tratava de um novo episódio relativo ao uso de drogas ou de algum outro embaraço com a lei. Não é sobre isso, contudo, que Lucas vem falar dessa vez. Com um sofrimento explícito, chorando muito, retorna ao consultório dizendo: “as coisas na minha vida mudaram muito, mas precisei voltar. Minha mãe perguntou se eu queria a ajuda de um profissional e eu aceitei, porque está muito difícil. Estava namorando,

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feliz demais, e ela de repente terminou comigo. Não estou conseguindo levar isso sozinho, é muita dor”. O relacionamento havia começado um ano antes, quando o então namorado da menina foi preso por porte de drogas e Lucas pôde se aproximar dela. Agora, quando esse “ex” foi solto, ela terminou o namoro dizendo-se confusa. Sua primeira reação é a de querer “tirar satisfações” com esse outro homem: “por que ele tinha que reaparecer? O que ele fez pra ela mudar tanto o pensamento? Queria entender como ele conseguiu fazer isso, eu fiz o melhor que eu podia pra ela”. Pergunta-se, em seguida: “a gente estava muito de boa, muito bem, ela falava que me amava. Como isso pode mudar de uma hora pra outra?”. A analista afirma que as coisas haviam mudado, e encerra a sessão dizendo que era importante, realmente, que ele voltasse para procurar entender melhor o que mudou. Em suas sessões seguintes, semanalmente, Lucas conta sobre os diversos encontros que promove com a ex-namorada. Ela consente com sua demanda, mantém-se presente e com alguma proximidade, mas continua dizendo que não quer reatar o namoro. Ele não consegue entender o motivo de ela não se afastar de vez, e sua primeira leitura é a de que isso poderia ser sinal de que um retorno aconteceria em breve se insistisse mais, se fizesse “marcação cerrada”. Quando percebe que a lógica não é tão matemática assim, revolta-se e fica enfurecido: “ela me enlouquece. Da última vez que nos vimos, bebi demais, fiquei louco e xinguei vários palavrões para ela, ela foi embora com muita raiva. Eu tento não telefonar, não falar nada, mas é mais forte do que eu”. A analista pede que ele fale mais sobre o que considera que é mais forte do que ele. Lucas conta, então, que todos os seus términos de namoro haviam sido semelhantes quanto aos efeitos que causaram: “eu fico muito bem namorando, fico calmo, focado, tudo anda certinho, e quando o namoro termina parece que eu perco o foco, perco tudo”. A iniciativa do término é sempre das mulheres, e ele se diz invariavelmente pego de surpresa. A analista pontua que, então, era diante das mulheres que aparecia algo mais forte que ele. Sobre isso, Lucas conclui: “eu sou bobo”. Tece diversas considerações em torno dessa afirmativa, mas resume dizendo que é bobo porque, com as mulheres, ele sempre “roda”. A analista relembra-o que ele também “rodou” quando vendia drogas. “Sou um bobo que acha que é esperto, ou o esperto mais bobo”, ele diz.

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Esclarece que, há alguns anos, desistiu de vender drogas. Depois de um tempo nessa atividade, havia conseguido economizar quatro mil reais – quantia elevada para o padrão de vida que sua mãe pode lhe proporcionar – e resolveu gastar todo o dinheiro de uma vez só, em uma viagem de férias para a praia. Quando retornou a Belo Horizonte, decidiu trabalhar para substituir a renda que a droga lhe garantia. Por conta da “boa aparência” – bonito, alto, branco, jovem –, consegue empregos como “vendedor de uma loja de roupas caras” em um shopping center da zona sul. Seu salário, contudo, nem se compara ao dinheiro que a droga lhe rendia. Em várias de suas sessões, Lucas fala disso e vacila: “é muito sacrifício trabalhar fim de semana, até tarde, aguentar chefe me controlando, pra ganhar muito pouco. Às vezes penso que vender maconha poderia ser uma saída por um tempo, de novo, só por um tempo, até tudo se ajeitar e eu ficar melhor”. Da analista, ele escuta: “as coisas mudaram”. A sessão é encerrada. Na sessão seguinte, Lucas conta que, pouco antes do término desse último namoro, havia voltado a estudar e estava fazendo cursinho para tentar passar no vestibular. Decidiu retomar os estudos pelo mesmo motivo que não o deixava concluir sobre voltar a vender drogas: “antes de morrer, meu pai disse que me daria três conselhos e me falou: estudar, estudar e estudar”. A analista pede que ele conte sobre essa passagem e ele, chorando, relembra que foi quem cuidou do pai no hospital vários dias antes de seu falecimento, tendo com ele muitas conversas que considera importantes, entre as quais destaca essa em que o conselho foi dado. Apesar do péssimo estado de saúde desse pai, Lucas diz que recebeu a notícia de sua morte com muito susto e revolta: “quando fui avisado de que ele tinha morrido, não sei explicar, nem lembro muito porque saí do ar, mas fiquei com muita raiva. Ele não teve limite”. A sessão é imediatamente encerrada após a analista repetir essa última afirmativa: “ele não teve limite”. A lógica trabalho/estudo traz uma angústia intensa para Lucas, por ser o que ele leva consigo como o que seria o ideal que o pai não realizou para si, além de ser o que supõe que sua mãe espera para ele: “ela me dá tudo, investe tudo em mim, eu só decepciono”. Chora dizendo que tem tentado “fazer tudo certo” – o que, para ele, é sinônimo de estudar e trabalhar –, mas que, após o término do namoro, não consegue levar as coisas adiante: “fiquei sem chão”. Pensa em sair do cursinho, muda de emprego e vai trabalhar em outra loja do mesmo shopping center, mas

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continua aventando a ideia de que, talvez, vender droga seja uma opção melhor no momento, “por um tempo, só por um tempo”. Enquanto a dor do término parece insuportável, Lucas mantém-se indo regularmente às sessões, marcando várias outras sessões extras, ligando quando está angustiado para “ficar calmo” ouvindo a voz da analista. Dois meses depois de seu retorno, contudo, anuncia estar melhor e não sentir mais “o mesmo sofrimento” de antes. Afirma que a vida está “voltando para o lugar”, que consegue pensar com mais clareza e que outras ideias sobre o que fazer daqui pra frente estão aparecendo... e não retorna mais ao consultório, deixando para trás uma sessão não paga e as demais tentativas de contato da analista novamente sem nenhuma resposta.

2.2. A que realidade social Lucas responde? A época de Lacan terminou. Não o ensino de Lacan, mas a configuração do mundo, da ideologia do tempo de Lacan. Na verdade hoje isso não se parece com o que era. O cristianismo não é o mesmo da época, todo impregnado ainda pela fenomenologia. Os conflitos que estruturam o espírito do mundo não são iguais. A aplicação das grades antigas não serve mais de bússola. É preciso pensar isso de modo fresco e novo. (MILLER, 2005b, s.p.).

O estabelecimento, no século XVIII, do Iluminismo ou Esclarecimento12 foi o apogeu do movimento que privilegiou a razão como instrumento de saber, em detrimento do discurso religioso até então dominante: “o saber do mestre se produz como um saber inteiramente autônomo do saber mítico, e isto é o que se chama de ciência” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 84). Foi o discurso científico que tornou possível pensar o sujeito cartesiano como agente, dedução do pensamento, não mais apenas a partir de uma ontologia ou de uma metafísica, como fruto da natureza ou da vontade divina: “o sujeito se desdobra, movimento pelo qual se coloca no ato de conhecer, é suposto a este ato, mas não mais como mero correlato do objeto conhecido” (ELIA, 2007, p. 10). O termo “Renascimento” é comumente aplicado à civilização europeia pós-feudal dos séculos XIV a XVI, marcada pela retomada dos valores da cultura clássica greco-romana e por realizações no campo das artes, da literatura e das ciências. O Humanismo – exaltação do humano em oposição ao divino e ao sobrenatural – foi o motor dessas transformações. Herdeiro do Renascimento e do Humanismo, o Esclarecimento, por sua vez, foi um movimento intelectual surgido no século XVIII, que, enfatizando a razão e a ciência, impulsionou a sociedade moderna (RECCO, 2005). 12

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Apesar dessa mudança, o discurso científico esmerou-se, desde seu início até os dias atuais, em procurar excluir a dimensão do sujeito como variável de seu campo de operação, em busca do que entendia ser uma objetividade na aquisição de conhecimento. Ele visa a um homem “sem qualidades”, neutro e universal, determinado apenas pela razão. A tendência à avaliação e à classificação como fenômenos

tipicamente

contemporâneos

reforça

essa

tese,

buscando

o

consentimento implícito do sujeito em se deixar reduzir a um objeto cifrável e mensurável. Foi justamente o sujeito como esse resto alijado da operação científica que a psicanálise acolheu desde seu surgimento, três séculos depois de Descartes, assumindo, no bojo de seu edifício teórico e de sua vertente de pesquisa, que o desejo impede a assepsia pretendida pela ciência: “o sujeito do inconsciente é o que subexiste recalcado sob o sujeito da ciência” (LOPES, 2009, p. 19). Formaliza-se, com essa política, a impossibilidade de se evitar a proximidade existente entre corpo e linguagem e, ao mesmo tempo, a inviabilidade de se crer em um simbólico que possa deter todo o gozo. Há o inconsciente, há a pulsão e, por consequência, não há o sujeito universal. Conclui-se, portanto, que não seria possível chegar à psicanálise sem o advento da modernidade e da ciência, ainda que o sujeito do inconsciente seja apenas o rebotalho do sujeito cartesiano. Freud reinseriu a realidade psíquica no campo da ciência como o que faz obstáculo ao alcance do ideal da ciência e, com isso, criou um saber novo. A psicanálise nasceu do movimento de expansão da razão científica sobre o domínio da subjetividade, uma vez que, estruturalmente, todos os homens são devotados à ilusão. Lacan formalizou a realidade psíquica com o conceito de Nome-do-Pai alinhado à proposta iluminista de despir o campo do saber das concepções imaginárias deixadas na psicanálise pelos mitos freudianos. Mas esse alinhamento nunca foi sinônimo de tornar a psicanálise cúmplice do ideal da ciência de reduzir toda forma de autoridade ao semblante e produzir um sujeito sem qualidades. Pelo contrário, é nesse mesmo ponto que a psicanálise visa a retificar a ciência. (LOPES, 2009, p. 33).

O que Freud (1930/1996) nomeava “civilização”13, e que talvez tenhamos suposto, por algum tempo, serem aspectos universais e atemporais da cultura

13

Laurent e Miller (2005, p. 18, tradução nossa) ampliam a definição de civilização, estabelecendo esse conceito como determinante de “[...] um sistema de distribuição de gozo a partir de semblantes. [...] um modo de gozo, incluindo um modo comum de gozo, uma repartição sistematizada dos meios e

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ocidental, revelou-se, com o passar do tempo, serem modos de vida próprios do ser falante de sua época, a modernidade que viu nascerem tanto a ciência quanto a psicanálise. Trata-se do homem da “moral sexual civilizada” (FREUD, 1908/1996), que consentia com uma perda de satisfação em prol dos interesses da coletividade. Não por acaso, foi sobre os efeitos do recalque que o texto freudiano debruçou-se inicialmente, interessando-se em especial pelas neuroses de transferência (FREUD, 1917/1996), que davam testemunho direto das consequências da linguagem sobre o sujeito. No século XX, após a II Guerra Mundial, esse panorama da civilização ocidentalizada foi profundamente modificado. O ápice do capitalismo chegou acompanhado por crises sucessivas: desemprego, depressões econômicas, diferenças sociais crescentes. O enfraquecimento do valor universal do Pai, de seu modelo

centralizador,

alterou

significativamente

os

modos

de

vida

e,

consequentemente, também a clínica psicanalítica. Aqueles quadros clínicos apoiados na lógica do recalque, como as clássicas conversões histéricas freudianas, foram ganhando nova formatação na medida em que o simbólico perdeu sua força de cerceamento. Sendo o inconsciente um efeito da linguagem, o sujeito respondeu, na clínica, à mudança na cultura, apresentando-se com uma outra roupagem. Lacan mostrava-se, naquele momento, profundamente envolvido com a leitura da obra deixada à psicanálise por Freud, e precisou de fôlego para fazer a teoria continuar a dialogar com a prática nesse momento de transição da realidade social. Isso explica, entre outras coisas, a divisão do texto lacaniano em dois períodos clínicos, em paralelo ao que geralmente se compreende como os três momentos de seu ensino. Se houve uma transformação significativa na abordagem do sujeito pela clínica lacaniana, é porque Lacan (1970/2003) pôde entrever e antecipar, já em sua época e especialmente ao final de suas formalizações, os efeitos da acentuação do imperativo de gozo nos modos de vida, fenômeno que ele chamou de ascensão do objeto a. Qual é o significante-mestre da realidade social que a segunda clínica de Lacan aborda? Brousse (2007a) afirma que é o mercado global, que implica na produção e na troca generalizada de produtos de consumo como epicentro de todos das maneiras de gozar” (no original: [...] un sistema de distribución del goce a partir de semblantes. [...] una repartición sistematizada de los medios y las maneras de gozar).

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os demais intercâmbios humanos. Assistimos à pluralização contínua dos objetos fabricados pela associação entre ciência e mercado, que, como todos os objetos da pulsão, são destituídos de qualquer valor em si, subtraídos à sua vertente utilitária. O mercado empurra o sujeito a gozar sem limites e sem trégua desses objetos que são por ele produzidos, dando ao ser falante, explicam Carneiro e Pinheiro (2009) a ilusão de que seria possível apoderar-se do objeto real e, com ele, suturar sua divisão. Contudo, sucedendo-se na busca de cumprir essa promessa de satisfação, agora argumento de vendas, todos eles padecem do que Santiago (2001) chama de marca real do impossível: não conseguem transpor o obstáculo imposto pelo princípio do prazer e, por isso, devem ser fabricados de forma acelerada, um em substituição rápida ao anterior, na tentativa de se obter a dose a mais de gozo que o simbólico restringe. Brousse (2007a) acredita que os modos de gozo definidos por esse imperativo do mercado global podem ser resumidos pela expressão publicitária “enjoy x”14: o supereu em posto de comando, estabelecendo o triunfo do enjoyment15 sobre a satisfação adiada do recalque, que era, até então, a marca registrada da clínica freudiana. Ironicamente, diz Blanco (2007), o que se esconde por trás da ideia de globalização é um funcionamento que acaba por favorecer o empuxo individualista. A noção de uma “aldeia global”, como comumente essa política é chamada, apresenta uma caricatura, uma imaginarização do universal, mas é, de fato, resultado de sua crise, promovendo a lógica do nãotodo e soluções fragmentárias, provisórias e locais. Sem o amparo dos discursos preestabelecidos, relativos à dialética fálica, o mundo globalizado é testemunha da disseminação de uma feminização das formações discursivas e da ascensão de uma forma de gozo que não se sustenta mais no sentido universal. Como efeito colateral, a produção global define o surgimento de conflitos de fronteira e a criação de pequenos grupos, formados exclusivamente por identificação imaginária entre seus elementos. Irizar (2008) chama a atenção, por exemplo, para

Foi a Coca Cola que tornou mundialmente conhecido o slogan “Enjoy”, mais tarde alterado para “Enjoy Coca Cola”. 14

O dicionário Michaellis (2013, s.p.) traduz o termo como “gozo, prazer, alegria, recreação, divertimento”. 15

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a reivindicação crescente e autônoma de minorias sociais, que se relaciona à fragmentação do Nome-do-Pai e ao surgimento, em seu lugar, de nomes identificatórios pulverizados (LACAN, 1975-1976/2007). Mesmo esse recurso de nomeação múltipla, que guarda ainda certa relação com o pai, encontra cada vez mais dificuldades em se sustentar, cedendo espaço à predominância do real que escapa aos discursos, um real que a ciência tenta submeter com sua escritura, promovendo

classificações a partir de uma

leitura

biológica,

pragmática,

indialetizável. Esse domínio submerge o sujeito ao buscar apreender as operações simbólicas, carregando a pretensão de abarcar toda a verdade e, por isso, visando a apagar qualquer outra referência paradoxal (CARNEIRO; PINHEIRO, 2009). O gozo solitário, do Um, é o que passa a imperar, uma vez que a multiplicação dos objetos determina o recrudescimento do Outro como função. Seu olhar perde força como limitador, em um fenômeno que Chamorro (2005) chama de “desinibição” e que Miller (1997a) define como sendo a generalização do gozo perverso, exposto e desprendido do Outro da verdade. Não é mais do gozo que nos envergonhamos, mas do desejo: não do que não foi feito, mas do que restou por fazer. Não estamos, com isso, supondo o surgimento de uma sociedade mais propensa ao gozo – sempre se visou a ele, afinal, é o que Lacan conclui em seu ensino –, mas afirmando o fato de que essa modalidade de satisfação, agora não somente permitida, passa a ser também obrigatória para se evitar os embaraços do ser falante. Assim, o mundo fica dividido entre empuxo ao gozo – o que antes era uma obrigação limitada à participação na festa, hoje, é empuxo ao gozo do consumo – e a depressão – que é uma das patologias mais disseminadas na atualidade. Antes, era entre a ordem e as pequenas desordens vez por outra. Agora, aquele que consome obteria um gozo sem freio, e aquele que não o obtém se deprime. (NAPARSTEK, 2005, p. 43).

Laurent e Miller (2005) mostram como esse imperativo, paradigma da neurose contemporânea, distingue-a radicalmente da concepção das neuroses freudianas: em lugar do Outro do recalque, temos agora um Outro que não existe. Assistimos ao enfraquecimento do reino do Pai. Se o supereu freudiano produzia questões como a proibição, o dever, a culpabilidade, termos que supunham o Outro, o ensino de Lacan entrevê justamente a pulverização dos significantes-mestres, incluindo-se aí o Nome-do-Pai, que, como todos os outros S1, revela sua condição de semblante e seu caráter arbitrário, sendo, por isso, posto em questão. A época lacaniana da

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psicanálise apresenta o supereu como o produtor de um imperativo distinto do de Freud: agora, ele vocifera “goza!”: “aí eu aponto a reserva que implica o campo do direito-ao-gozo. O direito não é o dever. Nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo do gozo – goza!” (LACAN, 1972-1973/1995, p. 11). O Outro que não existe é aquele que sofreu uma desmaterialização. Seu bordeamento pelos ideais, pelo falo, encontra-se significativamente comprometido em nossa realidade social, levando a um empuxo ao feminino, que escapa ao Todo universal. A supremacia do mercado ilustra o saber sem mestre que é próprio desse Outro nãotodo16: como não é possível delimitá-lo, também é impossível fazer dele referência (VIEIRA, 2004a). O que há de chocante, e que não parece ser visto, é que a partir daquele momento o significante-mestre, por terem sido dissipadas as nuvens da impotência, aparece como mais inatacável, justamente na sua impossibilidade. Onde está ele? Como nomeá-lo? Como discerni-lo, a não ser, evidentemente, por seus efeitos mortíferos? Denunciar o imperialismo? Mas como pará-lo, esse mecanismo tão pequeno? (LACAN, 19691970/1992, p. 169).

A última clínica de Lacan faz do Outro nãotodo o Outro por excelência. Não mais um código fechado, contendo tudo aquilo em torno de que a demanda se articula, mas um código que porta uma falha irreparável de saber: S(Ⱥ). O paradoxo matemático de Russell17 é usado por Lacan (1968-1969/2008) para demonstrar que todo discurso fundamentado no reenvio a outro significante é impossível de se totalizar porque, nesse movimento, haverá sempre algo extraído de seu universo: “se o Nome-do-Pai é o significante do Outro enquanto lugar da lei, não há aí uma duplicação do Outro – uma vez que o Outro como conjunto de significantes comportaria seu próprio significante, como um catálogo dos catálogos que se

16

Há diversas formas de grafia dessa expressão, variáveis em diferentes traduções e também de autor para autor. Optou-se por utilizar, aqui, a grafia “Outro Todo” e “Outro nãotodo” proposta por Vieira (2004a). 17

Descoberto pelo matemático Bertrand Russell em 1901, o paradoxo aponta uma contradição no sistema apresentado anteriormente por outro matemático, Frege. Pode ser suscintamente descrito como: Seja Z conjunto de todos os conjuntos que não contêm a si mesmos como elemento. Se Z não pertence a Z, então Z pertence a Z (pela definição de Z), o que é contraditório. Se Z não pertence a Z, então Z não pertence a Z (também pela definição de Z), o que também é uma contradição. Logo, o conceito de conjunto de todos os conjuntos que não contêm a si mesmos implica, por definição, em uma contradição. (BECK; AFONSO, 2007).

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menciona a si mesmo?” (CHECCHIA, 2004, p. 336). A escrita S(Ⱥ) define, portanto, não somente a incompletude do Outro, mas especialmente sua inconsistência: Que haja uma falha fundamental na cadeia significante é o que justifica um modo de gozo que se liga, hoje, a uma sucessão de objetos. O significante derradeiro não chega nunca, pois o furo na cadeia é condição de estrutura, e não mero acidente. Ferrari (2008) alerta-nos para o fato de que haverá sempre outro objeto ligado em série ao anterior se tentarmos suturar esse furo, o que revela a qualidade de resto das produções do mercado, tornando-se todas meras envolturas de um gozo solitário, que desfaz radicalmente os laços sociais. Lacan (19721973/1995) aborda essa questão ao afirmar que não há Outro do Outro: [...] não há Outro do Outro. O Outro, esse lugar onde vem se inscrever tudo que se pode articular de significante, é, em seu fundamento, radicalmente Outro. É por isso que esse significante, com esse parêntese aberto, marca o Outro como barrado: S(Ⱥ). (LACAN, 1972-1973/1995, p. 109).

O mercado atual ocupa-se dessa série, produzindo freneticamente objetos esvaziados,

prontos-para-gozar,

dirigidos

a

um

indivíduo

genérico.

Como

consequência, a lógica do consumo exclui a condição de possibilidade do sujeito dividido, que é sua orientação pelo desejo, alojado nos intervalos entre um objeto e outro. É o reino das exceções que não dá lugar a ideal algum, mas somente à universalização de um “todos iguais”. Todos iguais, desejando o mesmo último objeto comercializado e do qual os estudos de mercado dirigiram as condições de fabricação antes que as campanhas publicitárias organizassem para todos um desejo idêntico. É o reino do universal que exclui a singularidade do gozo de cada um. É o reino de um desejo posto em mercado comum com seus efeitos segregativos (...) (STEVENS, 1999, p. 16-17).

É essa a realidade a que responde o falasser, e são seus modos de vida que testemunha Lucas, o protagonista de nosso caso clínico. Qualquer possibilidade de endereçamento de seu sofrimento a um Outro mostrava-se inicialmente obturada, e toda intervenção do analista era recebida com descaso e ironia, porque vista como destituída de qualquer saber. Em lugar dos embaraços trazidos pela linguagem, em lugar do sofrimento e do enigma oriundos do recalque, em lugar da angústia diante da impossibilidade de relação sexual entre os seres falantes, Lucas havia escolhido a conexão imediata com o objeto da pulsão. Não haveria qualquer demanda prévia de análise por parte de Lucas, porque sua palavra encontrava-se, naquele momento, em estado de inoperância. Sem a

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obrigatoriedade imposta pela lei jurídica, podemos supor que ele nunca chegasse a se colocar diante de um analista. Aliás, ainda que tenha cumprido a determinação do juiz responsável por seu caso, cabe ressaltar sua falta de implicação e sua dessuposição de saber também em relação a essa instância. O Outro a quem Lucas responde não é o simbólico: “só vim porque minha mãe mandou”, ele afirma. O gozo solitário com a droga é sua tentativa de regular os excessos do Outro em sua vertente imaginária, sem ter, para isso, que fazer uso das bordas oferecidas pelos ideais. Nessa proximidade com o objeto, eleito como parceiro (PORTILLO, 2005), pode-se tamponar, artificial e momentaneamente, os efeitos do recalque e não se perguntar sobre o sintoma. A droga é, portanto, exemplar na substituição que faz imperar o Um do real de gozo sobre o Outro simbólico das regulações próprias ao laço social. À psicanálise, impõe-se o desafio de oferecer ao ser falante uma outra abordagem, que não pela via das respostas oferecidas pelos produtos resultantes da associação entre o mercado e a ciência. Nele [no mundo atual], não parece haver espaço para a dor, para a tristeza, para as fraquezas, para tudo que venha da subjetividade humana, pois tudo precisa ser resolvido de forma rápida, eficaz, limpa, direta. É necessário a tudo normalizar [...]. Acontece que o tiro acaba saindo pela culatra. A angústia é enorme, a solidão é coletiva, a melancolia é evidente, as drogas são consumidas em abundância... desta forma, ainda que a psicanálise não seja querida no mundo científico, a subjetividade do homem a reclama como possibilidade de ser escutada. (FERRARI, 2002, p. 83).

2.2.1. A toxicomania como paradigma Visto, especialmente pelos saberes médico e jurídico, como um dos grandes agentes nocivos da contemporaneidade, o objeto droga, em suas várias modalidades, sintetiza o que Santiago (2001) define como sendo a lógica segregativa da ciência, que se mostra incapaz de compreender seu uso singular para além de um elemento universal de toxicidade ou de propriedades físicoquímicas. A proliferação dessas substâncias no tecido social definiu-as também como uma questão jurídica central. É dessa instância a tarefa de proibir o uso excessivo de qualquer bem, impedindo o que se considera abuso e revelando a necessidade de regulamentação do gozo pelas instituições. Se o mundo enfrenta hoje uma discussão ferrenha acerca dos benefícios e das contraindicações, por exemplo, da

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descriminalização de algumas drogas, entre outros impasses sobre o tema, é porque percebe claramente o impacto da abundância da circulação desse objeto no laço social. Haveria uma explicação universal para o lugar privilegiado da droga em nossa realidade? A psicanálise acredita que não, pois o uso que se faz dela seria sempre uma resposta própria de cada usuário. Por outro lado, ao falarmos desses modos singulares de gozo, estamos necessariamente abordando também o discurso em que eles se inserem e os efeitos que nele produzem ao se constituírem como nova proposta de saber e desfrute, como saída inédita para o mal-estar. Lacan (1974/2003, p. 523) tratou, em seu texto “Televisão”, do que chamou de “nosso modo de gozo”, indicando que há uma abordagem do gozo que passa pelo coletivo, para além de sua vertente singular. Portanto, todo sintoma seria também social e tocaria, em um de seus vértices, o universal da estrutura: Sintoma social situaria assim um campo do particular, entre o universal do mal-estar e o singular do sintoma subjetivo: metáfora partilhada por um grupo do mal-estar, por meio de uma modalidade de gozo inscrita, submetida e provocada pelo discurso dominante de uma época. (VORCARO, 2004, s.p.).

A droga como fenômeno de incidência global surge como resposta à mudança de regime do mestre antigo para o moderno, capitalista, o que definiu alterações na relação do sujeito com o saber. Trata-se de mais um objeto que tem sua circulação condicionada ao imperativo de consumo18, explicitando de forma paradigmática a ligação entre o ser falante e essa realidade social marcada pela suplantação do gozo fálico por um gozo que busca prescindir do pacto social, porque se pretende pleno, sem borda. O discurso da ciência mostra-se a serviço desse novo mestre que é o mercado de consumo, participando ativamente da produção dos objetos que o abastecem. Para Leite (2001), os sintomas comuns à clínica psicanalítica hoje (toxicomanias, transtornos alimentares, hiperatividade, depressão, para citar apenas algumas das nomeações mais comuns, já abundantemente circulantes no laço social) guardam em seu bojo a expressão do mal-estar que advém do fato de termos

18

Lacan (1969-1970/1992) define o discurso capitalista como o orientador da realidade social que aqui abordamos, e a leitura da questão da toxicomania pelo viés desse discurso mostra-se também bastante frutífera.

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todos nos tornado consumidores e, ao mesmo tempo, objetos de consumo, em modos de vida que se aproximam do que poderíamos chamar de uma toxicomania generalizada. Temos aí a prevalência de uma forma de uso, tanto dos produtos do mercado quanto do outro como semelhante, que é desprendida do Outro, promovendo um gozo monótono, repetitivo, fechado em si e limitado ao circuito consumidor-produto (SANTIAGO, 2001). As patologias contemporâneas apresentam-se, então, refratárias à dimensão de sentido, desvelando a presença de um real sem lei, excluído do saber do inconsciente. Elas demonstram a crise da civilização que Portillo (2005) qualifica de inconsistente e não-totalizável, que assiste ao desmantelamento de formas de funcionamento baseadas nos ideais culturais tradicionais. O que cai é o significantemestre que comandava a civilização sob a lógica do semblante, fazendo proliferar as diversas emergências do real e a busca incessante por satisfação. Entre essas manifestações, o objeto-droga ganha destaque. Se, como acredita a psicanálise, a relação entre sujeito e objeto é invariavelmente recortada pelo discurso de cada tempo, não há droga na natureza, porque ela seria sempre correlativa ao contexto a partir do qual se enuncia (SANTIAGO, 2001). Essa crença de que ela está ligada ao real e é passível de diversos efeitos de sentido é um posicionamento avesso à abordagem proposta pela ciência, que tenta interromper a fuga de sentido ao buscar avaliá-la, medi-la, defini-la a partir de aspectos generalizantes. No campo da psicanálise, entendemos que o enganchamento entre sujeito e objeto a que assistimos no paradigma da toxicomania pode promover um atalho, um by-pass que dispensa o ser falante da entrada na tela da fantasia. Essa forma de uso revela-se um recurso artificial, que não responde à clássica lógica freudiana do sintoma como metáfora. A significação fica elidida, explicitando uma antinomia entre uso e significado. A prática da droga não surge aí como efeito do recalcado, mas como um substituto a ele, tentativa derradeira de limitar a ação invasiva do gozo, explica Santiago (2001). A queda do efeito de sentido suspende temporariamente os efeitos da castração e produz, por acréscimo, um excedente de satisfação. O saber da ciência transforma e determina o real, fazendo existir objetos que têm lugar apenas para oferecer ao sujeito a recuperação de parte do gozo primitivamente perdido: “para o sujeito que se define como falta-a-ser, um complemento de ser propõe-se, na ordem

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imaginária, graças a esse mais-de-gozar extraído pela técnica do corpo toxicomaníaco” (SANTIAGO, 2001, p. 154). Como gadget, a droga elide as questões do sujeito a respeito dos embaraços com o corpo que tem e com o Outro sexo, apresentando-se como um substituto temporário à resposta ao sofrimento dada pelo sintoma neurótico e pela falta-a-ser. A ruptura com o gozo limitado que é decorrente da parceria fálica promove a unidade ilusória do eu e o escamoteamento do campo de ação do Outro. Mostra-se, assim, um recurso cínico, que se propõe a eliminar a angústia do encontro com o desejo. O cínico moderno, ao contrário do sábio cínico, não tenta fazer uma lei ética de seu modo de gozo. Ele satisfaz-se com sua própria maneira de gozar – à margem, no seu canto, não tem a menor intenção de demonstração. É assim que se pode explicar sua péssima reputação com os representantes das leis da cidade. Ele representa, além do mais, uma perturbação para essas leis, um obstáculo maior ao discurso do mestre, colocando-se fora do alcance dos esforços da retórica para inseri-lo nas vidas dos ideais da sublimação. (SANTIAGO, 2001, p. 159).

