Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira

May 30, 2017 | Autor: T. Franz | Categoria: Identidade Brasileira, Victor Meirelles, Primeira Missa no Brasil
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19&20 ­ Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira, por Teresinha Sueli Franz

Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira [1] Teresinha Sueli Franz [2] FRANZ,  Teresinha  Sueli.  Victor  Meirelles  e  a  Construção  da Identidade  Brasileira.  19&20,  Rio  de  Janeiro,  v.  II,  n.  3,  jul.  2007. Disponível em: . *     *     *

As culturas nacionais também são formadas de símbolos e representações. Ao construir sentidos sobre a nação, constroem identidades. Esses sentidos são contidos nas histórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o passado e imagens que dela são construídas. Stuart Hall

Conta­nos  Carlos  Rubens  (1945)  que  Victor  Meirelles morrera pobre, solitário e desencantado da vida, aos 70 anos de  idade,  no  Rio  de  Janeiro.  Num  desses  momentos  de sofrimento, próximo a sua morte, Victor Meirelles teria dito a um artista amigo e discípulo que lhe restara, numa amargura indefinível: “Se eu recomeçasse a minha vida, seguiria outros caminhos”.  Ao  que  teria  perguntado  seu  discípulo  preferido: “E  que  outros  caminhos  levariam  o  senhor  à  ‘Primeira Missa?’”.  Pelo  que  supomos,  nenhum  outro  caminho  levaria Victor Meirelles a sua “Primeira Missa no Brasil” [Figura 1]. Por  isso,  para  compreender  esta  pintura,  precisamos reconstruir este caminho, andar por onde ele andou, olhar as mesmas paisagens e mergulhar nas idéias políticas, religiosas, estéticas e humanistas das quais o artista se serviu. Deixar­se impregnar  pelos  sentimentos  românticos  e  indianistas  de  seu tempo,  e  da  contraditória  e  complexa  rede  de  relações  da segunda  monarquia  brasileira.  Enfim,  é  necessário  trilhar  os caminhos  que  ele  percorreu,  com  um  olhar  compreensivo  e neutro, isto é, sem preconceitos. Nesta busca do autor, nossa meta  não  há  de  ser  encontrar  um  herói,  tampouco  um  vilão, mas  o  artista  do  seu  tempo,  o  que  Victor  Meirelles  o  foi  em grande  estilo.  Para  isso  é  necessário  esforço,  no  sentido  de buscar  pistas  de  compreensão  que,  ao  mesmo  tempo,  não obscureçam nossa visão com as idéias simplistas que até hoje inibem uma maior compreensão de sua obra. A indiscutível dependência entre o artista e seu tempo é o fio condutor deste artigo. file:///F:/vm_missa.htm

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O  pintor  e  sua  colaboração  no  projeto  de  construção nacional O  autor  da  “Primeira  Missa  no  Brasil”  nasceu  em  Desterro, atual  Florianópolis,  capital  do  Estado  de  Santa  Catarina,  em agosto de 1832, na casa atualmente transformada em museu e na  rua  que  hoje  leva  o  seu  nome.  Já  é  bastante  conhecido entre  nós  seu  interesse  precoce  pela  aprendizagem  do  ofício de  pintar,  habilidade  que  começou  a  desenvolver  quando ainda era menino e vivia em sua ilha natal. Motivo pelo qual, aos  14  anos  incompletos,  foi  conduzido  ao  Rio  de  Janeiro para integrar o grupo de estudantes da Imperial Academia de Belas  Artes,  onde  iniciou  uma  trajetória  de  estudos  que  o levou ao Prêmio de Viagem à Europa, nos principais centros artísticos de então, na Itália e na França. A pintura “Primeira Missa no Brasil”, considerada uma “obra­ prima”  da  história  da  arte  nacional,  foi  produzida  em  Paris, durante  a  longa  viagem  de  estudos  do  artista  (1853–1861) como bolsista da Imperial Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.  Humanista  ligado  ao  Romantismo,  grande pesquisador,  observador  atento,  estudioso,  dedicado, disciplinado  e  indiscutivelmente  comprometido  com  seu tempo, foi o primeiro brasileiro a expor no Salão Oficial em Paris,  em  1861,  onde  representou  seu  país  com  a  pintura “Primeira Missa no Brasil”. Cabe destacar que, mesmo estando em Paris, Victor Meirelles estava  em  constante  comunicação  com  os  professores  da Imperial  Academia  de  Belas  Artes  no  Brasil,  principalmente com  Manuel  de  Araújo  Porto  Alegre.  Victor  cumpria  assim uma  das  exigências  do  país  que  sustentava  sua  estada  na França.  Embora  estudando  com  os  mestres  do  Primeiro Mundo, permanecia sob a tutela e os comandos da Academia no  Brasil,  portanto,  sujeito  também  às  idéias  que  esta articulava com a elite política e cultural do País, entre eles o Imperador Pedro Segundo e o grupo do IHGB. Sendo assim, compreendemos que é principalmente a cultura de seu país de origem  que  determina  sua  maneira  de  pensar  e, conseqüentemente, de pintar. A “Primeira Missa no Brasil” é o resultado de uma complexa rede  de  relações  entre  as  idéias  e  utopias  que  se desenvolveram  dentro  do  chamado  “Projeto  Civilizatório”, file:///F:/vm_missa.htm

