Vida podre: a trajetória de uma classificação (Rotten life : the pathways of a classification)

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Lis Furlani Blanco

Vida Podre: a trajetória de uma classificação

Campinas 2015

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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Lis Furlani Blanco

Vida Podre: a trajetória de uma classificação Orientador: Prof. Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida

Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, para obtenção do título de Mestra em Antropologia Social.

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação defendida pela aluna Lis Furlani Blanco e orientada pelo prof. Dr. Ronaldo Rômulo Machado de Almeida, no dia 24/03/2015.

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Resumo Classificar um alimento como comestível perpassa relações de poder, higiene, saúde, status e classe. Assim, é objetivo deste trabalho analisar a trajetória da vida dos alimentos e sua classificação enquanto comestível. Através da escolha da categoria analítica do podre como conceito liminar que permite pensar as variáveis da desta classificação e da classificação das pessoas em relação, desenvolvi uma etnografia da trajetória de certos alimentos na cidade de São Paulo, em feiras livres e no programa Mesa Brasil do SESC, buscando compreender a crueza da máxima “você é o que você come”.

Palavras chave: Comida, comestibilidade, podre, pessoa, vida

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Abstract The classification of food as edible permeates power, hygiene, health, status and class relations. Thus, the aim of this text is to analize the food’s life path and its classification as edible. Throughout the analytical category of the ‘rotten’ as a liminar concept that allows me to think about the variables involved in the food classification in relation to the people’s classification I devoloped a ethnography of some food in the city of São Paulo, at an open market and in the project Mesa Brasil, aiming to comprehend the perversity of the sentence “you are what you eat.

Key-words: Food, edibility, rotten, person, life

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Sumário

Introdução

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O campo

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A trajetória etnográfica

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Capítulo 1. Bom para pensar: o comestível

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O bom para comer

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A cozinha da antropologia

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O bom para pensar: o podre

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Capítulo 2. As variáveis da classificação: risco e valor

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O Tempo

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O Valor

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O Risco

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Comida: um demarcador social

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Capítulo 3. Sobre a vida podre

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A comestibilidade enquanto objeto

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Vida e estar na vida

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O estatuto de pessoa

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Vida podre

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Considerações finais

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Referências Bibliográficas

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Ao meu avô que me ensinou a ter gosto por aprender; aprender sobre a vida das pedras, das plantas, das pessoas, dos animais, das cachoeiras e das coisas.

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Agradecimentos Escrever os agradecimentos sempre me pareceu uma tarefa bem fácil. No entanto, apesar da aparência, falar um pouco daqueles que contribuíram tanto para a construção de um texto que se desenvolveu junto comigo se tornou um processo mais complexo do que eu imaginava. É difícil conseguir colocar em algumas poucas páginas toda a gratidão pelo apoio e inspiração nesta grande jornada, que tem seu início bem antes da escrita desta dissertação e compõe minha trajetória de vida. Tentando então, transformar em linhas meus sinceros agradecimentos, escrevo aqui uma pequena parte de como tantos e tantas foram e são importantes neste processo de experienciar o mundo. Agradeço primeiramente à Unicamp e especialmente ao IFCH aonde pude vivenciar tantas experiências, conhecer tantas pessoas, criar tantos laços e aprender tanto para assim me formar não somente como antropóloga e pesquisadora, mas me tornar aquilo que sou hoje. Não esqueço de todos os profissionais desta instituição que tanto me ajudaram neste processo de formação. À Maria José Rizolla, Marcia Regina Goulart, Alexandre D´Avila deixo minha gratidão pela ajuda, paciência e bom humor. À CAPES e a FAPESP pelo financiamento que possibilitou minha total dedicação neste processo e a experiência de trocar e aprender ao permitir a realização de meu intercâmbio de pesquisa, deixo também meus agradecimentos. Ao Ronaldo Almeida, meu orientador, agradeço pela confiança em explorar uma tema novo e trata-lo com tanto interesse e dedicação. Agradeço também por cada uma das orientações que me levavam a caminhos que eu mesma queria seguir, mas que por alguma razão ainda estavam nebulosos. Sou grata também pelas conversas que me fizeram ter ainda mais convicção em minhas ideias e em meu trabalho e principalmente por me fazer admirar cada vez mais a antropologia, e todos os mundos que ela permite conhecer. Aos professores do PPGAS, Unicamp: John, Emilia, Heloisa, Omar, Mauro, Nadia, Bibia e Vanessa conjuntamente a todos aqueles que mesmo indiretamente contribuíram para minha formação, sou imensamente grata.

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Faço um agradecimento especial aos membros de minha banca de qualificação que contribuíram de forma valiosa para a construção do texto final. Ao Christiano Tambascia por ser um leitor tão atento e disposto e por trazer sempre referências tão interessantes para a construção etnográfica, além do carinho e atenção sempre dispensados. Ao Felipe Vander Velden sou grata pelas provocações que me levaram a realmente questionar as dualidades que me propunha a combater, mas que ainda estavam presentes em meu texto. Ao Odela, agradeço pelo aprendizado, pelos vinhos, comidas e especialmente pelas amizades. Sou extremamente grata ao professor Jesus Contreras por me receber, pela atenção dedicada e pelo carinho, à Maria sou grata a todos os momentos que tivemos desde o primeiro dia em que nos conhecemos, obrigada pelas leituras atentas e pela amizade. Agradeço também à Úrsula, ao Gustavo, Barbara, Francesca, Marionna e José Antonio: Barcelona (e eu) não seria a mesma sem vocês. Agradeço aos meus pais pelo amor, que acima de tudo me deu forças e base para poder realmente ser aquilo que desejava. À minha mãe sou grata especialmente por me ensinar a carregar sempre um pouquinho de nosso lar comigo, independente dos mares que eu me propusesse a navegar. Ao meu pai agradeço pela força, pelo bom humor que não vai embora, mesmo em face às grandes dificuldades e a ambos por incentivarem sempre a me dedicar ao que acredito e a ‘fazer o bem’, apreciando as boas coisas da vida. Agradeço também as minhas irmãs, que mesmo nas provocações e brigas me ensinaram o verdadeiro significado da palavra ‘compartilhar’. À Laís agradeço pela companhia desde meus dois anos de idade, por me aguentar como irmã mais velha, e também por sempre trazer um pouquinho de arte e loucura à minha vida. À Luísa sou grata pela luz, pelas cirandas, pelas poesias e inspirações e por trazer paz nos momentos difíceis desta minha trajetória de pesquisa. Agradeço por ser sempre presente em minha vida, mesmo estando a quilômetros de distancia. À minha ‘pequena’ Larissa agradeço por me ensinar tanto, mesmo quando você pensava que era você quem estava aprendendo. Obrigada pela alegria. Agradeço também aos meus avós, que mesmo sem entender muito bem porque é que eu tanto estudava, sempre me apoiaram. Estavam presentes nas idas e vindas da Unicamp, do campo, me deram abrigo, me alimentaram com comidas que tinham gostinho