Esse mecanismo de satisfação, portanto, é resultado da própria disseminação do discurso da ciência, que produz o esvaziamento do saber como representação, suplantando-o pelo saber dominado pelo puro cálculo (SANTIAGO, 2001). Por esse motivo, tomar o ato toxicomaníaco como simples categoria nosológica traz a incoerência de se abordar pela vertente fenomenológica o que, de fato, é efeito direto desse discurso em posição de comando em nossa realidade social. Rudge (2006) ressalta a importância de se ter em mente o perigo de ficarmos presos a um enfoque excessivamente descritivo dos fenômenos referentes ao ato, acentuando sua vertente comportamental em lugar de adotarmos um ponto de vista propriamente psicanalítico. Para evitar esse equívoco, é necessário recentrarmo-nos na significação exclusiva de cada ato para cada sujeito, mesmo que sua roupagem pareça similar em diversos casos. Lucas é um toxicômano? As respostas a respeito dos aspectos que permitiriam essa nomeação são múltiplas, variando de autor para autor, além das inúmeras leituras de diversos campos de saber que abordam a questão. Podemos afirmar, contudo, que ele não se identifica a esse significante, e, pela psicanálise, sabemos que “uma toxicomania não pode ser definida somente pela frequência e tipo de droga que o sujeito usa, mas sim pelo lugar que ela ocupa na subjetividade do paciente” (NOGUEIRA, 2006, p. 148). Na vida desse sujeito, o uso da droga não

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se destaca por conta de seu uso excessivo ou desregrado, estando muito mais próximo de ser aquilo que permite, ao contrário, tanto certo distanciamento dos excessos do gozo invasivo do Outro sexo quanto uma aproximação identificatória ao modo de gozo do pai. Independentemente do caráter atribuído a seu uso, contudo, não podemos perder de vista que a chegada de Lucas à análise é marcada de maneira definitiva pelo significante droga e por suas consequências em diversos âmbitos, o que determina a importância da discussão sobre o tema no caso clínico em questão. O uso da maconha leva-o à necessidade de responder juridicamente, imposição que desdobrou-se na possibilidade de responder também subjetivamente. Não se trata de uma equação direta, visto que a responsabilização do sujeito por seu sintoma e seu modo de vida pode não advir – e muitas vezes não advém – das medidas jurídicas estabelecidas. É absolutamente possível cumprir uma medida sem implicarse subjetivamente nela (BARROSO, 2007). No caso de Lucas, a implicação acontece, e permitimo-nos supor que o juiz responsável por seu caso pode ter conseguido escutar, nas entrelinhas, a existência de alguma possibilidade de abertura para o sujeito para decidir conceder a ele um lugar de exceção, substituindo a formalidade da medida socioeducativa pela possibilidade de encontro com um analista. A abertura para a palavra permitida por esse encontro possibilita que um discurso seja construído e que, a partir dela, possamos compreender melhor o uso singular que Lucas faz da droga. Ela apresenta-se, em primeiro lugar, como a resposta encontrada por ele para aliviar a agitação do corpo, tendo função de substituição: em lugar das mulheres que o “enlouquecem” e o põem em “confusão”, a maconha desliga-o, permitindo-lhe evitar as reações “impulsivas”. Não por acaso, o uso dessa substância é feito apenas entre colegas do sexo masculino, em uma posição identificatória que não põe em questão a diferença sexual, evidenciando apenas a relação de especularidade, a fratria dos “chegados”. Também é a relação imaginarizada, agora em sua vertente de rivalidade, que aparece com o ex-namorado da ex-namorada – com ele, compartilha as mesmas escolhas de objeto: aquela mulher e o uso da droga. A adolescência, sintoma da puberdade que recai sobre o corpo e tem efeitos nas pulsões que o recortam, é tradicionalmente um palco privilegiado dos acontecimentos que Lucas relata. Aos quinze anos, as brigas nas quais ele se

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envolvia tinham como causa as drogas ou as mulheres, esses dois objetos com incidência direta sobre seu corpo de gozo. Para evitar o excedente pulsional que o atravessa, elege a via do ato – as agressões, o porte de drogas e seu uso. Em um segundo tempo de análise, como veremos oportunamente, o amor é o que vai permitir a Lucas ressituar o laço com o Outro simbólico como tratamento ao excelente pulsional. Até o encerramento do primeiro momento de sua experiência analítica, contudo, fica evidente que o Outro a que ele responde surge especialmente pela via da figura materna caprichosa, exigente e invasiva. A mãe, apesar do semblante fragilizado, “não deixa nada faltar” e “se mata pelos filhos”, apresentando-se com sua divisão obturada. Situar-se toda no lugar da mãe, sabemos, é uma das saídas possíveis à mulher para não ter que se haver com sua condição nãotoda. A vertente materna escamoteia a castração, apresentando-se do lado do masculino da sexuação, do lado do Todo. A mãe de Lucas “fala muito”, “irrita muito”, “cobra as coisas”. Sua demanda recai como imperativo e faz com que o sujeito se veja cada vez mais distante do ideal. Não sabe o que é possível ser em uma vertente distinta da que ele supõe que a mãe espera que seja: “não sou como ela queria que eu fosse”; “ela me dá tudo, investe tudo em mim, eu só decepciono”. A cena dessa mãe subjugada diante dos policiais, fragilizada e impotente quando vai buscar Lucas na delegacia após sua detenção, acaba permitindo que algo da divisão de Lucas também possa aparecer indiretamente em seu relato. Sustentando o tamponamento da falta no Outro, o sujeito pode evitar ter que se haver com sua própria falta, que se insinua, no caso de Lucas com a constatação da divisão da mãe. Podemos, então, constatar que o uso da maconha por Lucas é seu recurso artificial, de início, para limitar a demanda Outro – a “confusão” promovida pelas mulheres e a exigência da mãe que impõe o jogo do “dar tudo que tem”. Os efeitos da análise de Lucas, contudo, permitem-nos apostar que há, para esse sujeito, um outro recurso: o significante paterno parece ter feito sua inscrição e poderia, então, ser resgatado. Há um pai que incidiu sobre ele e que, com isso, permite-nos apostar na saída oferecida pela construção de um sujeito do inconsciente – embora, sobre isso, Lucas chegue decidido a nada saber. A proposta em que nos apoiamos, neste caso clínico, é a de que o encontro com um analista pode ter como função restaurar a barra estabelecida pelo significante fálico. Seria possível, então, como direção do tratamento, operar com os

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fragmentos do pai, com seus restos, de forma a promover, com eles, o reencontro com a castração que alivia o peso da demanda pulsional sobre o sujeito colocado na condição de objeto de gozo. Cunha e Carneiro (2009) enfatizam a questão da fixação pulsional que geralmente acompanha a adição ao objeto droga, marcando a tentativa do ser falante de um retorno ao autoerotismo, que falha na medida em que há um acesso ao significante fálico. Nos dois momentos da análise em questão no caso clínico que apresentamos, acreditamos que o que conta, de formas diferentes, é recolocar o pai no jogo, resgatar sua palavra, fazer com que a falta-a-ser apareça em lugar da presença maciça do Outro. É a possibilidade de esboçar um sujeito dividido que permite que as pulsões que atravessam o corpo de Lucas possam, então, ser contidas por outra via que não a da droga – e o amor, que se atrela à transferência, é uma trilha possível nesse trabalho. É o próprio Lucas, inclusive, quem constata que o amor, pela vertente da escolha por uma mulher como objeto, acalma-o, em oposição à agitação gerada pela série que ele engloba sob o plural “as mulheres”, que apresentam um gozo impossível de ser manejado por ele. Uma questão proeminente que se coloca nesse ponto é sobre como poderia haver, como supomos, uma ruptura apenas temporária com o gozo fálico, sem que haja forclusão do Nome-do-Pai, o que permite que situemos a função do uso da droga em uma neurose, diagnóstico estrutural em que apostamos no caso de Lucas. Compreendemos a toxicomania e o uso da droga em geral como um fenômeno transestrutural, cabendo ao analista investigar seu funcionamento para cada sujeito, suas consequências e o manejo clínico exigido. Mesmo para os modos de gozo próprios do tempo presente, que expõem de maneira mais evidente a vertente singular do sintoma, portanto, a investigação acerca da estrutura continua a aparecer como logicamente anterior à abordagem individual de qualquer fenômeno. Dependendo desse diagnóstico estrutural, que é marca registrada da primeira clínica lacaniana, o objeto droga pode funcionar como “[...] uma invenção para se desembaraçar da castração ou como suplência diante da falência do significante Nome-do-Pai” (REIS, 2011, p. 5). Na neurose, resume Reis (2011), o recurso à droga promove uma ruptura com o gozo fálico sem que haja forclusão do significante paterno. Nesse caso, o toxicômano apresenta-se sob a recusa a saber sobre o inconsciente e a se haver com a impossibilidade da relação sexual, “[...] de modo

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que se torna difícil a invenção de um semblante que o proteja da compulsão a se drogar e do real que daí advém. Isso caracteriza a monotonia do gozo apresentada por esses sujeitos” (REIS, 2011, p. 6). Essa posição diferencia-se radicalmente do uso da droga na psicose, em que a não-inscrição do significante fálico tem como efeito uma escassez de recursos simbólicos para lidar com o real que invade o ser. O objeto-droga surge, então, como possibilidade de tratamento do real, podendo fazer a função de amarração entre as instâncias Real, Simbólico e Imaginário, permitindo, inclusive, uma estabilização pelo efeito trazido pelo uso e/ou pela identificação ao significante “toxicômano”. Apesar de, juridicamente, ser um autor de ato infracional, do ponto de vista subjetivo, Lucas não consegue transgredir sua condição neurótica de modo bemsucedido – continua obedecendo ao jogo fálico, ainda que tente se livrar de seus efeitos. O que ele busca com a droga é manter o Outro de fora, mas há um furo em sua estratégia. Diferentemente do cínico, que não crê em nada, ele se anuncia “o bobo mais esperto/o esperto mais bobo”. Sua neurose impede-o da esperteza de se livrar de vez dos impasses diante da impossibilidade da relação sexual, fazendo com que “rode” em várias situações em que um verdadeiro desligamento do Outro talvez pudesse salvá-lo. Lembramo-nos, aqui, da advertência de Lacan: “les non dupe errent”19 (LACAN, 1973-1974/2009). Lucas vacila, o que faz com que, ao menos na concepção lacaniana, não seja bobo o suficiente para crer de forma genuína na possibilidade de transgressão à limitação imposta pelo falo. Busca não saber, mas sabe algo sobre o Pai e sua Lei. A posição subjetiva a ser tomada por ele em sua análise, portanto, oscila entre não crer na droga mas fazer uso dela por não querer saber ou crer no Pai e, assim, poder prescindir dos objetos de usufruto direto para entrar ativamente no jogo da castração e ter que se haver com a angústia daí advinda. O “Seminário 21” de Lacan, de 1973-1974, é intitulado “Les non-dupes errent”, tradicionalmente traduzido por “Os não-tolos erram”. O título faz homofonia com a expressão em francês les Noms Du Père errent, ou, traduzindo livremente, “os Nomes do Pai erram/são errantes”. A brincadeira linguística enfatiza o fato de a crença no simbólico, no Nome do Pai como ponto de basta, conduzir ao equívoco da busca incessante de sentido, que faz com que o real reste desconhecido. No texto, Lacan também faz referência ao que considera erros na forma como as sociedades psicanalíticas foram constituídas por Freud. 19

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Longe de resumir toda a questão de Lucas, sua proximidade com a droga merece ser abordada como paradigma de uma série de sintomas de nosso tempo para, na esteira do que recomenda Miller (1992) ao psicanalista diante do suposto toxicômano, ressaltarmos que o método analítico dirige a atenção para o sujeito, não para os objetos que possam estar dispostos entre ele e o analista. Escutar o uso da droga sempre e exclusivamente a partir do registro da adição ou da toxicomania é impedir a abertura para a divisão subjetiva, na vertente do sujeito, e para a incidência, no corpo, de um gozo que não pode ser todo tratado pela linguagem, leitura possibilitada pelo falasser. A abordagem pela vertente do sujeito que propomos para o caso clínico em questão pode ser tomada por alguns, sob o fascínio do último ensino de Lacan, como excessivamente tradicional ou pouco fiel à assunção do real como saída proposta por essa segunda clínica. Apoiamo-nos, contudo, em dois argumentos centrais para defender nosso posicionamento. O primeiro é o de que a saída pela via do real não nos dispensa de perguntarmo-nos, como analista, sobre quais são as entradas possíveis para a experiência analítica, e se elas não continuam tendo no simbólico uma sustentação. O segundo é o de que entendemos que a orientação pelo real não é uma receita, um modismo ou uma tendência geral à prática psicanalítica de orientação lacaniana, mas uma via de leitura que amplia as possibilidades de ação do analista, oferecendo novos pontos de vista que não eliminam o que se constrói com a primeira clínica e nem se sobrepõem a ela. Buscaremos abordar esses dois argumentos na construção teórica que iniciaremos em seguida, procurando dar a eles maior sustentação a partir de nosso percurso pelos conceitos de sujeito e falasser. No avesso do falasser como o que permite que Lacan continue dialogando com nosso tempo, reside o sujeito, que acreditamos que pode surgir, inclusive, como possibilidade de tratamento de um modo de vida que eclipsa qualquer questionamento e qualquer endereçamento, aspectos que, a nosso ver, ainda se sustentam como precondições para a entrada de alguns seres falantes no dispositivo analítico.

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3. “BEM ANTES DE ELE NASCER...”20: O QUE FREUD JÁ SABIA DO SUJEITO Neste ponto de nossa investigação, temos como objetivo retomar, em Freud, o que Lacan pôde localizar posteriormente como sendo a raiz freudiana do que estabelece como o sujeito em psicanálise. Esse passo integra nossa trajetória teórica que liga os conceitos de sujeito e de falasser, de forma que possamos, ao final, tornar clara a proximidade entre ambos. Ampliando nossa referência histórica, podemos afirmar que a estrada para a construção do conceito de sujeito na psicanálise foi muito mais longa do que sua pré-história em Freud faz supor. A possibilidade de pensá-lo e de dar a ele um lugar no mundo teve como condição, antes disso, o pensamento de Descartes e o advento da modernidade. O século XVI trouxe o Renascimento e o impacto da Reforma Protestante21 sobre a crença religiosa, explicitando uma mudança radical no diálogo do ser humano com a fé. Sob a influência desses movimentos, ela tornou-se atividade reflexiva, enfraquecendo as explicações místicas até então dominantes sobre o mundo e fundamentando na razão, a partir daí, a atividade de aquisição de conhecimentos sobre o universo (BEZERRA JR., 1989). Naquele momento, contudo, ainda não se falava em subjetividade. O que esteve em pauta até o século XVIII, com a Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo, eram os princípios de igualdade e universalização do direito ao pensamento, à consciência e à racionalidade. Foi preciso esperar o anseio por liberdade que brotou depois disso, gerando uma série de movimentos sociais no século XIX, para que fosse enfatizada também a importância da diferença entre os indivíduos, buscando garantir que eles não fossem levados em conta apenas 20

O título faz alusão à frase que Freud diz ao pequeno Hans, um de seus pacientes e casos clínicos paradigmáticos, para lhe transmitir a estrutura do que Lacan, posteriormente, vai compreender como sendo o sujeito suposto saber, que funda a transferência: “continuei, dizendo que bem antes de ele nascer eu já sabia que ia chegar um pequeno Hans que ia gostar tanto de sua mãe que, por causa disso, não deixaria de sentir medo de seu pai [...]” (FREUD, 1909/1996, p. 45). 21

A Reforma Protestante foi um movimento iniciado no século XVI por Martinho Lutero, propondo mudanças drásticas no catolicismo romano. Foi apoiada por vários governantes europeus, provocando a revolução religiosa que teve como resultado a divisão da Igreja ocidental e o consequente enfraquecimento de seu poder absoluto.

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coletivamente. Nesse terreno, a psicanálise encontrou solo fértil para seu surgimento e para que fosse possível estabelecer, como Lacan formalizou, as especificidades de sua versão de sujeito. Se, de um lado, ela [a teoria psicanalítica] seria impensável longe dos conceitos de individualização, representação, racionalismo, contrato, autonomia etc., por outro ela só revela sua originalidade na ruptura com estes mesmos alicerces do mundo moderno. Eles fazem parte, num certo sentido, das condições de possibilidade da psicanálise. Mas os conceitos centrais da psicanálise mantêm com esses alicerces uma relação de tipo peculiar, posto que se apoiam nessas condições para dar origem a registros diferentes, a uma ordem conceitual inovadora, fora da qual seu pleno significado é inapreensível. (BEZERRA JR., 1989, p. 233).

É em 1895 que Freud (1895/1996) publica seu “Projeto para uma psicologia científica”, trazendo concepções embrionárias – muitas, como o próprio texto, nunca levadas adiante – sobre um aparelho psíquico que seria o alicerce de um novo campo de saber. A metapsicologia freudiana é fundada como o cerne da teoria psicanalítica: “localizar casos, avaliar pontos fortes, calcular investimentos e gastos: é esse o triplo imperativo da explicação metapsicológica. É no nó desses três processos que toma forma ‘o inconsciente’ como objeto metapsicológico” (ASSOUN, 2002, p. 27, tradução nossa22). Na definição de Assoun (2002), um aparelho23 é um objeto ou maquinaria, artificial ou anatômica, composto por peças destinadas a produzir certo resultado. Inicialmente, Freud (1895/1996) pensou o aparelho psíquico como essa maquinaria formada por classes de neurônios, que trabalhariam sempre em prol de uma mesma tendência: a descarga das excitações que o atingem, de forma a manter apenas a quantidade mínima de energia necessária para garantir a continuidade de seu movimento. O que permitiria a manutenção desse acúmulo mínimo seria a existência de uma resistência entre alguns neurônios, que atuaria como barreira, como contenção. Um grupo neuronal permitiria a passagem livre da excitação, mas outro seria permanentemente modificado após sua transposição. O local por onde a energia

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Localizar las instancias, evaluar las fuerzas, calcular las inversiones y los gastos: tal es el triple imperativo de la explicación metapsicológica. Es en el nudo de esos tres procesos donde cobra forma “lo inconsciente” como objeto metapsicológico. Na língua original, o espanhol, Assoun (2002) escreve “aparato”, cuja tradução para a língua portuguesa parece aproximar-se mais de “aparelho”. 23

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atravessa a barreira desse segundo grupo tornaria aquele ponto mais suscetível, mais capaz de condução, o que Freud (1895/1996) chama de facilitação (Bahnung). Uma trilha permaneceria aberta naquele lugar, e a soma desses caminhos definiria um traçado, uma rede que guarda a história do percurso da tensão e constitui, no “Projeto”, a memória (FREUD, 1895/1996). Nem só de quantidades, porém, constrói-se o aparelho psíquico. Haveria também uma categoria de neurônios responsável pela qualidade, ampla gama de sensações com as quais lida o ser humano. É essa categoria que representa a noção de consciência no “Projeto” (FREUD, 1895/1996): ela deixa de ser característica de toda realidade psíquica e passa a ser atributo de apenas parte dela, desde que satisfeitas determinadas condições (SIMANKE; CAROPRESO, 2005). Tal concepção traz uma alteração significativa na noção de sujeito da razão como aquele que teria acesso a informações pelos sentidos e elaborá-la-ias pelo pensamento. Na psicanálise, o exterior é tomado como invariavelmente subjetivado pelo aparelho psíquico, chegando a ele de forma descontínua e selecionada: “o homem lida com peças escolhidas da realidade” (LACAN, 1959-1960/2008, p. 62). Porque não há correlação direta entre o mundo externo e sua leitura por essa via, temos aí uma fonte permanente de enganos, afastando a possibilidade de se conceber qualquer objetividade nessa leitura. O aparelho psíquico é um sistema fechado sobre si, não referente à razão, que tem como único atributo e única função a busca pela satisfação e a obtenção de prazer pela descarga do excedente de tensão que circula por ele. Além disso, contribui para a impossibilidade de referência a uma realidade objetiva o fato de os registros mnêmicos não serem fixos, passando por sucessivas reorganizações, como constata Freud (1896/1996) um pouco mais tarde, em sua “Carta 52”. Os estímulos sensoriais que incidem sobre a periferia do sistema nervoso24 sofreriam rearranjos em seu percurso da medula ao córtex. Em cada sistema de neurônios, escavariam25 traços, resultando em camadas superpostas 24

Vale lembrar que Freud ainda acreditava estar tratando de neurônios, não do aparelho psíquico como lugar abstrato. Essa “escavação” assemelha-se à técnica da escrita cuneiforme, nomeação dada ao tipo de escrita feita com o auxílio de objetos em formato de cunha, formando um sulco no material que lhe serve de apoio. 25

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que alteram continuamente a informação inicial e impedem a certeza que poderia ser obtida pela razão. Não há realidade externa sem que haja sua mediação por um sistema de marcas, de inscrições (Niederschriften) (FREUD, 1896/1996). A memória é sempre traduzida em termos de impressões psíquicas. No texto “A interpretação dos sonhos” (FREUD, 1900/1996), as camadas do aparelho psíquico são apresentadas como mantendo uma conexão ainda mais complexa, dispostas não por ordem espacial de acesso, mas temporal. Mais uma vez, os traços mnêmicos surgem como sendo reescritos ao longo dos sistemas, podendo ou não se tornar conscientes – é possível que falhas impeçam a associação entre conceito e palavra e, consequentemente, a passagem de um conteúdo à consciência. Essa dependência de uma associação bem-sucedida torna o consciente, em Freud, um efeito do inconsciente (GARCIA-ROZA, 2001), o que põe em jogo a concepção cartesiana de acesso à realidade pelos sentidos e sua elaboração pelo pensamento. Há um mecanismo que passa tanto pelos indícios de realidade que o aparelho psíquico recebe quanto por uma realidade alucinada, própria desse aparelho, e é pela conjugação dessas duas vias que o ser humano se orienta na busca de satisfação. Sua eleição dos objetos não é pré-definida, mas estabelecida a partir de um sistema de representações em constante construção. Torna-se impossível um contato direto com o mundo porque haverá sempre a alucinação do objeto, que funda-se no jogo de representações e dos traços mnésicos constitutivos do aparelho psíquico, e que deve coincidir com a percepção, para que haja possibilidade de descarga. Mais do que verificar se uma representação que tenho existe no mundo ou não, o teste de realidade para Freud não é um teste de existência, mas sim o estabelecimento de conexões entre o jogo de representações do aparelho psíquico e uma dada percepção, que permitam nomeá-la, permitindo uma ação sobre o mundo e um relativo acesso aos objetos. São estes mecanismos de adequação entre os indícios de realidade e a realidade alucinada do aparelho psíquico que permitem orientar o homem na sua procura e na satisfação de suas necessidades. Estes indícios, entretanto, serão sempre indícios e nunca presenças. O organismo orienta-se no mundo a partir deste acoplamento de uma alucinação com uma percepção. O aparelho psíquico então vai fazer ou não conexões de existência em um mundo de representações alucinadas. Este aparelho não parte em busca de seus objetos no mundo, seja por que atalhos for. Ele é premido pela Not des Lebens freudiana, uma urgência vital sem finalidades específicas e sem necessidades definidas a priori, a tatear o mundo, sem objeto definido, estabelecendo conexões a partir de seu sistema de representações, o qual permite que algumas destas conexões sejam propícias à obtenção de uma certa satisfação. (VIEIRA, 2003, p. 30).

Nessa versão do cogito freudiano, revela Lacan (1966/2003), o sujeito diferencia-se evidentemente do eu, que surge não mais como o lugar da verdade,

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mas do equívoco. É com essa descoberta que Freud, segundo ele próprio, estabelece o terceiro golpe narcísico sofrido pela humanidade: além de a Terra não ser o centro do universo e de os homens não serem seres à parte da evolução da espécie, “o ego não é o senhor de sua própria casa” (FREUD, 1917/1996, p. 153). A consciência torna-se submetida ao inconsciente, subvertendo o cogito cartesiano do “penso, logo sou”: “[...] esse sujeito do ‘eu penso’ revela o que é: o ser de uma queda. [...] o ‘logo’, traço da causa, separa originalmente o ‘eu sou’ da existência do ‘eu sou’ do sentido” (LACAN, 1966/2003, p. 211). Com a compreensão do aparelho psíquico como um conjunto de inscrições constantemente alteradas, Freud supera sua leitura inicial, que se apoiava em um funcionamento biológico, em quantidades e níveis de excitação, à maneira das ciências naturais e da mecânica e sob forte influência de sua formação médica. A psicanálise freudiana aproxima-se cada vez mais de um arranjo simbólico, formado por marcas da linguagem que esculpem traçados e estabelecem conformações singulares no aparelho. O encontro com a palavra ganha força como o que, do inconsciente, escapa à medida. Aos poucos, as questões que Freud levanta a respeito do sentido conquistam o primeiro plano de suas investigações. A noção de recalque surge como produto de uma divisão que deixa um resto, matéria-prima do sintoma em sua vertente de substituição, de metáfora que poderia ser decifrada pelo tecido da cadeia associativa. Essa leitura, contudo, não foi suficiente para que Freud consentisse em reduzir o sintoma a mero efeito semântico, o que eliminaria o caráter fundamental do inconsciente freudiano como morada da pulsão. É esse conceito, que se situa na fronteira entre o que seria puramente energético e o que flutua pela vertente do simbólico, que guarda a chave para compreendermos o que chamamos, aqui, de raízes do conceito de sujeito em Freud.

3.1. A raiz do sujeito em Freud, para além do princípio do prazer A pulsão é um novo objeto inserido pela psicanálise no mundo. Ela é uma resposta de Freud diante da constatação da existência ineliminável de um “mais além” das marcas deixadas no aparelho psíquico pelo simbólico, de um resto que que insistia em demonstrar seus efeitos na clínica.

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Apesar de a questão energética ainda estar em jogo na lógica pulsional, demonstrando que Freud não abandonou completamente seu ideal de ciência, sobressai-se nesse conceito seu caráter de borda entre anatomia e corpo erógeno, estabelecendo-se a incidência de uma tensão que ultrapassava o que o autor entendia, inicialmente, como sendo decorrente de excitações neuronais, fisiológicas. Esse novo objeto original da psicanálise é definido como: [...] conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, como uma medida da exigência feita à mente no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo. (FREUD, 1915a/1996, p. 127).

Sem materialidade, a pulsão restava comprovável apenas por observação indireta, por conta de suas ressonâncias na clínica psicanalítica. Exigia, portanto, uma metodologia distinta da científica tradicional. Santiago (2001) enfatiza que é com a pulsão que o ideal freudiano de ciência que marcava o início de seus trabalhos dá os sinais mais evidentes de seus limites. Diferentemente do instinto, ela mostrava-se dotada de plasticidade, maleabilidade, capaz de substituições e novas conexões, à maneira do funcionamento dos mecanismos de metáfora e metonímia a que a linguagem obedece. A pulsão é justamente o resto que desmonta a tendência à inércia do aparelho psíquico e introduz no corpo erógeno a dimensão da causa, garantindo-lhe circulação ininterrupta. Se o desequilíbrio tensional no aparelho psíquico exige sempre a execução de um ato, então não pode ser permitido que se elimine definitivamente a tensão dessa maquinaria, o que faz com que a satisfação trazida pela descarga seja sempre parcial. A leitura freudiana do corpo transcende, assim, a anatomia, tomando-a como suporte do aparelho psíquico, cuja realidade passa a ser sexual, pulsional, ultrapassando a satisfação da necessidade do ponto de vista fisiológico. A primeira e mais vital das atividades da criança – mamar no seio materno (ou em seus substitutos) – há de tê-la familiarizado com esse prazer. Diríamos que os lábios da criança comportaram-se como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. A princípio, a satisfação da zona erógena deve terse associado com a necessidade de alimento. A atividade sexual apóia-se primeiramente numa das funções que servem à preservação da vida, e só depois torna-se independente delas. (FREUD, 1905/1996, p. 171).

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Na tentativa de realizar a descarga de seu excedente, a pulsão visa a um objeto que, diferentemente do objeto pré-determinado e invariável a que corresponde o instinto, é estabelecido de forma particular pela linguagem, sendo tão variável quanto possível, construído ao longo da trajetória de cada ser falante. Em torno dele, a pulsão faz um curso eferente e, em seguida, um curso aferente, em que o resto retorna à sua fonte, o eu, concluindo um caminho pendular. Nessa segunda parte do movimento, o eu surge convertido em alvo, evidenciando que agente e sujeito não são equivalentes na lógica psíquica (como demonstra, por exemplo, o masoquismo, em que o “autor intelectual” da ação é também seu destinatário) (FREUD, 1905/1996).

curso eferente

eu

u

objeto

curso aferente

FIGURA 3. Trajetória da pulsão FONTE: elaboração da autora a partir de FREUD, 1915b/1996.

Se há sempre um resto, não é possível supor a existência de um objeto harmonioso e satisfatório, “[...] que funda o homem numa realidade adequada, na realidade que prova a maturidade – o famoso objeto genital” (LACAN, 19561957/1995, p. 13). O objeto da pulsão revela sempre seu caráter substitutivo, de reencontro parcial, fazendo alusão a um objeto mítico primordial que teria estado envolvido nas satisfações originais do infans26: “uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce todo o esforço da busca” (LACAN, 19561957/1995, p. 13). Por isso, dizer do objeto em psicanálise é dizer, invariavelmente, de um hiato deixado por ele na satisfação pulsional, excedente não satisfeito onde

Termo em latim que pode ser livremente traduzido por “aquele que ainda não fala”. Lacan utiliza essa nomeação para dizer do ser que antecede o advento do sujeito da linguagem. 26

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se aloja o desejo, fazendo com que a pulsão seja constantemente relançada, em repetição. Se a pulsão pode ser satisfeita sem ter atingido aquilo que, em relação a uma totalização biológica da função, seria a satisfação ao seu fim de reprodução, é que ela é pulsão parcial, e que seu alvo não é outra coisa senão esse retorno em circuito. (LACAN, 1964/1998, p. 170).

No momento em que o movimento da pulsão se fecha, após ir em direção ao objeto e voltar à fonte, Freud percebe que algo é produzido como saldo ou efeito. Não se trata de mera reversão de ativo a passivo, mas do nascimento, em um terceiro tempo, de um elemento inédito, “ein neues Subjekt”, um novo sujeito (FREUD, 1915a/1996). Nas entrelinhas da relação de objeto, portanto, Lacan encontra o sujeito em Freud articulado a um fluxo de tensão, sem qualquer materialidade: “o objeto da pulsão deve ser situado no nível que chamei metaforicamente uma subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito” (LACAN, 1964/1998, p. 174). Por “sem sujeito”, podemos entender essa ausência de consistência, de estabilidade de ligação, aparecendo e desaparecendo na mesma rapidez com que a tensão escoa do eu ao objeto e retorna. É essa imaterialidade, portanto, que Lacan entende, a partir do não-dito que reside no texto freudiano, como sendo a presença de um sujeito que ultrapassa a construção simbólica e está mais próximo da pulsão, revelando seu caráter cada vez mais fluido.

FIGURA 4. Curso circular da pulsão. FONTE: LACAN, 1964/1998, p. 170.

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Assim como, diante das evidências da incidência do real, Lacan encontra um ponto de virada que leva a seu último ensino, Freud vê na vertente de excesso e na impossibilidade de satisfação da pulsão algo que escapa à manutenção do aparelho psíquico definida pelo princípio do prazer, fazendo dessa descoberta o seu turning point27. Essa leitura permite constatar que o real, construção originalmente lacaniana, já se encontrava latente no texto de Freud – o sonho da injeção de Irma, ainda em 1900, traz elementos que demonstram que ele já estava atento a algo que escapava ao sentido, embora não fosse ainda capaz de teorizá-lo (FREUD, 1900/1996). A imagem angustiante da garganta de Irma revela o que não pode ser traduzido pelas interpretações freudianas tradicionais. Ao abordar esse inominável, Freud (1919b/1996, p. 242) resgata o termo “unheimlich”, vocábulo alemão que, entre seus significados, exibe um que é idêntico a seu oposto (heimlich): “por um lado, significa o que é familiar e agradável e, por outro, o que está oculto e se mantém fora da vista”. O “estranho familiar” é com o que Freud se depara quando consegue reconhecer no aparelho psíquico algo de mais primitivo, que escapa à repetição que visa à manutenção de seu funcionamento. O que está em jogo nesse ponto é um outro retorno, que ele chama de compulsão à repetição, “[...] poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio do prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco” (FREUD, 1919b/1996, p. 256b). Temos, enfim, a pulsão de morte como o momento em que a teoria freudiana vai sofrer sua subversão mais significativa. É com ela que a clínica psicanalítica freudiana aborda o que vai além da interpretação, colocando a psicanálise diante do enigma do que fazer com o que não se cura. Na leitura a posteriori de Lacan, ele conclui que a pulsão de morte faz surgir, em lugar de um “ou não penso ou não sou”, um “ali onde penso não me reconheço, não sou – é o inconsciente. Ali onde sou, é mais do que evidente que me perco” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 96). Uma dimensão existe para além das homeostases do eu, uma outra corrente, uma outra necessidade, que carece distinguir no seu plano. Essa compulsão a voltar de algo que foi excluído do sujeito, ou que nele nunca entrou, o Verdrangt28, o recalcado, não podemos fazê-lo entrar pelo

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Expressão em inglês muito utilizada para dizer não apenas do ponto de virada de algo, mas também do ponto crítico, decisivo (MICHAELLIS, 2013). 28 Termo

alemão utilizado por Freud para o que, em português, traduz-se por recalcado.

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princípio do prazer. Se o eu como tal se orienta e se reconhece, é que existe um para além do ego, um inconsciente, um sujeito que fala, desconhecido pelo sujeito. Logo, carece supor um outro princípio. (LACAN, 1954-1955/1985, p. 217).

É a partir de 1920 que Freud (1920/1996) formaliza esse mecanismo avesso à manutenção pulsional de que se ocupam os princípios do prazer e da realidade como correlativos (RUDGE, 1998). Ambos são norteados pela energia pulsional ligada, orientada em direção ao eu, que, na experiência clínica, faz existir um fator inercial, tendendo, por exemplo, à perpetuação do sintoma. Essa é uma repetição conectada à cadeia significante, ao que, pelo que resta impossível de dizer, insiste e retorna ao mesmo lugar sucessivas vezes. De maneira distinta, a pulsão de morte que Freud teoriza a partir daí mostrase um processo muito mais elementar, e por isso chamado de primário, determinado pela descatexia, pela energia livre circulante. A exigência pulsional ultrapassa a repetição ligada à linguagem, burlando a contabilidade realizada pela pulsão de vida e fazendo-se escutar por uma modalidade de repetição não temperada pelo princípio do prazer e que, por isso, dá origem a uma intensidade muito maior de satisfação. Para falar dela, Lacan (1954-1955/1985) utiliza a metáfora do homem como máquina, posto em funcionamento incessante por algo que incide de fora do simbólico. Buscar o nível mais baixo de tensão, concluímos, não diz apenas da procura pelo equilíbrio do sistema, mas, de maneira radical, também do “puro e simples mais baixo” (LACAN, 1954-1955/1985, p. 107), do retorno a algo anterior à vida. Tiquê é o nome que Lacan (1964/1998) dá a esse real que está além da insistência dos signos comandada pelo princípio do prazer, excluído da cadeia significante, produzindo-se ao acaso, como um nonsense que força o deslocamento para um novo sentido. O real da tiquê interrompe o funcionamento do que o mesmo autor (LACAN, 1964/1998) nomeia autômaton: a seriação automática do significante no inconsciente, gerada pela representação faltosa, que exige que o sujeito volte incessantemente a buscar o objeto perdido, tornando, todas as vezes, a não o encontrar (FINK, 1997a). Com essas categorias freudianas, podemos definir, com Lacan, a existência de dois tipos de real: um ordenado, ligado ao simbólico e ao recalque secundário, e outro conectado ao trauma, ao recalque primário, inassimilável.