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presente  no  imaginário  da  elite  cultural  e  política  do  século XIX brasileiro. Este projeto se torna mais evidente, de forma direta ou indireta, com a transferência da Corte Portuguesa ao Rio  de  Janeiro,  em  1808,  e  se  consolida  com  as  monarquias que se seguiram depois (1822–1889). Com  a  vinda  da  Corte,  o  Rio  de  Janeiro  se  modernizava, perdendo  aos  poucos  o  aspecto  colonial.  Em  torno  dela  se desenvolveu  uma  cultura  laica,  mundana,  cortesã  e aristocrática. Segundo López (1988), a Corte divertia­se com touradas,  cavalhadas,  teatros,  saraus  e  musicais.  É  neste cenário que emergiu a primeira academia de arte do País. López também comenta que foi devido a mudanças políticas entre  Portugal  e  a  França,  como  parte  de  uma  estratégia  de reaproximação  dos  dois  países,  que  teria  surgido  a  idéia  de trazer para o Brasil uma Missão Artística Francesa, em 1816, com  a  finalidade  de  institucionalizar  o  ensino  artístico  no Brasil.  Este  fato  se  consolidou  mais  tarde,  em  1826,  com  a criação  da  Imperial  Academia  de  Belas  Artes  do  Rio  de Janeiro. A “Primeira Missa no Brasil”, antes de ser a produção isolada de um artista, é uma síntese visual do “Projeto Civilizatório” de  cunho  nacionalista  do  Segundo  Império.  Por  isso,  para compreender esta pintura é necessário ir àquele contexto. O  País  se  firmava  como  nação  independente.  Pensava­se  em criar  uma  identidade  nacional,  e  a  arte  era  considerada  um lugar  privilegiado  para  pensar  a  sociedade  e  para  inventar uma  nova  identidade.  As  Belas  Artes  eram  instrumento  de civilização e glória, tendo o poder de contribuir na educação dos  povos,  com  capacidade  de  interferir  diretamente  na realidade.  A  idéia  de  arte  ligada  à  pedagogia  e  à  civilização estava  bem  de  acordo  com  o  projeto  civilizatório  da  jovem nação, independente desde 1822. Para  compreender  o  contexto  do  qual  emerge  a  pintura “Primeira  Missa  no  Brasil”,  em  meio  aos  problemas  do Segundo  Império,  é  necessário  também  entender  as  questões que  envolvem  a  legitimação  deste  “Projeto  Civizatório”  em um plano geral internacional. Lilia  Schwarcz  (1998)  comenta  sobre  as  dificuldades  que  a monarquia tropical teria encontrado para legitimar seu poder file:///F:/vm_missa.htm