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de amor e ainda me mostraram que na verdade, o que importa mesmo é estar perto daqueles que a gente ama. Agradeço ao meu Tio Carlos a quem eu tanto admiro, pelas conversas, pelas caronas, pelos incentivos nos estudos, pelas viagens que me fizeram cada vez mais ter vontade de conhecer o ‘outro’ e nós mesmos, e pelo amor. Sou grata também a Tia Cecilia e Tio Junior que sempre estiveram à disposição para me ajudar, à minha tia Cris que fez despertar em mim a paixão pela ‘comida’ e a todos os meus tios e tias que ao menos tentaram entender o porquê da minha constante ‘distância’, continuando a dar amor e apoio. Ao Rodrigo sou grata pela disposição em tentar entender esse ‘meu mundo’ e por me inspirar a descobrir outros mundos e outras possibilidades. Obrigada pela companhia, pelo cotidiano, pelas viagens, pelas comidas, e pelas descobertas. Agradeço também por me deixar partilhar desse seu ‘universo particular’ e assim tentarmos construir juntos o nosso ‘lugar’. Aos meus piracicabanos queridos, agradeço demais por serem parte do que eu sou agora. Por garantirem minhas melhores memórias da infância e adolescência. Ao Isaac, obrigada por acreditar em mim sempre, por me mostrar que tudo tem um lado leve e divertido e por todo amor. À Cunha, agradeço pelas trocas, pelas nossas loucuras, pela inspiração e pelas mãos e falas que também construíram esse trabalho. À Jacq sou extremamente grata sempre, por me acolher, por meu ajudar na mudança a São Paulo, por ser uma companheira sempre presente em minha vida, por ser minha metade. À Ka, obrigada por me acolher de volta em terras Piracicabanas, e pela amizade mesmo que em doses homeopáticas por causa deste trabalho sem fim. Agradeço também a Fla e a Allana, pelos bons momentos e pela amizade sempre. Sou grata também a Nara, por ser minha amiga no extraordinário e no cotidiano, por me entender sempre, mesmo quando a distância se faz presente e por ter contribuído para deixar esse texto com palavras mais bonitas. Deixo aqui meus agradecimentos as pioneiras, Ligia e Isa pelos anos de amizade e companheirismo. Ao Jhow, agradeço pela atenção e ajuda em desvendar o mundo tecnológico da formatação de texto. À Carol dedico meu agradecimento por se fazer presente ‘nesta longa estrada da vida’, me conhecendo desde pequena e fazendo parte dos meus carnavais, primaveras e invernos. Tenho orgulho de ser sua ‘filha’.

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Aos meus companheiros da turma da pós-graduação de 2012 dedico todo meu amor e força e agradeço pelas trocas, contribuições, conversas, risadas, festas e bares que contribuíram para a escrita deste texto, mas também para aprendizados para toda à vida. Sem a companhia de vocês esses anos não seriam tão divertidos e frutíferos. À Ana e Adrian sou especialmente grata, pois esse texto aqui também é de vocês. Obrigada por criarmos juntos, essa ‘força’ maior que inspira, acalma, dá amor e diversão e acima de tudo força para seguirmos em frente. Me alegra saber que passaremos mais quatro anos juntos. Ao Liniker agradeço pela amizade, pelo companheirismo, pelo total apoio para definição e entrada no campo, por ser um ‘descanso na loucura’ em todo esse processo. Agradeço também a Cat, com sua alegria e bom humor contagiantes e pela presença e amizade que tanto me fazem bem, mesmo à distancia. Ao Thiago pela ternura. À Ana Piu e ao Vitor por toda a poesia. À Fernanda, Luciano, David, Patrik, Christol, Mariana, Lucas, Berenice, Vanessa pela generosidade acadêmica e pela amizade criada neste percurso. Faço um agradecimento especial ao Hugo, pelas gentilezas, pelas inspirações, pelas trocas, pelos comentários poucos ‘sutis’ e por ser parte deste texto também, porque se somos aquilo que escrevemos eu sou um pouquinho de todo mundo que contribuiu de diversas formas nesta empreitada. Agradeço também ao Daniel de Lucca pela contribuição na construção do projeto de mestrado, pelas conversas que me inspiraram tanto. Sou grata ao Rodrigo (Lala) pela ajuda na ‘entrada’ do mundo acadêmico. Aos amigos que a Unicamp me deu serei eternamente grata, pois sou um pouco (ou muito) de vocês. Obrigada por crescerem comigo, por estarmos juntos nesta fase de tantas mudanças. Obrigada pelas discussões políticas, pela formação ‘extracurricular’, pela companhia nas aulas, pelo tempo na cantina, pelas festas, pelos bares, pela alegria em poder morar com tanta gente que eu amo. À Bá eu agradeço por seu meu pilar de sustentação, por estar presente nos momentos mais importantes da minha vida, por me divertir nas aulas chatas, por me fazer tentar ser um pouquinho mais ‘relaxada’, por falar tudo que eu preciso ouvir mesmo não querendo. À Gabi, agradeço pelas comidas, pela amizade desde o princípio da graduação, por ser minha companheira de aventuras e acima de tudo por me dar tanto amor. À Tita sou mais que grata por todo o acolhimento, por me fazer se sentir em casa sempre que estou perto de você, e por partilhar de tantas questões, dúvidas e

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pensamentos sobre antropologia, sobre política, amor e sobre a vida. Agradeço a todas as Marias Bonitas, Tambinha, Angel, Bru, Fafs e Gabi por trazerem mais beleza ao meu mundo e por todo amor compartilhado. Sou especialmente grata à Su por todo o apoio desde o inicio deste processo de mestrado, por compartilhar não somente o quarto mas, todas as nossas aflições, sonhos e desejos. À Dri agradeço pelo amor que fomos construindo juntas, pela casa, pelas caronas, pela comida e pela companhia sempre boa. Ao Chun, agradeço pelo amor e aventuras culinárias. Aos companheiros da Granja do Solar agradeço pela alegria, pela experiência transformadora de morar com todos vocês. Ao Flavio, ao Beto e ao Xixa deixo meu agradecimento especial por toda a amizade. Sou extremamente grata à Mari, Marina, Heldinho, Leijoto, por todo o amor, conversas, viagens e aventuras, e pela paciência em alimentar essa amizade mesmo com a distância e a falta de tempo. Ao Pics, agradeço por todas as conversas, pela cura na loucura ou incentivo a um pouco dela, na dose certa. Todo amor à vocês. Agradeço especialmente a toda a equipe do Mesa Brasil sem a qual este trabalho não existira. Deixo meu obrigada à Luciana e a Sheila por terem me acolhido e por toda receptividade e abertura para o desenvolvimento do meu campo. Sou grata também ao Neto e a todos os motoristas e responsáveis pela colheita que conheci. Aprendi muito com todos vocês. A todos do Cedeca de Sapopemba sou extremamente grata. À Sueli, Danilo, Choco, Dona Nazinha e a todos que me receberam e acolheram com tanto amor e gentileza, deixo aqui meus sinceros agradecimentos, mesmo sabendo que estes não são suficientes para retribuir tudo o que aprendi com vocês. Não posso deixar de dedicar um agradecimento especial a Dona Nazinha, pelas comidas, conversas e amor, e a Ana, sem a qual este trabalho não existiria. Foi ela quem me mostrou o valor das coisas inúteis e a poesia da vida cotidiana. Agradeço também a receptividade de todos na Associação de Moradores de Paraisópolis e em especial a Associação de Mulheres representada pela Rejane. Agradeço ao Gilson, à Marly do Cras Campo Limpo, a Monica da Casa da Amizade e a

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Eliana do Albert Einstein. Sou especialmente grata à Carmen do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional da Cidade de São Paulo, e a todos os participantes dos grupos de trabalho do Conselho que tanto contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa, e também a Nara do Banco de Alimentos. Sem todos vocês eu não poderia ter escrito todas essas linhas. Finalmente agradeço a minha banca de defesa pelos preciosos comentários e pelo reconhecimento de um trabalho feito com tanta dedicação. Agradeço especialmente ao Carlos Alberto Dória por ter sido um leitor tão generoso e por te me incentivado durante todo o período de pesquisa. Obrigada pela sensibilidade, pelo carinho, pela leitura rigorosa e por todas as conversas que tivemos. Ao Felipe Vander Velden agradeço mais uma vez por todo o incentivo ao debate.

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Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma e que você não pode vender no mercado serve para poesia (...) Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia (...) Pessoas desimportantes dão para poesia (...) O que é bom para o lixo é bom para poesia (...)

As coisas jogadas fora têm grande importância - como um homem jogado fora Aliás, é também objeto de poesia saber qual o período médio que um homem jogado fora pode permanecer na Terra sem nascerem em sua boca as raízes da escória As coisas sem importância são bens de poesia.