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Onde está o sujeito: no princípio do prazer ou na energia desvinculada da cadeia da linguagem que é própria à pulsão de morte? A leitura de Freud pelos olhos de Lacan permite-nos pensar no sujeito, no texto freudiano, como implícito na fronteira entre esses dois funcionamentos. Freud elabora a pulsão de morte porque já havia se dado conta de que sua leitura clássica sobre o sintoma era insuficiente e que, portanto, nenhuma das duas cadeias, consciente e inconsciente, estaria apta a produzir o sujeito se tomada isoladamente. Desembaraçamo-nos, assim, do paralelismo consciente/inconsciente, diz Vieira (1999b), para pensarmos em duas formas de funcionamento distintas, em que nenhuma é mais verdadeira ou primitiva que a outra. A “Outra cena” de que fala Freud (1899/1996) só tem sentido se articulada à cena inicial, em um jogo que faz surgir a impossibilidade do significante de significar a si mesmo, remetendo-nos à ancoragem no real. Este, por sua vez, ao mesmo tempo em que está para além da linguagem, tem nela sua morada, o que embaça a fronteira entre dizível e indizível para dar lugar ao dito e, em seu núcleo, a algo que insiste em não se dizer e que, por isso, fala sem parar (VIEIRA, 1999b). Assim, compreende-se porque tanto é falso atribuir o desenlace analítico à conscientização quanto é inútil espantar-se que aconteça de ela não ter essa virtude. Não se trata de passar de um patamar inconsciente, mergulhado na obscuridade, para o patamar consciente, sede da clareza, através de sabe-se lá que misterioso elevador. (LACAN, 1953/2003, p. 146).

A lógica pulsional inventada por Freud alterou profundamente a concepção de homem vigente em sua realidade social. A existência de um imperativo da pulsão que insiste por debaixo do mecanismo de recalque aponta não apenas para a insuficiência dessa força coercitiva exterior que vetaria a plena realização da libido, mas também para algo que escapa ao veto da própria instância psíquica do supereu. A oposição entre pulsões de vida e pulsões de morte evidencia a impossibilidade de harmonia entre a realidade social e o que se localiza, nesse ponto, como sendo o sujeito do inconsciente. O sujeito é transgressor: a necessidade de um objeto para a satisfação pulsional e, por outro lado, a impossibilidade de plena satisfação faz com que exista, ligado à sua concepção, algo ineliminável pela linguagem e não inteiramente submetido a ela. Em nossa realidade social, a relação com os objetos submete-se a uma lógica específica, estando o sujeito reduzido à condição de consumidor e apresentando,

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dizem Laurent e Miller (2005), a exacerbação de um hedonismo de novo tipo, que triunfa sobre o ideal até então vigente. Em nosso caso clínico apresentado nesta tese, temos Lucas, em seu primeiro momento de acesso à clínica psicanalítica, evidenciando os efeitos da vertente mortífera da pulsão sobre o sujeito. A escolha do objeto droga e suas atuações configuravam uma tentativa de transgressão do princípio do prazer, de maneira a barrar, por outra vida, os excessos pulsionais que incidiam sobre ele. Para driblar a angústia, Lucas faz uso dessa vertente da repetição fora da linguagem, que origina uma modalidade de satisfação típica de sua realidade social, ligada ao ato como funcionamento privilegiado em relação à palavra. Obviamente, o momento histórico a que Lucas assiste não é o que inaugura a discussão sobre o funcionamento pulsional: a pulsão de morte, como vimos, já estava posta no texto freudiano desde 1920, demonstrando seus efeitos na clínica e traçando a necessidade de que Freud avançasse em sua teoria. O que é novo e atualiza a descoberta freudiana nessa realidade é a explicitação, nos modos de vida atuais, dessa vertente pulsional que não responde pela simples manutenção do aparelho psíquico, mas que visa a um ponto que, se atingido, daria lugar à sua destruição. A “dose” de satisfação desligada da cadeia que o ser falante procura nos objetos do mercado, se encontrada, significaria a eliminação do próprio lugar de sujeito, que que Lacan, ao ler Freud, entende como sendo inerente ao movimento pendular da pulsão, garantido por sua insatisfação constante. A frase freudiana “wo es war, soll ich werden” (FREUD, 1933/1996), traduzida para o inglês por Strachey29 como “where the id was, there the ego shall be”30, ganha nova leitura de Lacan sob o prisma da pulsão de morte. Ele atenta para o fato de Freud não dizer “das Es” nem “das Ich”, como fazia habitualmente para designar essas instâncias, “[...] e isso, considerando o rigor inflexível de seu estilo, dá ao emprego delas na frase uma ênfase particular” (LACAN, 1955/1998, p. 418). Não seria de substâncias que o pai da psicanálise estaria falando nessa afirmativa, mas da exigência de assunção de uma verdade desconhecida pelo eu, compatível com o 29

Psicanalista britânico, responsável, com sua esposa Alix Strachey, pela tradução da obra de Freud para o inglês e editor geral da Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud (GAY, 1989). Na tradução para o português da edição utilizada no presente trabalho, a frase que consta é “onde estava o id, ali estará o ego” (FREUD, 1933/1996, p. 84). 30

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advento do sujeito ali onde o princípio do prazer não responde mais exclusivamente pelo funcionamento do aparelho psíquico. Tal leitura impõe outra tradução: “lá onde isso estava, lá, como sujeito, devo (eu) advir” (LACAN, 1966/1998, p. 878). O sujeito cartesiano é atingido pela repetição d’Isso: “Isso sou”, diria o sujeito freudiano (CABAS, 2009). O sentido que Lacan encontra obscurecido na frase de Freud, portanto, não restava irrevelado apenas por um deslize de tradução ou por uma discussão linguística, mas também por um entrave conceitual que exigiu o avanço da teoria para ser elucidado. Jazia nela uma lógica muito distante da que Darmon (1994) define como sendo um “travestimento imaginário” e uma “tradução grosseira”, supondo a mera passagem do eu ao isso. Trata-se muito mais de algo da ordem de um imperativo ético, por meio do qual o sujeito deve alojar-se na enunciação inconsciente e para além dela, evidenciando uma topologia mais sutil do que a oposição interior-exterior permite abordar. Concluindo, podemos afirmar que a pulsão de morte foi o passo de Freud na construção do que, depois, as contribuições de Lacan puderam localizar como sendo o sujeito em psicanálise. É à vertente mortífera da pulsão que esse conceito vai se dirigindo e é, paradoxalmente, exatamente ao encontrá-la que ele se vê elidido.

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4. LACAN: POR UMA PSICANÁLISE DO SUJEITO Na junção entre inconsciente e pulsão, criações freudianas por excelência, Lacan vai encontrar o sujeito da psicanálise. Estabelece-o, inicialmente, fundado a partir do Outro – não em si ou por si – e, mais tarde, na conexão entre o que recebe da linguagem e o imperativo pulsional. Na medida em que a ênfase se desloca do polo simbólico ao real, a relação do sujeito com o Outro no texto lacaniano é sucedida pela relação do falasser com seu corpo (CORTEZ, 2010). Como realizar um corte entre esses diferentes momentos do ensino de Lacan? Há variações nessa interpretação, entre as quais optamos pela proposta de Miller (2005a). Ele define o primeiro ensino de Lacan como caracterizado pela transposição de conceitos freudianos centrais da instância imaginária à instância simbólica, o que tem lugar até por volta do “Seminário 11” (1964). Em um segundo tempo, Lacan passaria a desenvolver construções originais, estabelecendo uma conexão menos estreita com o texto freudiano e centrando sua ênfase na relação entre o sujeito e o objeto a, o que demanda a elaboração de conceitos fronteiriços, entre simbólico e real. É só a partir do momento teórico relativo ao “Seminário 20” (1972-1973) que o real ganha primeiro plano de forma mais contundente nessa trajetória, definindo as mudanças apresentadas pelo terceiro e último tempo do ensino lacaniano. Podemos falar de viradas teóricas entre eles, desde que ressaltemos que se tratam de construções inexoravelmente enganchadas. O estilo lacaniano de idas e vindas, de retomada constante de pontos já anteriormente explorados e de modificações do pensamento do autor sem que haja ruptura com formalizações anteriores torna impossível estabelecer esses períodos de maneira estática. Nossa tentativa, portanto, é a de construir marcos de leitura em um fio condutor não linear, mas que apresenta encadeamentos. Era dessa maneira que Lacan lia o texto freudiano, crendo ser essencial apreender a teoria em seu fluxo, sem interrupções bruscas: “não basta a alguém dizer-se técnico para se autorizar, por não compreender um Freud III, a recusá-lo em nome de um Freud II que ele acredita compreender [...]” (LACAN, 1953/1998, p. 268).

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Nessa via, sustentamos nossa crença de que a versão do inconsciente real que embasa a lógica do falasser requer uma leitura que não dispensa o inconsciente transferencial que define o sujeito, impedindo seu atravessamento ou sua superação. A importância central do simbólico no ensino de Lacan não fica, portanto, obsoleta em nenhum de seus momentos: “a psicanálise só é possível se, e somente se, o inconsciente está estruturado como uma linguagem. O que se chama o ensino de Lacan é o desenvolvimento dessa hipótese até suas últimas consequências” (MILLER, 2002a, p. 12). É essa a premissa que alicerça o presente trabalho, permitindo-o buscar recuperar pontos de construção do conceito de sujeito ao longo da obra de Lacan para compreender o que, dele, permanece na clínica do falasser. Partamos, então, do sujeito, cuja história se confunde com a história do próprio Lacan na psicanálise, que se consolida em um período histórico peculiar: a Segunda Guerra Mundial, que se desenrolou entre 1939 e 1945, alterando drasticamente a configuração política internacional e os modos de vida daquela época. O pós-guerra teve efeitos significativos nos mais variados campos de saber. Na psiquiatria, observou-se um empuxo à medicalização, embalado pelo surgimento de antipsicóticos e antidepressivos. A civilização buscava, por essa via, um antídoto para as marcas deixadas pelo conflito mundial: “[...] o novo ideário que surgia no horizonte impunha-se graças à força que lhe emprestava o impulso – tão humano – de nada querer saber disso que determinava a existência” (CABAS, 2009, p. 100). Diversas abordagens psicanalíticas deixaram-se absorver pelas concepções de cunho biológico que estavam em evidência à época, promovendo uma leitura da obra de Freud como instrumento de adaptação, com foco em estudos sobre disposições e habilidades do cérebro, como linguagem, percepção e raciocínio, calcadas em explicações físico-químicas. Foi buscando deter isso que considerava um equívoco da psicanálise pósfreudiana, centrada alhures à questão do inconsciente por conta de uma perspectiva de uniformização do diagnóstico e do tratamento, que Lacan inaugurou sua proposta de retorno a Freud. Retomando a frase freudiana “wo es war, soll ich warden” (FREUD, 1933/1996), que teria sido lida como uma “espacialização grosseira” (LACAN, (1954/1986, p. 264), como se a conquista analítica dissesse respeito a um alargamento do domínio do eu e não à assunção do inconsciente pelo ato da palavra, Lacan vai sustentar que o que se aborda com a expressão é, muito pelo

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contrário, o crepúsculo do imaginário e a ascensão do sujeito do inconsciente – cujo símbolo, S, faz homofonia com o Es freudiano (Isso, em alemão). O “retorno a Freud” empreendido por Lacan, portanto, está ligado ao resgate do primado da interpretação, da intenção simbólica da análise, e culminou não apenas em uma retomada de conceitos freudianos já existentes, mas também, paulatinamente, em constatações que exigiram do autor novas construções e leituras, originalmente lacanianas. Uma das mais significativas delas foi o conceito de sujeito. O termo não era inédito, sendo já utilizado há séculos por filósofos e pelo senso comum. Exigiu, por isso, árduo trabalho para clarear sua especificidade na psicanálise, diferenciando-o do eu e de qualquer categoria preexistente, calcada, por exemplo, no conhecimento de si pela via da razão e do pensamento, como sugeria Descartes. Com Lacan, a ligação significante/significado ganhou estatuto de algoritmo do sujeito, regra fundamental aplicável com resultados importantes à operação analítica (MILLER, 2008c). Ela demonstra a crença de que haveria um saber no real, a partir de leis do significante que se impõem a ele e o dominam. O axioma do estruturalismo seria este: o real é feito para significar. Ao longo de seu ensino, contudo, Lacan interessa-se cada vez mais em repercutir o que Miller (2009) chama de “traumatismo Freud”, ou seja, aquilo que a psicanálise trouxe de êxtimo. É na direção de um outro algoritmo que seu ensino passa a avançar: aquele que coloca uma barra entre o real e o sentido. Ainda no “Seminário 4” (1956-1957), por exemplo, há a indicação de sua crença na existência de um resto no funcionamento do significante: [...] tudo o que se apresenta na vontade, a tendência, a libido do sujeito é sempre marcado pelo vestígio de um significante – o que não exclui que talvez haja outra coisa na pulsão ou na vontade, algo que não é de modo algum marcado pela impressão do significante. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 47).

Devemos levar em conta que, em 1919, Freud (1919a/1996) já se via às voltas com casos de neuroses traumáticas resultantes do pós-guerra que demonstravam, como lembram Castro e Rudge (2012), uma nova formatação dos sintomas, parcialmente refratários à abordagem clínica pela via da interpretação como decifração. Nessa época, a análise das resistências cedeu espaço à consideração freudiana sobre a pulsão de morte, o que nos permite considerar que o

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simbólico nunca pôde recobrir todo o real na teoria psicanalítica, apesar de ter sido essa a expectativa inicial tanto de Freud quanto de Lacan. É por constatar essa impossibilidade que Lacan parte do imaginário, atravessa seu grande período de ênfase no simbólico para, finalmente, chegar ao primado do real. Nessa trilha, o sujeito barrado apresenta-se primeiro como negativo do eu para, posteriormente, encontrar no falasser isso que lhe vem em suplemento, como veremos a seguir, em uma retomada da história do ensino lacaniano até seu derradeiro momento.

4.1. Através do espelho: o imaginário como pré-história do ensino lacaniano Ao situar o eu na instância imaginária, Lacan afasta-o radicalmente do conceito de sujeito do inconsciente, dando-o o status de uma apercepção, no sentido filosófico do termo: “para a filosofia, o termo apercepção denota uma ação pela qual a mente amplia ou intensifica a consciência de seus próprios estados internos e representações” (CABAS, 2009, p. 119). O corpo do infans seria inicialmente recortado por pulsões sem orientação, que definem nele uma fragmentação primordial, uma insuficiência orgânica, “prematuração específica do nascimento no homem” só superada pelo estádio do espelho, diz Lacan (1949/1998, p. 100). A situação que ilustra esse estádio é frequente: uma criança entre seis e dezoito meses de idade experimenta o júbilo diante de seu reflexo, sob o olhar de um cuidador. Esse reconhecimento ocorre antes de qualquer controle motor ou maturação biológica e antecipa, pela imagem, a unidade do corpo. Constrói-se uma “[...] linha de ficção para sempre irredutível” (LACAN, 1949/1998, p. 98) quando o eu é tomado como referência, de maneira alienada e artificial, a partir do que recebe do exterior: “o [eu] é um outro”31 (LACAN, 1954-1955/1985, p. 15). A busca por uma imagem como representação sólida de si vela a fluidez e a imaterialidade do

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A tradução do Seminário 2 de Lacan (1954-1955/1985) estabelece uma dificuldade referente ao emprego do pronome “eu”, uma vez que a língua francesa diferencia os pronomes pessoais da primeira pessoa, je e moi, e Lacan utiliza essa diferença para distinguir o sujeito do inconsciente (je) do eu com função imaginária (moi). O artifício encontrado pelos tradutores da edição brasileira foi marcar tal distinção utilizando, para je e moi, o pronome “eu” com e sem colchetes, respectivamente: “[eu]” e “eu”.

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inconsciente, diz Lacan (1954/1986, p. 25): “no interior do sujeito, [o eu] não é senão um sintoma privilegiado. É o sintoma humano por excelência, é a doença mental do homem”. A gênese do sujeito, portanto, parte de uma imagem que vem do exterior e de certo desconhecimento sistemático da realidade que nunca chega a ser eliminado, tornando-se uma configuração insuperável, afirma Ogilvie (1991). Esse exterior não deve, então, ser entendido como “de fora, estando em relação intrínseca ao próprio sujeito, para o qual constituição e perda são avessos dialéticos. O estádio do espelho de Lacan reformula o conceito freudiano de narcisismo. Correlativamente à construção do eu, funda-se a relação com o outro – tanto o outro como semelhante quanto com o próprio corpo como exterior.

FIGURA 5. Esquema L FONTE: LACAN, 1954-1955/1985, p. 142.

A relação imaginária atravessa a linha inconsciente que liga o sujeito ao Outro, como mostra o Esquema L, sendo estabilizada por essa intervenção. Rudge (1998) explica que, em Freud, esse seria o papel do que ele chama de narcisismo secundário: acrescentar ao narcisismo primário o registro do simbólico. Funda-se com esse atravessamento um novo lugar, fazendo surgir o sujeito dividido, tocado pelo significante. O Outro não é simplesmente o outro que está ali, mas literalmente o lugar da palavra. Existe, já estruturado na relação falante, este mais-além, este grande Outro para além do outro que vocês apreendem imaginariamente, este Outro suposto que é o sujeito como tal, o sujeito em que a fala de

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vocês se constitui, porque ele pode não somente acolhê-la, percebê-la, mas também responder a ela. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 80)32.

O fato de a identificação do eu a esse reflexo só ser validada se subordinada à intervenção da linguagem resume a trajetória que orienta todo o primeiro ensino de Lacan em direção a uma tradução de conceitos do imaginário ao simbólico: “ao fazer o simbólico interferir no imaginário, Lacan já está separando os dois registros e promovendo uma ascensão do simbólico através da significantização dos elementos até então imaginários” (MACHADO, 2005, p. 56). Temos, portanto, uma imagem de si que se conjuga a um olhar que vem de fora e triangula a relação eu-outro. Sem ele, ficaríamos retidos no transitivismo próprio às imaginarizações, diz Machado (2005). Esse olhar produz para o sujeito uma imagem ideal, permitindo que ele se localize no Outro. A identificação vai se dar baseada na conjunção entre o eu ideal da imagem refletida no espelho e aquela que se supõe chegar ao Outro. É a ele, (A), que visamos, embora o eixo imaginário faça com que permaneçamos prisioneiros da ficção do eu (a-a’), que opera como uma barreira ao sentido: “em outros termos, a linguagem serve tanto para nos fundamentar no Outro como para nos impedir radicalmente de entendê-lo” (LACAN, 1954-1955/1985, p. 308). Imaginário e simbólico atrelam-se e interpõem-se desde o início em Lacan – o que, mais uma vez, chama a atenção para o fato de ser impossível pensar os momentos distintos de seu ensino sem relação de continuidade e de dependência lógica. Não creio que haja dois tempos no que ensinei algum dia, um tempo que estaria centrado no estádio do espelho e no imaginário e, depois disso, no momento de nossa história que é demarcado pelo “Relatório de Roma”, na descoberta que eu teria feito, subitamente, do significante. [...] Não é de hoje que o entrejogo dos dois registros tem sido intimamente trançado por mim. (LACAN, 1962-1963/2005, p. 39).

A princípio, Lacan supõe ser pela instância simbólica que o homem receberia de volta seu desejo verbalizado e reconhecido pelo outro, apaziguando a relação imaginária de agressividade e rivalidade. Esse ponto de vista é abandonado quando 32

Ao longo do ensino de Lacan, o conceito de Outro ganha diversas leituras, sobre as quais este trabalho não tem a intenção de discorrer mais longamente. De toda forma, vale lembrar que “ler Lacan, como já podem perceber, supõe que, quando se vê essa palavra, ‘Outro’, se tenha idéia da diversidade de significações ligadas a esse significante, que aqui só pude tentar fazer vocês entreverem” (MILLER, 2002a, p. 22).

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o autor passa da concepção de desejo de reconhecimento à de desejo como intervalo, lacuna eternizada pela falta de objeto. De acordo com essa nova versão, na experiência analítica, caberia ao sujeito reconhecer-se como definido por seu desejo, por sua divisão, dando fim à expectativa de existência de uma palavra reconciliatória, que eliminaria os efeitos da barra da linguagem sobre o sujeito. Na realidade social atual, percebemos uma alteração significativa na relação entre simbólico e imaginário, que a subverte. Laurent e Miller (2005) atentam para o fato de, hoje, o simbólico mostrar-se dominado pela instância imaginária ou em continuidade com ela, sem condições de limitá-la como Lacan previa com seu esquema L. É no imaginário que se situa a expectativa de completude, de unidade corporal que o momento presente dissemina, feita argumento de venda pela economia de mercado. No papel de consumidor, o sujeito apresenta-se elidido porque vê os objetos serem fabricados de maneira massificada, enquanto a lógica do desejo só se sustenta pela eleição de objetos no caso a caso, na relação particular de cada sujeito com o discurso do Outro. A consequência de um simbólico que perde força como mediação entre eu e objeto é que fica escamoteado o fato de que o que se vê no espelho é apenas reflexo, ilusão. Nem tudo é captado pela imagem, havendo sempre um resto não assimilável, não especularizável. Barroso (2006) ressalta que a imagem é sempre dependente do original, sendo mera reprodução invertida do mesmo, e que hoje essa dependência encontra-se elidida: o mercado desveste as imagens de seu contexto para multiplicá-las em um deslocamento infinito. Esse acesso à multiplicidade de imagens pacificadoras do eu que nos oferece nosso contexto social, continua Barroso (2006), serve para tentar compensar a condição de incompletude do sujeito. No caso de Lucas, a tentativa de se alcançar uma unidade do corpo e, assim, livrar-se da angústia relativa à incidência pulsional, faz com que a droga seja o recurso utilizado para tentar calar as pulsões que o atravessam. Busca-se um corpo domesticado, silenciado, amortecido pelo uso da maconha, substância eleita para esse fim. A crença em uma relação direta com o objeto, sem mediação de um terceiro simbólico, vem da esperança de completude imaginária ali onde o simbólico só faz descompletar. É o interesse de Lacan pelo imaginário que funda seu nome na teoria psicanalítica. Contudo, será sobre a centralidade do simbólico que o ensino

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lacaniano propriamente dito, como reconhecido por ele, irá se desenvolver, dando a essa instância lugar privilegiado em seu trabalho de reelaboração de conceitos freudianos. É a partir da centralidade da linguagem que Lacan avança com a obra de Freud, em uma abordagem que sai do imaginário para a instância simbólica. Esse exercício de “tradução” dará lugar, mais tarde, a um movimento de dissolução: na teoria, o último ensino de Lacan define a dissolução de conceitos freudianos até então centrais; na clínica, a dissolução do sintoma em sua vertente de sentido, fazendo surgir seu núcleo real.

4.2. Do imaginário ao simbólico, o primeiro ensino de Lacan Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. (LACAN, 1964/1998, p. 30).

É em 1953, com o texto “Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise”, que Lacan (1953/2003) reconhece o início de seu ensino público, tomando suas elaborações prévias sobre o imaginário, anteriormente citadas, como seus “antecedentes”. O texto celebra a importância da linguagem e da concepção de estrutura – registra-se nele, por exemplo, as célebres noções de inconsciente estruturado como uma linguagem e de simbólico como verdade do imaginário. O acesso ao mundo é assumido como mediado por uma estrutura com lugares definidos, que opera como uma grade de leitura justaposta ao real. Lacan compreende a experiência analítica33 como possibilidade de se tomar a palavra e, a partir dela, recontar uma história. A lógica temporal dessa empreitada não é linear, tratando de um passado que, por ser historiado no presente, é renovado a cada relato. Em lugar da rememoração, a reconstrução; em lugar de relembrar, reescrever. É assim que o sujeito poderia vir a surgir, tendo sua existência não precedente à linguagem, mas decorrente dela. Naquele momento, Lacan (1954/1986) atribuía duas funções distintas à palavra. Enquanto localizada no eixo imaginário, ela teria a tarefa de mediação entre A expressão lacaniana “experiência analítica” une, segundo Miller (2011b), as vertentes tanto do tratamento quanto da formação, sendo fruto da oposição de Lacan à separação entre análise leiga e didática promovida pela International Psychoanalytical Association (IPA). 33

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eu e outro; já em sua função de revelação, deslocar-se-ia para o eixo simbólico e faria emergir a linguagem como campo do Outro. Essa concepção dual atrelava-se aos conceitos lacanianos de palavra vazia e palavra plena, respectivamente (LACAN, 1953/2003). A palavra plena seria o objetivo da experiência analítica, que buscaria realizar a verdade do sujeito, abandonando a posição do mestre para revelar um saber sobre o fato de essa verdade nunca ser inteira, porque sempre passível de interpretação e submetida às variações da palavra. O engano e a dúvida passam, dessa forma, a ser tomados por Lacan como inexoráveis ao sujeito da linguagem. Nossos atos falhados são atos que são bem sucedidos, nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Eles, elas, revelam uma verdade de detrás. No interior do que se chamam associações livres, imagens do sonho, sintomas, manifesta-se uma palavra que traz a verdade. Se a descoberta de Freud tem um sentido é este – a verdade pega o erro pelo cangote, na equivocação. (LACAN, 1954/1986, p. 302).

O sujeito do inconsciente, sustentado pela vertente simbólica, põe em evidência a importância da noção de estrutura no ensino de Lacan. De forma bastante simplificada, compreende-se por estrutura uma maneira específica de se abarcar elementos, colocando em plano secundário sua natureza e suas características para enfatizar muito mais as relações guardadas entre eles (DOR, 1989). Os objetos devem pertencer a um mesmo agrupamento para ser possível fazer surgir essas relações – que podem ser de semelhança, oposição, transformação, etc. – e a lei que opera sobre eles. Os significantes são exemplos de elementos articulados segundo leis de uma ordem fechada, razão pela qual falamos em cadeia significante. Jakobson introduziu o estruturalismo no estudo da linguagem e influenciou Lévi-Strauss a aplicá-lo à antropologia, abordando os mitos a partir de seus elementos mínimos e de suas oposições (LEITE, 1997). Foi o linguista Ferdinand de Saussure, contudo, que trabalhou a noção de estrutura de forma mais inovadora. A concepção linguística clássica definia como função do signo representar um objeto, entendendo a linguagem como instrumento de nomeação. Foi Saussure quem, em vez de abordar os objetos como ponto de partida e deduzir relações a partir deles, considerou que são justamente essas relações que os determinam.

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O signo deixa de ser visto como o que une uma coisa a um nome e passa a unir um conceito (significado) a uma imagem acústica (significante) – o segundo em posição dominante em relação ao primeiro.

FIGURA 6. O signo em Saussure FONTE: SAUSURRE, 2006, p. 81.

Lacan utiliza a elaboração saussuriana em seu ensino, apropriando-se dela e extraindo da linguística conceitos fundamentalmente psicanalíticos. A leitura lacaniana destitui o significante de sua função representativa, dissociando-o do significado e dando-lhe autonomia. O significante, diz Lacan, não significa nada por si só, sendo usado pelo sujeito não para significar, “[...] mas precisamente para enganar sobre o que se tem de significar” (LACAN, 1955-1956/2002, p. 213). A fala, ao mesmo tempo, vela e desvela, carregando toda ordem de significações e evidenciando a primazia do significante sobre o significado. Com essa leitura original, Lacan inverte o algoritmo saussuriano:

FIGURA 7. O algoritmo significante/significado em Lacan FONTE: LACAN, 1955-1956/2002.

A desamarração entre significante e significado enfatiza a relação entre esses elementos, representada pela barra que os separa no algoritmo acima. Ela indica a resistência, a impossibilidade da associação biunívoca entre os dois termos

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(ANTUNES, 2002). Indica também a substituição do termo de baixo pelo de cima, ou o suporte do segundo pelo primeiro. É possível promover uma leitura da autonomia do significante no inconsciente já no texto freudiano, que enfatizou tradicionalmente o sentido dos sintomas e seus efeitos. Por essa lógica usada por Freud, percebe-se como o significado desliza incessantemente, em uma relação metonímica que se opõe à cristalização (FERREIRA, 2002). Se o significante não se atrela a um significado único, seu valor só pode se dar em termos relativos. Logo, ele não é isolável, estando sempre em relação binária – S1-S2 –, definindo-se por sua diferença quanto ao seguinte e guardando com os demais elementos uma articulação repetitiva, de deslocamento e substituição (LACAN, 1968-1969/2008). Nesse movimento de constante reenvio, o desejo aparece como resíduo. O desejo se situa na dependência da demanda – a qual, por se articular em significantes, deixa um resto metonímico que corre debaixo dela, elemento que não é indeterminado, que é uma condição ao mesmo tempo absoluta e impegável, elemento necessariamente em impasse, insatisfeito, impossível, desconhecido, elemento que se chama desejo. (LACAN, 1964/1998, p. 146).

O sujeito de desejo é função da metonímia significante: “desidero, é o cogito freudiano” (LACAN, 1964/1998, p. 147). Determinado pelo que vem do Outro, exterior a si próprio, é como objeto que ele é representado, sendo falado antes de ser falante. A linguagem é usina que funciona previamente ao nascimento do ser humano, impedindo qualquer concepção de um Isso instintual ou natural (LACAN, 1956-1957/1995). Porque um significante não pode significar a si mesmo, o significado vem sempre da relação “entre dois”. O ensino de Lacan vai enfatizando, nesse circuito, que o sujeito é o que surge na trajetória de um significante a outro, na própria metonímia do desejo, localizando-se mais no movimento em si do que em um elemento específico. Ele surge para, logo depois, se apagar prontamente (LACAN, 1968-1969, 2008) – quando chega a S2, já não está lá, nunca chegando, de fato, inteiramente a seu destino. Existe aí um movimento de eterno recomeço. Nomeia-se sujeito barrado ($) isso que é segundo em relação ao significante, ao campo do Outro como campo da linguagem, ganhando consistência apenas

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parcial por ser pura articulação. Ele não pode ser representado, a não ser que haja uma perda, um resto. É neste caminho que segue o segundo ensino lacaniano: buscando situar o sujeito na divisa entre linguagem e pulsão, entre o representável e o que escapa à representação.

