Victor Moreira: entre rendas e os dez anos de Dragão Fashion Brasil, sua participação na criação de moda cearense

June 1, 2017 | Autor: Syomara Duarte | Categoria: Fashion History, Fashion
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Victor Moreira: entre rendas e os dez anos de Dragão Fashion Brasil, sua
participação na criação de moda cearense.

Syomara dos Santos Duarte Pinto[1]
Universidade Federal do Ceará
[email protected]

Resumo
Este trabalho versa sobre as origens da vocação cearense para a moda,
explorando o artesanato local, a importação de moda e, finalmente, o
desenvolvimento da criação no Estado do Ceará com a contribuição de Victor
Moreira.

Palavras-chave: Ceará. Moda. Victor Moreira.


Rendas, labirintos e bordados
O vocábulo renda tem origem na palavra espanhola randa, que significa
encaixe; e ainda relaciona-se com o verbo do mesmo idioma, randar,
significando adornar, fazer uma orla[2]. Esse encaixe, adorno ou orla está
presente na história do Ceará, intimamente ligado à moda juntamente com os
labirintos e bordados. Das rendas pode-se apresentar sua importância
sociocultural, pois as mulheres (em geral era um ofício feminino) que se
dedicavam aos bilros, herdeiras do fazer que veio dos Açores, em Portugal,
difundiram a arte pela orla cearense e em vários municípios do sertão. A
estética desse elemento artesanal atravessou os tempos, mas ainda hoje tem
seu valor e faz parte de nosso repertório sociocultural. Girão (1984)
explica que nossa terra tornou-se um dos maiores e mais famosos centros
produtivos e cita:

"Alertado pela excelência de nossa produção, o comércio
sulista voltou suas visitas para o rendoso negócio.
Fizeram-se, então, transações muito lucrativas em todo o
Ceará. Foi uma época de prosperidade para nossas artesãs.
Ainda em 1940, tem-se notícia de grande exportação de
nossas rendas para o sul do Brasil" (GIRÃO, 1984, pág 06)


A autora comenta ainda que visitavam o Ceará estrangeiros
comerciantes, que incrementaram o fabrico das rendas, sacerdotes
comerciavam e até tinham um modelo de desenho exclusivo deles, chamado
"Pequeno-grande", influência religiosa. Como ainda acontece hoje, a figura
do intermediário para a venda está presente junto ao ofício, que no mundo
do trabalho atual encontra-se bem reduzido, o que mereceria um trabalho bem
articulado para sua manutenção em nossa moda, que não deixa de sempre
inseri-lo em programas e projetos, tanto de cunho social, como de origem
estilística.
Outro ofício artesanal feminino que se destaca em nossa história é o
labirinto, realizado pela desestruturação do tecido, preso à uma grade,
desfiado e reestruturado formando desenhos entre cheios e vazios.
Inicialmente branco (ou próximo ao branco, dependendo do tipo de algodão
utilizado), evoluiu para um tipo mais contemporâneo, o colorido, trabalho
bem característico de Beatriz Castro e Lúcia Neves no ateliê chamado Ethos.
Essa releitura do tradicional labirinto passou, em miniatura, para criações
do joalheiro Cláudio Quinderé, provando que o artesanato ainda possui
fôlego para a criação e aplicação diferenciada na moda contemporânea. Bem
como a renda, cita Nadaf sobre o labirinto:

Este também de origem portuguesa, veio das Ilhas dos
Açores e de uma faixa do litoral português. O que saía
das mãos destas mulheres, que tinham os olhos ora a mirar
o mar, ora a mirar o trançado, chegou com o nome de
labirinto. (Nadaf in Castilho e Garcia, 2001, pág 19)


O filé é outro trabalho artesanal da terra que trança fios formando
uma trama mais aberta ainda que a renda, igualmente clara nos primórdios e
recentemente recebeu uma atualização em cores, na qual Perpétua Martins [3]
figura como uma das artesãs que mais se dedicou a essa leitura renovada. E
o bordado, que faz parte da história cearense como um elemento artesanal
que confere riqueza às aplicações tem origem, basicamente, da Ilha da
Madeira e influência de outros países. Relacionado à fama da "mulher
prendada" em outros tempos, Nadaf (2001) também registra:

Os ateliês de costura e as butiques surgiam do
amadurecimento de outrora improvisadas encomendas feitas
em casa para atender pedidos de amigas. Muitas delas
tiveram que, em seu enxoval de moça casadoira – e
prendada – seguir a risca um certo detalhe: o de possuir
peças (geralmente de linho, tanto para casa como para o
guarda-roupa) com delicado ponto cruz ou com coloridos
bordados à mão. (Nadaf in Castilho e Garcia, 2001, pág
24)