(Manoel de Barros)

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Introdução: Esta pesquisa tem como tema geral a alimentação, cujos recortes serão definidos ao longo desta introdução. Para a realização de minha pesquisa de campo, me mudei para a cidade de São Paulo, com o propósito de ‘ser levada’ pelo meu objeto e, assim, acabei participando de diversos grupos, reuniões, cursos e eventos que tratavam desta temática. Neste processo, fui convidada a participar de uma reunião com os membros do Conselho de Segurança Alimentar e nutricional de São Paulo, cuja sede localiza-se em um prédio anexo ao Mercado Municipal, no centro da cidade, próximo à Rua 25 de Março, conhecida como a maior rua de comércio da América Latina. Situado na Rua da Cantareira, o Mercado Municipal de São Paulo atrai muitos turistas, pessoas de fora da cidade ou os próprios paulistanos que desejam comprar produtos específicos somente encontrados ali. Em sua maioria, as mercadorias ali vendidas tem um preço elevado, dificultando o acesso de camadas mais populares e trazendo certa ideia de status para quem o frequenta. Como em todos os mercados de alimentos do país, o desperdício produzido pelo “Mercadão”, como é chamado o Mercado Municipal, é grande1 e, por conta de terem seus produtos considerados de altíssima qualidade, quando algum deles não atende a esse padrão, torna-se lixo. As reuniões do conselho aconteciam de quinta-feira e, em uma ocasião, ocorrera algo fora do normal, que jamais havia se repetido em outras quintas-feiras. Não sei ao certo se havia uma greve dos lixeiros, ou se fora um atraso no cronograma da limpeza da rua, mas, ao descer a ladeira do Metro São Bento e ir caminhando em direção à Rua da Cantareira, fui identificando vários montes de lixo espalhados pelas vias públicas. Todo o cenário parecia um pouco dos filmes de guerra, com as ruas cheias de escombros. Ao me aproximar cada vez mais, vi que em cada monte de lixo se encontrava no mínimo uma

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O desperdício de alimentos no Brasil chega a 40 mil toneladas por dia. Anualmente, a quantia acumulada é suficiente para alimentar cerca de 19 milhões de pessoas diariamente. Fonte: Embrapa . Acessado em: 10/03/14.

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pessoa. Homens e mulheres agachados selecionando comida entre os sacos ou diretamente da rua. Havia chovido muito na noite anterior, porém, o clima de verão fez com que o sol da manhã iniciasse, logo cedo, o processo de evaporação de toda a água que não tinha escoado para os bueiros, formando diversas poças perto do meio fio. Esse processo de evaporação deixava o ar com uma consistência úmida e a cada passo que eu dava o cheiro das comidas que se deterioravam em meio à água e a outros dejetos ia se tornando cada vez mais forte. Em um momento, caminhando na calçada ao lado de diversas lojas de flores de plástico, senti um mau cheiro terrível e, ao olhar para o lado, percebi um homem catando laranjas da poça de água, observá-las, para, em seguida, morder uma delas. O cheiro cítrico da laranja curtida em água da chuva me enjoou. Tive que encontrar algo em minha bolsa para cobrir meu rosto e continuar o caminho. Talvez por ser muito cedo e pela umidade do ar potencializar todos os cheiros que estavam ali, esses poucos minutos de caminhada pareceram uma eternidade. Ao perceber que todas essas sensações foram suscitadas em mim ao ver essas pessoas comendo aquela comida, me senti mais uma vez extremamente tocada pelo campo. ***** Estudos na área de alimentação, ou ainda, as mais diferentes fontes de informação sobre comida que permeiam distintos saberes, não somente acadêmicos, como também de áreas como gastronomia, nutrição, mídias e literatura têm cada vez mais se tornados populares em nossas vidas cotidianas. Ao entrarmos em livrarias, é raro não encontrarmos uma estante de tamanho relevante acerca do tema da alimentação. Os artigos sobre gourmetização da vida, sobre o dilema da alimentação contemporânea, sobre as responsabilidades políticas envolvidas em nossas escolhas alimentares, o que devemos comer, como e até por que comemos são parte de uma gama de material produzido para pessoas leigas na área, mas que se interessam pelo tema em geral. Como precisamos comer para viver, nenhum outro comportamento não automático se liga de modo tão íntimo à nossa sobrevivência, ao mesmo tempo em que a comida e o comer assumem, assim, uma posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira. (Mintz, 2001). A comida é, então, assunto do

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nosso dia-a-dia, e a sua função, bem como seu papel na vida do ser humano, vem se tornando central nas preocupações e debates atuais em escala global. Questões como a obesidade, a segurança e soberania alimentar e, principalmente, os dilemas do abastecimento e acesso à alimentação enquanto problemas mundiais fomentam discussões incessantes em relação à temática da alimentação, a qual tem sua origem em uma preocupação que parece questionar o papel peculiar de nossa espécie no mundo natural. A comida conecta e separa o ser humano da espécie animal e do mundo natural. Segundo Pollan (2014), é através da cozinha que podemos ter uma compreensão mais profunda do mundo natural e de como atuamos neste contexto. Para o autor, poderíamos enfrentar todas as perguntas em relação à alimentação e à nossa existência animal em um mundo cultural nos embrenhando numa floresta, porém Michael Pollan (2014) afirma ter descoberto que é possível obter respostas ainda mais surpreendentes simplesmente indo para a cozinha. Em seu livro Cozinhar (2014), o autor introduz o debate sobre a especificidade do animal humano e a importância do ato de cozinhar na separação do homem de suas origens animais. Desde o século XVIII, a cozinha era vista como central na transformação do animal humano, sendo assim, segundo James Boswell (citado por Pollan, 2014), nenhum animal é um cozinheiro, exceto o Homo Sapiens, o animal que cozinha. Para além de sermos uma espécie em destaque nesta discussão, cozinhar é, para estes autores, o que nos transformou no que somos. A atividade de usar o fogo contribuiu muito para o avanço da civilização (Brillat- Savarin, 1995). Não somente enquanto atividade prática, mas em uma perspectiva simbólica, o ato de cozinhar é, segundo Lévi-Strauss (1997), a atividade simbólica que estabelece a diferença entre os animais e as pessoas. A cozinha seria a metáfora da transformação da natureza crua para a cultura cozida. O sentido literal desta transformação também é foco de diversos estudos contemporâneos. Antropólogos e primatólogos da atualidade alegam que a invenção do ato de cozinhar poderia guardar o segredo da evolução para nossa condição de seres humanos. “Ao redor do fogo nos tornamos mais domesticados” (Wrangham citado por Pollan, 2014:

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15). Isso quer dizer que “cozinhar se tornou compulsório; está cozido em nossa biologia. Primeiro cozinhamos nossa comida, e depois ela nos cozinhou” (Pollan, 2014:15). Partindo de todos esses pressupostos e sintetizando-os através da ideia de que foi o ato de cozinhar que fez nossa passagem da natureza para a cultura, tanto em um sentido literal quanto simbólico, isto é, o que definiu a condição humana, quando nos aproximamos das pessoas e saímos do plano do humano como um todo, podemos questionar acerca daquelas pessoas que vivem da comida do lixo, comida que pode ser crua ou cozida, mas que é catada, é sobra, resto. O que esta situação social específica pode nos dizer, então, sobre a condição humana, ou o que este estatuto de pessoa pode nos dizer sobre esta situação social? É este o questionamento central que busco desvelar em minha análise da trajetória da vida dos alimentos jogados fora e da vida de seus comensais. No entanto, para lograr tal objetivo, talvez seja necessário dar um passo para trás e indagar qual concepção de vida permite uma melhor abordagem da temática, assim como, fazer uma reflexão sobre os sentidos do alimento e a sua capacidade enquanto objeto de incorporação de todas essas relações em um só lugar. Nesse sentido, devemos assumir a importância da análise do comestível para se pensar não somente uma nova perspectiva para a antropologia da alimentação, como também uma nova maneira de compreender a vida dos objetos em relação à vida das pessoas. Tendo em vista que concebemos o ato de cozinhar como a passagem da animalidade para a cultura, idealizamos a comida enquanto a base para nos relacionarmos com a realidade (Mintz, 2001), pois ela entra em cada ser humano e assim, este é substanciado, encarnado a partir da comida que ingere.