4.3. Lacan além de Freud: especificidades do segundo ensino, na fronteira entre imaginário e simbólico O “Seminário 11” (1964), intitulado “Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise”, define um ponto de virada no ensino lacaniano: o momento em que a oposição de Lacan às práticas da International Psychoanalytical Association (IPA) resulta em sua ruptura com a instituição e na fundação da École Freudienne de Paris (FINK, 1997b). O seminário marca, portanto, um reinício. Ao levantar uma crítica sobre a manutenção imutável da teoria psicanalítica, Lacan toca na importância do avanço teórico e clínico, e é por se autorizar nesse avanço que retoma a noção de inconsciente freudiano para construir seu conceito de sujeito: “é justo que pareça novo que eu me tenha referido ao sujeito, quando é do inconsciente que se trata” (LACAN, 1964/1998, p. 46). A partir de 1964, Lacan imprime ao inconsciente um caráter mais marcado pela descontinuidade e pela pulsação, atrelando-o ao funcionamento da pulsão e não apenas à linguagem e explicitando, com isso, uma parceria do significante com o real (DARRIBA, 2005). Real, simbólico e imaginário surgem cada vez mais imbricados, o que justifica a construção de conceitos lacanianos de fronteira, como falo, fantasia, objeto, sintoma. Esse esforço demonstra a dificuldade que Lacan enfrentou para sustentar a noção de sujeito como restrito ao simbólico, inferindo-o a partir de um vazio de gozo. Foi preciso, então, consentir em articular o que é da ordem significante com o que é real. É nos hiatos, nos equívocos, por entre os significantes que o sujeito do inconsciente passa a ser encontrado, o que determina seu caráter de dessubstancialização: “que o sujeito como tal está na incerteza em razão de ser dividido pelo efeito da linguagem, é o que lhes ensino, eu enquanto Lacan, seguindo

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os traços da escavação freudiana” (LACAN, 1964/1998, p. 178). Nenhum significante, por si só, é suficiente para dar-lhe consistência. A lógica sexual do inconsciente aparece cada vez mais fortemente relacionada ao real, permitindo que a estrutura inclua a constatação sobre o que vai além da significação. O Complexo de Édipo, por exemplo, passa a contemplar gozo e sentido: em lugar do gozo materno, surge o significante paterno como resposta, fazendo com que a cadeia significante pare de deslizar na busca do que poderia lhe atribuir significado. Ao conceito de falo, é atribuído o caráter de conector entre gozo e linguagem, assim como a pulsão fazia fronteira entre somático e psíquico em Freud. O falo passa a poder ser lido por suas duas faces: é [φ], o objeto imaginário que condensa o gozo dessa instância e transfere-o para o simbólico, e é [Φ], significante do gozo, representando a parcela da libido que permanece no eu e fica alheia ao investimento pulsional no objeto. No caso clínico que apresentamos nesta tese, percebemos que a questão edípica de Lucas, sua relação com o falo, é o que ele busca deixar de fora de seu encontro com o analista no início de seus atendimentos. Sobre o pai como aquele que veicula a lei, acredita não ter o que dizer ou, melhor, parece decidido a não saber sobre o que teria a dizer a respeito disso. O caminho seguido pela analista, após localizar a vertente do ato, que ultrapassa os limites do gozo fálico, foi o de buscar permitir ao sujeito construir saídas para se responsabilizar pela interdição fálica que sua neurose lhe impõe, fazendo dela uma alternativa à relação com o objeto. Lucas construiu sua neurose com o pouco de simbólico do pai a que teve acesso, mas também com seus excessos, aos quais se encontra identificado. Sua versão de homem, contudo, pode ser diferente da paterna, a partir da invenção de uma saída original, não apenas pela via da repetição de uma herança. Com o conceito de père-versión34, Lacan (1975-1976/2007) pluraliza a compreensão que antes tinha do pai como nome único, universal, dando a cada sujeito a possibilidade de construí-lo singularmente. O pai castrado é esse que não apresenta uma superpotência, mas demonstra, justamente aí, que é possível a cada um se virar Père-versión, livremente traduzido para “pai-versão”, faz homofonia, em francês, com perversión, ou perversão. 34

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com seus restos. Encontra-se, portanto, mais do lado do objeto a do que da lei. O que lhe dá consistência é um modo exclusivo de gozar, um savoir-faire com seu sinthoma, como veremos adiante. O pai que, como o de Lucas, permite essa saída singular é o pai que, mais do que proibir – como enfatizava a versão freudiana do pai –, autoriza. A ideia de um pai que diz não ao gozo do filho, afinal, é uma ficção que encobre uma impossibilidade, estabelecida pela inexistência da relação sexual. No que podemos chamar de dois ciclos de sua experiência analítica, é justamente quando algo sobre o pai e a referência fálica pode ser localizado que Lucas se retira, deixando, ao final do último ciclo de análise, uma dívida em aberto com a analista. O que faz com que ele vá embora? Por um lado, localizamos essa saída como uma resposta ao que, em sua experiência analítica, foi possível construir a partir desses breves encontros. Contudo, quanto à sua relação com o significante fálico, não podemos deixar de supor Lucas que prefere continuar esperto, guardando certa distância relativa à angústia diante da castração, ou, ao avesso, que prefere continuar bobo, sem querer saber a respeito da impossibilidade estrutural que ela lhe impõe, o que definiria a ultrapassagem da sua análise da vertente do sentido para a construção de uma saída pelo real. De toda forma, parece-nos ter sido possível a Lucas aceder a um fragmento da verdade a respeito da castração: apesar de querer superá-la, fracassa, uma vez que há uma neurose ali estabelecida. Há fragmentos de um romance familiar, há o que dizer sobre o pai, mesmo que seja a partir de seu nada, de seu ponto de falta – afinal, a castração também incide sobre ele. A falta tem estatuto simbólico: exige considerar que algo deveria estar ali onde ela se apresenta. Para constatá-la, é necessário que se diga “a conta está errada” (LACAN, 1968-1969/2008), que haja, portanto, uma contagem, um elemento significante ausente. Logo, o falo toca a questão da lacuna na cadeia, que é o que veicula o desejo.

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FIGURA 8. Esquema óptico de Lacan a partir do Seminário 10 FONTE: LACAN, 1962-1963/2005, p. 54.

No esquema óptico adaptado por Lacan (1962-1963/2005) e exibido acima (FIGURA 8), vemos que, para que a imagem à direita possa ser formada, é necessário que o sujeito que a observa esteja em uma posição específica: I, lugar do Ideal, da presença do olhar do Outro. Autenticado por essa presença, o sujeito constrói uma imagem do eu, i’(a) (TRISKA, 2011). Contudo, da montagem original do esquema óptico, à esquerda, uma parte não é representável do lado do Outro, sendo essa a parcela de libido que continua investida no eu. O falo é justamente essa falta simbólica do objeto imaginário que fica ausente, (-φ), escamoteado na imagem virtual, deixando uma lacuna (TRISKA, 2011). É o que escapa à representação. Em alguns momentos, em lugar disso que deveria vir a menos, surge algo destacado da imagem, aspecto que Lacan aborda com a construção de um novo conceito: o objeto a. A angústia é o afeto diante do surgimento desse objeto que deveria se manter oculto, fora da visão do sujeito: “não se trata da perda do objeto, mas da presença disto: de que os objetos não faltam” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 64). É o real irredutível, o gozo que resta e não é subtraído do ser vivo pela representação. Associa-se à parte perdida pelo sujeito por sua entrada na linguagem, no que Lacan (1964/1998) assemelha à placenta, embora continue a ter incidência no ser falante. Assim como o falo, o objeto a faz limite ao representável, não pertencendo exclusivamente nem à imagem nem à representação significante (NOVAES, 2007), o que permite abordar a libido em suas duas condições: significante (φ) e nãosignificante (a). Constata-se que (-φ) e a equivalem-se como avessos, sendo o objeto a a presença do que deveria vir negativizado: “[...] no coração do objeto a

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existe o menos phi da castração, cujo objeto é, de certo modo, apenas um envelope” (MILLER, 2005a, p. 260). Conjugam-se, esses dois elementos, como um furo e seu tampão, em uma relação de metáfora, diz Miller (2011a).

a (-φ)

Se o falo foi o representante do triunfo do simbólico na obra lacaniana, o objeto a é o que vem testemunhar a exigência de construção de um mais além para abordar a pulsão, na medida em se constata que algo resiste à função da linguagem. No perpétuo deslizamento do significado sob o significante, há o sentido jamais atingido. Em vez da barra, da metáfora, o ensino de Lacan passa a enfatizar, de forma mais radical, o corte, a queda: a primeira faz alusão a supressão, apagamento, morte, enquanto o segundo fala mais de uma separação, embora deixe um resto. O sujeito de desejo é aquele que questiona os efeitos do significante, sendo barrado de um gozo que surge como negativizado, como falta-a-ser. Em sua outra face, está o sujeito de gozo, alienado em sua relação com o objeto a, com esse a mais de satisfação. Diante da divisão promovida pela linguagem, o sujeito apela para o objeto como aquilo que o complementaria, que o designaria, tornando-se, nesse trajeto, equivalente a ele. A verdade sobre sua identificação ao objeto, todavia, só aparece em fendas que se abrem repentinamente, causando angústia pelo desnudamento do que deveria ficar oculto entre a cena e o mundo (NOVAES, 2007). Vieira (2009) vai explicar que o sujeito da psicanálise não é alguma coisa, o que o distingue da subjetividade, que é sempre um conjunto de atributos palpáveis. Sujeito é sempre presença de uma ausência, daquilo que fica de fora do quadro, do que resiste e repete. É centrando-se nesse “de fora” que surge o conceito freudiano de pulsão de morte e que Lacan, mais tarde, pode trabalhar pela via do gozo condensado no objeto a. O ser do sujeito ganha, como contraponto, esse objeto com o qual ele faz parceria. Não se pode pensar o sujeito sem este seu contraponto. O primeiro é vazio, faz corte e acontecimento, o segundo é sólido, opaco no qual se tropeça. Um é fugidio e o outro presença imperativa. Um é “?” e o outro “!””. (VIEIRA, 2009, s.p.).

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É no limite entre desejo e gozo que Lucas permanece enlaçado estruturalmente ao falo, mas elege como seu parceiro o objeto droga – elevado à condição de objeto a. Se, na psicose, pensamos a droga como suplência imaginária à vertente simbólica do falo, cuja significação fica forcluída, o que há no caso de Lucas é a tentativa de elidir, pela associação entre imaginário e real, os efeitos da incidência fálica, neurótica, e a limitação do gozo que ela acarreta. Lucas tenta se esquivar da lei simbólica, mas, para isso, paga o preço de ter sua condição de sujeito tamponada. Não por acaso, a lei a que obedece para chegar ao consultório do analista não é a paterna. Apesar de ser pela instância jurídica que faz sua entrada, diz claramente não ser a ela que se submete, mas à lei materna. A mãe, mais tarde chegamos a saber, é um Outro que “irrita muito, fala muito, cobra as coisas”. Insere na relação com seu filho uma lógica que ele enuncia como sendo a do “dar tudo, não deixar faltar nada”. Esse funcionamento confere a ela um saldo credor infinito diante do filho, que acredita também estar fadado ao “dar tudo” para saciar sua demanda – na leitura de Lucas, é pela via da díade trabalho/estudo que poderia compensar a mãe, mas não consegue sair de seu lugar de devedor em relação a isso que recai sobre ele porque não consegue levar esse pagamento adiante, como acredita que deveria. É como aquele que salva o sujeito de pagar com seu corpo a dívida com o Outro materno e de manter-se eternamente no lugar de objeto da mãe que o pai faz sua entrada na relação edípica. Se o falo tem a função de triangular a ligação entre mãe e criança, cabe ao pai o lugar de quarto elemento veiculador dessa lei simbólica que veta o acesso ilimitado ao sujeito. O simbólico, portanto, faz barra a um Outro primordial caprichoso e devorador. Por outro lado, traz como consequência a separação inevitável do sujeito da possibilidade de acesso ao gozo primevo, obtido apenas na relação com esse Outro nãotodo, não barrado. Para se tornar sujeito, perde-se uma dose de gozo. O que Lucas procura fazer é burlar a proibição fálica e obter acesso a algo desse excedente de gozo, buscando barrar a incidência do Outro por outra via, a da parceria com o objeto. Sua escolha pela droga parece prometer um “ganhar ou ganhar”, sem perdas. A maconha vem como aquilo que, de uma só vez, anestesia os efeitos da pulsão sobre o corpo e permite uma relação com o objeto sem a angústia da falta-a-ser. O encontro com o Outro sexo torna-se dispensável por essa

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via, bem como as questões suscitadas pelo gozo feminino. Esta é a “esperteza” de Lucas: a tentativa de driblar a inscrição da lei simbólica que incidiu sobre ele. O que impede que Lucas seja o “esperto mais esperto”, como era sua expectativa, e confere a ele, como consolação, apenas o lugar de “bobo mais esperto/esperto mais bobo” é o fato de ele, previamente, ter feito uma eleição inconsciente pela condição de sujeito, não sendo nunca inteiramente bem sucedido em suas manobras para eliminar os efeitos e as perdas dessa escolha. Uma vez assumida sua relação com a palavra, não pode mais sair do jogo. Ao colocar em standby os efeitos da relação com o Outro da linguagem, tem a ilusão de poder satisfazer-se apenas com o objeto, sem mediação. Contudo, em determinados momentos, fica evidente que essa tentativa de suspensão dos efeitos do recalque é artificial e frágil. Logo após o início das sessões, por exemplo, sua divisão aparece pelo viés da culpa e do embaraço, bem como pela dívida que carrega em relação ao ideal estabelecido pelo Outro. Lucas é bobo porque é um sujeito, ainda que, sobre isso, nada queira saber, recusando-se, como consequência, a saber do pai como aquele que veicula uma lei e que transmite a possibilidade de fazer um outro uso do gozo. Acredita que, sobre ele, não tem nada a dizer. É a partir de um giro, permitido pelo desatrelamento entre significante e significado em sua enunciação, que a analista vai poder pontuar que, ao contrário, o que ele busca é não ter que dizer sobre o nada do pai, sobre o ponto em que o pai rateia na transmissão de uma segurança do que seria a chave de acesso ao Outro sexo. Resta para Lucas a lembrança devastadora do pai imerso em um gozo mortífero, em resposta à qual ele prefere o não saber. Contudo, a entrada no circuito da palavra em sua experiência analítica permite que ele teça os rudimentos de seu romance familiar, o que facilita que, à figura do pai gozador e tirânico, Lucas vá atrelando outras passagens, outros fragmentos. Pode resgatar o lugar de um pai que lhe ensinou muitas coisas, apesar do que lhe faltava, deixando como herança, por exemplo, o ideal do “estudar, estudar, estudar”, oportunidade que esse pai mesmo não teve, ao qual Lucas se apega como uma alternativa que o sustente fora do circuito da venda da droga. O pai sucumbe a seus próprios excessos, mas transmite a viabilidade de construção de uma versão inédita sobre o que é ser um homem, dizendo “sim” à possibilidade de se ir além dele. Não é preciso que Lucas faça as vezes do pai

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autoritário, que, encarnando a lei de forma caricata – já que não sabe o que fazer com ela por outra vertente -, torna-se tirânico e opressor, como faz dentro de sua casa. Com as mulheres, também não há a única saída do enlouquecimento diante do enigma do gozo feminino, como viu o pai fazer em seus episódios de agressão à mãe e, identificado a ele, repete pela via do excesso na relação com o Outro sexo – como explicitam as cenas em que, tomado pelas negativas da ex-namorada, insultaa, agride-a verbalmente e altera-se pelo uso excessivo da bebida; como também demonstra seu relacionamento com a irmã, com quem assume o lugar do legislador tirânico, que precisa a todo custo conter as manifestações de seu gozo e de sua feminilidade. Para que surja uma outra via de resposta, contudo, acreditamos que, no caso de Lucas, primeiro seja preciso reconstruir algo da ficção sobre o pai a partir dos escombros por ele deixados. O sujeito não é só linguagem, é também pulsão, mas ela se torna abordável também se é permitido à linguagem, a princípio, contorná-la. Na relação com o objeto droga, há a questão evidente do puro gozo, que resiste a qualquer interpretação, mas, ainda assim, é possível que o analista consinta com a tentativa de pôr a palavra em funcionamento para que essa vertente possa ser interpelada. É justamente sobre isso que não se interpreta, que não se esgota pela via da linguagem, que o “Seminário 11” (1964) de Lacan avança, segundo Soler (1997a), atrelando a pulsão tanto ao desejo quanto ao gozo. Ao definir os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan abre mão de listar entre eles o desejo para dar lugar à pulsão, que estava esmorecida em seu ensino até então e mostrou-se fundamental para que suas elaborações prosseguissem. Por ser consequência da desprogramação promovida pela linguagem no ser humano, a pulsão instaura a demanda, que não se satisfaz plenamente com objeto algum, sempre distinta do que pede, portando um significado inacessível, incapturável. Enquanto o comportamento dos animais traz uma correlação fixa entre seus signos, os elementos no simbólico só têm valor por sua relação com os demais da cadeia. Para Lacan, a pluralidade, a plasticidade, o proteísmo, a capacidade substitutiva das pulsões, seu deslocamento, sua ex-sistência traduzem a apreensão do simbólico. No fundo, isso é tudo, menos natural. E vê aí, como encarnadas na própria carne, no empuxo da carne, nas exigências

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desta, as propriedades da cadeia significante. Seria como o testemunho da cadeia significante. (MILLER, 2005a, p. 105).

Freud (1919b/1996) encontrou na pulsão algo que insiste silenciosamente, extraindo dessa insistência uma satisfação que o sujeito não reconhece. Nesse movimento de repetição desligada do significante, Lacan também vai localizar o caráter acéfalo da pulsão, conferindo a ela suas duas faces, autômaton e tiquê – repetição da cadeia significante e compulsão à repetição desligada da cadeia, respectivamente. Colocando-se em evidência a relação entre significante e pulsão na construção do sujeito, ele passa a estar localizado muito mais próximo do tropeço do que de um resultado a que se chega por algo como um uso bem sucedido da linguagem. O simbólico é apenas sua borda, uma vez que a fala não o realiza, sendo, ao contrário, testemunha de sua falta-a-ser, “máquina de se perder” (MILLER, 2005a, p. 12). Há sempre um resto como condição inerente à cadeia significante. Logo, o simbólico está também submetido ao gozo. A ordem simbólica ao mesmo tempo não-sendo e insistindo para ser, eis a que visa Freud quando nos fala do instinto de morte como sendo o que há de mais fundamental – uma ordem simbólica em pleno parto, vindo, insistindo para ser realizada35. (LACAN, 1954-1955/1985, p. 407).

É na condição de consentir com a identificação a um significante que o sujeito pode ser fundado, mas é também por essa via que se vê elidido, no que Lacan (1964/1998) chama de afânise ou fading. Se a escolha pela condição de sujeito acontece, é preciso uma anuência para se deixar dividir pela linguagem. Antes da entrada do ser falante no simbólico propriamente dita, contudo, um traço inicial deve ser entalhado no inconsciente, tornando-se o 1 do qual o sujeito parte (LACAN, 1962-1963/2005), significante no real, anterior ao campo do Outro. Ele é a marca distintiva a que se ficará, a partir daí, assujeitado, sem que o próprio sujeito o saiba. O traço unário é esse entalhe totalmente despersonalizado, próximo ao que Machado (2005) define como notação mínima, o que o remete ao Einziger zug, recalque originário de que fala Freud (1921/1996). Lacan vai aproximá-lo do ideal do eu, significação produzida no campo do Outro que dá, como consequência, a significação do próprio sujeito. Essa marca assegura a existência da repetição no O termo “instinto”, nesse trecho, parece vir como tradução equivocada do que seria a pulsão, equívoco encontrado em muitas edições na língua portuguesa das obras de Freud e Lacan. 35

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aparelho psíquico, uma vez que, a partir daí, toda a atividade pulsional em direção aos objetos vai ser uma tentativa de reencontrar essa experiência original de satisfação diante da resposta do Outro. Esse S1 encontra-se desarticulado, fora da série e, por isso, sem efeito de verdade e sem a função de representar nada, nem mesmo o sujeito para outro significante. É o Um sozinho, não o par S1-S2, tendo a função de posicionar o sujeito em um conjunto fechado em relação ao enxame de significantes e inscrever a possibilidade de que, em um segundo momento, o Outro reconheça a unidade de sua imagem, i(a), marcando sua diferença fundamental em relação aos outros elementos. Portanto, o choro só ganhará estatuto de apelo (S1) quando houver a resposta do agente materno (S2) que confira uma satisfação, de modo a marcar uma pulsação na descontinuidade que diz o que o choro pode significar (do apelo a uma demanda). É, então, por meio do ato que intervém, que haverá a promoção da satisfação e o franqueamento de uma posição. (NEVES; VORCARO, 2011, p. 282).

É preciso, portanto, que alguém se coloque como destinatário para que seja possível demandar, receber uma assinatura dessa relação e, então, fundar o S2. O Outro tem lugar de onipotência justamente pelas insígnias que oferece nesse primeiro dito, constituindo-se como a sustentação da satisfação narcísica. Ao se referenciar a um ponto de diferença que se exclui, o ser posiciona-se num conjunto fechado em relação ao enxame de significantes. Será na resposta do agente materno a um movimento da criança, S2 como resposta ao S1, que este S1 poderá ser marcado. Portanto, o choro só ganhará estatuto de apelo (S1) quando houver a resposta do agente materno (S2) que confira uma satisfação, de modo a marcar uma pulsação na descontinuidade que diz o que o choro pode significar (do apelo a uma demanda). (NEVES; VORCARO, 2011, p. 282).

Embora a identificação ao traço unário seja a operação inaugural da relação entre sujeito e Outro, de onde o sujeito extrai seu ser, mantém-se também uma identificação do sujeito a um vazio que esse significante não recobre. O sujeito não se inclui inteiramente nesse S1, remetendo-se, como consequência, a um ponto radical e arcaico, aquém de qualquer identificação. Algo da representação fica de fora do que se pode oferecer como resposta, da possibilidade de significação com as palavras transmitidas pelo Outro, já que a ele também falta o significante derradeiro – nãotodo sujeito pode surgir por essa via, persistindo um resto oculto, que o localiza em um “fora de sentido”, no deslizar da cadeia significante (VIEIRA et al, 2004b).

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Escolhemos o ser, o sujeito desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso – escolhemos o sentido, e o sentido só subsiste decepado dessa parte de não-senso que é, falando propriamente, o que constitui na realização do sujeito, o inconsciente. (LACAN, 1964/1998, p. 200).

A partir da inscrição do traço unário, será necessária, posteriormente, uma escolha, uma participação ativa do sujeito para buscar saber o que ele é para além desse significante que o Outro lhe oferece: “separare, separar, conclui-se aqui em se parere, gerar a si mesmo” (LACAN, 1960a/1998, p. 857). Será essa a busca da experiência analítica. Com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele, e é aí que ele se apreende, e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples fato de isso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito sob o significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas esse nada se sustenta por seu advento, produzido agora pelo apelo, feito no Outro, ao segundo significante. (LACAN, 1960a/1998, p. 849).

O traço unário deixa entrever o avanço que o ensino de Lacan fará, em seu terceiro momento, sobre a questão da letra, daquilo que, do significante, vai além de seu caráter de significação. É desse ponto que se aproxima a questão do falasser, uma vez que ele é, a um só tempo, submetido à linguagem e nãotodo contido nela, guardando em si a vertente do sinthoma como marca no corpo de gozo, que resiste a qualquer ficção – e é apenas ficção, diz Lacan, o que pode ser construído pelo sujeito com as palavras. Já que estou hoje sendo arrastado pelas trilhas do inconsciente estruturado como uma linguagem, saiba-se disto – esta fórmula muda totalmente a função do sujeito como existente. O sujeito não é aquele que pensa. O sujeito é, propriamente, aquele que engajamos, não, como dizemos a ele para encantá-lo, a dizer tudo – não se pode dizer tudo – mas a dizer besteiras, isso é tudo. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 33).

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5. A SEGUNDA CLÍNICA DE LACAN: HÁ GOZO Fui levado a articular essa cadeia, e até mesmo a descrevê-la, conjugando nela o simbólico, o imaginário e o real. O importante é o real. Depois de ter falado do imaginário e do simbólico, fui levado a me perguntar o que podia ser o real nessa conjunção. (LACAN, 1975-1976/2007, p. 103).

A instância do real aparece no ensino de Lacan, em um primeiro momento, como uma perspectiva que fica rechaçada pelo autor. Seu fascínio pelo simbólico embasou sua tentativa de responder às questões do sujeito estritamente pela via da linguagem, buscando manter a discussão sobre a pulsão alheia às suas construções – não por acaso, o sujeito era estabelecido nessa época como um campo mortificado de gozo. O último ensino lacaniano, ao contrário, realiza o que podemos considerar uma ode ao real, que fez com que Lacan reelaborasse vários de seus conceitos, dando a eles um novo caráter, fronteiriço, na medida em que o autor constata a insuficiência, tanto na teoria quanto na prática clínica, de localizá-los estritamente no terreno da linguagem. Foi em direção a uma assunção do real em sua relação com o sentido que Lacan sempre caminhou, ainda que, em alguns momentos, a caminhada tenha se mostrado tímida e, em outros, tenha sido feita a passos largos. Uma leitura atenta do “Seminário 4” (1956-1957), por exemplo, mostra-nos que, mesmo aí, no início de seu ensino público, Lacan dava sinais tímidos de que a operação de significantização, que pressupunha a incidência de um saber no real, rateava na tarefa de oferecer ao sujeito uma chave de acesso ao Outro sexo: O erro é partir da idéia de que existem a linha e a agulha, a moça e o rapaz, e entre um e outro uma harmonia pré-estabelecida, primitiva, de tal maneira que se alguma dificuldade se manifesta, só pode ser por alguma desordem secundária, algum processo de defesa, algum acontecimento puramente acidental e contingente. [...] Não se trata em absoluto de um encontro, a que fariam obstáculo apenas os acidentes que pudessem sobrevir na estrada. (LACAN, 1956-1957/1995, p. 48).

Caminhando em ritmo variável em direção a uma elaboração do real, Lacan pôde, finalmente, avançar para além da leitura do texto freudiano a partir de um determinado momento, imprimindo à teoria psicanalítica uma marca original. Ele fez do conceito de gozo sua resposta mais singular à descoberta freudiana do inconsciente:

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Assim, já vemos que se trata de um modo de elevar o próprio sinthoma ao segundo grau. É na medida em que Freud faz verdadeiramente uma descoberta supondo-se que essa descoberta seja verdadeira – que podemos dizer que o real é minha resposta sintomática. (LACAN, 19751976/2007, p. 128).

A importância do tema do gozo é tanta na leitura de Lacan que o autor afirmava a intenção de que sua construção teórica sobre ele fosse chamada de campo lacaniano, apesar de constatar que ainda restava muito a ser formalizado, para além do que seria sua possibilidade de trabalho: “no que diz respeito ao campo do gozo – é pena, jamais será chamado de campo lacaniano, pois certamente não vou ter tempo sequer para esboçar suas bases, mas almejei isto [...]” (LACAN, 19691970/1992, p. 77). As diversas concepções de gozo estabelecidas por Lacan permitem que o tomemos como um orientador de leitura, uma visão panorâmica de sua obra. Essas variações sofridas pelo conceito traduzem o tom de cada momento teórico, o que permitiu que Miller (2000) apostasse na sistematização de seis paradigmas do gozo como guia para o ensino lacaniano. Apresentamos essa formalização a seguir, acreditando que ela pode oferecer um bom ponto de partida para a trajetória que levou, como conclusão, à construção do conceito falasser como suplemento ao conceito de sujeito, que passa a se mostrar insuficiente para contemplar a relação do ser falante com o gozo. Como alerta ao leitor, contudo, vale a pena destacar a crítica de Zizek (2001) a essa divisão didática proposta por Miller. Ele lembra-nos que seria impossível levar a cabo qualquer marcação estrita no ensino de Lacan, pois ele não é construído pela simples substituição de um paradigma por outro, no que seria uma miragem evolucionista. A divisão só teria validade, portanto, se a tomamos mais como um esforço de aproximação, uma tentativa de clarear aspectos obscuros ou de difícil apreensão, e não como definição de pontos fixos de virada e superação na teoria. Essa ressalva serve como pretexto para, mais uma vez, ressaltarmos o estilo não linear de construção de conceitos que Lacan adota ao longo de toda a sua vida teórica, fazendo com que seja sempre necessário a quem o estuda um trabalho de idas e vindas em seu texto. Estabelecida essa advertência, passemos, então, à leitura proposta por Miller sobre os seis paradigmas do gozo em Lacan.

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No período chamado por Miller (2000) de imaginarização do gozo (primeiro paradigma), que podemos situar, aproximadamente, até o “Seminário 4” (19561957), Lacan lia-o como exclusivamente vinculado à relação especular entre eu e outro. A pulsão estaria localizada nesse eixo que faz barreira ao inconsciente, à relação entre sujeito e Outro da linguagem, como mostra o Esquema L (LACAN, 1954-1955/1985). Segundo Santos (2013), a disjunção entre gozo imaginário e significante é correlata à distinção entre eu e sujeito do inconsciente: no momento em que o desejo era entendido como sendo o responsável por animar o sujeito, o gozo restava entrevisto apenas fora da cadeia significante, alheio a ela. O trabalho de uma análise seria, então, o de descentrar a relação eu-objeto e centrar foco na relação sujeito-Outro, eliminando dela qualquer ruído de gozo. Acreditando que essa assepsia era possível, Lacan (1953/2003) estabelece, à época, concepções como intersubjetividade e palavra plena. Essa leitura não se sustentou por muito tempo. Entraves clínicos impediram o autor de evitar a discussão sobre os efeitos da pulsão, que se mostrava para além de sua localização estrita na relação imaginária eu-objeto. A experiência analítica apontava para o fato de haver, sim, gozo na experiência com a linguagem, o que impediria qualquer tentativa de realização plena do sujeito no significante. A constatação sobre essa impossibilidade vai dar lugar ao segundo paradigma, intitulado significantização do gozo (MILLER, 2000). Ele é definido a partir da verificação de que, embora o simbólico tenha a função de mortificar o gozo e fazer advir o sujeito em sua vertente simbólica, um resto permaneceria irremediavelmente nas entrelinhas da escrita da linguagem. A pulsão, então, surge articulada à cadeia e capaz de operações próprias a ela, como metonímia, substituição, combinação (SANTOS, 2013). Conceitos importantes vão sendo transpostos por Lacan do imaginário – visto como fixidez e inércia – ao simbólico – do lado do qual se situa a estrutura, a dialética. O autor começa a procurar a ponte entre essas duas instâncias, de maneira a abarcar teoricamente a existência do gozo como, de alguma forma, conectado ao significante. É a partir do “Seminário 7” (1959-1960) que Lacan inaugura a noção compreendida por Miller (2000) como a de gozo impossível (terceiro paradigma), tomando-o como situado alhures ao simbólico, mas não mais no imaginário. O gozo surge, finalmente, pertencendo ao registro do real, que vai ser sua morada definitiva

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até o derradeiro ensino de Lacan, embora seu modo de relação com a linguagem vá apresentar diversas variações ao longo de seu texto. Aqui, destaca-se seu aspecto de descontinuidade: ao ser barrado, pela castração, de fazer entrada em meio à cadeia significante, o gozo no real permaneceria opondo-se tanto a imaginário quanto a simbólico, aproximando-se do conceito freudiano de pulsão de morte. Para que o sujeito do inconsciente pudesse ser inaugurado, caberia a ele uma recusa do gozo original, garantindo, a partir daí, acesso à dimensão de ser falante. A condição de sujeito, portanto, seria uma escolha ativa. O que limita o alcance desse sujeito a esse gozo primevo não é, como se podia supor, a proibição advinda de uma lei do mundo externo, mas sim o imperativo superegoico, a introjeção de um funcionamento psíquico que segue, a partir do estabelecimento do sujeito, pela via do princípio do prazer: Mas não é a Lei em si que barra o acesso do sujeito ao gozo; ela apenas faz de uma barreira quase natural um sujeito barrado. Pois é o prazer que introduz no gozo seus limites, o prazer como ligação da vida. (LACAN, 1960b/1998, p. 836).

Para o sujeito, o gozo que permanece no inapreensível na instância do real só pode ser localizado a posteriori, após a cadeia significante ser instaurada e permitir que se construa para ele uma borda que o situa. O simbólico é o que funda, em retroação, a concepção de que falta na cadeia um elemento, a ideia da perda de um objeto que estaria originalmente ali – só no simbólico, afinal, é possível pensar em falta. Concebe-se, assim, uma ausência no real introduzida pelo significante, um ponto que é, ao mesmo tempo, central e exterior, em relação de exterioridade íntima ou, como Lacan (1959-1960/2008) vai nomear, de extimidade. Essa concepção de um objeto central à topologia psíquica e, ao mesmo tempo, primordialmente excluído da cadeia, em torno do qual todos os seus movimentos se constituem posteriormente (ROSA, 2010), retoma a noção freudiana de das Ding36. Lacan utiliza-a para subvertê-la, constatando que a lógica do objeto perdido deve ser substituída pelo entendimento de que essa falta não remete à empiricidade de algo. Das Ding seria a falta central no registro significante, apontando que algo se separa da cadeia e se torna um ponto inaugural que permite

O termo alemão “das Ding”, em sua utilização por Freud, é tradicionalmente traduzido para o português como “a Coisa”. 36

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que o sujeito, a partir dali, comece a articular e a nomear. Darriba (2005) explica que o postulado freudiano de que todo objeto é reencontrado leva-nos à constatação errônea, aprés-coup, de que, então, haveria algo ali que um dia foi perdido, quando, de fato, seria de uma falta de origem, como condição de possibilidade da cadeia significante, que estaríamos falando. A necessidade de dar alguma substância a essa falta sem objeto primordial é o que leva à construção do conceito lacaniano de objeto a. Se a Coisa é inacessível, ela só pode ser representada por “outra coisa” (DARRIBA, 2005, s.p.). A cada reencontro, o objeto reencontrado apresenta-se outro, em seu caráter de substituição parcial, todos eles, de certa maneira, associados ao real que a Coisa porta, mas nenhum sendo totalmente condizente com o que seria um objeto primordial, justamente porque não há objeto que sedimente uma falta de estrutura. A partir do “Seminário 7” (1959-1960), podemos afirmar que o sujeito não é só inscrição e memória, articulação S1-S2, mas também essa ausência que o configura como esquecimento, divisão, $. Tanto a ordem simbólica quanto a imaginária seriam já defesas contra o real do gozo (SANTOS, 2013) que aparece esporadicamente, aos sobressaltos, chamado de gozo do Outro por estar alheio ao sujeito do significante, determinando-o de alhures, independente do que o sujeito saiba sobre essa determinação que incide sobre ele. O sujeito só aparece depois de instaurada em algum lugar a ligação dos significantes. Um sujeito só pode ser produto da articulação significante. O sujeito como tal nunca domina essa articulação, de modo algum, mas é propriamente determinado por ela. (LACAN, 1971/2009, p. 18).