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diante do mundo, o que implica, entre outras coisas, a criação, a  ostentação  e  a  ampla  divulgação  dos  ícones  que  criou. Cercado  de  repúblicas,  o  modelo  monárquico  brasileiro contava  com  obstáculos  para  seu  reconhecimento,  seja  pelas demais nações americanas, seja pela difícil comunicação com os países europeus. Há que se considerar o esforço interno no sentido de dissociar a  imagem  brasileira  da  idéia  de  anarquia,  associada  a  um sistema escravocrata persistente sobre o qual se estruturavam a  sociedade  e  a  economia  brasileiras.  A  pesquisadora  acima citada explica que por essa razão, desde os primeiros anos de independência, houve evidente esforço em divulgar e efetuar uma  imagem  ao  mesmo  tempo  comum  e  peculiar  neste longínquo império. Não  havia  uma  consciência  clara  das dificuldades de transpor para o Brasil, um país em  formação,  modelos  importados  de  países como a França. O  Brasil  era  constituído  de  uma  sociedade cultural  e  artisticamente  pouco  complexa,  cuja elite intelectual, seduzida pela cultura européia, não  podia  perceber  até  que  ponto  era problemático para esta cultura criar raízes e se desenvolver  livremente  em  uma  sociedade ainda em crescimento (BAEZ:1986, p. 15).

A via de entendimento deste período, seguramente, não passa por respostas simples e rápidas. Podemos buscar elementos de reflexão  na  hipótese  de  que  o  País  buscava  se  afirmar  nos modelos  que  já  conhecia  e  tinha  consciência  de  que  eram mais  adiantados.  Por  outro  lado,  havia  uma  angustiante pergunta  entre  as  idéias  civilizatórias,  pergunta  esta  que continua  sendo  motivadora  de  movimentos  culturais  e artísticos  nacionais  ao  longo  da  história:  afinal,  o  que  é brasileiro? Havia,  durante  o  século  XIX,  um  desejo  geral  de  afirmação perante o mundo capitalista. Pesavento (1997) fala do desejo de ser moderno, participar da rota do progresso, tornar­se uma grande  nação,  desfazer  a  imagem  do  exotismo  tropical  do atraso e da inércia. Para  compreendermos  por  que,  em  momentos  de  mudança, certos símbolos vingam e outros não, devemos atentar não só para a emissão como também para a divulgação, ou seja, para o consumo destes símbolos. file:///F:/vm_missa.htm

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D.  Pedro  II,  primeiro  monarca  nascido  no  Brasil,  foi imperador de 1840 a 1889 e tornou­se o principal mecenas do movimento  romântico.  Lilia  Schwarcz  diz  que  é  na iconografia  que  mais  se  nota  o  uso  de  uma  simbologia característica  desta  monarquia  carregada  pelos  sinais  de  um diálogo  com  a  realidade  externa  (européia),  sem,  contudo, deixar  de  denunciar  características  singulares  locais (nacionais).  Fértil  na  produção  de  imagens,  o  Império brasileiro  se  destacou  em  seu  papel  de  criador  de  ícones nacionais,  entre  hinos,  medalhas,  emblemas,  dísticos  e brasões, entre os quais é possível incluir a “Primeira Missa no Brasil” como parte da iconografia oficial. O índio brasileiro e o movimento romântico É  no  movimento  literário  romântico  que  vamos  encontrar  a figura do índio tomando forma desde 1826, quando o francês Ferdinand  Diniz,  empregado  consular,  chama  a  atenção  dos brasileiros  para  a  necessária  substituição  das  tendências clássicas  em  favor  das  características  locais.  Defendia­se  a descrição da natureza e dos costumes, nos quais o índio devia ser  valorizado  como  primeiro  e  mais  autêntico  habitante  do Brasil. Os  literatos  românticos  conviviam  com  os  historiadores  do IHGB e com os professores e diretores da Imperial Academia de  Belas  Artes,  entre  eles  Manoel  de  Araújo  Porto  Alegre, quem  teve  uma  forte  relação  com  a  criação  da  pintura “Primeira Missa no Brasil”. Foi  nos  decênios  de  50  e  60  do  século  XIX  que,  segundo Schwarcz  (1998),  o  Brasil  conheceu  a  consagração  do Romantismo,  cuja  manifestação  considerada  a  mais genuinamente  nacional,  o  indianismo,  teve  nele  o  maior movimento  de  prestígio,  alcançando,  além  da  poesia  e  do romance,  a  música  e  a  pintura.  Os  indianistas  ganhavam popularidade  na  representação  romântica  do  índio  como símbolo nacional. Assim,  a  história  da  Imperial  Academia  de  Belas  Artes  e  a produção  dos  seus  alunos  não  podem  ser  dissociadas  das significações maiores do Império. Esta história ainda está por ser  mais  bem  contada,  principalmente  no  que  diz  respeito  à existência de um projeto civilizatório associado à construção do Estado e da nação. file:///F:/vm_missa.htm