***** “Processos de desenvolvimento: crescimento, maturação, decadência são fundamentais para o que eu compreendo como vida” – Tim Ingold

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Quando iniciei meu mestrado em Antropologia Social na Universidade de Campinas, tínhamos no primeiro semestre uma disciplina de “Seminário de Pesquisa”, na qual todos os projetos dos ingressantes de mestrado e doutorado eram discutidos pelo grupo. No dia da discussão do meu projeto, o colega que fez a problematização de meu texto disse que achava muito interessante o que eu pretendia abordar: a discussão acerca do podre e da vida. Demorei um tempo para refletir sobre isso, o que foi ocasionado pelo encontro, em minhas anotações, da frase (epígrafe deste tópico) de uma entrevista que Ingold deu para o grupo Nau da Usp (Ingold, 2012). Pensei, então, que talvez fosse sobre isso mesmo que pretendia discutir, mesmo sabendo dos meus limites e da pretensão de tal tarefa. Falar sobre a classificação dos objetos enquanto comestíveis e da vida destes enquanto comida, além das variáveis que estão envolvidas nesse processo do pensamento humano problematiza a própria ideia de vida, não estando esta restrita em minhas análises somente à vida dos alimentos, mas também daqueles que o consomem. O título do meu projeto, “Vida Podre: a trajetória de uma classificação”, escolhido não ao acaso, já dava indícios de minhas premissas, entre as quais estava pensar a questão da vida nesse sentido duplo, dos alimentos e das pessoas, e assim, questionar as relações que surgem a partir dessa classificação, principalmente no âmbito da relação entre as coisas e as pessoas e o valor da vida de ambas. Segundo Tim Ingold (2011), é objeto de estudo da antropologia pensar sobre as condições e potenciais da vida humana e nesse sentido pretendo, nesta dissertação, discutir sobre a vida humana e sua condição através da vida dos alimentos, isto porque, mais do que somente um adágio, nós realmente pensamos e vivemos a constatação: somos o que comemos. Assim como esta afirmação, a discussão sobre o comestível não é uma discussão nova na antropologia da alimentação, ou mesmo na disciplina antropológica como um todo. Desde Malinowski (1929), Audrey Richards (1932) e posteriormente com Marvin Harris (1985) em seu livro Bom para comer: enigmas da alimentação e cultura, a questão do bom para comer sempre esteve presente. O dilema do omnívoro é parte extremamente relevante de diversos estudos sobre alimentação no âmbito cultural, social,

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econômico e até mesmo biológico e nutricional. Porque não consumimos tudo que é biologicamente comestível? (Fischler,1995:29). Em que medida, entretanto, a pergunta acerca do “biologicamente comestível” faz algum sentido em termos de contribuição antropológica? A partir do momento em que decidimos comer algo, esse objeto ou esse ser vivo se torna comida, se enquadra na categoria de comestível. Como então procurar as nuances e as diferentes classificações de um mesmo objeto levando em consideração essa perspectiva? Como compreender o pensamento humano e a classificação do alimento enquanto categoria do sensível em um contexto de precariedade? Ou melhor, como um alimento é classificado como não comestível por uma pessoa, descartado, e posteriormente classificado como comestível por outra? A categoria do podre surgiu como uma possibilidade de um mínimo denominador comum para a classificação dos alimentos enquanto comestíveis, no entanto, ao longo da escrita etnográfica o podre deixou de ser uma variável e se tornou um ponto virtual que poderia iluminar essa classificação. Advindo da própria teoria antropológica, este objeto teve ressonância na análise dos dados de campo e, por isso, foi escolhido como uma categoria não classificável que permite pensar a vida dos alimentos e das pessoas que os classificam e questionar a própria categoria de vida enquanto vida biológica. Desde Lévi-Strauss, em seu clássico texto sobre alimentação, O triângulo culinário (1997), e com Mary Douglas, em “Pureza e perigo” (1976), a categoria do podre se mostra um interessante lugar para se pensar as variantes do comestível e não comestível. Como um lugar de liminaridade2 (Turner, 1974) que evidencia questões que, de certa forma, somente apareceriam quando à margem destas categorias duais, o podre não se apresenta aqui enquanto categoria nativa, mas, sim, ele é um flutuante, um ambivalente que pode ser comestível ou não, natural ou cultural, mas que, de forma geral, trata do valor da vida.

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Utilizo do conceito de liminaridade não como um momento na vida da comida enquanto objeto, mas sim como um momento da vida deste objeto no qual este pode ou não ser considerado comida. A liminaridade não prevê aqui uma teleologia dos alimentos, isto é, todos este como u vir à ser podre, mas sim entre os processos de se tornar ou não comida.

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Em minha etnografia, tive como foco central a vida dos alimentos, mas enquanto desenvolvia a pesquisa e após a sistematização dos cadernos de campo, de minhas percepções e da teoria até então abordada, algumas questões continuavam insistentemente ocupando minha cabeça: como pensar o limite do podre? Existe tal limite? O podre estaria relacionado com a morte? Seria o podre a materialização do medo da morte nos alimentos? E assim, como sabemos em que momento algo está podre? E morto? E vivo? Quando uma maçã cai do pé ela está pronta para ser comida? Ela está morrendo? Em que momento este processo se inicia? E quando termina? E a carne, por se tratar de um animal morto, seria um alimento em estado de putrefação? E os fungos? Um alimento com fungos não teria mais vida do que um que não os contém? No inicio de minha reflexão caí em uma armadilha criada por meus próprios objetivos de pesquisa. Ao imaginar o podre enquanto um objeto e tratar deste e da vida das pessoas que dele se alimentavam, parecia haver em minha escrita um sentido teleológico da vida dos alimentos que indubitavelmente chegaria ao podre e assim ao perigo de comer este podre, tendo em vista que ele poderia trazer risco de morte à vida dessas pessoas. A categoria do comestível parecia, em minhas análises, presa a esse limite que gerava uma polaridade entre as representações de podre daqueles que se alimentavam da comida jogada fora, e a realidade da vida enquanto materialidade que caminha para o fim iminente. As necessidades básicas das pessoas que “tinham” que comer ‘essa comida’ eram sempre soberanas à questão da sobrevivência, isso talvez porque o problema estava exatamente aí, na vida e na sobrevivência. Fui questionada muitas vezes sobre o objeto de minha pesquisa, ouvindo sempre que o que eu estudava não era o podre, pois “isso que você está falando não é podre, são sobras, restos de comida, comida que alguém não quis comer, porque se fosse podre ninguém comia”. Sobre o que eu estava falando então? Afinal de contas, não comemos o podre? Um bom queijo roquefort, ou gorgonzola, um chucrute bem curtido, uma uva fermentada, um faisandé? Não seriam esses também classificados como podre? Mas qual seria o meu objeto de pesquisa? Por que o podre? Para começar a pensar sobre essas questões, meu primeiro passo foi refletir sobre a categoria de vida, aquela que estava desde o início presente no título do meu projeto

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e como pano de fundo para tudo aquilo que pensava, mas que, somente no processo chamado por Da Matta de “terceira fase de um trabalho antropológico” (1978), consegui perceber sua importância enquanto parte central de meu estudo. Através da definição ingoldiana, que não vê a vida dos objetos ou alimentos como “a movement towards terminal closure” (2011: 48), mas como um processo no qual “things are in life rather than life in things” (idem, ibidem), podemos compreender melhor as variáveis que se apresentam entre as categorias duais de comestível e não comestível. O podre nos permite assim sair de um relativismo cultural no qual tudo é passível de ser classificado como comida e também não nos deixa cair em um determinismo biológico, pois ele próprio não se apresenta como um nome para um momento definido da vida das coisas e das pessoas; em sua nebulosidade, em seu processo de não enquadramento classificatório, ele se torna um classificador, um classificador de gente, um demarcador social. Uso, então, o podre enquanto conjugado com a ideia de valor, valor da vida das pessoas e dos alimentos, para que de seu lugar de ambiguidade revele as complicações entre o não comestível e o comestível e nos mostre que nesses meandros existem variáveis como as de tempo, status e risco que definem sua classificação. O podre é, nesse sentido, uma categoria analítica, pois é através dele que consigo conjugar valor com as variáveis apresentadas acima, levando ao limite o não comestível; o podre é visto então como o conceito chave desta dissertação, e não como objeto de estudo.