Os Ateliês e boutiques – décadas de 60 a 80
É partindo desse panorama artesanal cearense e com algumas décadas de
importação da moda (França e Estados Unidos contribuíram para essa estética
local) que chegamos aos ateliês e às boutiques que desenvolveram suas
criações com base nessas tipologias e alçaram outros voos em direção às
últimas décadas do século XX. Nadaf (2001) cita em seu texto que poucas
conseguiram transformar a união linho e bordado em moda. Dona Edméa Mendes
foi uma dessas empreendedoras pioneiras, que juntamente com as criações de
Victor Moreira se destacou na sociedade cearense por algumas décadas,
vestindo as mais elegantes e promovendo desfiles com produções sofisticadas
e criativas. E é sobre a atuação de Victor Moreira em Fortaleza que versa
este artigo, como forma de registrar a produção deste pernambucano na
capital cearense durante três décadas.

Victor Moreira, o início e Fortaleza
Odontólogo de profissão, a moda ganhou o talento de Victor Moreira de
uma forma inusitada. O estudante de Odontologia durante a infância já
demonstrava olhares curiosos e atentos para o mundo das artes. Viveu nos
caminhos altos e baixos de Olinda, Pernambuco, e frequentou a sala de
cinema de seu avô. Nessa sala de cinema Victor captou o glamour das atrizes
do cinema hollywoodiano e começou a traduzi-lo em idéias que se
materializaram anos depois, quando já freqüentava a faculdade, década de
1950, sob forma de desenhos para colegas e parentes. Após uma enchente na
cidade, os estudantes se uniram para criar um evento beneficente que
arrecadasse fundos:

"... houve uma enchente que destruiu quase tudo aqui no
Recife, inclusive o Hospital Psiquiátrico da Tamarineira.
Daí, os alunos resolveram fazer um mutirão para arrecadar
dinheiro e comprar os colchões. Sugeri um desfile de
moda. Fomos à fábrica de algodão Othon. Aqui no Recife
havia várias fábricas de tecido, como a Othon Bezerra de
Melo S.A., o Grupo Torre, Tecelagem de Seda e Algodão de
Pernambuco, entre outras. Eram indústrias muito fortes
aqui no Nordeste." (Lopes Neto in OuvirOUver, 2007,
pag175)

O desfile aconteceu (sob o patrocínio da empresa têxtil, que depois
viria a contratá-lo como estilista), angariou quantia suficiente para a
doação e Pernambuco viu surgir um talento que a partir de então não mais
parou de produzir arte, glamour e moda. Formou-se odontólogo, mas o diploma
e a profissão foram substituídos pelo estilismo, que na época ainda não era
profissão de mercado, mas que Victor contribuiu com a profissão, dado seu
talento para diversas áreas do ofício e sua dedicação à criação.
Antes de chegar à Fortaleza, Victor desenvolveu suas múltiplas
atividades na moda trabalhando principalmente como criador de motivos para
estamparia de um cotonifício pernambucano, o que lhe proporcionou contato
com diversos tecidos, tintas, pigmentos, formas e cores. Esse fazer lhe
tornou próximo da matéria-prima principal do vestuário, proporcionando
intimidade com caimentos e texturas, elementos importantes para a criação e
para a confecção. Ainda como funcionário do cotonifício, parte de um grupo
empresarial que abrigava também uma cadeia de hotéis distribuídos pelo
Brasil e uma indústria de confecções masculinas, viajou a trabalho pelo
país, pelo exterior e montou estandes de feiras nacionais. Em um de suas
estadias em São Paulo, encontrou D. Edméa Mendes, senhora que aqui vivia e
já conhecia seu trabalho, por intermédio de uma prima que morava em Recife
e intermediava a compra de criações de Victor Moreira para sua confecção em
Fortaleza. Após encontrá-lo, D.Edméa lhe apresentou uma proposta para
organizar com ela um desfile a ser apresentado à sociedade de Fortaleza em
um clube local, o Náutico Atlético Cearense. Ao aceitar, Victor estaria
selando um trabalho de parceria de importância vital para décadas de
criações, moda e negócios que seria o início de uma vocação cearense para o
ofício de criar e pensar moda, além do fiar, do tecer e de confeccionar
peças do vestuário.



Victor Moreira e D. Edméa Mendes em Fortaleza,
década de 1970.
Fonte: Acervo de Victor Moreira.