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A “Primeira Missa no Brasil” Imagem simbólica da cultura brasileira, a “Primeira Missa no Brasil”,  assim  como  seus  numerosos  estudos  preparatórios, hoje  fazem  parte  das  coleções  do  Museu  Nacional  de  Belas Artes  do  Rio  de  Janeiro  sob  o  tombo  nº  901.  Foi  produzida durante  o  Império  de  D.  Pedro  II,  na  França,  entre  1859  e 1860,  chegando  ao  Brasil  em  1861.  É  este  entorno  que pretendo  começar  a  reconstruir,  consciente  de  que compreender  o  espírito  do  Brasil  no  Segundo  Império  não  é fácil. Onde buscar a presença de elementos comuns que justifiquem o nascimento de um repertório de imagens e ícones como o da “Primeira Missa no Brasil”, dentro deste contexto? Como  apontou  Schwarcz  (1998),  havia  a  necessidade,  entre outras coisas, da criação e da divulgação de ícones. A “Primeira Missa no Brasil”, um destes ícones, é sem dúvida uma  das  mais  importantes  obras­primas  da  pintura  brasileira de  todos  os  tempos!  As  obras­primas,  segundo  Parsons (1992),  condensam  as  sensibilidades  de  uma  época  e exprimem  plenamente  suas  tendências  e  seus  ideais.  Ao mesmo  tempo  em  que  encarnam  os  valores  de  uma comunidade, são inconcebíveis sem esta comunidade. Nela o artista fez mais do que qualquer pessoa isolada poderia fazer: serviu­se  das  intuições  e  das  realizações  dos  outros, conjugando­os  de  uma  nova  forma,  o  que  lhe  permitiu  falar em nome de toda uma geração. Essa  imagem,  ao  lado  de  outros  emblemas  e  símbolos nacionais, vem contribuindo na formação da idéia que temos sobre  nós  brasileiros,  a  qual  pertence  ao  campo  mítico, silencioso  e  invisível  do  Mito  Fundador  do  Brasil.  Criação dos  conquistadores  europeus,  apropriado  pelo  Romantismo brasileiro,  o  velho  mito  continua  renovadamente  reinventado entre nós. É importante destacar também o papel da “Primeira Missa no Brasil”  na  construção  de  uma  representação  sobre  o “Descobrimento” e sobre a identidade brasileira vinculada ao catolicismo  e  ao  sentido  de  conversão  que  a  navegação portuguesa trouxe consigo, o que amplia a importância desta pintura na construção do nosso imaginário cultural. file:///F:/vm_missa.htm

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Academia Imperial de Belas Artes Tida  como  fato  primordial  para  a  sistematização  do  ensino artístico no Brasil, a Missão Artística Francesa chegou ao País em  março  de  1816,  a  convite  e  por  arranjo  da  Corte Portuguesa no Brasil. Era formada por um grupo de artistas e mestres  de  ofícios,  quase  todos  ex­bonapartistas  que  vinham para  introduzir  o  ensino  acadêmico  das  artes  e  ofícios  no Brasil de D. João VI. Para a Imperial Academia de Belas Artes eram encaminhadas as vocações artísticas das províncias do Brasil, como Manuel de  Araújo  Porto  Alegre,  do  Rio  Grande  do  Sul;  Victor Meirelles  de  Lima,  de  Santa  Catarina;  Pedro  Américo  de Figueiredo  e  Melo,  da  Paraíba,  José  Ferraz  de  Almeida Júnior,  de  São  Paulo,  entre  outros.  As  obras  destes  artistas espelham  o  espírito  acadêmico  de  então,  voltadas  para  o idealismo  clássico  e  para  os  mestres  consagrados  pelas academias de Roma e de Paris. Schwarcz (1998) chama a atenção para a relação direta que o Imperador  Pedro  II  mantinha  com  a  Imperial  Academia  de Belas Artes durante o seu longo Reinado. Empreendendo uma política semelhante ao IHGB, o Imperador passou a distribuir prêmios,  medalhas,  bolsas  para  o  exterior  e  financiamentos, assim  como  participou  com  assiduidade  das  Exposições Gerais  de  Belas  Artes,  promovidas  anualmente,  ou  entregou insígnias das Ordens de Cristo e da Rosa aos artistas de maior destaque.  Em  1845,  D.  Pedro  passou  a  custear  o  Prêmio  de Viagem, aberto anualmente, que financiava estudos de alunos da Academia no Exterior. O Imperador recebeu o título de Fundador e Protetor Perpétuo da Academia Imperial; proteger a Academia e os artistas era também  uma  forma  de  garantir  a  produção  da  iconografia oficial.  Da  Academia  e  de  seus  artistas,  além  da  pintura “Primeira  Missa  no  Brasil”,  saíram  os  inúmeros  retratos,  as cenas  familiares  e  de  poder  da  Família  Real  que  até  hoje ilustram nossa história. A pintura histórica era o gênero mais valorizado  na  Academia  em  meados  do  século  XIX.  Como bem explicita Jorge Coli (1998: 117) Meirelles  atingiu  a  convergência  rara  das formas, intenções e significados que fazem com file:///F:/vm_missa.htm