Meu objeto de estudo se define, desta maneira, enquanto o objeto-

comida, pois o podre em si não existe. No entanto, por ser o podre um conceito liminar, não classificável e que é central na construção do objeto de estudo desta etnografia, foi necessário organizar a escrita desta dissertação em relação ao limite de meu vocabulário e do vocabulário encontrado em campo, ou seja, if realities are not independent of our representations of them and our involvement with, then our raising of scientific question can be no innocent act” (Schweder, 1991 citado por Hastrup, 1993:733). In the world of mood, to claim innocence would be to deny the essential reflexivity inherent in any description. We have no choice but to invest our own experience in the description. – We notice how the words derive their meaning from the very context they purport to descrive; that is the carachteristic feature of reflexivity. With truly reflexive anthropology we shall not have to make a choice, but to live with the paradox of definitional realities (Hastrup,1993:733).

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Nesse sentido, penso que “every ethnographer is painfully aware of the discrepancy between richness of the lived field experience and the paucity of the language used to characterize it. This is no reason to stop talking, however” (Hastrup, 1993:735). Poderia, em minhas análises, ter optado pela preferência de usos de diversos conceitos nativos, utilizando para cada situação o termo exato o qual foi empregado. Contudo, seguindo essa orientação, não lograria ainda elucidar as questões que vejo como mais relevantes em minha discussão, para as quais o conceito de ‘podre’ e sua problematização demonstram, ao longo do texto, ser extremamente profícuas. Uma escolha extremamente fiel aos termos nativos não traria o ganho analítico que o conceito escolhido pode contribuir. Como bem aponta Marilyn Strathern, não se trata de imaginar que seja possível substituir conceitos exógenos por correspondentes nativos; a tarefa é, antes, a de transmitir a complexidade dos conceitos nativos com referência ao contexto particular em que são produzidos. (...) Isso exige que os próprios construtos analíticos sejam situados na sociedade que os produziu (Strathern, 1988: 33).

Sendo assim, meu objeto de estudo se inicia com a comestibilidade, ao passo que esta se torna um objeto em si e posteriormente vai se transformando ao longo da dissertação na vida podre; a questão central torna-se o processo de classificação da vida e as variáveis que entram nesse jogo, pois, assim como a concepção que apresento da vida, esse trabalho não se organiza em uma escrita linear, em termos de tempo e espaço, mas sim em um ciclo de vida, o processo de “being alive”(Ingold, 2011).

O campo Ao longo deste livro, o que mais me importa é pensar a alteridade na sociedade de classes. Essa alteridade é axiomática em qualquer pesquisa etnográfica de campo. Como aconselha C. Geertz, citando Thoreau, "não vale a pena atravessar meio mundo [...] para contar o número de gatos em Zanzibar". Penso nisso cada vez que me deparo com o potencial especial da pesquisa etnográfica. Atravessar meio mundo é o que os antropólogos mais gostam de fazer — literal ou metaforicamente. Mas será que o simples fato de estar em Zanzibar garante bons resultados? Se voltarmos do campo, depois de dois meses ou de dois anos, simplesmente repetindo o que já foi dito e descrito por outros métodos, "reforçando verdades antigas" (Geertz, 1988), será que os resultados terão valido a viagem? O método etnográfico foi fundado na procura por alteridades:

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outras maneiras de ver (ser e estar) no mundo. Se não levamos nossas análises até as últimas consequências, por que — meu Deus — não usamos um método mais simples? É com essa proposta, convidando o leitor a vir conosco experimentar outros mundos, que embarcamos nesta viagem. (Fonseca, 2000:9).

Durante um pouco mais de seis meses de minha pesquisa de campo vivi no município de São Paulo e tive como campo previamente definido uma instituição e duas feiras em favelas da cidade. Iniciei a pesquisa e o foco anteriormente escolhido foi se transformando e o que era para ser uma etnografia multi-situada, nos termos de George Marcus (1995), se tornou a etnografia da trajetória da vida de certos alimentos que iam se misturando à vida das pessoas, e eram ambas classificadas de acordo com diversas vozes: das instituições, dos lugares, das pessoas. Como foi apontado anteriormente, creio ser importante ressaltar que a classificação dos alimentos como comestíveis se dá em relação ao seu lugar de denominação e aos agentes que os classificam. O alimento é objeto e agente deste processo semântico, e a vida na qual os alimentos existem tem como constituintes vozes que também a definem. Essas vozes se concentram, nesta etnografia, em alguns “campos” específicos que serão apresentados abaixo como forma de contextualização da pesquisa, mas os quais não são o foco deste estudo. A partir da premissa de que aquilo que é comida é considerado por seus comensais como comida, desenvolvo essa etnografia a partir de um panorama mais amplo da trajetória de certos objetos os quais são classificados como comida ou como lixo. Para assim, acompanhar a trajetória da vida destes objetos e como esses vão sendo classificados, fez-se necessário realizar um recorte que a princípio me soava como um recorte espacial, porém, posteriormente, deixando de pensar nesta trajetória enquanto um caminho linear, percebi a importância em descrever alguns campos que iam surgindo em minha narrativa, mas sem contudo tê-los como campos de uma etnografia multi-situada. Ao falarmos sobre a vida, no processo de “being alive”, essas vozes, pessoas, e instituições são mais um daqueles que “estão na vida”. A partir desta perspectiva apresento os lugares que participam dessa narrativa: o projeto Mesa Brasil, a feira na favela do Madalena em Sapopemba e a favela de Paraisópolis.

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Para tanto, realizei uma etnografia destes alimentos nos lugares que descrevo abaixo através de participação nas reuniões, nas atividades formativas de cada entidade, nas colheitas urbanas, além de uma vivência regular nas favelas e no programa Mesa Brasil. Em decorrência do contexto em que a pesquisa se deu, nenhuma entrevista ou conversa foi gravada, mas o trabalho constante de sistematização diária dos dados de campo foi realizado para que as informações fossem fiéis à minha experiência vivida nestes lugares, tendo em vista que “to move, to know and to describe are parallel facetes of the same process, that of life itself” (Ingold, 2011:3). Me propus, assim, a “being observant”, pois “being observant means being alive to the world” (Idem, ibidem).

O Mesa Brasil

O programa Mesa Brasil é uma iniciativa do SESC em parceira com o governo federal que tem como objetivo a segurança alimentar e nutricional sustentável, que redistribui alimentos excedentes apropriados para consumo fora dos padrões de comercialização. Formado por uma rede de banco de alimentos que busca onde sobra e entrega onde falta – o Mesa Brasil SESC contribui para o combate à fome através da complementação de refeições. (http://www.sesc.com.br/mesabrasil).

O projeto Mesa Brasil recolhe alimentos doados por diversos tipos de estabelecimentos alimentícios e faz um processo de triagem e higienização para que esses alimentos sejam repassados para diversas instituições, com o intuito de combater a fome através do combate ao desperdício, estando sempre atentos para a colheita de produtos que perderam seu valor comercial, mas que ainda estão aptos para consumo. Utilizando do conceito de Segurança Alimentar, sendo este a garantia a todos os brasileiros de acesso a uma alimentação adequada à sobrevivência e à saúde em termos de quantidade, qualidade e regularidade, este projeto parte das categorias de higiene alimentar e nutrição para classificar assim o que é podre e o que ainda é considerado alimento. Através de uma metodologia baseada nos parâmetros de higiene da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e de parâmetros mundiais de nutrição e

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segurança alimentar, os programas de recolhimento de sobras e doação de alimentos para combate à fome trabalham dentro de um quadro de categorias relacionadas às ciências biológicas, médicas e exatas. Os fatos científicos e biológicos, as características naturais dos alimentos e a capacidade do ser humano de usar seus sentidos e sensações classificam e definem essas sobras.