Nesse desfile, Victor expôs não apenas uma série de criações, mas
principalmente sua visão global de criador e produtor de moda, acumulando
funções em uma época que a profissão ainda não era segmentada e
especializada. Assim se iniciou uma época de criações em terras cearenses,
deixando um legado iniciado no ano de 1969.
O trabalho com D. Edméa o fez ter contato com a sociedade local, suas
clientes principais e as demandas que surgiriam com a expansão da boutique.
As criações de Victor tinham o planejamento de D. Edméa, que realizava as
compras e fazia os negócios caminharem à medida que avançava no mercado
local. O estilista criava as produções para as fotos, para expor o produto
no ponto-de-venda e apresentá-lo nos desfiles, sempre primando por alguma
ousadia para a época. Em um momento desfilou uma modelo afrodescendente que
vestia sua criação com rendas, noutro pôs na passarela modelos sem sutiãs,
de algum modo sempre surpreendendo pelo sentido da provocação e do
inusitado. Ao discorrer sobre como eram feitos os negócios, conta que os
modelos já haviam sido pensados em tamanhos que pudessem caber nas
clientes, sendo ajustados com alfinetes para irem à passarela. Organizou
nos clubes elegantes da cidade desfiles de coleções realizadas com
conceitos de versatilidade nas roupas e formas contemporâneas que apontavam
as tendências trazidas da Europa. Seu apuro estético fazia-se notar pelas
locações e efeitos obtidos nos ensaios fotográficos realizados com modelos
trajando suas peças. A mais marcante delas se fez na residência conhecida
como o "Castelo do Plácido", uma edificação com inspiração em castelos
venezianos, de arcos múltiplos e escadarias curvas que casaram
esteticamente com elegância das modelos ali fotografadas. Essa edificação
foi demolida algum tempo depois desse ensaio e não existe mais, funcionando
atualmente uma central estadual de artesanato, construída originalmente
para abrigar um restaurante, mudando de função e até hoje é o ponto central
do artesanato procedente de todo o estado. Outra locação comum para suas
criações era a própria boutique de D. Edméa, que servia como espaço
adaptado para fotos e ponto-de-venda.
Desdobramentos do trabalho como criador aconteceram em seu trajeto
profissional. Paralelo ao negócio de Edméa Mendes, Victor Moreira manteve
durante algum tempo a função de colunista do Jornal O Povo, apresentando as
mais variadas tendências ao público feminino do jornal, com uma frequência
semanal. Seus desenhos ilustravam textos explicativos no jornal dominical.
À época tinha acesso a diversas feiras internacionais com credenciais de
imprensa e acesso a desfiles nas exclusivas casas européias de moda. Sobre
o trabalho de pesquisa de moda, Victor, em entrevista ao pesquisador
Antônio Lopes Neto afirma:

"Organizei muitos pavilhões da FENITE para o Grupo Othon,
e participei do Salão de Prét-a-Porter de Versalhes,
Paris, Milão, Munique e Londres. Isso fazendo pesquisa
para o Grupo Othon, em 1974. Eu na realidade ganhei uma
viagem para cobrir os desfiles em Paris, para o Grupo.
Além disso, desenvolvi um plano de ação para enviar
matérias para jornais com os quais eu colaborava: o
Shopping News em São Paulo, o Povo em Fortaleza e, em
Recife eu podia contribuir com uma amiga Lea Craveiro que
escrevia sobre moda." (Lopes Neto in OuvirOUver, 2007,
pag175)

Vários vestidos de noiva saíram de sua prancheta, com idealização do
ambiente que o receberia, detalhes que iam desde as flores que ornamentavam
a igreja até as criações da família da noiva e do noivo, criando como que
uma coleção que iria à "passarela" da cerimônia, o caminho ao altar, como
descreve o estilista. Mas os dois trabalhos que mais se destacaram em sua
carreira tão marcada pela diversidade: o figurino para teatro e o figurino
do espetáculo de Nova Jerusalém, o qual foi responsável desde sua criação a
até há pouco tempo.