Condensado no envoltório do objeto a, está o que Lacan nomeia mais-degozar. Ele situa-se na fronteira entre as instâncias real, imaginária e simbólica – submete-se à lógica fálica e, ao mesmo tempo, deixa algo de fora dela. É esse “a mais” de gozo que se concentra no objeto a que garante a vivificação do sujeito mortificado pela incidência do simbólico. Da pulsão, uma parte é representável, transcrita como desejo, enquanto outra permanece vinculada ao real, sendo o objeto, portanto, isso que faz a ponte entre prazer e gozo. No que se entende didaticamente como sendo a virada para o segundo ensino de Lacan, a partir do “Seminário 11” (1964), o gozo permanece situado no real, mas deixa de ser tomado sob a ótica da transgressão, como se estivesse localizado em uma espécie de abismo para além da linguagem. Agora, Lacan

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concebe-o como situado em pequenas cavidades, incluído nos recôncavos que são desenhados no próprio trajeto pulsional do eu ao objeto. Por esse motivo, o quarto paradigma do gozo de que fala Miller (2000) é nomeado gozo normal. A partir daí, entende-se que o sujeito se encontra com o vazio significante como parte integrante da cadeia, na trajetória rotineira da linguagem. O inconsciente seria escrito não apenas pelo que se tece de significante em significante, mas também por descontinuidades nessa tessitura, tornando-o pulsátil. No interior de orifícios que se abrem e se fecham com o movimento pendular da pulsão, alojam-se os objetos a, sempre insuficientes para preencher a falta originária de estrutura, que, como vimos, independe do significante ou da ausência de um objeto. Apesar dessa limitação, contudo, eles permitem algum acesso ao gozo por uma via que não é a da transgressão, mas a da repetição pulsional, desvinculada da linguagem e que, por isso, se relança incessantemente. Por sujeito, entendemos, nesse ponto, o que se constrói tanto por sua propriedade significante quanto pela inserção, entre os significantes, do objeto a como condensador de gozo. Dizemos que o conceito de sujeito assume uma concepção fronteiriça, que vem reparar sua condição anterior de pura mortificação como resultante de sua entrada no simbólico. Com o objeto a, ele ganha vida no movimento pulsional. Na aproximação gradual entre sujeito e gozo, chegamos ao quinto paradigma, que Miller (2000) chama de gozo discursivo. Se o sujeito de desejo está do lado do simbólico, na falta-a-ser, o gozo é isso que garante o ser do sujeito (MILLER, 2005a), vivificando-o. Antes mesmo da entrada na linguagem, haveria um corpo afetado pelo gozo que é ineliminável, um ser de gozo que não pode ser todo absorvido pela operação de significantização, deixando o mais-de-gozar como suplemento ao gozo fálico, não como forçamento a ele: “não se transgride nada. Entrar de fininho não é transgredir” (LACAN, 1969-1970/1992, p. 17). O significante é o que representa o sujeito para outro significante, estando o sujeito alienado no próprio movimento de S1 a S2, não em algum ponto específico da cadeia. Ele não pode ser fixado a um significante, tornando insuficiente toda possibilidade de identificação oferecida pelo Outro, o que garante a manutenção da repetição que o refunda a cada vez que o trajeto da pulsão em direção ao objeto se refaz.

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O último ensino de Lacan promove uma alteração radical nos conceitos de gozo e linguagem e, consequentemente, põe em questão a concepção de sujeito. Didaticamente localizado a partir do “Seminário 20” (1972-1973), vemos ganhar lugar o sexto e último paradigma do gozo de que trata Miller (2000), o da nãorelação. Nesse seminário, Lacan pergunta-se sobre o que é o significante, dando a surpreendente resposta, para a época, de que “[...] o significante situa-se ao nível da substância gozante” (LACAN, 1972-1973/1995, p. 36). Até aqui, falava-se de gozar de algo, como também de um gozo que se liga ao Outro. A partir desse ponto, o ser falante passa apenas a gozar (CASTRO, 2005), empreendendo uma ação sem objeto. Não é mais a linguagem o fato primordial, mas o gozo. A afirmativa “não há relação sexual”, consequência do furo no tecido significante, dá lugar ao postulado “há gozo”, tomando-o como propriedade inerente ao corpo. Desatrelado da lei do desejo e primário a ela, o corpo vivo é marcado irremediavelmente pela incidência do gozo como traumatismo, que promove o que Lacan vai chamar de acontecimento de corpo, como veremos em seguida. O gozo atribuído ao feminino, suplementar ao gozo fálico, foi abrindo portas até se transformar no regime de gozo por definição: “[...] não-todo, isto quer dizer que quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica” (LACAN, 1972-1973/1995, p. 98). A constituição do sujeito como produto da tessitura da linguagem que responde ao Édipo não abarca a relação com um corpo que goza. Em tempos de declínio do pai, a limitação do conceito de sujeito fica evidente, restando à psicanálise lacaniana a necessidade de algo que viesse em suplemento à lógica fálica, permitindo à clínica abarcar os modos de vida de nossa realidade social. O gozo Outro é justamente o que escapa ao laço social, não cessando de não se escrever, inapreensível. Ele não está enganchado a S2, o que enfraquece a importância dada ao lugar da palavra como comunicação e atribui função primordial ao gozo do Um, solitário e masturbatório, que incide sobre o corpo como inscrição indelével: “o Outro, de acordo como emprego que Lacan lhe dá em seu derradeiro ensino, é precisamente o sentido. O Um, no sentido do mesmo, é a matéria” (MILLER, 2009, p. 125). As estruturas clínicas, que orientavam a primeira clínica lacaniana, foram estabelecidas em relação ao gozo fálico, podendo ser definidas como modos de resposta do sujeito à incidência ou não do falo e às diferentes configurações

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assumidas pelo Outro como consequência desse fato. Por debaixo da queixa endereçada por um sujeito ao analista, há um ideal vindo do Outro, a partir do qual o analisante produz seu relato e inclui seu sintoma (MILLER, 2009). Com o último ensino de Lacan, a concepção de estrutura e seu lugar na clínica precisaram ser revistos. Demarca-se a existência de um real que não responde a qualquer demanda que se possa fazer pelo sentido, por ser constituído de elementos indecifráveis e inacessíveis, “[...] uma espécie de matéria bruta dos fatos, sem nenhuma estrutura lógica anterior a esse sistema de ordenação estrutural” (GUERRA, 2007, p. 70). O gozo Outro dilui a importância do “entre dois” que fundamenta o sujeito suposto saber, base da transferência e da concepção de clínica estrutural, enfatizando, em seu lugar, o que, da língua, desatrela-se da significação. A linguagem passa a ser compreendida por Lacan (1971-1972/1997) como tendo uma existência anterior ao ordenamento significante, momento em que incide sobre o corpo e faz nele uma inscrição. A comunicação e o estabelecimento da cadeia significante que pode acontecer em um segundo momento mostra-se apenas seu uso secundário, não sua finalidade máxima. A figura a seguir, elaborada por Castro (2005) a partir das duas configurações da clínica lacaniana, que acompanham as viradas dos três ensino de Lacan, resume a extensão dos efeitos dessas mudanças no regime de gozo.

FIGURA 9. Alterações na lógica do gozo no ensino de Lacan FONTE: CASTRO, 2005.

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De maneira sintética, podemos interpretar assim as informações que se apresentam no quadro em questão: enquanto o ponto de partida do primeiro momento do ensino de Lacan é a linguagem como comunicação, definindo a primazia da relação entre sujeito e Outro, o segundo momento desse ensino transforma a linguagem em um derivado de lalíngua, a língua sem sua organização de sentido, passando o gozo a ser o fato primordial e originário, o que enfatiza a não-relação e a função da palavra como veículo de gozo. Conceitos como Outro, Nome-do-Pai e falo, antes vistos como o que condicionavam a experiência do sujeito e asseguravam a ligação dos elementos da cadeia, surgem secundarizados, reduzidos a semblantes, tendo função de grampo, de conector, mas podendo ser, nessa tarefa, substituídos por várias outras ferramentas. A palavra em sua vertente de sentido, portanto, mostra-se apenas um dos diversos

elos

possíveis

entre

elementos

essencialmente

disjuntos



significante/significado e gozo/Outro, por exemplo. Miller (2000, p. 105) afirma, a esse respeito, que “a estrutura comporta buracos e, neles, há lugar para a invenção, para algo de novo, para os conectores que não estão aí desde sempre”.

5.1. A clínica borromeana e a escrita fora do sentido A escrita me interessa, posto que penso que é por meio desses pedacinhos de escrita que, historicamente, entramos no real, a saber, que paramos de imaginar. A escrita de letrinhas matemáticas é o que suporta o real. (LACAN, 1975-1976/2007, p. 66).

Na mudança de paradigma entre a primeira e a segunda clínicas lacanianas, mostra-se evidente o embate conceitual que Harari (2011, p. 7-8) define como “Lacan contra Lacan: a primeira virada, que instala a subordinação do gozo ao primado da linguagem; e a segunda, que explora a subordinação da linguagem ao gozo e é o avesso da primeira”. A segunda virada lacaniana, que determina que “[...] a linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 31), reduz o conceito de sujeito à mesma condição de semblante que Lacan passa a atribuir a toda construção proveniente do simbólico. Ela implica no surgimento de um novo conceito, o falasser, e traz o sujeito como um emblema da primeira virada de Lacan. A relação entre sujeito e falasser guarda o mesmo traço da relação entre primeira e segunda clínicas de Lacan. A clínica estrutural não é suplantada pelo que

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seria uma “nova clínica”, chamada borromeana, assim como o sujeito não deixa de existir no contexto que leva à construção do falasser. No entanto, essas passagens mostram que a preocupação de Lacan em sintetizar seu texto em matemas objetivamente transmissíveis culmina na constatação da insuficiência de qualquer lógica rígida para abordar os meandros, as “coisas de fineza” (MILLER, 2011b) da teoria e da prática psicanalíticas, exigindo a inauguração de novas leituras. A primeira clínica de Lacan adotava o matema como uma espécie particular de simbólico que liga o real à escrita, permitindo transmitir algum ponto do indizível (LACAN, 1971-1972/2012). O conjunto de fórmulas que condensava o ensino lacaniano mostrou-se fundamental para a sistematização de um saber, mas passou a se mostrar limitado quando o autor conclui que o real não é uma ordem, e que a pulsação é um movimento inerente à experiência analítica. Claro que o ideal do matema é que tudo corresponda. É justamente em que o matema, quanto ao real, exagera. Com efeito, essa correspondência não é o fim do real, ao contrário do que se imagina, sem saber bem por quê. Como disse há pouco, só podemos chegar a pedaços de real. (LACAN, 1975-1976/2007, p. 119).

Se a tendência geral do pensamento e da razão, diz Granon-Lafont (1987), é dar corpo aos conceitos, esse exercício esbarra no entrave de que, em psicanálise, o sujeito não é o objeto, surgindo não em um ponto específico, geometricamente determinável, mas nos intervalos do trajeto que realiza. O sujeito não é outra coisa – quer ele tenha ou não consciência de que significante ele é efeito – senão o que desliza numa cadeia de significantes. Este efeito, o sujeito, é o efeito intermediário entre o que caracteriza um significante e outro significante, isto é, ser cada um, ser cada qual, um elemento. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 68).

É preciso, então, buscar uma linguagem que não seja simplesmente tela do real, mas que possa representá-lo como sendo o próprio real reduzido em sua materialidade. Por esse motivo, Lacan passa do matema à topologia. Em sua representação topológica, o real cessa de ser impossível e, por isso, de não se escrever (LACAN, 1975a/2003). Guerra (2007) explica que as discussões referentes a esse campo – cortes, suturas, grampos – são tomadas por Lacan como o real da clínica em si, não como simples explicações ou modelos. Elas inauguram um tratamento do espaço não mais do ponto de vista quantitativo, mas qualitativo, com suas relações de vizinhança, continuidade, conexidade, separação, fronteira, etc.

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Na busca de uma escrita para o real que superasse a insuficiência do imaginário nessa tarefa, Lacan centra-se, a partir dos anos 1970, na figura do nó borromeano. O desejo de conhecer encontra obstáculos. Para encarnar esse obstáculo, inventei o nó. Com o nó, é preciso dar duro. Quero dizer que apenas o nó é o suporte concebível de uma relação entre o que quer que seja e o que quer que seja. Se, por um lado, o nó é abstrato, ele deve, entretanto, ser pensado e concebido como concreto. (LACAN, 1975-1976/2007, p. 37).

O que permitiria a atribuição, ao nó borromeano, da condição de escritura do real é que ele viria de outro lugar que não do significante, garantindo a autonomia da escrita em relação ao simbólico e fazendo-a surgir pura, desvinculada do sentido: “a escrita não é de modo algum do mesmo registro, da mesma cepa se vocês me permitem esta expressão, que o significante” (LACAN, 1972-1973/1995, p. 41). A banda de Moebius é também um paradigma adotado pelo ensino lacaniano em sua condição de representante do irrepresentável. Ela permite, explica GranonLafont (1987), apresentar direito e avesso como continuidade, não como distinção simples entre duas faces. A relação entre ambos só é de oposição do ponto de vista temporal, quando se toma isoladamente um mesmo local da banda. Da perspectiva ampla do espaço, são o mesmo. A concepção moebiana vem enriquecer significativamente, por exemplo, a leitura da ligação existente entre significante e significado. Um significante significa algo em um momento dado, em determinado contexto de discurso, mas não se poderia dar a um significante seu significado no mesmo instante. O significado não cessa de deslizar pelo avesso e, ao final, uma vez efetuada uma volta completa, é outro significante, do lado direito agora, o que vem a definir o primeiro. Um significante nunca remete a não ser a outro significante, representa um sujeito para outro significante. (GRANON-LAFONT, 1987, p. 41, tradução nossa37).

Pela via topológica, a linguagem como construção de sentido e a linguagem como gozo passaram a ser, na clínica que enfatiza a via do real, tomadas por Lacan

37

Un significante significa algo en un momento dado, en determinado contexto de discurso, pero no se podria dar a un significante su significado en el mismo instante. El significado no acaba de deslizarse por el revés y, al final, una vez que se efectuó una vuelta completa, es otro significante, sobre el derecho ahora, el que viene a definir al primero. Un significante nunca remite más que a otro significante, representa a un sujeto, para otro significante.

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também como avessos dialéticos. Evidencia-se a incidência do real sobre a palavra, que sofre a interferência de quem a pronuncia. A questão da fantasia já evidenciava uma perspectiva moebiana. Construída pela linguagem, a fantasia era a tela e a janela para o real, velando-o e, ao mesmo tempo, permitindo algum acesso a ele. Lacan tentava, assim, domesticar o real e promover defesas simbólicas contra ele, que só poderiam ser desconstruídas a partir de determinado ponto da análise. Era essa a matriz a partir da qual o ser de linguagem dava sentido ao mundo (MILLER, 2011a). Atravessando-se esse umbral, perdiam-se as garantias oferecidas pelas referências simbólicas e derrubava-se a suposição de saber como ponte para o Outro, o que permitiria ao sujeito, por outro lado, eleger seus próprios significantes de orientação. Nessa operação, o ser de desejo transformar-se-ia em ser de saber. No avesso da fantasia ordinária, contudo, definia-se já a incidência da fantasia fundamental, que é puro real, garantindo a permanência da experiência primeva com o gozo. Ela denunciava a existência um ser de gozo insubordinado à linguagem: o desejo pode fazer sua travessia em direção ao saber, mas o gozo nunca passa completamente para o lado do sentido. Há uma função imóvel da pulsão, que se contrapõe à metonímia desejante e a qualquer investimento nos objetos. É assegurando a existência dessa dialeticidade entre linguagem e pulsão que a língua surge, na segunda clínica de Lacan, não apenas como instrumento de diálogo, ancorada nos aparelhos da estrutura, mas especialmente como aparelho38 de gozo, portando uma face que se aproxima muito mais do monólogo, uma vez que tem como função primordial gozar, e não veicular sentido. A fala guarda, portanto, uma ligação permanente com o real, mantendo sempre algo que não se adequa ao que ela veicula e limitando o alcance possível da interpretação como endereçamento de S1 a S2.

Lacan (1972-1973/1995) utiliza, em francês, o neologismo l’apparole, criado por ele pela junção entre appareil (livremente traduzido por “aparelhagem, maquinaria”) e la parole (“a palavra”, em francês) para abordar sua nova concepção de fala em seu último ensino. A lógica da maquinaria é calcada em um funcionamento que tem uma função a cumprir, não se resumindo a uma simples ferramenta. No caso de l’apparole, trata-se da maquinaria do gozo – a fala centrada não mais em sua função de veículo de comunicação, mas de veículo de gozo. 38

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O que renova “A instância da letra” é o que Lacan chamou de Lituraterra. No lugar de função da fala, campo da linguagem e instância da letra, temos lalíngua, apalavra e lituraterra, que esboçam certamente um outro Lacan. (MILLER, 2012b, p. 22).

O fenômeno tomado como essencial, motor do ser falante, passa a não ser mais a cadeia da linguagem, mas o gozo; não o querer dizer, mas o querer gozar. Se, por um lado, podemos afirmar que o aparelho da linguagem serve para algo, Lacan (1972-1973/1995, p. 11) vai dizer, a partir do “Seminário 20”, que “[...] o gozo é o que não serve para nada”, vindo para entravar as funções simbólicas do sujeito. Na concepção de um inconsciente estruturado como uma linguagem, a intenção de significação mostrava-se imprescindível, orientando o endereçamento da palavra ao Outro. Subvertendo essa lógica, o último ensino de Lacan introduz a função diacrônica da escrita. No discurso analítico de vocês, o sujeito do inconsciente, vocês supõem que ele sabe ler. E não é outra coisa, essa história do inconsciente, de vocês. Não só vocês supõem que ele sabe ler, como supõem que ele pode aprender a ler. Só que, o que vocês o ensinam a ler, não tem, então, absolutamente, nada a ver, em caso algum, com o que vocês possam escrever a respeito. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 52).

À vertente da palavra como comportando a dimensão inexorável da demanda, contida no binômio fala-escuta, enxerta-se a radicalidade fundamental da escrita do real. No corpo do falasser, há uma inscrição indelével, que dá à palavra o atributo basal de fixador de gozo e garante a relação estreita e ineliminável entre ser falante e real. A psicanálise não é apenas questão de escuta, listening, ela é também questão de leitura, reading. No campo da linguagem, sem dúvida, a psicanálise toma seu ponto de partida da função da palavra, mas ela a refere à escritura. (MILLER, 2011c, s.p.).

As

primeiras

elaborações freudianas



concebiam

a

fundação

do

inconsciente a partir da escrita de um traço primevo, inicial, sucedido em um segundo tempo por outras inscrições realizadas no aparelho psíquico (FREUD, 1896/1996). Lacan (1959-1960/2008) retoma essa ideia ao abordar a questão do traço unário, mas é em sua segunda clínica que ele eleva à última potência a função do significante de escrever o registro indelével que define o ser falante. Lacan vai atribuir à escrita dois corpos distintos, um habitando o outro (VIEIRA, 2005b). À tradicional escrita do sentido, o texto, soma-se a que se apresenta como marca, desenho que não se lê e que não se compreende. Por essa

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via, o significante como produtor de significação afasta-se do que ele chama de letra, vertente do significante que realiza a escrita de gozo: “o fato é que, do mesmo modo que a marca que o Outro simbólico inscreve no corpo, a letra em um escrito é o suporte da mensagem, da identificação” (VIEIRA, 2005b, s.p.). A letra é o que Lacan (1971/2003) entende como sendo o nível irredutível da linguagem, o sulco que a escrita promove no real. Ela é a consequência mais rudimentar do advento significante, guardando permanentemente a condição de literalidade que abriga o gozo de cada um e vivifica o ser (GUERRA, 2007). Tem a função de apagar, com uma rasura, o puro traço que funda o inconsciente, fazendo surgir em lugar dele o que já é uma inscrição, mas não ainda uma inscrição que faz cadeia. Essa característica distingue a letra da linguagem em si, que conta necessariamente com uma lógica binária, de reenvio S1-S2 (STEVENS, 2000). Por ser já um significante mas não estar incluída nesse funcionamento de cadeia, a letra é o que, para Lacan (1971/2003), faz função de litoral, de limite entre dois territórios radicalmente diferentes: está na divisa entre saber, que é elucubração em torno da verdade, e gozo, que permanece alheio a qualquer construção de sentido. O sulco deixado no corpo pela letra abre uma trilha, uma inscrição significante que não é simbólica, onde o gozo vai se alojar. Essa inscrição vem como a rasura que apaga o rastro que, miticamente, teria sido deixado pelo objeto primevo quando ele se vai, tornando-se, portanto, signo de uma ausência. Explicando de maneira didática e, portanto, limitada o que não é uma sucessão linear, mas uma pressuposição lógica, poderíamos dizer que temos aqui dois tempos: o primeiro, em que o objeto perdido deixa um rastro assignificante, e o segundo, em que a letra surge como significante Um que o apaga. Em um terceiro tempo, essa letra também pode ser negada, agora pela barra, o que estabelece, diz Dunker (2003), o recalcamento propriamente dito, passando a haver, então, possibilidade de produção de sentido por seu enganchamento a outros significantes. O caráter de litoral da letra advém justamente do fato de poder ser usada como partícula da linguagem, mas ter função elementar quando escrita no corpo, definindo um discurso que não é semblante. Cabe a ela a propriedade plástica de apenas rabiscar ou, uma vez inserida na cadeia, nomear. De fato, Lima (2012) diferencia três tipos de gozo ligados à língua: o gozo próprio ao exercício da escrita; o gozo como função de puro traço que borra o sujeito, sem compor cadeias; o gozo da produção de sentido.

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A linguagem como elaboração de sentido é o que se introduz, concluímos, já em um momento secundário, como tentativa de apaziguar lalíngua39, nome dado por Lacan (1971-1972/1997) à tormenta de significantes que o ser falante recebe do grupo social em que se insere ao nascer e que se deposita nele como material sonoro, aberto a todos os sentidos. Lalíngua é a língua materna em sua condição anterior à submissão a um ordenamento gramatical e lexográfico (GUERRA, 2007), suscetível a todos os equívocos por não responder às leis da linguagem. Ela pertence à vertente do significante, já implica em uma ultrapassagem do caráter Um da letra, mas não está ainda absorvida na malha do sentido. É de lalíngua que se constitui o inconsciente real abordado pelo último ensino de Lacan, a que se conecta o falasser. .. Letra .. .. Lalíngua ..



Real

.. Linguagem .. FIGURA 10. A gramática do último ensino de Lacan FONTE: GUERRA, 2007, p. 75.

Constata-se, a partir dessa lógica da escrita fora do sentido que acabamos de expor que, inicialmente, a linguagem não existe (LACAN, 1972-1973/1995, p. 189): “se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque a linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função da alíngua”. Ela não é mais tomada como o dado primordial, como fazia crer o funcionamento pela via da estrutura, mas apenas secundária, porque se submete, antes, à inscrição de um entalhe no corpo que não se inclui em uma tessitura. A escrita do real aproxima-se do desenho, do traçado que não reenvia nada a um segundo significante, enquanto a escrita do sentido é o que vai, posteriormente, comportar o texto, o significante e o sintoma (VIEIRA, 2005b). Se eu disse que a linguagem é aquilo como o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque a linguagem, de começo, ela não existe. A

Em francês, lalangue. A versão em português do texto “Televisão” (LACAN, 1974/2003) traz nota de rodapé que explica a opção por se traduzir o termo por “lalíngua” e não “alíngua”, que também é utilizado, uma vez que o prefixo -a tende a adquirir função de negação, distinguindo-se do sentido a ele atribuído por Lacan. 39

100

linguagem é o que se tenta saber concernentemente à função da alíngua. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 189).

O inconsciente freudiano está vinculado à tessitura da linguagem, enquanto o inconsciente que Lacan inaugura apoia-se no sulco real da letra, que, como a água da chuva faz com o solo, usa o corpo do ser falante para fazer buracos e construir relevos (LACAN, 1971/2003). Desatrelada da formatação S1-S2, a letra permite ressonâncias múltiplas do significante no corpo, demonstrando que a entrada na linguagem deixa-nos neuroticamente satisfeitos com a rotina de um sentido, sendo que, fora de suas regras, eles são infinitos, abertos a toda falha, todo lapso – são esses os índices do real. É nesse ponto ininterpretável do significante que o último ensino de Lacan vai situar a vida (GUERRA, 2007), material com o qual o ser falante deve construir, ao final da análise ou nos encontros com o real impostos pelo cotidiano, uma forma de lidar com o seu singular. É a partir de um corpo que porta uma escrita de gozo que advém o falasser, ser que fala e, ao mesmo tempo, tem um corpo: “em outras palavras, o sujeito é dividido pela linguagem como em toda parte, mas um de seus registros pode satisfazer-se com a referência à escrita, e o outro, com a fala” (LACAN, 1971/2003, p. 24). O gozo é resto não eliminável, aspecto que mesmo Freud (1926/1996) já abordava nas entrelinhas de sua obra, constatando a existência do que chamou de “restos sintomáticos”. Abre-se, então, a pergunta que nos serve de guia nesta tese: como fica a questão do sujeito na clínica psicanalítica, uma vez que ele exclui a condição de gozo que anima o ser falante? Com a noção de sinthoma, como veremos a seguir, Lacan pôde reestruturar a clínica, redefinir seus objetivos e fazer-nos repensar a prática da psicanálise. Restanos, a partir daí, ressituar o papel do sujeito diante desse funcionamento que, agora, parte do real como dado primário e inevitável.

5.2. Sinthoma, ou o que a linguagem não cura Pela via do que é rebelde ao inconsciente em sua modalidade simbólica, Lacan chega à construção do que nomeia sinthoma. É esse o nome do que o falasser carrega consigo e que o faz advir em suplemento ao sujeito, devolvendo a ele o gozo que lhe teria sido negado por sua entrada na linguagem. O sujeito passa

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a portar o sinthoma como um novo nome que o define, nome próprio que vem se juntar ao significante como atribuição de sentido e designar o ser falante sem mortificá-lo pela palavra, incluindo em sua constituição também o objeto a. Lacan destituirá o sujeito chamando-o de falasser, retirando-lhe até mesmo seu nome de sujeito. E, além de chamá-lo de falasser, no final da última parte de seu ensino trará, como nome do sujeito, o sinthoma. Esse é o verdadeiro nome do sujeito ao longo de toda a parte final do último ensino de Lacan. Aliás, quando ele escreve sobre Joyce, diz “Joyce o sinthoma”, ou seja, ele o toma junto a seu nome próprio para fazer dele um sobrenome. (MILLER, 2011b, p. 137).

Ramírez (2009) explica que o nome próprio é o que surge onde fracassa a função classificatória, fazendo emergir a dimensão do significante sem efeito de sentido, que permite nomear o ser falante em sua singularidade. Distinguindo-se do uso que o sujeito faz dos significantes do Outro como falsos nomes com que se localiza no mundo, o nome próprio é um S1 atrelado ao real. Com ele, o falasser vai identificar-se, ao final da análise, por uma outra via que não a palavra: justamente por sua assunção como irremediável, buscando uma maneira de se virar com esse núcleo pulsional que o define. Sinthome é a forma antiga de se escrever o que, mais tarde, passou a ser escrito symptôme na língua francesa. Lacan (1975-1976/2007) recorre a essa etimologia e explicita sua contradição: enquanto o termo grego ptôma porta o sentido de queda, sua grafia mais antiga recuperaria justamente aquilo que não cai, que não cede, de que não se cura. Sua condição de núcleo duro, que resiste à interpretação, ne varietur40, distingue radicalmente o sinthoma das formações do inconsciente que são produtos da primeira clínica lacaniana. Ao sinthoma, não cabe tradução alguma, somente a possibilidade de que sejam feitas reconfigurações em seu funcionamento, de um re-engineering41 (MILLER, 2011b). Lacan elabora o tema do sinthoma em seu texto sobre James Joyce, escritor definido por ele como um “desabonado do inconsciente” (LACAN, 1975b/2003, p. 564), uma vez que não haveria, em sua história, o registro de nenhuma experiência ou de nenhum efeito que nos permitisse supor o inconsciente em sua perspectiva simbólica. No lugar de um significante que viria como ponto de estofo da cadeia, Expressão em latim que significa, em tradução livre, “para que não seja mudado”, usada comumente em textos e documentos jurídicos para indicar uma cópia fiel. 40

41

Termo inglês que pode ser livremente traduzido como redesenho, reconfiguração.

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Joyce teria inventado, de maneira absolutamente original, outro conector: um traço que o nomeia, fechado sobre si mesmo, sem relação com um segundo termo e que, por isso, não desliza metonimicamente como na fórmula S1-S2. O sinthoma é isso que não cria sentido, mantendo-se êxtimo: “o que me proponho aqui é considerar o caso de Joyce como respondendo a um modo de suprir um desenodamento do nó” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 85). Essa formatação é entendida por Miller (2005b) como o momento em que a psicanálise lacaniana chega a seu antiédipo. Trata-se da constatação a respeito da centralidade do real como o que limita a solução universal do Complexo de Édipo da versão de inconsciente estruturado como uma linguagem. A fala não é o que funda o ser, tarefa que passa a ser do gozo. Ao contrário, ela é o que habita de maneira secundária e oportunista o real do falasser: “a questão é antes saber por que um homem dito normal não percebe que a fala é um parasita, que a fala é uma excrecência, que a fala é uma forma de câncer pela qual o humano é afligido”. (LACAN, 1975-1976/2007, p. 92). Voltamos às perguntas: como se sustenta na clínica, a partir daí, a noção de um inconsciente estruturado como uma linguagem, que faz do falo seu emblema? O que resta desse inconsciente que é resultado da lógica binária do ter/não ter a partir da orientação lacaniana pelo sinthoma? O que permanece, então, do sujeito na clínica do falasser? A inclusão do gozo na constituição do sujeito vai sendo feita gradativamente no ensino de Lacan. Se, inicialmente, o objeto a surge como artifício teórico para localizá-lo em um objeto que é também produto significante, no “Seminário 20” (1972-1973), Lacan ruma em direção ao que goza mesmo onde não há a incidência do significante como atribuição de sentido. Em lugar de um gozo aprisionado, inaugura-se o espaço amorfo da jouissance (J) (LACAN, 1972-1973/1995), definindo um gozo não-localizado, existente por toda parte42, inadaptável às formas oferecidas pelos objetos. Gozo e mais-de-gozar surgem, assim, unificados, fazendo desaparecer a ideia de um como negativo do outro. O sinthoma é, em si, gozo, e o sentido passa a ser já uma tentativa de cerceá-lo, de dar-lhe borda: “fazer o gozo

42

Em francês, partout (LACAN, 1972-1973/1995).

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passar para o inconsciente, isto é, para a contabilidade, é, de fato, um deslocamento danado” (LACAN, 1970/2003, p. 418). Inconsciente freudiano43 e inconsciente real são opostos? Não. O primeiro, diz Vieira (2005b), é um artifício para fazer o real ser apreendido pela malha do sentido, enquanto o segundo é a apresentação explícita do real como o que permanece fora do discurso, podendo ou não, secundariamente, produzir sentido. Quando o esp de um laps – ou seja, visto que só escrevo em francês, o espaço de um lapso – já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só então temos certeza de estar no inconsciente. (LACAN, 1977/2003, p. 567).

O real passa a se fazer presente como uma falha, um rateio ineliminável, que Lacan (1976-1977/inédito) aborda fazendo uso da homofonia entre Umbewuste (palavra alemã que Freud usa para nomear o inconsciente), e l’une bévue (em francês, equivalente a algo como “um lapso”, “uma mancada”, “um equívoco”). Qualquer construção que se faça a respeito dele, diz Guerra (2007), é parte da tentativa tola de apreendê-lo, consequência do que Lacan (1976-1977/inédito) define como sendo uma debilidade do mental e de suas leis, que buscam abarcar a totalidade do que existe pela vertente da atribuição de sentido. A essa busca pelo saber como sentido, Lacan (1974-14975/inédito) opõe a busca pela construção de um saber-fazer (savoir-y-faire44) com o sinthoma como o objetivo de sua segunda concepção de clínica. Não a tentativa de eliminar o rateio imposto pelo real, mas de encontrar um manejo singular em relação a ele, um saber conveniente (MILLER, 2002c). No “Seminário 23”, Lacan (1975-1976/2007)

Apesar de usarmos aqui a expressão “inconsciente freudiano” como sinônimo de “inconsciente transferencial”, vale a ressalva de que Freud já indicava, em sua obra, um limite ao analisável, que girava em torno da repetição pulsional. Logo, trata-se de uma nomeação que busca demarcar a ênfase de Freud na vertente do sentido, mas que deve ter o cuidado de não limitar seu texto a uma perspectiva do inconsciente apenas nessa ótica. 43

Em seu “Seminário 22”, Lacan (1974-1975/inédito) distingue savoir-faire e savoir-y-faire. Ambas as expressões abrangem uma noção utilitária, instrumental, do sintoma. A língua francesa traz a expressão “faire avec”, que quer dizer “lidar com” algo ou, em tradução mais livre, “virar-se com” algo. Lacan (1974-1975/inédito), contudo, explica que, com “y faire”, demarca-se o fato de que nunca se chega verdadeiramente à coisa, sendo inevitável permanecer no nível dos semblantes. Tarrab (2013, s. p.) enfatiza essa questão, dizendo que o savoir-y-faire é “[...] uma maneira de estender pontes entre o sentido e o real, de modo a obter, por meio do semblante, pelo menos alguns pedaços desse real”. 44

104

acrescenta o sinthoma aos três elos do nó borromeano45, como um quarto elemento responsável por manter unidos os demais (DIAS, 2005). Não há como universalizar essa amarração. Para cada ser falante, a construção da solução sinthomática será uma tarefa solitária e absolutamente singular.