Sapopemba, Feira do Madalena, Ana Paula e Dona Nazinha

Meu primeiro dia de campo de toda a pesquisa foi realizado em Sapopemba. Cheguei lá por intermédio de um grande amigo que também é meu colega de turma de mestrado e que já realizava sua pesquisa há tempos nesse distrito. Em Sapopemba, pretendia estudar a feira e o consumo das sobras de alimentos, tentando assim comparar com outra feira, da favela de Paraisópolis, a qual tem uma posição geográfica muito diferente à de Sapopemba. Sapopemba é um sub-distrito do município de São Paulo que possui mais de trezentos mil habitantes e mais de trinta bairros e se localiza na zona leste da cidade, há mais de duas horas e meia de transporte público do centro. Esses bairros apresentam uma grande variedade em seu nível sócio econômico, desde famílias de classe média a um nível de vulnerabilidade social bem alarmante. Foi no CEDECA, Centro de Defesa de Criança e Adolescente, do bairro do Madalena que conheci a maior parte das pessoas que aparecem nessa etnografia, cujas vidas permeiam e são permeadas pela vida dos objetos descritos no texto. O CEDECA, além de se ocupar da defesa da criança e do adolescente, é um ponto de encontro e articulação dos moradores do bairro. Lá trabalham Dona Nazinha e Sueli e foi através do CEDECA que Ana conseguiu sair da Praça da Sé e construir uma casa para viver com sua família. É também na rua ao lado do CEDECA que se encontra a principal feira do bairro. A feira do Madalena acontece todas as quintas-feiras e é o principal local para a compra de frutas, verduras, legumes e carnes da maioria dos moradores da região. É também na feira do Madalena que Ana Paula faz algumas compras e colhe boa parte dos alimentos que são deixados pelos feirantes.

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Paraisópolis

Paraisópolis poderia ser considerada o padrão de favela que visualizamos ao pensar em tal palavra. Originária de um loteamento destinado à construção de residências para a classe alta, a região foi ocupada em sua maioria por migrantes nordestinos que vieram a São Paulo para trabalhar na construção civil. Ao mesmo tempo em que a favela foi crescendo, novos bairros nobres com condomínios de luxo eram criados ao redor da ocupação; atualmente a favela é habitada por mais ou menos 100 mil pessoas. Um enclave periférico na cidade de São Paulo, em um estilo de favela muito parecido com as favelas do Rio de Janeiro, segundo Feltran (2010), Paraisópolis se diferencia de outras periferias de São Paulo. Sem entrar na questão se existe uma “não presença” ou falta do Estado nessas localidades, além dessa forma de gestão governamental, se vê muito presente a gestão das Ong’s e entidades assistenciais. Paraisópolis conta com uma feira livre muito grande realizada todos os sábados, e nela podemos ver as redes de articulação para aproveitamento das sobras. Além disso, duas outras entidades participam da organização da vida cotidiana em Paraisópolis, abrangendo suas diversas esferas. A Casa da Amizade e o Centro de Serviço Social da unidade do Hospital Albert Einsten prestam diversos serviços de assistência à comunidade e ajudam na definição da comestibilidade dos alimentos a partir de suas próprias perspectivas sobre risco, tempo e valor.

A trajetória etnográfica

Como, então, descrever e colocar no papel a trajetória de um objeto que passa por diferentes lugares em termos geográficos e tem relação com diferentes atores, focando no objeto em si e em sua classificação como produtora de diferenciação, mas ainda assim dando importância para as relações que constrói? Para tanto, escolhi quatro alimentos que, em suas trajetórias, abordam questões que vejo como centrais para a discussão do “bom para comer e bom para pensar”. A partir

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da história de alguns momentos da vida desses objetos, vou desenhando suas trajetórias, descrevendo seus campos, os atores com os quais eles se relacionam, as vozes que disputam legitimidade e a vida daqueles que os consomem. Parto, portanto, da perspectiva Ingoldiana relacionada ao conceito de ‘dwelling’, isto é, “to be embarked upon a movement along a way of life” (Ingold, 2011:31), no qual “the path and not the place is the primary condition of being”. Vejo, assim, não somente o processo de experimentação da vida, como o próprio processo de construção etnográfico como “a matter not of testing conjectures in arenas of practice, but of enrolling practical activity in the very process of following a train of though – they place the investigator, in person, right in the midst of things” (Ingold, 2011:34). Pretendo, como Paul Stoller diz, desenvolver uma etnografia que dê aos leitores “a taste of ethnographic things” (1990:9), construindo um texto articulado com a descrição dos aspectos sensitivos da vida dos seguintes objetos: a banana, o frango, o mamão e o iogurte. Concebi como necessário e interessante, do ponto de vista da construção etnográfica, iniciar o primeiro capítulo com uma breve discussão sobre o comestível. É a discussão sobre a comestibilidade da casca da banana que nos guia para uma concepção de como a noção desta é construída e as variantes que operam nesta definição. É também parte deste capítulo uma reflexão sobre o processo de classificação. A discussão sobre o bom para comer é mais uma vez trazido à tona. Abordo então, através do regaste da discussão de Mauss e Durkheim (1981), o processo classificatório, compreendendo este como uma atividade cotidiana na seleção dos alimentos. Desenvolvo um breve panorama da história da antropologia da alimentação, ou, talvez, do que chamo de ‘cozinha da antropologia’. Posteriormente, o tema do ‘podre’ é introduzido partindo de sua concepção mais ampla, de um ponto de vista teórico e prático, para assim chegarmos ao foco desta analise através de uma discussão sobre o iogurte, o controle do podre e seu uso enquanto categoria não classificável que ilumina o processo de classificação. O segundo capítulo, que tem como título “As variáveis da classificação: risco e valor”, pretende, de forma geral, abordar as variáveis que definem a comestibilidade dos alimentos. A feira livre, e mais especificamente a ‘xepa’, será um ponto crucial para

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abordagem desta questão, tendo em vista que é o local e a temporalidade que articulam as categorias presentes no título deste capítulo. Um breve levantamento do conceito de risco será articulado com a vida do mamão, bem como as histórias sobre o frango que pretendem elucidar os questionamentos sobre pureza, perigo e magia. Caminhando para uma discussão sobre hierarquia em relação aos alimentos, e estes como demarcadores sociais, nos direcionamos para o terceiro e último capítulo. “Sobre a vida podre” pretende articular as variáveis da comestibilidade dos alimentos com a vida das pessoas que os consomem. Partindo da perspectiva chave da antropologia da alimentação, isto é, ‘somos o que comemos’, mas também ‘comemos o que somos’, busco compreender a perversidade do processo de incorporação em relação ao dilema do omnívoro e o lugar das pessoas nesta relação. É necessário, para tanto, o questionamento da própria ideia de vida, ou de vida biológica, para podermos compreender o processo de estar vivo e a relação entre as coisas e as pessoas.