Produção de Moda tendo como cenário a edificação conhecida como
Castelo do Plácido, Fortaleza, década de 1970.
Fonte: Acervo de Victor Moreira

Retorno à terra natal e início da educação formal em moda ao Ceará
Após a dedicação de quase três décadas à moda cearense (iniciou em
1954, com o envio de criações pelo correio, passando pelo desfile no
Náutico Clube, a sociedade estabelecida na boutique estabelecida em 1977 e
o posterior encerramento das atividades da loja de Dona Edméa em 1982),
Victor Moreira retorna ao Recife, dedica-se à cultura local com figurinos e
cenários para o teatro pernambucano, continua com o trabalho pioneiro em
Nova Jerusalém, prestando assessoria a confecções locais e materializando
sua linha de noivas. Nesse ínterim, Fortaleza inicia uma crise na indústria
de confecções, fruto da obsolescência de seu parque industrial e de
investimentos. Apesar de incentivos profissionais e comerciais, como a
publicação da Revista Moda Quente, editada por Wânia Dummar, que chegou ao
extremo de 40.000 exemplares e apresentava a moda cearense, o setor
necessitava de impulsos diversos, para além do fator industrial, o que
realmente aconteceu no âmbito da profissionalização e da modernização de
suas indústrias:

"As atividades ligadas à moda iniciaram então um processo
de evolução que permitiu a profissionalização desse
setor, tão abrangente há algumas décadas, contando com
profissionais atuando nas áreas de criação, produção,
divulgação e promoção. O estudo da moda chegou às
universidades através de diversos cursos superiores que
também foram criados no Brasil, na década de 80,
transformando o "fazer moda" em "pensar e fazer moda". A
moda que percorria caminhos automatizados de sua
produção, dependendo apenas da importação e reprodução de
idéias advindas de outras culturas, iniciou um processo
de análise regional, favorecendo a pesquisa, a criação e
o desenvolvimento de pólos nacionais. Esses pólos, que na
década de 80 já eram produtores significativos, depois da
criação de cursos superiores de moda, iniciaram a
inversão da produção de moda. Ainda com alguma
resistência por parte dos setores mais conservadores da
academia, os cursos se estabeleceram e se solidificaram,
fazendo surgir novas gerações de profissionais com
formação acadêmica." (Pinto, 2005, págs 34-35)

A autora cita, ainda, que alguns estados brasileiros receberam o
incentivo governamental para abrigar grandes indústrias de suporte ao setor
confeccionista de moda, como produtores calçadistas, indústrias têxteis e
de aviamentos. Atualmente representa grande importância na economia do
estado através do setor têxtil e de confecções, pois exporta para outros
estados e países, participa do calendário nacional de eventos e conta com
cursos superiores de formação em moda. O Curso de Estilismo e Moda da
Universidade Federal do Ceará foi o primeiro curso de moda em universidade
pública brasileira e iniciou suas atividades com a primeira turma de alunos
em 1994.
Outro setor impulsionado pela indústria da moda foi o de eventos.
Surge em Fortaleza o evento de moda chamado Dragão Fashion, produzido e
realizado por Cláudio Silveira, que neste ano completa mais de uma década
de desfiles, palestras, negócios e revelações de talentos contemporâneos.
Para comemorar os dez anos do evento, criou-se uma homenagem para celebrar
os profissionais que colaboram e que colaboraram para a moda no Ceará. E
dessa maneira Victor Moreira retornou à Fortaleza, para receber o troféu
Dragão de Ouro (denominação do evento em sua edição 2009), juntamente com
vários outros nomes aqui citados. Homenagem justa para o criador de muitas
idéias, ousadias e sonhos plantados e frutificados na capital cearense de
outrora, aquela que iniciou com as rendas, os labirintos e os bordados. O
hiato da contribuição de Victor Moreira para a história da moda do Ceará
entre o artesanato e as confecções dos anos 80 foi devidamente registrado
no evento como um dos primeiros que aqui chegaram para "pensar e fazer
moda" antes do "fazer moda".


Referências bibliográficas
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Cunha, Khatia Cunha e Garcia, Carol (orgs). Moda Brasil: fragmentos de um
vestir tropical. São Paulo: Editora Anhembi-Morumbi, 2001.

Girão, Valdelice C. Renda de bilros: coleção do museu Arthur Ramos.
Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1984.

Lopes Neto, Antônio. OuvirOUver. Número 3, 2007(periodicidade anual),
Uberlândia, Universidade Federal de Uberlândia. Departamento de Música e
Artes Cênicas.

Pinto, Syomara dos Santos Duarte. Vitrinas: expondo e revendo conceitos. Um
breve olhar sobre Fortaleza. Dissertação – Mestrado em Arquitetura e
Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2005.



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[1] Professora do Instituto de Cultura e Arte da UFC, ministra disciplinas
no Curso de Design de Moda. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFC e
Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela USP.
[2] Dicionário Houaiss da língua portuguesa

[3] Juntamente com Victor Moreira, foi homenageada na 10ª. Edição do Dragão
Fashion.
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