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que  um  quadro  entre  poderosamente  dentro  de uma  cultura.  Essa  imagem  do  descobrimento dificilmente  poderá  vir  a  ser  apagada,  ou substituída.  Ela  é  a  primeira  missa  no  Brasil. São os poderes da arte fabricando a história.

O  modelo  de  ensino  de  arte  que  o  Brasil  importava  era, segundo Barbosa apud Zanini (1983), o único com atualidade no  país  de  origem  no  momento  de  sua  importação  para  o Brasil.  Portanto,  o  neoclássico,  através  do  qual  se expressaram os artistas da Missão Artística Francesa quando para cá vieram organizar nossa primeira escola de arte, era o estilo de vanguarda naquele tempo. O  desenvolvimento  da  pintura  brasileira  começou  tomar fôlego  a  partir  de  1840,  data  em  que  se  realizou  a  primeira Exposição  Geral  de  Belas  Artes.  Foi  neste  cenário  que apareceu entre os alunos, em 1847, o artista Victor Meirelles de  Lima,  filho  de  imigrantes  portugueses,  vindo  da  cidade Desterro, hoje Florianópolis. Se,  por  um  lado,  a  Academia  lhes  ensinava  a  gramática tradicional  das  artes  plásticas,  por  outro,  eles  provinham  de uma  sociedade  sem  nenhuma  tradição  para  exprimir­se  por meio  das  formas  eruditas  da  Academia,  onde,  mais  por intuição  do  que  por  formação,  começaram  a  desconfiar  da repetição  de  cenas  mitológicas  e  bíblicas  fornecidas  pelos modelos de ensino. Os  professores  da  Academia  de  Belas  Artes  e  o  corpo governamental  do  país  estavam  esperando  que  surgissem talentos.  Tudo  era  acompanhado  muito  de  perto  pelo Imperador, que, para prestigiar, tornou­se presidente de honra do IHGB. Desde menino, aos 14 anos, ele acompanhava tudo de perto. Segundo pesquisa publicada em Franz (2003), antes de Victor Meirelles  a  Academia  enviou  outros  artistas  para  a  Europa, através do sistema de bolsas de estudos, mas eles produziram pouco  e  voltaram  logo.  O  primeiro  que  realmente  se  vê  nos documentos e que tinha noção do que estava acontecendo é o pintor  catarinense.  Ele  foi  para  a  Europa  e  atendeu  às exigências  da  Imperial  Academia  no  Brasil  nas  obrigações dele  esperadas.  Enquanto  os  outros  artistas  mandavam  um desenho  ou  dois,  Victor  Meirelles  mandava  dez  ou  vinte. Então  o  Imperador  e  os  intelectuais  da  Academia  sentiram file:///F:/vm_missa.htm