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Capítulo 1 - Bom para pensar: o comestível e o não comestível O Comestível

Certa manhã, considerada típica no programa Mesa Brasil do município de São Paulo, a responsável pela coordenação da unidade Carmo recebeu uma ligação de uma fábrica de doce de banana buscando saber se o programa aceitaria a doação de algumas toneladas de casca de banana. Em resposta, a coordenadora disse que não poderia tomar essa decisão sozinha e que precisaria consultar a coordenação estadual. Luciana, diretora estadual do programa, foi então informada sobre o pedido de doação. A primeira ação de Luciana foi telefonar para o microbiologista que presta consultoria para o Mesa Brasil e perguntar a ele sobre os riscos do consumo desse alimento e sobre como a higienização e preparo de tal alimento deveriam ser conduzidos, caso a doação fosse aceita. O microbiologista pediu um tempo para pensar. Após alguns minutos ele retornou à Luciana e disse ser possível aceitar a doação, dizendo que a higienização da casca poderia ser feita através de sua fervura ou cozimento e que ela seria uma fonte importante de nutrientes. Depois dessa ligação, Luciana consultou as culinaristas para que a possibilidade de receitas com a casca da banana fosse pensada. As culinaristas, então, fizeram uma rápida pesquisa e apresentaram uma pequena lista de diversas receitas. Agora era a vez das nutricionistas realizarem uma pesquisa sobre os nutrientes que poderiam ser encontrados nesse alimento e assim compreender se ela seria uma fonte importante na complementação nutricional das entidades atendidas pelo programa. As nutricionistas chegaram à conclusão de que a casca da banana era rica em nutrientes e que, além disso, era possível criar uma ampla variedade de receitas com ela, o que permitiria um grande aproveitamento da doação, sem mencionar ainda a questão da higienização e armazenamento que não exigiam grandes esforços das entidades atendidas. A doação foi aceita e todas as instituições atendidas pelo programam no município de São Paulo receberam alguns quilos de casca de banana, mas somente após um curso de formação no qual um representante de cada entidade aprenderia a fazer todas as 17

receitas levantadas pelas culinaristas. As principais delas eram bolo de casca de banana, torta, brigadeiro e farofa. ***** Não é comum pensarmos que na língua portuguesa existem dois adjetivos diferentes para tratar da “comestibilidade” de um alimento3. O sujeito “comida”, quando se transforma em adjetivo, é conhecido como comestível, enquanto que o outro adjetivo, comível, apesar de mais simples, é poucas vezes recordado. O comestível seria muitas vezes definido como “aquilo que se pode comer”, entretanto, essa definição se prova muito relativa, principalmente se analisarmos a cena acima e pensarmos na casca de banana também como algo “que se pode comer”. Essa expressão por si só tem abertura para, no mínimo, duas vertentes de análise, e é em relação a essas duas vertentes que explorarei a questão da comestibilidade da casca de banana. Para além da definição abrangente do comestível como “algo que se pode comer”, muitas vezes a comestibilidade do alimento está associada a sua propriedade de não causar risco àquele que o consome, ou ainda, de não ser tóxico ou contaminado. O comível, por outro lado, seria aquele alimento que possui sabor ou gosto possível de ser consumido, ou ainda, que seja no mínimo agradável para consumo. A casca de banana, ao surgir na pauta do Programa Mesa Brasil, não era a priori considerada comestível ou muito menos comível. Ela passou por um processo não somente semântico, mas também burocrático para mudança de seu estatuto. O fato das nutricionistas consultarem diversos profissionais antes de anunciarem o aceite da doação e a ordem de consulta destes profissionais diz muito sobre a criação da comestibilidade dos alimentos e as esferas de poder que inferem sobre essa nomeação. Este processo é, assim, o próprio processo de criação da categoria comida, que tem seu estatuto de objeto transformado em relação à sua comestibilidade. Os microbiologistas foram quem primeiramente definiram a casca da banana como passível de ser comida (verbo e sujeito), porque é a biologia a voz mais legitimada 3

Talvez em inglês essa associação seja mais espontânea, pois intuitivamente falando seria mais fácil transformar o verbo ‘eat’ em ‘eatable’ e não ‘edible’. No entanto, a segunda opção é a mais comum e significa comestível e a primeira tem como significado ‘comível’.

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para pensar a capacidade de um alimento trazer, por um lado, risco à vida das pessoas ou ser, por outro lado, considerado como nutriente para manutenção desta mesma vida. Posteriormente, as culinaristas foram consultadas sobre a possibilidade de tornar esta comestibilidade comível, isto é, de fazer a passagem da natureza do alimento para a cultura do preparo. Em última instância, foi a funcionalidade dos alimentos que precisou ser analisada para que esse fosse aceito como um alimento comível e comestível e também nutritivo. A casca da banana se torna então comestível a partir da perspectiva da ciência. Quando os microbiologistas afirmam que ela é passível de ser comida, algo que antes era lixo4 é classificado como alimento; e essa transformação se dá através de um processo de nomeação que traz à tona a política por detrás da classificação. O próximo passo estaria associado à transformação do não tóxico, o passível de ser digerido e metabolizado pelo corpo humano, em também agradável ao paladar humano, e, mais ainda, a um paladar humano específico. A casca de banana não é comida crua, não é comida de qualquer maneira. Culinaristas são consultadas para pensar nas possibilidades, até o presente momento do texto, chamadas de culturais, de construção de um prato; é o processo de transformar um alimento, isto é, um apanhado de nutrientes, passível de ser digerido sem a priori causar risco de contaminação, em uma comida5. Esses nutrientes também precisam ter uma funcionalidade, pois as pessoas que recebem os alimentos do Mesa Brasil se encontram, segundo definição do próprio programa, em uma situação de vulnerabilidade social, e não estariam assim recebendo o básico dos direitos sociais, como alimentação, moradia e educação. Desta forma, a alimentação recebida deve cumprir sua função de nutrição enquanto direito, enquanto acesso a uma alimentação saudável e nutritiva. 4

O conceito de lixo tem grande relevância nesta dissertação, concebido aqui como ‘matéria morta não reaproveitável’, ou ainda, ‘matéria sem estatuto de vida’. Parto da premissa sintetizada nas análises de Daniel De Lucca, no qual o lixo é definido como ‘coisa dotada de qualidades desprezíveis e asquerosas’, associado quase sempre ao inútil e perigoso (2008). 5 Diversos estudos clássicos que abordam a questão da alimentação de uma perspectiva das ciências humanas apontam a diferença entre alimento e comida. A comida seria o alimento transformado através da cultura, e o alimento seria somente um objeto sem significado social antes deste processo. Assim como Câmara Cascudo (1983), Roberto Da Matta (1987) também realiza esta distinção em suas obras sobre alimentação. No entanto, defino aqui como comida tudo aquilo que é comida por alguém. A comestibilidade de um objeto é um momento em seu processo de vida enquanto tal e discorrerei mais sobre o tema no último capítulo.

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Ao tomarmos uma perspectiva da história da espécie humana, a classificação do comestível, ou a transformação de algo em alimento e/ou comida, é notadamente empregada como medida para identificar o afastamento da dependência da natureza pelo homem e seu desenvolvimento rumo à espécie humana atual, na qual acreditamos haver um predomínio do cultural/ social. Entretanto, nas análises dominantes sobre a história das revoluções que impulsionaram o desenvolvimento da espécie humana, segundo Baurrau, citado por Contreras (2011), quando se refere à revolução tecnológica do fogo e da cocção, pode se dizer que talvez tenha havido um exagero na importância atribuída à revolução neolítica ou à domesticação das plantas e animais, esquecendo-se de uma revolução mais antiga, de ordem culinária: a revolução de tornar comestíveis coisas que não o eram necessariamente. A casca da banana, assim como outros produtos que poderiam ser mencionados em referência à revolução citada acima, era muitas vezes vista como não comestível por não ter passado pelo movimento de ordem culinária, isto é, o processo cultural que transforma algo do domínio da natureza em algo do domínio da cultura, que pode ser considerado e que muitas vezes é concebido como livre de riscos. O não comestível, assim como o comestível, pode ser classificado, então, de diferentes maneiras, estando estas claramente associadas à sua forma de preparo, ao tempo de maturação, aos hábitos alimentares. No entanto, ao quebrar esse ciclo “natural” visto como a transformação cultural do não comestível em comestível – e, mais ainda, em comível –, ou seja, quando retiramos as formas ditas culturais desta relação, o laço entre a denominação de comida e de comensal é explicitada, e a vida de ambos torna-se o cerne da questão. A casca de banana é extremamente interessante para elucidar as questões que aponto como pertinentes, pois ela por si só permite uma gama de classificações. Falo aqui da casca de banana que se tornou comida, mas para um grupo de comensais específicos. Desde o princípio de minhas análises falo de um comestível que está associado à questão da necessidade e essa especificidade do domínio do que compreendemos como biológico sobre a cultura/sociedade traz um conflito para a própria definição de alimento e comida. Se a comestibilidade é vista como uma proeminência de biológico, do passível de ser