FIGURA 11. RSI no nó borromeano FONTE: LACAN, 1975-1976/2007

Mais uma vez, marcamos a diferença radical entre essa versão de um ponto de estofo construído no caso a caso e a do significante paterno como solução universal nessa tarefa. Em lugar do significante que vem do Outro, passa a ser do sinthoma o papel de nomeação que faz amarra. Toda resposta por essa via é sem garantias justamente por não vir do Outro, sendo apenas do Um (MILLER, 2003a). Não há verdade final do inconsciente, não há Outro do Outro. O que restam são artifícios. Miller (2005b) recorre a um desenho do cartunista americano Saul Steinberg para explicar o efeito do inconsciente sobre o sintoma em cada uma de suas versões, transferencial e real. Na primeira, pela via do sujeito, haveria um sintoma em estado natural anterior à sua entrada na aparelhagem psicanalítica, que poderia ser organizado por sua passagem por esse aparelho da linguagem. No inconsciente real, por sua vez, qualquer expectativa de organização ancorada na relação de 45

Lacan compreende inicialmente a figura do nó borromeano como formada por três elos, cada um deles representando as instâncias real, simbólica, imaginária. Seriam, os três, unidos por um tipo de enlace em que o desenlace de um implica no dos demais.

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tradução significante/significado mostrar-se-ia absolutamente limitada, uma vez que o simbólico pode apenas girar em torno do furo, mas não eliminá-lo ou retirá-lo de sua posição êxtima à linguagem.

FIGURA 12. Desenho de Steinberg como representação do funcionamento do inconsciente. FONTE: MILLER, 2005b.

O inconsciente freudiano opera pelo paradigma do gozo transparente, que busca apreender o real pela malha significante, nomeado por Lacan com o neologismo jouis-sens, homofonia com jouissance, algo como “sentido gozado” ou “gozo sentido” (LACAN, 1974/2003). A via do gozo que é própria ao sinthoma, ao contrário, é opaca, por estar fora do discurso. Nessa passagem de uma concepção de gozo a outra, Miller (2011b) entende que há o que ele vai chamar de um “aspecto maníaco-depressivo” do ensino de Lacan: a passagem da onipotência e do resplendor do simbólico à opacidade do gozo do sinthoma. O enodamento original entre gozo e sentido é o que permite a assunção, pelo ser falante, de um modo de gozo. Ele é produto da fixação, em um primeiro acontecimento contingencial, de um valor traumático, tornando essa contingência uma fórmula determinante de todo o funcionamento do inconsciente. Trata-se de uma articulação S1-S2 aleatória, que só tem seu valor de axioma dado pelo próprio ser falante – nas palavras de Vieira (2006, s.p.), em vez de “o pai é a origem”, passamos a ter “o que for, para um sujeito, a origem será o pai”. Essa operação enfatiza a espontaneidade do jogo de significantes: “sim à contingência que me fez o que sou. O que sou não é senão a maneira como isso se goza. Este é o cogito lacaniano: sou, logo goza-se” (MILLER, 2011b, p. 190). O conceito de falasser surge na esteira do equívoco do real e das construções singulares para manejá-lo, dando espaço à concepção de um ser

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falante

que

não

pode

se

localizar

todo

no

simbólico

porque

precisa,

necessariamente, lidar com o tropeço do real que incide sobre seu corpo.

5.3. Falasser: en corps Descartes atrelava o indivíduo a duas substâncias, pensamento e extensão, incluindo a matéria nessa última categoria. Ao longo de seu ensino, Lacan vai acrescentar a essa lista das substâncias cartesianas a substância gozante, que se torna sua construção mais original. O corpo cartesiano, afinal, não incluía o gozo, como também não o incluía o conceito original de sujeito do próprio Lacan, estabelecido como atributo da cadeia significante. É esta a contribuição mais significativa da segunda clínica de Lacan ao sujeito: ela centra a questão do gozo no corpo, tornando-o seu suporte fundamental e retirando do Outro esse privilégio. O título em português do “Seminário 20” (19721973), “Mais, ainda”, captura apenas parcialmente a essência de seu título original em francês, “Encore”, que faz alusão ao gozo que insiste, mas também é homofonia com “en corps” ou “un corps”46. Por ser fruto da aproximação entre a articulação significante que definia o sujeito e o real do gozo que se encontrava dele excluído, o falasser apresenta-se, já de saída, deslocado de seu corpo, não sendo equivalente a ele. Dizemos que ele tem um corpo, mas não o é. A relação é de pertença, propriedade, na ilusão de que possuí-lo daria ao falasser certa consistência material: “o falasser adora o seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 64). A impossibilidade de o ser falante identificar-se inteiramente a seu corpo e também de apreendê-lo em sua totalidade é fruto da precariedade da relação que se estabelece entre a pulsão que o recorta e a imagem fundada pelo estádio do espelho. O último ensino de Lacan dá ao próprio corpo do falasser o lugar de suporte desse excedente que insiste em não ser traduzido nem em imagem, nem Livremente traduzidos como “no corpo” ou “um corpo” – em francês, expressões com sonoridade semelhante a “encore”. 46

107

em significante, e o estranhamento em relação ao corpo é causado justamente por essa incidência pulsional. O sujeito puro da fala dá lugar a um corpo falante, que extrai do gozo a razão última de seus ditos. A existência de um ser falante só se dá pela associação entre falar e ter um corpo, associação a que Lacan nomeia falasser (parlêtre, em francês). Se o sujeito do inconsciente apoia-se na linguagem, o falasser é o termo que o suplementa, ao fazer incidir sobre ele um gozo disjunto do Outro e resistente ao sentido. A orientação de Lacan em direção ao real faz com que o sujeito vá perdendo, paulatinamente, sua consistência simbólica. Pela via da castração que orienta o primeiro ensino lacaniano, ele apoiava-se na materialidade do significante, que, por outro lado, o mortificava. Em um segundo momento do ensino de Lacan, o sujeito aparece deslocado para os intervalos entre os significantes, destituído de materialidade, mas ganha o objeto a como um a mais de gozo que o vivifica. Finalmente, pela vertente do falasser, o sujeito é reduzido à condição de mito, ficção construída pela linguagem, tornando-se apenas uma das partes que compõem o falasser (MAIA, 2011). Não se anula a vertente do sujeito do inconsciente, mas, diz Miller (2011b, p. 138), em relação ao sinthoma e ao corpo, “[...] o sujeito esmera-se em sua periferia”, nunca chegando a detê-los. Embora Miller (2011b) localize já a partir do “Seminário 14”47 os primórdios disso que ele chama de reviramento em Lacan, é especificamente a partir do “Seminário 20” (1972-1973) que se torna insustentável a hipótese de um sujeito esvaziado de gozo. Nessa perspectiva, que é a do sintoma, o corpo é o que faz objeção ao sujeito. É o sujeito do significante, o S barrado representado por um significante para outro significante, é ele que se reduz a ser apenas um mito na perspectiva do sinthoma, porque o sujeito do significante, o S barrado, esvaziado de toda particularidade, é uma função do universal e nos regozijamos, se assim posso dizer, em tê-lo para nós. (MILLER, 2005b, s/p).

O caso clínico trazido por esta tese explicita os embaraços de Lucas na construção de sua relação com um corpo que se agita à sua revelia, mostrando que o falasser não coincide inteiramente com o corpo que tem e que a linguagem não é

Seminário de 1966-1967, não publicado em português, cujo título em francês é “La logique du fantasme”, ou “A lógica da fantasia”, em tradução livre. 47

108

suficiente

para

apaziguá-lo.

Lucas

não

sabe

o

que

fazer

com

esses

atravessamentos do corpo por um gozo que faz entrada como excesso, desregulação. É com o objeto droga que ele busca, então, barrar esse excedente. Se o gozo é vivido com estranhamento, como Lucas demonstra, é porque, em lugar do Outro do sentido, o que o falasser testemunha como Outro é o corpo. Nos furos do corpo, alojam-se os objetos a que animam sua superfície. A topologia que se estabelece aí é radicalmente distinta da concepção de falta que determina o sujeito como falta-a-ser. Enquanto a falta é do campo da estrutura e diz respeito à ausência de um elemento que pode ser tamponada por outros, a falha/furo está no campo da lógica (D’AGORD; TRISKA, 2009) e implica o desaparecimento do lugar em si, da própria ordem combinatória (MAIA, 2009). Ao real não falta nada, sendo impossível ao furo, portanto, ser preenchido por um elemento, restando apenas a possibilidade de suplência, de invenção. Vieira (1999a) define o furo como o que circunda uma reta infinita, diferentemente da falta, que se aproxima muito mais da configuração de um saco, que, por estar em continuidade com a superfície, tem um fundo, um limite.

Furo

Saco

FIGURA 13. O furo, em sua diferenciação topológica em relação à falta. FONTE: VIEIRA, 1999a.

Abertos ao infinito, os furos do corpo são, para a psicanálise, pontos de atravessamento entre vida e morte, lugares de gozo. O a seria, portanto, partícula indissociável do corpo do ser falante (LACAN, 1968-1969/2008). Para o discurso da ciência e sua concepção de anatomia, contudo, esses vãos são apenas buracos: têm significação, resultando em uma lógica que não deixa restos. O corpo paradigmático do discurso científico é o corpo morto, deserto de gozo, com partes independentes mantidas precariamente coesas pelos significantes-mestres da cultura, manipulado como pura soma de órgãos ou pedaços menores (VIEIRA, 1999a). Nele, não há a função vivificante e aglutinadora do objeto a alojado em reentrâncias abertas ao infinito, porque não se concebe tal abertura.

109

A consistência das marcas significantes no corpo de gozo provocam um acontecimento de corpo, algo que incide nele por causa da língua (MILLER, 2005b). O significante tem, portanto, efeitos corporais, que predominam em relação a seus efeitos de sentido. Lalíngua veicula o traumático da não-relação sexual, deixando marcas permanentes. Camargo (2007) explica que o falasser é prévio à cadeia significante, na medida em que há, de antemão, um corpo material, escrito, sulcado, cifrado. Contudo, é apenas com a incorporação da estrutura que o real é delimitado e a falta-a-ser pode vir a ser demarcada, fazendo com que o falasser só possa ser dito a posteriori, com o surgimento da linguagem. Maia (2009) esquematiza graficamente as duas clínicas de Lacan a partir das concepções de falta (própria da lógica do sujeito) e de furo (que embasa, na segunda clínica, o falasser). Indo além da noção de estrutura como sendo o artifício simbólico que ancora o sujeito, a última clínica de Lacan faz surgir um real sem lei, marcado pela contingência. Pela bricolagem de elementos aleatórios e não encadeados, “[...] nós fazemos os acasos que nos impelem a um destino” (MILLER, 2009, p. 104). A ideia de destino, portanto, é sempre semblante, história tecida da ligação entre os significantes que atravessam nossa existência.

FIGURA 14. Concepções do real ao longo da teoria de Lacan FONTE: MAIA, 2009.

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O último ensino de Lacan é a admissão de que o sujeito não vem apenas no lugar de um produto dos significantes de sua história, exigindo, em suplemento, o falasser como o que assume a insistência de um furo. Se o sujeito barrado é produto da estrutura, o falasser, diz Miller (2011b), engloba-o, mas o ultrapassa, sendo definido pela soma: sujeito + articulação S1-S2 + produto dessa articulação. Ele incorpora o simbólico do sujeito, o que dá lugar à falta-a-ser e permite que, a posteriori, pela linguagem, compreendamos o gozo como anterior a ela. Só há originalidade do falasser, portanto, em retroação, quando ele pode ser dito pela via do sujeito. O real, por outro lado, limita a função do ser do sujeito, que se liga a uma construção fictícia, pela via do sentido. O ser não passa de um equívoco, de uma tela que se sobrepõe a existência real, que está ligada ao fato de ter um corpo em que o gozo incide. O que há por definição é o gozo, é essa a ontologia48 da psicanálise lacaniana a partir de sua segunda clínica (MILLER, 2011a). O ser está sempre do lado do simbólico. Nós nos atribuímos o ser. Há também o ser do lado do imaginário, quando o balizamos sobre a unidade do corpo, e aqui falamos do corpo falante e de seu mistério. Mas o ser se eclipsa diante do real. É disso que se trata no último ensino de Lacan, que decide então operar, de saída, com as três dimensões, sem reservar ao real esse para além da travessia. Ele o reinclui, o situa e o articula, de primeira, em sua arquitetura nodal. (MILLER, 2002b, p. 21).

Na lógica do simbólico como ficção, surge o termo “semblante”. Lacan (1971/2009) refere-se a ele para definir tudo o que é discurso e que se constrói sobre a base do significante. Os semblantes são o esforço do simbólico para apreender o real, constituindo-se, portanto, em um modo de tratamento dessa instância, tentativa de fazer crer que há algo ali onde não há. Em lugar da relação sexual que não existe, há o semblante. É do lado dele que está o ser, o que demonstra a condensação lacaniana parêtre, neologismo que une, em francês, os termos “parecer” e “ser” (LACAN, 1972-1973/1995). O ser confunde-se com o parecer. Da mesma maneira, o neologismo parlêtre, termo francês para o falasser, coloca ênfase na questão do ser de semblante.

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Campo da filosofia que estuda a questão do ser, da existência, do que tem natureza comum e inerente a todos e a cada um dos seres.

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Na segunda clínica de Lacan, situada após o “Seminário 20” (1972-1973), o que existe é o gozo do Um que se imprime no corpo, o discurso reduzido a um núcleo anterior à palavra como construção de sentido. A escrita da existência não se confunde com o ser e não resume à fala, embasando-se na letra, no significante em sua relação com o real. É pela via da diferença radical entre ser e existência que Laurent (2000) diferencia em Lacan (1974/2003) as paixões do ser e as paixões da alma, tomadas de empréstimo de referências filosóficas. As paixões do ser – amor, ódio, indiferença – têm relação com o movimento de buscar no Outro o que apaziguaria a falta-a-ser; já as paixões da alma – tristeza, mania – marcam uma solidão e um questionamento da própria condição do ser. A experiência analítica não se resume ao sujeito, não se limita ao nível das paixões do ser. O significante, diz Gorostiza (2006), não veicula apenas efeitos de significado, mas principalmente efeitos de gozo. Há antes o corpo que se goza, há o puro acontecimento de corpo, efeito de lalíngua (KAUFMANNER, 2006). Há o acontecimento traumático que é a incidência no corpo de um S1. O Outro só surge na segunda clínica lacaniana como uma hipótese do que acontece, diz Miller (2011a), quando esse Um como real é encadeado a um outro, quando o S 1 primevo lança-se em direção a S2 e dá origem a uma cadeia. Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? – a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza. Isso só se goza por corporizá-lo de maneira significante. (LACAN, 19721973/1995, p. 35).

Portanto, é apenas em um segundo tempo em relação ao advento da letra sobre o corpo que é possível que se estabeleça o que Miller (2011a, s.p.) vai chamar de “uma semântica dos sintomas”. Lacan desenlaça-se, assim, de Freud e do inconsciente freudiano, que é a sustentação do conceito de sujeito. Por essa razão, não podemos nos contentar em falar de sujeito, em dizer que a experiência analítica está no nível do sujeito da fala. Somos obrigados a ali colocar o corpo. Por isso Lacan se refere ao falasser, ou seja, um ser que só tem seu ser pelo fato da fala, um ser evidentemente frágil, contestável do qual nada diz a priori que ele tenha uma resposta do real. E observem que o corpo de que se trata é introduzido por Lacan não como um corpo que goza – este é para a pornô -, mas do corpo que se goza. Essa é a tradução lacaniana do que Freud chama de autoerotismo. E o dito de Lacan: a relação sexual não existe apenas repercute o primado do autoerotismo. O sinthoma é definido como um acontecimento de corpo que

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evidentemente dá lugar ao sentido. A partir desse acontecimento uma semântica dos sintomas se desenvolve, mas, na raiz dessa semântica há um puro acontecimento de corpo. (MILLER, 2011a, s.p.).

Onde está o sujeito na clínica do falasser, que ruma em direção ao sinthoma? Onde está a clínica, no momento em que toda construção pela via do simbólico parece cair sob o manto da desconfiança que a condição de semblante estabelece? Se, por trás do semblante, Lacan alerta-nos que não há nada, o que pode se sustentar tanto do sujeito quanto da clínica como discurso – ambos colocados no lugar de semblantes – a partir da orientação de Lacan pelo real?

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6. UMA NOVA CLÍNICA: ONDE ESTÁ O SUJEITO? Além disso, a questão não é a descoberta do inconsciente, que tem no simbólico sua matéria pré-formada, mas a criação do dispositivo pelo qual o real toca no real, ou seja, daquilo que articulei como o discurso analítico. (LACAN, 1975c/2003, p. 545).

Pensar e compreender as variações na configuração da clínica lacaniana só é um exercício possível se tomamos a própria ideia de clínica como resultado dos movimentos que marcam as diferentes realidades sociais que ela perpassa. Ela não deve ser assumida como definida a partir de dados objetivos, mas como resposta dinâmica aos modos de vida predominantes em cada tempo. Sua existência liga-se à construção de um discurso, o que faz com que ela tenha relação com o laço social e que sua configuração dependa dos significantes-mestres de sua época, sendo afetada constantemente por essa tessitura significante. Foi no simbólico, portanto, que o próprio conceito de clínica se construiu. Suas bases anatomopatológicas estavam centradas na leitura de sinais produzidos pelo corpo, que exigiam o olhar do clínico para interpretá-los. No início do século XX, Freud radicalizou a ligação entre clínica e palavra ao incluir, no diagnóstico, a fala do sujeito que sofre – as histéricas, afinal, teriam o que dizer sobre os fenômenos que as acometiam. Estabelece-se a existência de um sofrimento endereçado, fazendo com que a transferência e a suposição de saber sejam algumas de suas molasmestras. Atualmente, contudo, esse campo enfrenta um desafio: a tentativa do cientificismo, embalado pela demanda de eficácia promovida pelo mercado, de fazer existir uma “causalidade programada” (LAURENT, 2004b). Sob essa lógica de funcionamento, nomeia-se trauma qualquer acontecimento que escape ao discurso da ciência. O empuxo à avaliação e à estatística de nosso tempo explicita essa busca por recobrir todo o real, dispensando o julgamento subjetivo. Um saber prévio orientaria o tratamento de forma utilitária, prática, excluindo dele tanto a palavra do sujeito quanto a do Outro que o observa, o escuta e acolhe a demanda. Nesse contexto, o corpo perde sua vertente passível de tradução, e o que o acomete é tomado não mais como sinal, mas como transtorno, devendo ser eliminado por meio de medicamentos e outras vias de tratamento produzidas pelo

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mercado. Se, na clínica psicanalítica estabelecida por Freud, atribui-se ao sintoma uma lei construída de forma particular, sem ancoragem em nenhuma lei prévia, nossa realidade social supõe a existência de uma lei que funcionaria a priori no real (MILLER, 2004) e que deve ser estritamente aplicada, não sendo passível de questionamentos. Pela via do real ordenado da ciência, portanto, vemos o corpo passar à condição de mortificado pelos significantes em posição de mestria. A angústia desaparece, bem como a implicação do sujeito em seu adoecimento. Há a identificação automática do ser falante a um significante que nomearia seu transtorno e sua consequente adesão a um tratamento que permitiria a regulação de todo excedente de gozo, garantindo o retorno à homeostase. A necessidade de ressituar a clínica diante dessa descrença no Outro do sentido faz coro, no campo da psicanálise, à orientação da prática que aflora no último ensino de Lacan, momento em que a cadeia significante passa a ser entendida como um recurso limitado para abarcar o sujeito49. Lacan privilegiou a vertente simbólica do sintoma no início de seu ensino, quando se ocupou de seu “retorno a Freud”, nomeação dada por ele ao esforço de revalorização do inconsciente em sua versão interpretável. Foi em um segundo momento, como vimos, que a orientação pelo real abriu uma nova dimensão em seu ensino, dando lugar primordial ao que rateia, ao que falha e, por isso, faz fracassar qualquer tentativa de generalização. O texto lacaniano, então, cede espaço “[...] à falha do tecido da realidade, ao bug do programa, ao furo do sistema, ao estranho, ao resto, à mancha” (VIEIRA, 2004c, p. 22). O falasser é a personagem principal dessa abordagem que atualizou a clínica, permitindo que a psicanálise continuasse dialogando com uma realidade que não responde mais como antes à lógica edípica. Há psicanálise além do édipo, como diz Forbes (2005). Miller (2004) também aposta em uma atualização da clínica, posicionando-se avesso tanto ao que chama de psicanálise fundamentalista ou reacionária, que ansiaria pelo retorno do discurso do mestre, quanto ao que nomeia psicanálise passadista, que supõe o inconsciente

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Freud já havia se deparado com quadros clínicos em que a vertente pulsional da repetição parecia imperar sobre os movimentos significantes de metáfora e metonímia. Algo do sintoma girava em círculos nesses casos, e essa manifestação em ato da pulsão explicitava a existência de um ininterpretável, que o autor abrange teoricamente, mais tarde, com seu conceito de pulsão de morte (FREUD, 1920/1996).

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como um saber eterno, que funciona independentemente de qualquer outra variável. Ao contrário de anunciar o retrocesso ou o caos diante de uma realidade social que exalta o gozo e deflaciona o simbólico, percebemos a necessidade de repensar a teoria em consonância com os efeitos dessa realidade no ser falante. Quem pode, em nossa época, sonhar sequer por um instante em deter o movimento de articulação do discurso da ciência em nome do que quer que possa acontecer? As coisas, meu Deus, já estão aí. Elas mostraram onde vamos, de estrutura molecular a fissão atômica. Quem pode pensar sequer por um instante que se poderia deter aquilo que, do jogo de signos, de invasão de conteúdos a mudança de lugares combinatórios, provoca a tentativa teórica de pôr-se à prova do real da maneira que, revelando o impossível, faz dele brotar uma nova potência? (LACAN, 1969-1970/1992, p. 97-98).

Que a psicanálise não se aferre ao passado não significa, contudo, que ela possa se alinhar inteiramente ao novo. É preciso cautela para se evitar também a posição que Miller (2004) chama de progressista, hoje assumida por uma certa “psicanálise” que faz aliança com o discurso dominante do cientificismo, produzindo, como consequência, uma leitura neurocognitivista da metapsicologia freudiana. Em tempos de um imperativo de mercado que determina a lógica da eficácia, do “isso anda” – e que é preciso funcionar, produzir resultados –, pode haver um bom lugar, como contraponto, para a orientação psicanalítica pela via do “isso rateia” (MILLER, 2004), desde que ela saiba oferecer uma leitura crítica do discurso dominante, sem se deixar encantar por ele, mas sem se manter alheia a seus efeitos. As consequências dos modos de gozo orientados pelo real convocam-nos a um reposicionamento. Negá-los é retirar o discurso analítico de circulação e impedir sua incidência como produtor de implicações sobre o falasser. Por outro lado, diluirse neles é dispensar a psicanálise de sua responsabilidade ética de manter-se êxtima, porque ciente de que os significantes-mestres, sejam eles quais forem, são sempre insuficientes para eliminar os embaraços do sujeito. O laço social vem como substituto possível à relação sexual que não existe: “não há relação sexual, bom, que comam laço social” (MILLER, 2008a, tradução nossa50). Portanto, o sinthoma como arranjo singular não está nunca inteiramente desconectado do sintoma em sua vertente social, diz Blanco (2007). A questão para

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No tienen relação sexual, y bien, que coman lazo social!

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a psicanálise não é a de permitir ou não o gozo, porque este é inevitável, como ela bem soube desvelar, mas a de buscar o ponto em que ele se articula ao Outro e, por outro lado, o que se mantém resistente a qualquer articulação. Todos os sintomas da clínica psicanalítica, lembra-nos Cunha e Carneiro (2009), giram em torno do fracasso parcial do sujeito em empreender seu projeto de encontrar a felicidade utilizando-se das formas discursivas decorrentes do social. Freud deslocou-se entre dois polos durante seu ensino, crendo inicialmente na harmonia entre os registros do sujeito e do social (FREUD, 1908/1996) para, em seguida, colocar essa harmonia em xeque (FREUD, 1930/1996), elaborando como estrutural e inevitável o conflito entre pulsão e civilização. Esse mesmo percurso, da crença na harmonia ao mal-estar irremediável, foi feito pelo ensino de Lacan. O desdobramento de seu conceito de gozo mostra que o sujeito, quanto mais avança sobre seu desejo na tentativa de obter satisfação, mais se vê confrontado com a fragmentação dos objetos, com o fato de que nenhum deles poderia efetivamente satisfazê-lo, uma vez que há o princípio do prazer, há a linguagem como obstáculo. A última clínica de Lacan é um avanço radical sobre essa concepção. Qualquer possibilidade de diálogo entre sujeito e Outro passa a estar associada unicamente ao que o discurso constitui como laço entre os que falam, às convenções e aos acordos sobre o valor das palavras a que se submetem os que estão envolvidos na prática comum da linguagem. Não há discurso universal, mas, ao contrário, a necessidade de aceitação de um incomunicável, de uma impossibilidade. Porque o real é ineliminável e a linguagem é uma convenção, prender-se fielmente aos significantes-mestres de qualquer tempo é sempre uma saída equivocada. Com Lacan, descobrimos que os significantes são sempre tolos, exigindo desconfiança. Eles configuram-se como um artifício falho para dizer do real, impedindo quem se fia neles de acessar o que resta fora da cadeia. Vale a pena mencionar a compreensão de Agamben (2009) acerca do que seria a contemporaneidade: uma relação singular de inclusão e distância com o próprio tempo – uma relação êxtima. Aderir perfeitamente à época em que se vive impede o lançamento, sobre ela, de qualquer olhar crítico que permita interpelar seu “escuro”: Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. Todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de

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escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” (AGAMBEN, 2009, p. 62-63).

É a indispensabilidade de se manter um distanciamento prudente do sentido dado pelos significantes que explica a necessidade de os analistas se formarem em uma espécie de “língua especial” (MILLER, 2011b, p. 15): participantes da realidade social, mas não inteiramente inseridos em sua lógica. Ao discurso analítico, sempre coube um lugar crítico, de questionamento dos demais, e é isso que permite que ele continue oferecendo algo novo a cada momento histórico que presencia. Ele deve ocupar-se de propor, diz Laurent (2000), uma saída distinta da saída mecânica pela identificação maciça, conformista. Foi essa a preocupação que colocou a psicanálise, muitas vezes, em condição de antecipar os fenômenos que atingem o ser falante. [...] ir mais rápido do que a história. É muito mais difícil fazer isso do que ir contra a história. Ir mais rápido, ou seja, antecipar e saber, neste momento, se dirigir àqueles que foram tomados pela história, para mostrar uma outra saída, uma outra saída que não seja a saída comum, que não seja a saída mecânica. Que não seja a saída da identificação de um com todos, que é a saída conformista. (LAURENT, 2000, p. 23).

Em seu avanço em direção ao novo, portanto, a psicanálise precisa preservar o cuidado de não sacrificar sua razão de ser em prol da sobrevivência a partir de um alinhamento a seu tempo. É desse efeito deletério que, a nosso ver, sofrem as clínicas monossintomáticas, que funcionam promovendo agrupamentos por modos de gozo semelhantes em sua função de envoltório formal do ser. Temos, assim, a clínica do alcoolismo, a clínica da depressão, a clínica da toxicomania, sem falar nas nomeações cada vez mais inusitadas, como a “clínica das mulheres que amam demais” ou a “clínica dos comedores compulsivos”. Vieira (2010) afirma que essa lógica obedece ao regime de redução de danos a que assistimos hoje: em vez de buscar eliminar o sintoma, decide-se “assumi-lo”, satisfazendo-se da identidade que ele oferece na falta de outra maneira de se apresentar ao Outro. O gozo excedente, que anteriormente causava embaraço e devia ficar escondido, tornou-se referência, nomeação: “tudo é aceito desde que não excessivamente, desde que aceite ser incluído na democracia universal do gozo” (VIEIRA, 2010, s.p.). A saída pela identificação a um significante-mestre sutura uma das sustentações éticas da psicanálise, que é a responsabilização do sujeito por sua condição de divisão. O sujeito do inconsciente é esse que responde pela cisão

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trazida pela incidência da linguagem, não se deixando absorver por qualquer significante que busque uma generalização, que pretenda nomear universalmente e dispense construções particulares. Pela orientação a partir da ética do sujeito, portanto, a maneira de a psicanálise buscar um lugar para a responsabilização no tecido social passa por dar espaço à divisão promovida pelo simbólico e pelo deslizamento do sentido. No caso clínico apresentado ao longo desta tese, podemos afirmar que, quando Lucas chega à análise, ele mostrava de forma evidente que a palavra pode encontrar-se inoperante, sobressaindo-se a lógica do automatismo do ato, da repetição que não se liga à cadeia. Lucas não buscava qualquer elaboração sobre seu sofrimento, o que fazia com que toda tentativa de abordar diretamente sua relação com o objeto eleito, a droga, fosse infrutífera. Sobre ela, não havia nada a dizer, havia apenas gozo. Os sintomas próprios de nossa realidade social podem ser pensados como transitando justamente nessa linha, que vai no sentido oposto ao sujeito do inconsciente, deixando explícita uma vertente do sintoma que não inclui o Outro, sendo expressão de puro gozo (PORTILLO, 2005). Qualquer tentativa de decifração, aqui, mostra-se inócua. Nenhuma das novas patologias derivou de uma alteração no nível da mensagem inconsciente dirigida ao Outro; conseqüentemente não respondem a nenhuma interpretação psicanalítica de tipo semântico ou de atribuição de sentido. A decifração inconsciente não tem cabimento algum em nenhuma nestas patologias contemporâneas. (PORTILLO, 2005, s.p.).

O uso da droga, produto que desfila com destaque entre os gadgets do mercado de consumo, é a tentativa de Lucas, nosso protagonista, de limitar, pela via do objeto, esse excedente de gozo que, por fazer oposição ao inconsciente como estruturado como uma linguagem, não conta mais com a relação com o Outro como passível de promover um bordeamento. [...] limitação dos efeitos do gozo, por meio do que se convencionou chamar de gadgets, ou seja, esse resquício da civilização da ciência, esse objeto capturado nas margens do Outro, concebido como lugar dos significantes que, muitas vezes, funcionam como referência para os ideais e valores que orientam a vida dos indivíduos. (SANTIAGO, 2001, p. 12-13).

É a possibilidade de abertura a um endereçamento que se encontra em jogo, fazendo do caso clínico de Lucas um paradigma de questões que perpassam a clínica do falasser, às voltas com sua relação com um corpo que goza e, por outro

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lado, com um tecido simbólico enfraquecido em sua função de limitação e de referência. Atrelado ao Um, o falasser diferencia-se do sujeito nisso que não remete a um segundo significante, não havendo aí qualquer expectativa de produção de um saber. Nesse circuito fechado, em que S1 não faz par com S2, o significante faz apenas função de entalhe no corpo, fixando um gozo solitário, próprio da nãorelação. A clínica orientada pelo sinthoma faz com que o sujeito suposto saber, diz Lacan (1974/2003), seja reduzido ao lugar de manifestação sintomática do inconsciente em sua versão transferencial. Consideramos, contudo, que qualquer possibilidade de uma saída para Lucas por outra vertente que não a do consumo da droga, do gadget, só poderia ser vislumbrada sob a condição de haver, como fundamento prévio à sua experiência analítica, a reconstrução de um Outro como mediação na relação do ser falante com o objeto. Diante dos sintomas contemporâneos, apostamos na via que possibilitaria, como um primeiro momento da análise, reabrir a palavra ao deslizamento, à metáfora e à metonímia, recolocá-la nos trilhos significantes e esperar que emerjam daí efeitos da divisão e do recalque, como a vergonha e o embaraço – ambos relativos à culpabilidade, tema tão caro ao supereu freudiano. Por essa vertente, alguma demanda, ainda que frágil e esparsamente localizada, poderia então ser estabelecida. É esse o ponto de partida da direção do tratamento que nos orienta no caso de Lucas. Sobre o uso da droga em si, resta um impossível de dizer, mas talvez seja possível contorná-lo, reinaugurando em algum outro ponto do discurso alguma demanda. Quando Lucas fala de sua mãe, de seu constrangimento ao vê-la chegar à delegacia para buscá-lo após sua detenção, aí sim, podemos entrever um sofrimento que pode trazer algo a dizer, abrindo uma brecha na resposta rígida e imediata que Lucas procurava no objeto. Esse hiato é passível, então, de ser esgarçado pelo analista, de forma a permitir que o sujeito retome a palavra e, falando, tenha seu lugar de sujeito novamente operante ali onde estava dispensado de responder. Com Miller (2009), entendemos a abordagem proposta pela segunda clínica de Lacan, pela via do sinthoma e do falasser, como uma tentativa de empurrar a psicanálise para fora de si mesma, obrigando-a a considerar sua operação a partir da perspectiva do real, que é distinta à perspectiva da verdade construída a partir do significante. A própria psicanálise resta em xeque no último ensino de Lacan: se o

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real faz vacilar todos os semblantes, tudo o que é sentido, vacila também o próprio semblante psicanalítico e a construção da história de um sujeito que é apenas ficção, como toda construção significante. Para quê, então, orientar-se pela abertura à palavra como possibilidade de fundação de uma experiência analítica? Essa pergunta faz com que tenhamos a necessidade de diferenciar a psicanálise como perspectiva, em que o real e o sentido estão separados, da psicanálise como prática, que passa necessariamente pela associação livre e pela interpretação. Em seu último ensino, diz Miller (2009), Lacan entende que a psicanálise como perspectiva julga que a psicanálise como prática é semblante. Trata-se, contudo, de um semblante que permanece fundamental, desde que se guarde dele certa distância crítica. Quando se crê em S1-S2, é preciso considerar que há sempre algo que não chega a seu destino na trajetória que se realiza de significante a significante, algo que fica interrompido, recomeçando sempre. O último ensino de Lacan, que só agora abordo tematicamente, com precaução, não os convida a queimar o que vocês adoraram. [...] Trata-se de não adorar nada, isto é, não confundir o real e as construções que são artifícios dos quais nos aparelhamos. (MILLER, 2002b, p. 10).