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que  encontraram  o  artista  que  procuravam.  E  é  por  isso  que Victor Meirelles conseguiu a prorrogação da bolsa de estudos por oito anos. O período normal era apenas de três anos. Quando  Victor  Meirelles  estava  na  França,  o  diretor  da Academia no Brasil trabalhava em sintonia com o Imperador Pedro  II.  Mantinham  uma  reunião  semanal,  na  qual  falavam sobre  os  avanços  acadêmicos  de  seus  alunos  e  outras questões.  Então,  quando  Manuel  de  Araújo  Porto  Alegre  se correspondia  com  Victor  Meirelles,  o  resultado  dessas conversas se refletia nas comunicações com o artista. Uma vez feito o primeiro esboço da “Missa”, Victor Meirelles enviou­o  para  a  Academia  no  Brasil.  A  elite  cultural  queria criar  esse  tipo  de  imagem  para  ficar  na  memória  cultural  do País. Por isso, uma vez aceito o esboço da “Primeira Missa no Brasil”,  o  pintor  de  Desterro  ganhou  o  financiamento  para mais  dois  anos  de  estada  na  França  e  para  as  despesas  da execução da obra. Em Paris foi auxiliado por Ferdinand Denis, um homem que tinha  vivido  no  Brasil  no  tempo  de  D.  João  VI,  que  adorou morar aqui e ficou sendo brasilianista pelo resto da vida. Ele era  então  o  diretor  da  Biblioteca  de  Santa  Genoviève,  que existe  até  hoje  em  Paris.  Foi  nesta  biblioteca  que  Victor Meirelles  analisou  a  documentação  sobre  o  índio  e  sobre  o Brasil,  e  onde  também  encontrou  a  carta  de  Caminha,  que tinham  descoberto  um  pouco  antes.  Estudou  a  carta  com afinco para representar a missa descrita por Caminha. Antes  de  ser  produto  da  mente  isolada  de  um  artista,  a “Primeira  Missa  no  Brasil”  é  uma  síntese  visual  do  projeto civilizatório  de  cunho  nacionalista  do  Segundo  Império brasileiro,  e  Victor  Meirelles  de  Lima  foi  o  homem  que concretizou em forma de pintura as idéias deste projeto. Se,  por  um  lado,  o  artista  pintou  idéias  do  corpo  político  e cultural  do  Brasil  de  meados  do  século  XIX  concretizadas pelo rigor das técnicas artísticas aprendidas nas academias de arte, por onde passou e pela fidelidade a pintura histórica em si,  por  outro  lado,  teve  “ajudas”  que,  de  tão  próximas, podemos chamá­las de “outras mãos”. Entre estas a principal foi  a  de  Manoel  de  Araújo  Porto  Alegre.  Nacionalista,  foi também  aluno  de  Debret,  na  Imperial  Academia,  no  período que  antecede  a  Independência  do  Brasil.  Foi  professor  e file:///F:/vm_missa.htm

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19&20 ­ Victor Meirelles e a Construção da Identidade Brasileira, por Teresinha Sueli Franz

diretor  da  Imperial  Academia  no  período  em  que  Victor Meirelles  partiu  para  a  Europa.  Trocou  curiosa correspondência com o artista, onde orientava detalhadamente seus  estudos.  Falava  em  nome  do  Imperador  e  do  Corpo Acadêmico. Embora  a  correspondência  entre  os  dois  não  esteja  toda publicada,  podemos  ver,  no  que  temos  à  disposição,  como esta  troca  de  informações  se  fazia  não  somente  no  sentido acadêmico,  mas  num  clima  de  confiança,  compreensão  e estímulo.  Nela  Victor  era  instruído  na  composição  de  sua primeira grande obra original. Como pensionistas do Estado, os artistas contemplados com o Prêmio  Viagem  ficavam  submetidos  a  rígida  legislação,  pela qual  lhes  eram  cobradas  uma  série  de  tarefas  e  obrigações, garantido  assim  o  sucesso  e  a  manutenção  da  bolsa.  Entre essas tarefas estava a remessa regular de obras realizadas no exterior. A feitura destes trabalhos artísticos era determinada pela  Congregação  da  Escola  no  Brasil.  Para  garantir  a manutenção  deste  campo  simbólico,  nenhum  desvio  desta linha  doutrinária  era  permitido,  sob  pena  de  ser imediatamente suspenso o custeio de sua permanência fora do País (BAEZ, 1986). Seguindo  as  instruções  de  Porto  Alegre,  Victor  Meirelles partiu  para  uma  primeira  estada  na  Itália,  seguindo  depois para  a  França,  onde  tomou  orientação  de  Leon  Cogniet, professor  da  Escola  de  Belas  Artes  de  Paris.  Esta  escola,  no século  XIX,  era  uma  instituição  cercada  de  prestígio, considerada  a  herdeira  da  Academia  Imperial,  criada  em 1684, a fim de proteger a elite artística da França no sentido de libertá­la das regras tirânicas que lhes eram impostas pelas corporações de artífices – os Grêmios. Victor  Meirelles  produziu  também  sua  “Primeira  Missa” obedecendo  ao  olhar  exigente  do  jurado  do  Salão  Oficial  de Paris, em 1861, do qual participou. Além  de  estudar  a  carta  de  Caminha  e  de  seguir  uma minuciosa  orientação  de  Manuel  de  Araújo  Porto  Alegre,  há um outro fato importante a considerar na construção da obra em  questão:  Victor  Meirelles  buscou  inspiração  para  a  cena principal de sua obra [Figura 2] em outra missa, a do pintor Francês  Horace  Vernet  (1789–1863).  A  missa  pintada  por file:///F:/vm_missa.htm