Continuar apostando na vertente dos semblantes é condição do amor, ligado, desde as elaborações freudianas, à transferência. Apostamos na via do amor como entrada possível para Lucas na experiência analítica, em oposição à relação apaixonada, pulsional, que ele estabelecia até então com seu objeto eleito. O amor, em sua vertente simbólica, seria o responsável por fazer o sujeito passar do gozo ao desejo. No “Seminário 4” (1956-1957), Lacan aborda o fato de que as necessidades do ser falante contaminam-se definitivamente pelo aparelho de linguagem ao terem que ser traduzidas pela demanda. Segundo Miller (2008a), nessa a importância da própria demanda é superada pela importância da resposta do Outro, que passa a valer como satisfação, independentemente, inclusive, de ela poder fazer cessar a necessidade ou não: “oferecer o significante como resposta constitui em si mesmo uma satisfação” (MILLER, 2008a, p. 153, tradução nossa51). Logo, a partir da linguagem, todas as necessidades do ser estariam contaminadas por sua implicação em uma demanda, que passa a ser sempre demanda de amor, de resposta do Outro. 51

Oferecer el significante como respuesta constituye en sí mismo una satisfacción.

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Existe amor pela via do real? Seria possível amar ao Outro até mesmo em seus restos, como demonstravam, por exemplo, os místicos que chegavam a comer os excrementos e a beber a água usada para lavar os pés dos doentes de quem cuidavam (LACAN, 1972-1973/1995)? A resposta que o próprio Lacan (19721973/1995) esboça é a de que a ultrapassagem desse limite equivoca o que seria o amor, e que não se poderia chegar até aí a não ser pela via da perversão. Em seu “Seminário 20”, contudo, Lacan (1972-1973/1995) encontra no real um outro lugar para o amor. É possível, segundo ele, visar no Outro a algo que não seja apenas satisfação pulsional, busca autoerótica por um objeto internalizado. O que dá dignidade ao amor é sua tarefa de conduzir o sujeito desse estádio infantil, autoerótico, ao reconhecimento do Outro, fazendo o gozo pulsional consentir em ser descompletado para incluir a vertente do desejo. O amor é metáfora, mas, em sua vertente real, é metáfora de algo que não existe, a relação sexual, não demandando um complemento: “o que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor” (LACAN, 1972-1973/1995, p. 62). Para suportar a inexistência da relação sexual, o homem aloja o objeto a em uma mulher, amando como a si mesmo aquela que é suporte à função do falo. Do lado do macho, portanto, as escolhas amorosas continuam guardando relação mais estreita com o objeto pulsional. Na mulher, contudo, a questão é absolutamente distinta, já que ela se mostra muito mais dependente da demanda, da resposta do Outro. A genuína lógica do amor é, conclui-se, feminina, porque amar é assumir a castração, reconhecer a falta e entregá-la ao outro. Amar feminiza, diz Grinbaum (2011), permitindo que se estabeleça um laço sobre o fundo da ausência da relação sexual. A demanda veiculada pelo amor, na vertente feminina, é infinita, mas é demanda de nada, não de um objeto: “[...] o amor demanda o amor. Ele não deixa de demandá-lo. Ele o demanda... mais... ainda. Mais, ainda, é o nome próprio dessa falha onde, no Outro, parte a demanda de amor”. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 13). Se a relação de Lucas com seu objeto de gozo não comportava qualquer mediação e se a castração é o que ele tentava elidir nessa estratégia, não era, então, pela via do amor que esse ser falante construía sua ficção sobre a relação com o Outro. A dificuldade de se separar da demanda materna, ao contrário, fazia dele puro objeto de gozo. A mãe de Lucas é a que dá tudo o que tem – o que se diferencia da lógica do amor traduzida por Lacan (1960-1961/1992) como dar o que

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não se tem. A distinção é fundamental: na primeira modalidade, não há o recurso da falta. O amor como saída à relação exclusiva que Lucas estabelece com a droga tem a ver com poder assumir a castração, contraponto à oferta sucessiva de objetos contemporâneos que se propõem a tamponá-la: “o amor, nos tempos atuais, está atravessado pela velocidade, uma vez que os imperativos de gozo e as exigências de felicidade não toleram nenhuma deflação” (GRINBAUM, 2011, p. 36). É preciso assumir a perda para amar, e é por isso que, inicialmente, Lucas não entra nesse jogo. Sua estratégia, tão contemporânea, não admitia que falta alguma aparecesse. Se a experiência analítica não consentisse a Lucas a possibilidade de que algo do sentido pudesse deslizar entre os significantes, acreditamos que restaria a ele, como último recurso, apenas a relação com o real do gozo no corpo, que não se limita pela ficção construída pelo significante. Fundar o amor pela via da transferência parece-nos a possibilidade de que, aqui, outra resposta seja construída. O inconsciente é indissociável da dimensão do desejo. A dificuldade em relação ao inconsciente se apresenta quando, na psicanálise, abordamos a relação do sujeito com o Outro sexo. O que se aprecia aqui é que o sujeito mais do que se relacionar com o Outro se relaciona com seu objeto de gozo. O chamado objeto a de Lacan, que guarda certa relação de parentesco com o objeto parcial de Abraham, é considerado por Miller como o verdadeiro partenaire ou parceiro do sujeito. O objeto a de gozo não é de natureza sexual; é precisamente “a-sexual”. A íntima relação do sujeito com seu objeto de gozo permite a Lacan dizer que a relação do sujeito com o Outro sexo não existe. Existe o ato sexual, porém “a relação sexual não existe”. (PORTILLO, 2005, s.p.).

O discurso científico que assola nosso tempo só se interessa pela contabilidade – escores, padrões, índices que codificam sucessos e déficits. O homem da “sociedade depressiva”, diz Roudinesco (2000), é possuído por um sistema biopolítico que o desresponsabiliza, por atrelar todos os fenômenos a uma causalidade externa – genes, hormônios, etc. Códigos internacionais de doenças, como o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM)52, são a ilustração dessa tentativa elidir a responsabilidade subjetiva, vinculando os sintomas a descrições prévias e categorizações que dispensam inteiramente o sujeito.

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Publicado pela Associação Americana de Psiquiatria, o DSM busca uma linguagem comum e a estandardização de critérios para a classificação de doenças mentais.

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Se a proximidade do ser falante com a droga não é nova, o que ela traz como novidade, hoje, é a explicitação dessa lógica utilitária. A psicanálise, em contrapartida, acredita que a manipulação do objeto droga vela, sob a aparência de uniformidade de seu uso, modos de gozo absolutamente singulares, fazendo com que não haja “o toxicômano” como categoria universal. Pela via do sujeito, podemos fazer essa identificação deslizar. Em Lucas, como alternativa ao casamento passional com a droga, que o desliga, o segundo tempo de sua experiência analítica mostra que é possível construir, pela vertente do sentido, a relação amorosa com uma mulher, que o acalma. Trata-se de poder fazer de uma mulher um objeto de gozo cujo uso é vinculado também ao desejo, o que a diferencia da droga como objeto privilegiado. Uma saída, portanto, própria do sujeito, com sua falta-a-ser que o permite dar o que não tem. Com Gorostiza (2006), perguntamo-nos se é legítimo propor, na clínica do falasser, a dimensão ética da responsabilização, já que ela estava tradicionalmente atrelada ao sujeito. É o mesmo autor que vai dizer que a lógica da responsabilidade, no falasser, surge não apenas não anulada, mas também aprofundada, uma vez que a caracterização do sinthoma como invenção frente ao furo da não relação sexual implica já no fato de que ele é uma resposta exclusivamente a cargo do ser falante. Machado (2005) também enfatiza que, em relação ao gozo, a segunda clínica de Lacan oferece somente a reponsabilidade que implica o Um, e não a produção de sentido que implicava o Outro, o que amplia a questão da responsabilidade. Ao psicanalista, também cabe um acréscimo de responsabilidade: a decisão de reintroduzir o inconsciente para o ser falante, apesar de conhecer o fato de que ele é puro artigo de crença, que, como todo semblante, é insuficiente para oferecer qualquer garantia. Especificamente na experiência analítica de Lucas, acreditamos haver, como condição sine qua non, a necessidade de que o analista seja aquele que permita ao ser falante crer no inconsciente, abrindo fendas que permitam o surgimento do mal-entendido, do equívoco, de forma a inaugurar um enigma que o ponha o sujeito a trabalho. Produzir o sujeito é a forma que encontramos de abordar esse indivíduo “light” (LAURENT, 2004a, p. 18), que é fruto da ciência e pode creditar suas escolhas a identificações genéricas, ignorando seus aspectos subjetivos. A psicanálise nomeia “patologias da ética” esse empuxo ao gozo que traz aos modos de vida de hoje a

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constatação dócil de um “não posso me abster”. O sujeito do inconsciente, por outro lado, é esse que persiste estendendo o campo da responsabilidade para além da intencionalidade e abre a lógica das consequências (BARRETO, 2004): mesmo tendo-se chegado à conclusão de que há um gozo que precede o sujeito, é dele a responsabilidade pelo modo de gozo que elege, pela construção de seu sinthoma e por seu saber-fazer com ele. No percurso da análise, a desresponsabilização inicial de Lucas vai dando lugar à assunção das consequências de suas escolhas. Se nenhuma implicação aparecia, inicialmente, nas transgressões à lei jurídica, Lucas pode, pouco a pouco, constatar que há algo em seu funcionamento que, de um jeito ou de outro, faz com que ele sempre “rode”. Respondia por seus atos de uma série de maneiras, sem perceber. Faltava a responsabilização subjetiva. Se a ética do sujeito pode ser assumida como nosso ponto de partida na análise de Lucas, a orientação lacaniana atual, contudo, não permite ao analista perder de vista o fato de que há uma mudança significativa no ponto a que uma análise visa em última instância. Não seria interessante, portanto, que nos contentássemos apenas com a ideia saudosista de que é preciso recentrar a experiência analítica no sujeito. Fica claro então que o último ensino de Lacan não representa um corte em relação a seu primeiro ensino, mas uma torção em que a ênfase na busca da verdade, a ênfase no tratamento do real pelo simbólico é deslocada para a busca do objeto, busca do real e de seu tratamento. (COUTINHO, 2009, s.p.).

Com essa observação, buscamos ressaltar que acreditamos que, na segunda clínica lacaniana, a dimensão do real pode abrir-se por diversas vias que não apenas a do sujeito. Há, afinal de contas, o real como fato originário, que não depende de ser traduzido em verdade. A psicose – como Joyce explicita – traz um paradigma outro para a clínica, que não se prende à passagem pelo simbólico e não lê o enfraquecimento dessa instância como déficit. Até porque, alerta-nos Miller (2009), se considerássemos que só é possível atingir o real passando pelo sentido, o conceito de trauma desapareceria, sendo absorvido na condição de dado histórico, que tem que ter sido significantizado para existir na contabilidade do sujeito. Ao contrário, a orientação lacaniana mais recente propõe a colocação em ato do que Lacan nomeia urgência: a emergência do que faz furo como traumatismo

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propriamente dito (MILLER, 2009), independentemente da cadeia significante, por estar entalhado no corpo pela vertente da letra. Portanto, a direção do tratamento proposta no caso clínico de Lucas não é a única abordagem viável. O convite à associação livre é uma possibilidade de entrada, mas não é a única, muito menos a saída a que se deve visar. Para definir como abordar esse ser falante, levamos em conta a especificidade da relação de Lucas com a droga, o diagnóstico estrutural de sua neurose e o mal-estar que lhe acomete por conta dos embaraços com a vertente fálica. A soma desses fatores compõe um quadro complexo, para o qual, de forma individualizada, a orientação pela suposição de saber pareceu-nos adequada. Cabe ao analista, em cada caso, saber como sustentar a existência desse ponto primário de orientação e entender por que via ele deve constar na direção do tratamento. Há espaço, na segunda clínica, para que se mantenha a experiência analítica pela via do inconsciente transferencial, mas o convite que se faz ao analista, nesse caso, é o de ser tolo53, lançando mão dos semblantes, sem, contudo, buscar atrelar toda a fala ao sentido. Trata-se do que Miller (2008d) chama de um “engano metódico”, pela via da crença no sujeito suposto saber. Ao sustentar com sua presença este “como se”, o analista sustenta o ato, seu ato, cuja lei está ditada por uma hiância que tem que franquear. Esta hiância está presente na menor das interpretações que converte a indeterminação do sujeito em certeza, eventualmente oracular. (MILLER, 2008d, p. 48, tradução nossa54).

De qualquer maneira, a orientação pelo real vai relegar ao simbólico o lugar de uma leitura do que sempre resta ilegível em alguma medida55. A fundação do O “Seminário 21” de Lacan, de 1973-1974, é intitulado “Les non-dupes errent”, livremente traduzido por “Os não-tolos erram”. O título faz homofonia com a expressão em francês les Noms Du Père errent, ou, traduzindo livremente, “os Nomes do Pai erram/são errantes”. A brincadeira linguística enfatiza o fato de a crença no simbólico, no Nome do Pai como ponto de basta, conduzir ao equívoco da busca incessante de sentido, que faz com que o real reste desconhecido. 53

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Al sostener com su presencia este como si, el analista soporta el acto, su acto, cuya ley está dictada por uma hiância que hay que franquear. Esta hiância está presente en la menor interpretación que convierte la indeterminación del sujeto em certeza, eventualmente oracular. 55

O fato de nenhuma interpretação estar terminada e tender ao infinito por conta de um recalque fundamental intransponível já constava na noção freudiana de “umbigo do sonho”: “existe pelo menos um ponto em todo o sonho no qual ele é insondável – um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido [...] é num certo lugar em que essa malha é particularmente fechada que o desejo onírico se desenvolve, como um cogumelo de seu micélio. O obscuro do sonho a ser deixado sem interpretação é o que move o desejo”. (FREUD, 1900/1996, p. 119-120, nota de rodapé).

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sujeito não pode ser, portanto, o ponto radical da experiência analítica, mas uma possibilidade de partida. A segunda clínica de Lacan impõe um giro a mais: passar pela atribuição de sentido e, posteriormente, pela explicitação de sua opacidade (GOROSTIZA, 2006), servir-se do simbólico para, então, conduzir o analisante a um ponto que o ultrapassa, já que a linguagem fornece apenas, nas palavras de Lacan (1968-1969/2008), a textura do sujeito, não sendo suficiente para abordar o corpo de gozo do falasser. Isso já é dizer que uma interpretação, caso seja uma solução, é uma solução não-toda, e aquilo que faz enigma no início desse gênero de texto, como eu dizia no começo, não é dissipado pela leitura lacaniana. Pelo contrário, é como se o enigma fosse concentrado em um resíduo. (MILLER, 2009, p. 30).

O que o último ensino de Lacan traz como manobra original da experiência analítica, portanto, não é a consideração sobre o que resiste do real, mas a necessidade de que, em sua prática, o analista siga em direção a ele. Passar pela construção da verdade não permite que o analista a retire do lugar de semblante, cuja construção Lacan (1975-1976/2007) vai nomear com o neologismo varidade (em francês, varité – junção entre “verdade” e “variável”). O sintoma freudiano faz sentido, ao passo que o sinthoma pura e simplesmente se repete. O sintoma freudiano contém uma verdade que podemos sonhar revelar. O sinthoma não é correlativo de uma revelação, mas sim de uma constatação. Tudo o que se pode dizer é que ele é suscetível de se desnudar, de sair da roupagem que os para-seres (parêtre) lhe dão. (MILLER, 2011a, s.p.).

É para responder ao Outro que o analisante atribui sentido a seu modo de gozo. Lacan (1977/2003) chama de “histoerização” (conjunção entre histeria e historização) a sustentação dessa verdade mentirosa do inconsciente pela via da associação livre, atribuindo-a a uma manobra histérica – Miller (2009) lembra-nos que a histeria é a estrutura que deixa evidente a incidência do discurso do Outro sobre o sujeito. Não por acaso, a lógica do inconsciente no último Lacan aproximase não das construções próprias à histeria, mas da psicose. A alucinação apresentase como o que resiste a qualquer historização, sendo o que retorna do que não foi simbolizado. Ela deixa claro que é impossível absorver todo o real pelo verdadeiro sem deixar restos (MILLER, 2009), apresentando-se, portanto, como a constatação de um real irredutível, não endereçado ao Outro ou determinado por seu discurso:

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Só é verdadeiro o que tem um sentido. Qual a relação do real com o verdadeiro? O verdadeiro sobre o real, se assim posso me exprimir, é que o real, aquele do par aqui colorido, não tem sentido algum. (LACAN, 19751976/2007, p. 112).

Sob o comando do sinthoma, o objetivo último da experiência analítica não pode ser, na segunda clínica de Lacan, a historização, mas o ponto em que o analisante fala para si, para se satisfazer com isso, uma vez que há gozo na fala. Ao final da análise, o que deve restar é a experiência de satisfação trazida pela relação direta com o gozo, o choque material da linguagem sobre o corpo. Apesar de suscitar a transferência, o analista coloca-se ativamente em desacordo com o lugar que lhe demanda o analisante, impedindo o sujeito de nutrir seu sintoma pela vertente do sentido e fazendo com que o significante da falta no Outro assuma seu valor de letra e toque o gozo no corpo (LIMA, 2013). A interpretação como atribuição de sentido, portanto, deve dar lugar, em um segundo momento, à interpretação que busca a ressonância do significante, o eco que o dizer provoca no corpo como palco de gozo: “com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18). É indispensável que o analista busque fazer soar, por um forçamento, outra coisa além da verdade, buscando uma significação que atinge o vazio, o furo. Esse funcionamento parece-nos se aproximar do que Lacan (1977/1978) chama de “perturbar a defesa”, função última do analista.

6.1. Há clínica? Isto não retira de modo algum a seriedade da psicanálise. O fato de as palavras não terem o poder que se acreditava quando se delirava, não impede que elas tenham consequências e que se trate de perceber e avaliar essas consequências. Trata-se, diz Lacan, do analista se dar conta da importância das palavras para seu analisante. (MILLER, 2009, p. 198).

O falasser esgarça o furo do real que impede qualquer tentativa de universalidade. Ele evidencia que o ser falante nunca pode ser impecavelmente encaixado em uma classificação, sendo sempre exemplar imperfeito, portador de uma lacuna (MILLER, 2003a) que impede sua generalização ou sua apropriação por um saber predefinido, que operaria automaticamente. O sinthoma é o contraponto a uma classificação que se pretende automatizada, organizada a partir de um saber que viria do real e seria decodificado pela ciência. Ele é o efeito que desloca o indivíduo da espécie, o caso da regra, introduzindo a contingência e o

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funcionamento a partir da lógica do nãotodo: “a empresa de universalização da ciência choca-se com o sintoma” (SOLER, 1998, p. 170). Em contrapartida, a segunda clínica de Lacan faz coro à tendência atual da ciência de enfraquecimento do diagnóstico pelo endereçamento ao Outro. Por essa via, que era a do inconsciente transferencial, elementos eram agrupados com base em aspectos que os faziam semelhantes entre si e distintos dos demais e, a partir daí, classificados em categorias, como as estruturas clínicas que sustentaram a primeira clínica de Lacan. Tanto a lógica de nosso tempo quanto a orientação lacaniana pelo real fizeram com que a dimensão da particularidade cedesse espaço à da singularidade na clínica psicanalítica. O que se enfatiza no diagnóstico, hoje, é aquilo que um elemento não compartilha com nenhum outro. Um sinthoma ex-siste, sendo incomparável e limitado em sua possibilidade de fazer conjunto a partir do que carrega em comum com os demais (MILLER, 2011b). Ele não é definível em categorias, pois não diz da repetição de um ponto de exceção próprio a vários sujeitos. Sob a sua orientação, passa a ser tarefa solitária de cada analisante formalizar sua verdade nãotoda para dizer do real (LACAN, 1974/2003). Como enlaçar o incompartilhável do sinthoma ao universal da experiência que define a clínica? Essa parece-nos ser outra roupagem da questão central à presente pesquisa: qual é o lugar do universal do sujeito na clínica do singular do falasser, que responde à realidade social do século XXI? Se a concepção de sujeito é abalada no último ensino de Lacan e o saber surge como mero semblante, podemos, ainda assim, falar de clínica como sustentada pela suposição de saber do sujeito? Essa é a questão formulada pelo Seminário: o sinthoma: como, do acontecimento, se faz alguma coisa que parece com o sonho da eternidade, ou seja, que permanece ali quando não se é mais si mesmo? Como fazer, desse acontecimento singular, desse traumatismo contingente que não se parece com o de ninguém, desse acontecimento que afeta cada falasser em sua singularidade, como extrair alguma coisa que pode valer como uma lição e que valerá para os outros que dele se apropriarão, tanto os que aqui estão quanto os que ainda virão, pelos tempos vindouros e potencialmente ao infinito? (MILLER, 2005b, s.p.).

O inconsciente freudiano não é um objeto da ciência que exista previamente ao sujeito, alerta Vieira (2005a). Ele é uma invenção de ordem ética, que só tem lugar a partir do momento em que se crê nele. Estranho à lógica cientificista, ele não se oferece a predefinições, situando-se, por consequência, como resistência à

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“demanda canalha” de nosso tempo, definida por Vieira (2004c) como a recusa contemporânea a ir além do que é visível e quantificável. Presta-se, contudo, a aproximações que permitem que se extraiam dele algumas generalizações para que a clínica continue existindo como transmissão de saber, desde que levemos em conta seu caráter inacabado e sempre falho: “existem tipos de sintoma, existe uma clínica” (LACAN, 1975a/2003, p. 554). Se concluímos que a concepção tradicional de clínica vacila a partir do segundo ensino de Lacan, é porque a escuta analítica passa a buscar não mais o compartilhável do sentido, mas a redução do sintoma a um núcleo duro. Nele, as formações do inconsciente, como toda produção significante, estão, como diz Miller (2005), bordadas em torno do caroço elementar do real, sendo necessário deixá-las cair para que esse elemento primordial torne-se um resto fecundo de que o falasser pode, então, fazer uso. O real resiste por debaixo da neurose, fazendo do sinthoma o “esqueleto do falasser” (GUERRA, 2007, p. 105). Com o sinthoma, não falamos mais em travessia, mas em simples acomodação, com ênfase em sua vertente pragmática, de uso (GOROSTIZA, 2006). A mudança representa uma deflação do que se espera da experiência analítica, que passa a ser meramente a obtenção de uma habilidade, um savoir faire – ou, dizendo como Lacan (1974-1975/inédito), um savoir-y-faire – com o irredutível da alíngua: “onde não há significação há invenção, saber-fazer. O artifício é um fazer que nos escapa sob a forma do saber, ele é um saber que se sabe ao fazer” (MACHADO, 2005, p. 153). O saber do savoir-y-faire não passa por um significante com o qual o sujeito se identificaria, porque o discurso falha, restando esse significante derradeiro para sempre fora do universo do discurso (D’AGORD; TRISKA, 2009). Ao propormos a formalização do discurso e estabelecendo para nós mesmos, no interior dessa formalização, algumas regras destinadas a pô-lo à prova, encontramos um elemento de impossibilidade. Eis o que está propriamente na base, na raiz do que é um fato de estrutura. (LACAN, 1969-1970/1992, p. 43).

Onde suporíamos, antes, o esgotamento do sentido, abre-se agora “[...] a fonte inesgotável que multiplica a produção de sentido pelo gozo do blá-blá-blá [...]” (GUERRA, 2007, p. 78-79). Na medida em que uma decifração acontece na experiência analítica, algo é simultaneamente cifrado, atingindo lalíngua, e o modo de gozo do falasser é revelado nesse jogo de fazer e desfazer do significante. A

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satisfação real adviria não da liberação de um sentido oculto, mas do que o enigma em si pode proporcionar. Isso quer dizer o fim da clínica, que pressupõe, como vimos, a interpretação e a suposição de saber? A resposta de Gorostiza (2006) a essa questão é negativa. Para o autor, seria indispensável à psicanálise continuar sustentando o amor ao inconsciente, mesmo após a constatação de que há algo que o ultrapassa. Miller (2011a) faz coro a essa proposta, afirmando que continua fundamental consentir com a ficção do Outro da psicanálise, porque é ela que põe um sujeito a trabalho. A suposição de saber é o que permitiria que, no momento oportuno, quando puder se haver com seus restos, o ser falante pudesse aceder a uma ex-sistência, ao real que o precede do ponto de vista lógico. O amor pelo inconsciente, segundo Miller (2005b), passa por construir, primeiro, o quer dizer um acontecimento de corpo, lendo-o e buscando seu sentido até tropeçar, se essa leitura for devidamente levada ao ponto do ilegível, no limite do sinthoma. É viável pensar uma prática que intervenha, desde a entrada, sem a instalação do Sujeito suposto saber – isto é, sem passar pelo sentido, pela decifração, numa uma espécie de curto-circuito? No momento, me inclino a responder: não. Sempre é necessária a produção do sujeito suposto ao sentido do sintoma. (GOROSTIZA, 2006, s.p.).

Para fazer advir o sinthoma, continua sendo pertinente pensar, portanto, em uma construção prévia que é eminentemente clínica, aquela que permite que assumamos nossa trama, nossa herança familiar, nossos ideais – enfim, a ficção mentirosa com que circundamos o real. À psicanálise, continua sendo dada a tarefa de adoecer o sujeito da castração: “o fato de estarmos situados na linguagem nos adoece, nos coloca fora da natureza. O tratamento dessa enfermidade se dá através da própria enfermidade, pelo ato da palavra” (MILLER, 1997b, p. 298). O último ensino de Lacan mantém a castração como negação lógica, prova de não podermos conservar todos os significantes juntos, sendo necessário adotar sempre uma exceção à regra. Nas patologias contemporâneas, a assunção da castração pela via da palavra parece-nos ainda mais preciosa: reconstruir um Outro, a determinação simbólica que se encontra curto-circuitada pelo gozo (PORTILLO, 2005), impondo um limite ao monólogo autista e à tentativa de não entrever a inexistência da relação sexual. Os não-tolos que erram são os que se recusam a se deixar enganar pelos semblantes. Curiosamente, o psicanalista segundo Lacan aceitaria,

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diferentemente do modo que se apresentou em seu nascimento, ser tolo. A regra da associação livre implica por parte do analista a confirmação de que aceita ser enganado por ela [...]. (MILLER, 2008d, p. 17, tradução nossa 56).

Lacan (1975-1976/2007) diz que é possível prescindir do Nome-do-Pai, desde que se saiba servir dele. Após construir a ficção do sujeito suposto saber e de tecer uma rede simbólica, a segunda clínica de Lacan abre para nós o horizonte de seu atravessamento, a possibilidade de se chegar ao limite do saber pela via significante, litoral entre sintoma e objeto. Em retroação, é a linguagem que dá lugar ao real no tecido significante. Da mesma forma, o sinthoma é apenas o núcleo de real que se desprende do sintoma como sentido: Assim como o diamante já está na pedra, e a escultura já está no mármore, o sinthoma está no sintoma em potência, embora soterrado pelos significantes-mestres, os enunciados do supereu. Depois de feito o trabalho de redução, ele é novo em relação ao que anteriormente estava aparente, e não no sentido de nunca ter estado ali e de ter sido criado pela análise. (MACHADO, 2005, p. 161).

Relacionar o sentido ao gozo para, ao final, desenlaçá-los é o que Miller (2005b) define como desprender-se da verdade depois de ter sido apaixonado por ela. Com Lucas, personagem de nosso caso clínico, vemos seu trabalho da análise, em seu primeiro tempo, para construir esse momento prévio, fazendo com que algo possa circular no desfiladeiro do significante e saia da questão do gozo do falasser com seu corpo apenas. É com essa construção de sua neurose que Lucas pode, então, chegar à análise da segunda vez que a procura, agora com uma demanda, com um enigma, com um sofrimento que ele pode endereçar ao Outro: “não estou conseguindo levar isso sozinho, é muita dor”. Realmente, como ele constata, “muita coisa havia mudado”, e era preciso, agora, responsabilizar-se pelos efeitos dessas mudanças – o que não é fácil nem sem angústia, uma vez que o caminho anterior era muito mais simples do ponto de vista subjetivo. Encontro inicial de Lucas com o analista, anos antes, havia-o feito ficar mais “bobo”: não vende mais drogas, não faz mais uso delas e, agora, ainda precisa se virar com as mulheres, sendo constantemente alvo de todo o sofrimento que o encontro com o Outro sexo pode trazer. Volta adoecido da castração que, ao 56

Los desengañados que se engañan son los que rehúsan dejarse engañar por los semblantes. Curiosamente, el psicoanalista según Lacan aceptaría, contra el modo en que se apresentó em su nacimiento, ser engañado. De hecho, la regla de la asociación libre implica por parte del analista la seguridade de que acepta ser engañado por ella [...].

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mesmo tempo, pôde tratar a identificação maciça ao objeto com que se apresentava no início. “Ser bobo” é o que alivia o imperativo de gozo, é seu consentimento com a crença em um semblante que o libera da relação mortífera com o objeto, fazendo um véu. A interrupção da análise de Lucas acontece, da primeira vez, no momento em que algo de sua neurose é estabelecido, e, na segunda, no ponto em que seria possível pensar a construção de alguma coisa para além da versão paterna que ele carrega. A experiência analítica poderia permitir, a partir daí, visar a um falar-se sozinho e não por meio dos significantes do pai a que se encontra identificado, reduzindo o delírio do simbólico pelo qual ele pensa se comunicar com o Outro da verdade. O que orientaria seu saber-fazer para além do universal da resposta paterna seria, então, a invenção de uma amarração singular. A psicanálise, ao servir-se dos semblantes de sua época, não recua frente ao real impossível, tomado em sua peculiar fixidez de gozo, e o que pode oferecer na direção do tratamento é a possibilidade de escolher, com entusiasmo, a solidão como caminho. (COHEN, 2009, s.p.).