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Vernet intitula­se “Première messe en Kabyli” (1853) [Figura 3],  lembrando  que  o  procedimento  por  citação  é absolutamente legítimo dentro do gênero Pintura Histórica. O desconhecimento das regras da pintura histórica pela crítica de  arte  nacional  causou  grande  polêmica  quando  a  pintura chegou ao Brasil, e Victor Meirelles inclusive foi acusado de plagiário. Há  ainda  a  hipótese  de  que  o  tema  da  missa  era  então recorrente.  No  Museu  Granet,  na  Provença,  França, encontramos  outra  missa  intitulada  “Une  messe  au  Louvre pendant  la  Terreur”,  datada  de  1847,  de  autoria  de  Marius Granet  (1775–1849)  [Figura  4].  O  altar  no  centro,  com  um padre levantando a hóstia, e outro de joelhos segurando suas vestes  lembram  a  cena  principal  da  “Missa”  de  Victor Meirelles.  Este  procedimento  também  teria  sido  legítimo dentro do contexto cultural estético das academias de arte do século XIX. As  academias  de  arte  constituem  um  modelo  de  instituição artística  pouco  conhecidas,  e,  talvez  por  isso  mesmo,  pouco valorizadas. Cercadas de preconceitos desde o advento da arte moderna,  chegaram  a  ser  reduzidas  simplesmente  a instituições  regressivas,  coercitivas  da  liberdade  de  criação artística  e  de  regulação  oficial  do  gosto.  Porém,  estas instituições  nasceram  com  a  finalidade  de  cumprir determinadas  necessidades  da  época,  inclusive  dos  artistas, então  sujeitos  aos  Grêmios  –  corporações  carregadas  de conotações  medievalizantes  e  representativas  dos  ofícios caracterizados como mecânicos. A  pintura  acadêmica  brasileira  do  século  XIX  não  foi exclusivamente  neoclássica,  como  é  geralmente reconhecida, pois  sofreu  influência  do  Romantismo  acadêmico  francês, mais conhecido como “Pompierismo”. Chamados pelo historiador Jorge Coli de “a forma justa” para atingir  o  poder  de  permanência  que  a  obra  possui,  os  meios formais adequados só poderiam resultar da Pintura Histórica. As origens deste gênero devem ser vinculadas ao sistema de ensino  da  pintura  das  Academias  de  Arte.  Sobre  estes aspectos afirma Reyero (1989:16): Os  estudantes  eram  obrigados  a  passar  por concursos  onde  os  jurados  impunham  a  cada file:///F:/vm_missa.htm

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ano  o  título  que  cada  participante  deveria executar.  O  de  história  era,  pois,  resultado  de um  rigoroso  exercício  acadêmico,  que  apenas uns poucos conseguiam superar.

A  Primeira  Missa  no  Brasil  remete  também,  como  bem lembra Marilena Chauí, para a presença sempre renovada do Mito  Fundador  do  Brasil,  apropriado  ideologicamente  pelo Romantismo  brasileiro,  o  qual  contribui  para  construção  da nossa  identidade,  como  membros  de  uma  nação,  criando verdades  contraditórias  sobre  quem  somos  e  sobre  o  que pensam  os  outros  sobre  nós  mesmos.  Utopias  que  vêm  de longe, desde o Renascimento, do imaginário dos navegadores, e  que  reaparecem  ideologicamente  nas  imagens  produzidas pelos artistas no século XIX. Abandonado  e  discriminado  pelos  republicanos,  Victor Meirelles morreu pobre em 1903, no Rio de Janeiro. Se  em  toda  a  história  houve  homens  e  mulheres  que  se dedicaram  a  construir  ícones  para  seu  povo,  Victor  o  foi  no seu  tempo  e,  se  assim  o  fez,  foi  sustentado  por  um  contexto cultural e histórico singular e específico. Parafraseando  o  saudoso  Alcídio  Mafra  de  Souza  (1982:14) nunca é demais repetir: Victor é, sem dúvida um dos maiores nomes  da  arte  nacional.  Sabemos,  porém  que  seu  mérito  e valor  nem  sempre  foram  reconhecidos.  “É,  entretanto, reconfortante  saber  que  sua  cidade  natal  jamais  o  esqueceu, assim como ele também nunca esqueceu sua terrinha pacata e bela”. Referências bibliográficas BAEZ, Elizabeth, Carbonel. A academia e seus modelos. In: Academicismo:  projeto  Arte  Brasileira.  Rio  de  Janeiro: Fundarte, 1986, p. 7­16. BARBOSA,  Ana  Mae.  Arte­Educação.  In:  ZANINI,  Walter (Org). História  geral  da  arte  no  Brasil.  Vol.  II.  São  Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983, p. 1.077­1.094. CHAUI,  Marilena.  Brasil:  Mito  Fundador  e  sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. COLI, Jorge. “Primeira Missa” e invenção da descoberta. In: NOVAIS,  Adauto  (Org.)  A  descoberta  do  homem  e  do file:///F:/vm_missa.htm

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mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 107­121. FRANZ, Teresinha Sueli. Educação para uma compreensão crítica da arte. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós­modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2002. LÓPEZ,  Luiz  Roberto.  Cultura  brasileira:  de  1808  ao  Pré­ Modernismo. Porto Alegre: UFRGS, 1988. PARSONS,  Michel.  Compreender  arte.  Lisboa:  Presença, 1992. PESAVENTO,  Sandra.  Jatahy.  Exposições  universais: espetáculos  da  Modernidade  do  século  XIX.  São  Paulo: Hucitec, 1997. REYERO,  Carlos.  La  pintura  de  historia  en  España. Madrid: Cátedra, 1989. RUBENS, Carlos. Victor Meirelles: sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. SCHWARCZ,  Lilia  Moritz.  As  barbas  do  Imperador:  D. Pedro  II,  um  monarca  nos  trópicos.  São  Paulo:  Companhia das Letras, 1998. SOUZA, Alcídio Mafra. “O Pintor de uma Rua de Desterro”. In:  ROSA,  A.  P.  (org).  Victor  Meirelles  de  Lima  1832  – 1903. Pp. 13­7. Rio de Janeiro: Pinakoteke, 1982. ________________________________________________________ [1]  Este  artigo  foi  publicado  na  Revista  do  Instituto  Histórico  e Geográfico  de  Santa  Catarina,  Nº  22  em  2003,  ano  de  centenário  da morte de Victor Meirelles. [2]  Dra. em Belas Artes pela Universidade de Barcelona – Espanha onde defendeu tese de doutorado em torno da pintura Primeira Missa no Brasil (1860)  de  Victor  Meirelles  de  Lima  (Desterro,  1832  –  RJ,  1903).  É professora  de  ensino  das  Artes  Visuais  na  graduação  e  no  mestrado  em Artes Visuais do Centro de Artes da UDESC – Florianópolis –SC. Autora dos  livros:  “Educação  para  a  compreensão  da  arte:  Museu  Victor Meirelles”.  Fpolis:  Insular,  2001  e  “Educação  para  uma  compreensão crítica  da  arte”.  Fpolis:  Letras  Contemporâneas,  2003.  E­mail: [email protected]

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