Por ora, crer em sua neurose parece ser resposta suficiente para apaziguar Lucas. Construir o sujeito é, para ele, um tratamento cujos efeitos terapêuticos ficam evidentes. Antes de avançar, ele vai embora, sem encerrar formalmente seus atendimentos e deixando, ao final, uma dívida com analista para, quem sabe, novamente recomeçar em um outro momento. Sobre essa transitoriedade da demanda de Lucas pela análise, Miller (2008b) pergunta-se se podemos considerar os tratamentos breves como uma entidade autônoma ou se devemos falar de efeitos terapêuticos rápidos apenas em um tratamento de longa duração. De toda forma, ele dispensa atenção especial a esses tratamentos marcados por diversas suspensões, que demonstram o caráter finito da experiência analítica, de maneira que poderíamos pensar em seus vários términos como escansões que inauguram ciclos. Na vertente de uma análise cíclica, deixamos de lado a concepção errônea de um percurso evolutivo. Bassols (apud MILLER, 2008b, p. 79) vai dizer que “há momentos em que os ciclos se abrem e em que podem produzir para o sujeito pontos de não retorno no sujeito”. Desidealizamse e multiplicam-se, assim, as conclusões possíveis, mas o fundamental, diz Gorostiza (2006), é, ao final de cada ciclo, conseguir provocar um deslocamento em

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relação à repetição, para que ela não seja mero retorno cego do mesmo, trazendo também algo novo. Lucas não faz da análise um destino final, o que não deixa de constituir, em nosso entender, uma demanda legítima. Faz do encontro com o analista, como instrumento, um uso próprio. Sabemos que não há manual de uso desse objeto, diz Brousse (2007b). Ele se oferece como um entre os muitos disponíveis no mercado, com a diferença de que, enquanto as latusas se reduplicam, idênticas umas às outras, com seu uso fácil e estandartizado, o objeto analista não é intercambiável ou produzido em série, sendo produto singular de um tratamento. Embora ocupe inicialmente a posição de Outro do sujeito, o analista encarna um Outro que não responde exclusivamente à demanda de amor endereçada ao sentido, deslizando também para a posição de objeto a, causa de desejo e não tentativa de suturá-lo. Em lugar do parceiro edipiano, o analista é o objeto que assegura o gozo (BROUSSE, 2007b). A solução possível para que uma análise se estabeleça sob a dificuldade de endereçamento a um Outro, marca da clínica psicanalítica que acolhe os modos de vida de hoje, é que haja, de entrada, uma retificação desse Outro que não existe, construindo-se um lugar ao qual o sujeito possa, então, se dirigir (RECALCATI, 2004). O convite à transferência, contudo, determina, necessariamente, uma perda na relação imediata do falasser com seu objeto, chocando-se radicalmente com a modalidade contemporânea de demanda de análise que, quando se insinua, é atravessada pela busca de se obter, na experiência analítica, os mesmos efeitos que o objeto proporciona. O desafio do trabalho clínico nesses casos, diz Santiago (2001), é o de abrir uma brecha em meio à repetição do ato. A dificuldade do ser falante em se engajar em uma elaboração simbólica, por conta da tentativa de ruptura com o gozo fálico, demonstra a necessidade de fazer emergir, no encontro com um analista, a mediação essencial à construção do sintoma, “[...] ainda que o toxicômano, quase sempre, se recuse a reconhecê-la” (SANTIAGO, 2001, p. 185). A partir daí, poderíamos partir para dispensar o inconsciente, já que ele não passa de crença, ou para revalorizá-lo como aquilo no qual acreditamos, no qual apostamos e no qual nos engajamos. (SANTOS, 2002, p. 34).

O que o caso clínico de Lucas pode ensinar é que persiste, na segunda clínica lacaniana, a possibilidade de orientação pela vertente da crença no

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inconsciente. Afinal, a política do desejo e do gozo, do sintoma e do sinthoma, não são opostas, as segundas vindo manifestar o limite das primeiras e, ao mesmo tempo, inaugurá-las aprés-coup. Sob essa via, entendemos o que Lacan (1964/1998) quer dizer quando afirma que o inconsciente é ético, não ôntico: não se trata de saber se ele tem ou não existência, mas de qual seria o ato que o criaria em retrocesso. Concluímos com a afirmativa de que Lacan, como nos diz Miller (2005b), não acorda a psicanálise do sonho do sentido. A vertente do sujeito continua viva como um fundamento ético de sustentação da clínica psicanalítica. Mais do que isso, a invenção de um uso para o sinthoma como saída da análise sob orientação do real implica ainda mais o ser falante em sua escolha – agora, não somente a escolha da neurose pela qual responde, mas também a escolha de um modo de gozo que é singular, incompartilhável, inerente à sua condição de falasser. A foraclusão do Nome-do-pai continua valendo no último ensino para as psicoses clássicas, assim como a metáfora paterna continua valendo para a neurose clássica. Sob esse aspecto, o que o último ensino traz de novo é uma expansão no mundo das classificações, onde o privilégio antes dado às estruturas clínicas freudianas se transfere para a solução encontrada por cada um, a fim de fazer frente ao real. (MACHADO, 2005, p. 157).

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7. CONCLUSÕES Lacan obteve um extraordinário efeito de formação, de disseminação e de fecundação da psicanálise mostrando-se a si mesmo em luta com um objeto e com uma dimensão que não dominava totalmente. Uma dimensão que tem sua consistência e sua resistência própria. À primeira vista, pode-se pensar que Lacan demonstra seu domínio do tema, mas não, ao perceber sua continuidade, se demonstra, ao contrário, a resistência do saber e um certo fracasso no domínio de um real. Parece-me patente esta demonstração do fracasso do domínio. Lacan sempre remodela, mobiliza e nunca diz "está pronto" sobre ponto algum. Quando algumas vezes o diz, desmente pouco depois. (MILLER, 2003b, p. 21).

Resgatar a trajetória do sujeito não é, de forma alguma, uma ideia original no campo da psicanálise. Muitas obras foram exclusivamente dedicadas ao assunto. Por outro lado, e em contraponto a esse interesse tradicional, há atualmente algo do sujeito que parece, como afirma Cabas (2009), ter sido revogado ou perdido seu interesse com o advento de uma nova lógica de funcionamento de nosso tempo e, acrescentamos, com a orientação pelo real proposta pela segunda clínica de Lacan. Se não se trata de um assunto novo nem de um assunto em voga, por que, então, escolhê-lo como tema para esta tese? Justamente por parecer superada para muitos analistas e pesquisadores, a questão nos causou um enigma que parecia valer a investigação: será que, depois de superada a centralidade do simbólico no ensino de Lacan, não nos afastamos demasiadamente do sujeito ou perdemos a noção de sua importância? As dificuldades e as novas perspectivas trazidas pelo conceito de sinthoma e de falasser não estariam trazendo uma desvalorização equivocada do lugar que concedemos ao sujeito do inconsciente, tanto na teoria quanto na leitura dos casos clínicos com os quais nos deparamos? A questão do sujeito na clínica psicanalítica de nossa realidade social também nos interpelava por conta da incidência cada vez mais destacada do que se costuma chamar de “novos sintomas” ou “sintomas contemporâneos”. Entendemos que boa parte da leitura desses fenômenos passa pela constatação dos autores de que haveria uma tentativa de sutura na divisão do sujeito nesses sintomas que ressaltam a vertente de exaltação do gozo. Perguntávamo-nos, então, se o sintoma como portador de sentido teria perdido seu lugar de envoltório formal do sujeito, ou se o

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sujeito, como acreditávamos, continua residindo em seu interior, independentemente da roupagem que apresente em cada realidade social. De fato, como nos lembra Cabas (2009), o sintoma em psicanálise sempre foi feito de gozo e tempo. Em sentido estrito, não há sintoma que não seja contemporâneo, uma vez que os modos de gozo sempre respondem, em certa medida, à sua época, incidindo também nas configurações do laço social que imperam em cada momento. Se os sintomas típicos de nossa realidade exaltam a vertente pulsional, não são eles, por outro lado, que fundam a concepção do gozo como excesso impossível de ser silenciado por um objeto. O que esses fenômenos inauguram é o fato de os objetos que se oferecem para satisfazer o gozo serem, hoje, produzidos em escala industrial, por conta da parceria entre ciência e mercado. Não por acaso, a relação do ser falante contemporâneo com seus objetos eleitos é seguida constantemente por um tédio e uma decepção. A sucessão sem intervalos de produtos do mercado que se oferecem em série para tamponar a sutura do sujeito gera, em contrapartida, a constatação de que todos ocupam igualmente o lugar de dejeto. A desilusão que toma conta dos laços sociais denuncia que o que sustenta o consumo é uma lógica avessa ao desejo. O destinatário desses produtos não é o sujeito, porque eles não pressupõem nenhuma particularidade, mas o consumidor, tomado como indivíduo genérico, o que o relega também à condição de rebotalho. O sujeito de desejo só pode surgir no intervalo entre dois, em uma fenda que é justamente o que nossa realidade social achata com sua produção incessante. Logo, a maneira como a vertente do sujeito manifesta-se hoje, timidamente, em oposição ao mercado consumidor é pela via da descrença, da constatação de que o semblante não é suficiente para responder ao real que se impõe. Quando os ideais, ligados ao simbólico, não são mais suficientes em sua função de orientação, a realidade social dá espaço a soluções substitutivas que exaltam a vertente imaginária, do eu, “[...] conforme a concepção utilitarista do homem que a secunda, a realizar cada vez mais o homem como indivíduo, isto é, num isolamento anímico sempre mais aparentado com sua derrelição original” (LACAN, 1948/1998, p. 124).

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É esse ser falante desbussolado pela derrisão do simbólico que chega, hoje, aos consultórios de psicanálise. O que propor como via de tratamento quando o próprio lugar de suposição de saber que sustentava a clínica foi consumido? É preciso que a psicanálise saiba escutar a demanda de cada tempo histórico, o que não quer dizer, contudo, que seja para atendê-la. Afinal, há sempre a possibilidade de, diante da demanda, propor um contraponto. Ao imperativo de uma dose a mais de satisfação trazido por nossa realidade social, não seria uma das tarefas da clínica psicanalítica, hoje, oferecer justamente um intervalo? A instauração de um lugar de endereçamento para o sofrimento não é uma brecha, uma falta que pode salvar o sujeito do afogamento provocado pela identificação maciça aos significantes-mestres da ciência e do mercado? Essas perguntas, referentes à abordagem possível da clínica psicanalítica ao falasser que habita uma época em que o gozo é tomado como norma, parece-nos ter o sujeito de desejo como uma via de resposta. Nesta tese, o cuidado que procuramos ter desde o início foi o de não antecipar uma conclusão pela vertente do sujeito, temendo que ela fosse embalada por certo efeito de encantamento pelo simbólico. Tanto nosso amor à palavra quanto nossa formação como analistas habituaram-nos, afinal, a elaborar a experiência analítica pela via do sentido, o que torna difícil, em muitas ocasiões, superá-la como paradigma. Como Miller (2008a) afirma, as aparições frequentes do sujeito no ensino de Lacan fizeram-nos formados por ele, sendo necessário um longo atravessamento para que a orientação pelo real possa tornar-se mais do que pura teoria e desvendar-se na prática da clínica. Só percebem a experiência analítica sob a forma de uma narratologia. Quer dizer, concebem-na, finalmente, como a construção de uma ficção que tem efeitos de verdade, e postulam que esses efeitos de verdade são o que satisfazem o paciente. (MILLER, 2008a, p. 61, tradução nossa 57)

Embrenharmo-nos pela via teórica que leva do sujeito à construção do falasser permitiu-nos um melhor posicionamento a respeito dessa questão. Produziu-nos, por outro lado, um novo encantamento, agora trazido pela constatação dos efeitos surpreendentes que o real traz à experiência analítica, 57

Solo perciben la experiência analítica bajo la forma de uma narratología. Es decir, la conciben, finalmente, como la construción de uma ficción que tiene efectos de verdade, y postulan que estos efectos de verdade son los que satisfacen al paciente.

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oferecendo a ela uma beleza que não se conecta ao sentido, mas que vem justamente do uso singular que cada um pode fazer do que é seu. Hoje, contudo, parece-nos mais prudente afirmar que, se falamos ainda de sujeito, é porque sustentamos a posição de que ele reside inequivocamente no conceito de falasser, mantendo, diante de nossa realidade social, um importante papel de resistência e impondo sua atualidade. É como portando um caráter, ao mesmo tempo, de permanência e inovação que podemos pensar a relação entre sujeito e falasser. Não há, entre eles, conexão linear ou caráter de substituição, como se o falasser fosse a “novidade” referente ao sujeito. A importância do inconsciente transferencial permanece e não é suplantada pelo que o falasser traz com o singular de seus modos de gozo e a vertente real do inconsciente. Por esse motivo, parece-nos um sério equívoco pensar, como notamos ser comum, no “analista que trata pela via do falasser” como uma versão inovadora do “analista que trata pela via do sujeito”. Ambas as abordagens residem, antigas e novas, algumas vezes adormecidas, em todo caso clínico, apresentando inúmeras possibilidades combinatórias de escuta e de manejo. Elas coadunam-se tanto quanto, no sintoma, estão presentes as vertentes do Outro da linguagem e do gozo. O sintoma é feito de gozo, embora sempre com um pouco de palavra (roupa). Apoiando-nos nela, no que a palavra tem de ambiguidade e de algo mais, podemos, com um pouco de sorte, abrir o sintoma e seu portador à dimensão da verdade. (VIEIRA, 2010, p. 22).

Vieira (2010) chama atenção para o fato de o que chamamos habitualmente de “vida” ser a articulação dessas duas dimensões, da linguagem e da pulsão – se dissociadas, ambas tendem à morte. A única função pela qual a vida pode definir-se, isto é, a reprodução de um corpo, não pode ela própria intitular-se nem como vida nem como morte, pois, como tal, enquanto sexuada, ela comporta as duas, vida e morte. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 43).

A maleabilidade dos conceitos em psicanálise, defendida por Lacan como a possibilidade de se evitar o estancamento da teoria, é o que permite que a clínica psicanalítica continue respondendo ao laço social. Ao mesmo tempo, a formatação topológica com que Lacan apresenta seus conceitos demonstra que há um núcleo que permanece, resistindo a uma leitura no sentido da superação de uma definição por outra e fazendo a psicanálise resistir, também, a identificar-se toda aos

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significantes-mestres de cada época. Seus alicerces teórico-clínicos permanecem válidos em momentos históricos absolutamente distintos porque, embora uma vertente do sintoma responda à cultura em que se insere, o inconsciente subsiste, em certo nível, independente dela. Agora, eu não diria que o inconsciente é cultural, embora ele seja, certamente, sensível aos grandes cortes sobre os modelos de estabelecimento da certeza na história. Freud, por exemplo, admite isso quando diz que o inconsciente foi modificado no momento em que a instituição do patriarcado foi inventada. E isso atravessou as civilizações, atravessou os séculos, mas não é certo que o pai vai durar para sempre. O pai é uma invenção, e tudo que é inventado acaba por morrer. E não se trata aqui da morte dramática do pai freudiano. Nesse sentido, podemos dizer que o inconsciente é um sistema que é sensível à evolução da civilização, mas não ao relativismo culturalista. (LAURENT, 2000, p. 25).

Na realidade social que acolhe o falasser, a psicanálise teve seu lugar alterado, deixando de ser o avesso do discurso até então dominante, o discurso do mestre, para assistir à elevação às últimas consequências da lógica do gozo que ela mesma soube desvelar. O último ensino de Lacan é justamente o ponto em que a teoria pôde responder aos efeitos da época do Outro que não existe, na qual o Nome-do-Pai é reabsorvido no múltiplo, pulverizado. Nada mais adequado para os nossos tempos. Nada mais adequado para um tempo em que o Outro não existe, e o mundo é invadido por ofertas de gozo prêt-à-porter, que operarmos com a possibilidade de um pai, também a seu jeito, prêt-à-porter. (KAUFMANNER, 2006, p. 88).

Seguir adiante para continuar respondendo aos modos de vida de cada tempo sem perder seu caráter de avesso continua a ser o desafio da psicanálise hoje, como o foi em toda a sua história. Lacan (1969/2003) sustenta que o inconsciente é político justamente porque responde ao laço social, ao Outro, mas também porque impõe resistência a ele. Barros (2008) cunha a expressão “psicanálise líquida” 58 para dizer do fato de a clínica psicanalítica contemporânea ter absorvido algo da fluidez típica da aceleração de nosso tempo. Isso possibilitou, entre outras coisas, que ela ganhasse maior circulação, ocupando novos continentes e apresentando menos resistência ao deslizamento e aos fatos.

Alusão à nomeação “modernidade líquida” dada pelo filósofo polonês Zigmunt Bauman à realidade social atual, que ele entende ser um segundo momento da modernidade. 58

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Se a psicanálise não é mais o avesso do discurso dominante, de duas uma: ou ela simplesmente perde o seu poder de interpretar, e esse poder talvez se desloque para uma outra prática (religiosa, por exemplo, ou por alguma forma de política comunitária...), e teremos aqui a liquidação da prática inventada por Freud; ou então a psicanálise muda de lugar e de consistência, muda de estado físico, e neste caso haverá uma mudança de estatuto tanto da interpretação quanto do começo e do fim da análise. (BARROS, 2008, s.p.).

Miller (2011b) afirma, contudo, que a consonância da psicanálise com o tempo presente não pode ser motivo de entusiasmo, afeto que, de toda forma, não conviria ao analista. O afã de tomar o falasser como uma atualização das coordenadas conceituais da psicanálise impõe a necessidade de escaparmos da lógica adaptativa, que foi o alvo das críticas de Lacan diante dos pós-freudianos. Por isso, se caímos na armadilha de fazer a ordem simbólica deixar de ser um conceito operativo em nossa realidade social, estaríamos seguindo, afirma Zizek (2001), pela via de uma atualização desmesurada e perigosa. O caráter artesanal da palavra certamente torna a psicanálise obsoleta aos olhos de campos de saber apoiados no cientificismo, como as neurociências. Por outro lado, vale lembrar que “novo” é um significante que marca a presença da psicanálise no mundo desde sempre, na medida em que ela propõe uma grade de leitura que se mantém sempre inédita. Paradoxalmente, o “novo” – na concepção de avesso – que a psicanálise oferece ao mundo da velocidade e do mercado apoia-se na sustentação daquilo que, do ser humano, se repete, da presença em cada um de algo que segue permanentemente vivo, reinaugurando-se. O que há de bom, não é?, no que lhes conto, é que é sempre a mesma coisa. Não que eu me repita, não é esta a questão. É que, o que eu digo anteriormente ganha sentido depois. (LACAN, 1972-1973/1995, p. 50).

Não há, afinal, sintoma sem repetição, e isso impede que o sujeito do inconsciente torne-se obsoleto, mesmo diante das mais avançadas tecnologias produzidas pelo mercado em sua parceria com a ciência. Portanto, apesar de o que chamamos de sintomas contemporâneos responderem a um imperativo de gozo que silencia o valor da responsabilização, é possível à psicanálise continuar apostando na vertente da falta-a-ser como possibilidade de promover certa deflação pulsional, que permita um alívio ao ser falante. Segundo Vieira (2010, s. p.), “o sintoma é feito de gozo, embora sempre com um pouco de palavra”. Apoiando-se nela e em sua ambiguidade, podemos abrir

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o sintoma e seu portador à dimensão da verdade, permitindo que surja uma construção, uma ficção como anteparo aos imperativos que tomam o falasser de assalto. Isso não impede que a orientação lacaniana continue direcionando-se ao real, mas diz que esse encontro pode se dar sem eliminar a ética do sujeito como alicerce em torno do qual se constrói o sinthoma. A esse respeito, pelo menos no horizonte daquilo que se pode dizer, a psicanálise do neurótico é uma subida. Parte-se do Um mergulhado no Outro e os semblantes que ali estão veiculados vacilam e se evacuam, até que o sujeito tenha acesso ao seu falar para si mesmo, ao autismo de seu discurso. É neste momento que a interpretação encontraria seu valor de intrusão de um modo novo do significante. (MILLER, 2009, p. 166-167).

Orientarmo-nos pelo real esquiva-nos da ingenuidade de propor a sustentação do sujeito como o que seria um novo retorno a Freud, na vertente da crença inabalável em um simbólico que obstruiria nossa visão em relação aos evidentes efeitos pulsionais em nosso tempo. A segunda clínica de Lacan, afinal, mantém-nos advertidos do caráter temporário e fragmentado de qualquer construção que pretenda um acesso à verdade. De nossa parte, se podemos extrair da lógica do falasser um operador que parece orientar a clínica psicanalítica em direção a um verdadeiro avanço na realidade social que habitamos, escolhemos a retomada da importância da contingência, de um mundo que não é um todo, que não pode ser inteiramente revestido pela palavra e que depende do acontecimento, do que vai se produzir, restando ainda espaço para a surpresa, a invenção: “neste mundo, um caso particular jamais é um caso exemplar de uma regra ou de uma classe. Somente há exceções à regra. Essa é a fórmula universal, paradoxal, é claro” (MILLER, 2003b, p. 30). Nessa vertente, o trabalho do analista afasta-se do de operário e aproxima-se mais da arte. Diferentemente da automatização da clínica, utopia das classificações dos códigos internacionais de doenças, que visam a formular um diagnóstico sem a necessidade de pensar, Miller vai chamar a atenção, no caso a caso, para a necessidade constante de julgamento clínico: “nesta dimensão, a prática não é a aplicação da teoria” (MILLER, 2003b, p. 30). Em algum momento, a teoria não suporta acompanhá-la, porque a prática inclui o acontecimento, o inesperado, tornando premente a reconstrução constante dos princípios que governam cada caso, singularmente.

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Se há um buraco no universo das regras e das classes – S(Ⱥ) –, é necessária a invenção. O analisante inventa uma regra própria para o funcionamento do seu gozo. O analista também inventa a direção do tratamento de cada caso clínico. A regra universal a que todos os seres falantes se submetem, portanto, é ausência de uma regra. Sobre o universal da clínica, o falasser acopla a concepção desse universal negativo. É isto o universal. É um universal negativo. É o universal que é ele, por si mesmo, um buraco. É uma fórmula não escrita, fórmula que não se inscreve. É a ausência de um programa (como na informática), a ausência de um programa sexual. Lacan o chamou de "não relação sexual". É o único universal que vale para um sujeito, porém é um universal negativo que significa a ausência de uma regra, que permite a passagem ao limite o fato de que, diferentemente de outras espécies animais, o modo de relação entre os membros da espécie humana é especialmente aberto à variação. Aberto à verdade e à mentira. Aberto à variação, à contingência e à invenção. (MILLER, 2003b, p. 31).

A solução imaginada por Lacan pela vertente do real não passa nem por uma recusa do saber nem por um alinhamento a essa perspectiva, mas pelo que ele entende como uma renovação do sintoma pela introdução do conceito de sinthoma como aquilo que resta intratável em uma análise. Já no início da experiência analítica, é possível isolar o elemento do discurso pelo qual o analisando poderá ler seu inconsciente e no qual ele poderá reconhecer, ao final, seu ser de gozo. Operase pelo que Gorostiza (2006) entende ser a via de uma redução, de um estreitamento. O final da análise é, portanto, um uso novo do sinthoma, aspecto mais antigo do ser falante, que constitui o ser de gozo mesmo antes da incidência da linguagem: “se há algo incurável no próprio sintoma, trata-se de fazer um uso diferente do uso neurótico” (GOROSTIZA, 2006, s.p.). Esse resto pode passar ao estatuto de causa, colocando o falasser a trabalho, diz Lima (2011, p. 210): “uma aliança na qual o resto não se apaga nem se cura, mas persiste como vivificação do objeto-resto não mortificado pela palavra”. O caso clínico de Lucas, que apresentamos ao longo desta tese, mostra-nos como o primeiro momento de uma análise pode ser a construção de um ponto de endereçamento para esse falasser “sem honra e sem vergonha” (GOROSTIZA, 2006, s.p.), que carece de referências identificatórias e não sabe com que traço singular se apresentar frente ao Outro. Um ser sem nobreza, “[...] se entendemos por nobreza a barra singular que marca o sujeito e que este recebe do traço unário,

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a primeira identificação que traumatizou seu corpo de falasser” (GOROSTIZA, 2006, s.p.). Esse primeiro momento permite um ordenamento inicial de significantes e a localização de um S1 onde o ser falante se reconheça e a partir do qual poderá, então, ler a sua história, entrando no discurso analítico. Com esse mesmo S 1, reduzido à condição de sinthoma após o atravessamento de todo sentido possível, será construída, em um segundo momento, a saída da análise pela vertente do real. Passar o sintoma do simbólico ao real, portanto, explicita a ligação que permanece entre sujeito e falasser na clínica psicanalítica. Ao final da análise, será possível atingir o limite do legível do significante, deixar um relevo, um inigualável, uma opacidade que permanece. É esse resto a nobreza do falasser. Esse resto é o que constitui o valor de vocês, por pouco que saibam fazê-lo passar ao estado de obra. É sem dúvida nele que cada um peca, tropeça, claudica. Porém é também o que constitui, para cada um, sua diferença ou sua nobreza. Lacan fala do traço que barra o S de seu sujeito como um traço de nobre bastardia. No Seminário: O sinthoma, essa nobreza da bastardia encontra sua divisa: não há sujeito sem sintoma, e isso até o final dos tempos. Então não sonhemos, não tenhamos como ideal somente, simplesmente, curar. (MILLER, 2005b, s.p.).

A identificação ao sinthoma do final da análise é uma identificação à sua dimensão opaca, que, por isso, jamais poderia responder totalmente sobre o que o ser falante é, como pretende o sintoma neurótico. Não é possível eliminar a castração, apenas relacionar-se de outra forma com essa divisão – não ficamos livres ao que nos é mais antigo, apenas damos a ele um novo uso. O gozo no nível do inconsciente real, todavia, não teria como ser situado em uma equação e permanece insolúvel. Freud soube disso antes que Lacan o anunciara. Há sempre um resto com os sintomas. Por isso não há final absoluto para uma análise, que durará tanto quanto o insolúvel continue sendo insuportável. Ela acaba quando o homem simplesmente encontra ai uma satisfação. (MILLER, 2012a, s.p.).

O que Lacan (1970/2003) chama de ascensão de a ao zênite social não significa, portanto, o fim do regime edípico que estrutura o sujeito e de sua incidência na clínica psicanalítica, apenas sua localização como um momento clínico anterior à decantação do sinthoma do final da análise. O Outro nãotodo está vinculado ao Todo, a algum tipo de corporeidade, diz Vieira (2006). A primeira clínica lacaniana insiste na segunda, fazendo com que o sujeito tome seu lugar, topologicamente, junto ao falasser.

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A teoria lacaniana da contemporaneidade não supõe uma ruptura com a modernidade e sim uma mudança de registro fundamentada na exacerbação de algo que já estava ali, e em uma nova aliança entre seus principais personagens. A contemporaneidade lacaniana é assim uma alta modernidade, ou como prefere Miller aproximando-se de Lipovetsky, uma hipermodernidade. (VIEIRA, 2006, p. 23).

No caso de Lucas, o sujeito é o que pode ser construído pela experiência analítica, que não chega a uma abordagem do real porque o sujeito parece extrair dessa construção de sentido já uma solução que o permite se separar do objeto droga. Isso demonstra que a saída pelo sujeito ou pelo sinthoma não estão, necessariamente presentes em toda análise, cabendo ao analista encontrar uma abordagem original para cada caso e, ao analisante, responsabilizar-se pela saída que escolher – e o fim de análise, sabemos com Lucas, não é sempre a única saída possível para que possamos considerar uma experiência analítica bem sucedida. De toda maneira, Lucas permite-nos afirmar que a psicanálise é uma construção de sentido que deve continuar existindo, porque impõe uma resistência: “a psicanálise luta contra a depressão e o tédio, pois ela afirma ao sujeito que no horizonte da subjetividade de seu tempo, haverá sempre furo no Outro” (LAURENT, 1998, p. 88). Mesmo diante da vertente privilegiada do ato, do qual a droga é exemplo paradigmático em nosso tempo, o sujeito segue como operador fundamental na clínica psicanalítica, e o simbólico é um sonho de Lacan que permanece na realidade do falasser. Dizer de seu desejo é a possibilidade de o sujeito estar no mundo dos objetos pulverizados diferenciando-se das latusas e recusando a posição de dejeto. Essa saída não livra o sujeito da angústia – Lucas, ao contrário, volta ao consultório para tratar justamente da sua incidência após ter se responsabilizado por sua responsabilização. Há um sofrimento intenso, uma dificuldade para construir uma saída menos pesada, um trabalho que ainda poderia ir longe e que, certamente, demanda mais investimento do sujeito do que a saída pela via dos objetos. O alívio que a psicanálise pode oferecer, portanto, não diz respeito a uma promessa de felicidade, mas ao que pode advir como mais autoral, mais concernente ao ser falante, do que sua identificação automática aos significantes produzidos artificialmente. Nossa limitação como analista e como pesquisadora impede-nos de compreender por que outra via, que não pelo sentido, a orientação pelo real pode partir na experiência analítica. A referência da psicose permite-nos supor que essa

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via existe, porque não é de uma tradução obrigatória do sinthoma pela via do sentido que a segunda clínica trata, mas, ao contrário, do real como o ponto originário do falasser, que dispensa, inclusive, sua entrada na linguagem. Na prática, contudo, isso ainda nos parece de um manejo obscuro. Orientando-nos por essa vertente enigmática que o caso clínico escolhido não permite elucidar e a teoria parece não responder de forma objetiva, deixamos essa via em aberto como sugestão para que outras pesquisas possam advir como complemento a esta.

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ZIZEK, Slavoj. On belief. New York: Routledge, 2001.

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ANEXOS

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Anexo 1. Parecer do comitê de ética da PUC Minas PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP DADOS DO PROJETO DE PESQUISA Título da Pesquisa: VICISSITUDES DO SUJEITO NA CLÍNICA DO FALASSER Pesquisador: Adriane de Freitas Barroso Área Temática: Versão: 1 CAAE: 17692913.4.0000.5137 Instituição Proponente: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUCMG Patrocinador Principal: Financiamento Próprio DADOS DO PARECER Número do Parecer: 325.723 Data da Relatoria: 26/06/2013

Apresentação do Projeto: O projeto tem como problema a questão: Qual é o lugar do conceito de sujeito na clínica psicanalítica atual e como operar com ele na realidade social do falasser, que busca responder à exaltação do gozo e ao enfraquecimento do simbólico? O trabalho proposto justifica-se pela necessidade de esforços constantes na atualização de conceitos na teoria psicanalítica, atrelando-os ao horizonte de cada época e à clínica que o testemunha. O estudo centra-se metodologicamente em uma pesquisa teórica, calcada na leitura crítica de textos que orientam a discussão sobre o tema proposto, em busca de um diálogo entre os pressupostos iniciais do pesquisador e o saber advindo do material consultado, que percorre diversos

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momentos do ensino lacaniano e também o trabalho de seus leitores. A pesquisa teórica é associada à discussão de um caso clínico, que pode viabilizar a apropriação de conceitos e sua articulação, que possibilita o avanço da teoria. Por isso, a coleta de dados será realizada através de um caso clínico em atendimento no consultório de psicanálise da pesquisadora. Os dados serão analisados a partir da teoria psicanalítica.

Objetivo da Pesquisa: 1. Objetivo geral: A presente pesquisa tem como objetivo estabelecer a trajetória teórica do sujeito ao falasser no ensino de Lacan, de maneira a questionar o lugar do conceito de sujeito em uma nova realidade social e, consequentemente, na clínica a que o falasser vem responder. 2. Objetivos específicos: . Investigar, na teoria freudiana, a pré-história do que Lacan formaliza como sujeito e percorrer esse conceito no primeiro e no segundo ensinos lacanianos, focando a centralidade do simbólico nessa construção. . Abordar as alterações na concepção de gozo ao longo do ensino de Lacan, que exigem, em seu desdobramento, a construção do conceito de falasser. . Trabalhar o conceito de falasser articulado a outros conceitos centrais do terceiro ensino de Lacan, que propõe um giro do simbólico ao real. . Discutir a leitura do conceito de sujeito na clínica psicanalítica a cuja realidade social o falasser responde. . Com a construção de um caso clínico, abordar as imbricações entre teoria e clínica em psicanálise, as especificidades do caso clínico no discurso analítico e, finalmente, discutir o lugar conceito de sujeito na clínica atual.

Avaliação dos Riscos e Benefícios: A pesquisadora esclarece bem quais seriam os riscos e benefícios de sua pesquisa. Como o caso clínico é pautado em um sujeito que já está em atendimento clínico por ela, qualquer dificuldade que possa aparecer pode ser sanada na própria condução do seu atendimento. Além disso, a pesquisadora afirma que o sujeito não é alguém do meio acadêmico ou psicanalítico, o que contribui para a manutenção do

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sigilo e de sua privacidade, não podendo ser identificado. A discussão do caso clínico na tese pode favorecer o desenvolvimento do atendimento, o que pode resultar em benefícios ao sujeito. Comentários e Considerações sobre a Pesquisa: O estudo é pertinente e relevante por contribuir na atualização de conceitos na teoria psicanalítica. Esta teoria tem importância no cenário clínico atual e necessita rever sistematicamente seus conceitos e aventar novas possibilidades de prática. O projeto é bem elaborado, bem redigido, contendo as informações necessárias. Apesar de no projeto não mencionar os critérios de seleção do caso clínico, estes estão presentes no texto da tese anexado na Plataforma Brasil. O cronograma proposto é viável para a plena realização da pesquisa. A pesquisadora conta com financiamento do FIP/PUC Minas, o que facilita a execução do trabalho no prazo desejado.

Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória: A pesquisadora apresenta a Folha de Rosto, o projeto de pesquisa, o texto da tese em andamento.

Pede a dispensa do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, justificando que pedir ao sujeito do caso que assine um Termo de Consentimento pode comprometer o processo de análise, que ainda está em andamento, assim como alterar a relação analista-analisante. Estas ponderações são pertinentes à prática clínica psicanalítica. Além disso, como há um comprometimento com o sigilo e a não identificação do sujeito, é pertinente a dispensa da assinatura do Termo de Consentimento, o que não significa ou implica em problemas relacionados a questões éticas. Recomendações: Sugiro aprovação do projeto sem recomendações ou ressalvas. Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:

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Não há pendências ou inadequações. Situação do Parecer: Aprovado Necessita Apreciação da CONEP: Não Considerações Finais a critério do CEP:

BELO HORIZONTE, 04 de Julho de 2013

Assinado por: CRISTIANA LEITE CARVALHO

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