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alimento em termos físicos, como pensar a transformação de um objeto em comida, sendo esse um combustível para um corpo que precisa de energia? Quando pensamos em tornar passível de ser comida uma casca de banana para alguém que passa fome, essa transformação cultural é vista como criativa e extremamente profícua porque a necessidade do alimento se tornaria superior à ideia de um alimento que, além de não tóxico, pudesse ser saboroso. Entretanto, o que venho resgatando na discussão até aqui apresentada é a ideia de que a propriedade de comestibilidade em si é uma relação; uma relação entre corpo, fala, nomeação, biologia, cultura e sociedade. Simone Frangella (2009), em seu célebre estudo sobre moradores de rua, dedica um capítulo inteiro sobre a alimentação de pessoas em situação de rua, e apesar de toda a riqueza de detalhes e de uma etnografia extremamente pertinente para a antropologia como um todo, deixa passar uma discussão de grande relevância. Ao tratar dos sistemas alimentares destes sujeitos, a antropóloga diz se surpreender quando em um salão paroquial no qual havia uma doação de refeições para os moradores de rua, estes se revoltaram dizendo que aquela comida servida não era digna de pessoas, ou ainda, não era comida (2009). Penso que, talvez, a surpresa da antropóloga seja mais profícua do que a própria ação dos sujeitos por ela estudados. Afinal de contas, porque nos surpreendermos com o fato de um ser humano classificar como ruim ou como não comível um objeto, quando esta pessoa estaria no limite da necessidade, da sobrevivência? A seleção dos alimentos é uma atividade tão cotidiana em nossas vidas que pode ser até mesmo considerada banal e, assim, não digna de atenção. Escolhemos o que nos parece comestível, o que nos parece comível, aquilo que nunca o foi ou até mesmo aquilo que deixou de ser comida. Os processos culturais tornam algo comestível ou o mantém nesta posição de não comestível, pois afinal de contas, tudo que é classificado como comida é, ao menos, para seus comensais, comestível. Para traduzirmos em uma terminologia da antropologia da alimentação ou até mesmo em termos da gastronomia, quando falamos de comida e da negação em considerar certos alimentos ou certos objetos enquanto comida, existem dois vocábulos que são proeminentes nesta discussão: “disgust” e “distaste”. Em português ambos podem ser

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traduzidos como desgosto ou ainda, o primeiro como repugnância e o segundo como repulsa, desprezo. Fischler, em O omnívoro (1995), analisa como a diferença destas duas palavras pode ser condicionada à separação entre a função biológica e a psicológica, cultural e social da alimentação. Para o autor é interessante pensar o desgosto, pois, el disgusto es um fenómeno que posée a la vez una dimensión biológica y una dimensión psicológica, social y cultural. Cuando se habla del disgusto, se hace una referência a: estados del sujeto o de los afectos (emociones, sensaciones); comportamientos (mala cara, rechazo, regurgitación y vómito); y también representaciones (1995:76).

Sendo uma das funções do prazer a função biológica, o desgosto resultaria de uma mecânica biológica ligada à proteção do organismo durante uma situação alimentícia; a incorporação de uma substância estranha pode ser perigosa. É por esse risco que a casca da banana teve que passar por tantas aprovações de especialistas para ser finalmente classificada como comestível. Ao ser finalmente considerada boa para comer, a casca da banana se torna também boa para pensar, em especial no que tange ao debate das funções enquanto separadas entre biológicas e sociais, e a dimensão da classificação sempre atrelada a essas duas esferas. Em sua análise sobre “el disgusto”, Fischler (1995) afirma que manifestações biológicas e comportamentais do desgosto podem ser compreendidas como dispositivos de proteção do organismo, porém existe ainda uma dimensão específica que pode ser caracterizada como a particularidade humana desta questão: no homem, as proteções mencionadas tem também outra dimensão que não é biológica, fisiológica, sensorial ou comportamental, mas que procede do universo dos conceitos e representações, isto é, a dimensão ideal. Ancorando-se na discussão apontada por Lévi-Strauss, Fischler (1995) postula que a comida não deve ser somente boa para comer, mas também boa para pensar, e nesse sentido, pensar os alimentos quer dizer classificá-los, ordená-los, e o desgosto seria então ligado a um transtorno desses processos de classificação, uma dissonância entre categorias. O desgosto aconteceria quando a comida não é boa de pensar.

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A transformação do objeto casca da banana em um alimento, em comida, nos mostra que essa separação entre as dimensões da vida entre biológica e social não se dá exatamente desta maneira. A questão do desgosto é interessante analiticamente falando porque a própria classificação de algo enquanto comida também o é. Ao compreendermos os alimentos ou os objetos como um todo através de uma perspectiva na qual suas propriedade por si só não podem “be identified as fixed essential atributes of things but rather processual and relational; pratically experienced” (Ingold, 2011: 50), a própria noção do que consideramos bom para comer questiona a divisão das dimensões de um objeto e de sua vida. Fischler, um pouco mais adiante em suas análises sobre a alimentação, afirma que a comestibilidade dos alimentos também está relacionada com aspectos culturais, isto é, que uma comida boa de pensar puede poner en evidencia la existência de una operación cognitiva que consiste para el comensal en verificar si el alimento potencial ‘pega’ em relación con las categorias culturales y con las reglas culinárias de referencia. El digusto consiste en una protección biológica reconstruída culturalmente (1995:76).

Para além da ideia de que o alimento em potencial deve ser não somente biologicamente comestível, mas também sê-lo culturalmente, eu diria que a própria comestibilidade já é um processo duplamente marcado. “The fact is that nutrition in human society cannot even be considered apart from the cultural medium in which it is carried on” (Richards, 1932:10). Nesse sentido, o fato da casca da banana se tornar comida, ou seja, sair de seu estatuto de lixo no qual não era considerado em nenhum momento como alimento, é um processo cultural em seu sentido mais amplo. No entanto, enfatizo que o contexto específico na qual essa discussão está inserida traz também contribuições que estão delimitadas por seus próprios referenciais. Quando falamos do comestível ou não comestível estamos aqui falando de um contexto de precariedade. A casca de banana poderia ser sim transformada em alimento através de concepções políticas de aproveitamento total de comida, ou de movimentos

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antidesperdício e anticapitalistas como o freeganismo6. Todavia, a casca de banana se tornou comida aqui para pessoas que estavam, segundo os profissionais do próprio programa, em uma situação de vulnerabilidade. Atentando para essa especificidade, gostaria de relatar uma situação que permite iluminar esta discussão. Em meu campo no Mesa Brasil, participei de um curso de formação sobre gestão de sobras de alimentos. Havia no curso diferentes profissionais da nutrição e assistência social, responsáveis pelas instituições que recebiam doações do programa, além de um grupo de donas de casa desavisadas que buscavam receitas para seus lares. Na apresentação do caso da casca da banana, após uma longa discussão, uma aposentada de classe média alta pediu a palavra e manifestou o seu contentamento com o curso: “Isso é demais, vocês poderiam passar depois as receitas desses pratos feitos com casca de banana? Vou passar tudo para minha empregada e ela vai ficar muito feliz em poder reaproveitar todas essas coisas” (Diário de Campo, dia 18/04/2013). Na mesma época em que estive no curso do Mesa Brasil e a história da casca de banana me foi contada, a representante da FAO (Organização das Nações Unidas para Agriculta e Alimentação) lançou uma campanha que incentivava o consumo de insetos nos países com alto índice de fome (Ávila, 2013). A representante dizia que, assim como aprendemos a comer peixe cru, as pessoas que passam fome também poderiam aprender a comer insetos, pois esses são alimentos de fácil acesso e contém alto índice de proteína. De forma paradoxal, a ANVISA lançou uma nota dizendo que iriam restringir o nível de restos de insetos presentes na maioria dos alimentos industrializados que são derivados de grãos. Pergunto então, para quem são destinados a casca de banana ou o consumo de insetos?

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O freeganismo é um estilo de vida alternativo baseado no boicote ao consumo, já que os processos produtivos geram exploração de animais e humanos, além de graves impactos ambientais. A palavra freeganismo surgiu da junção das palavras em inglês vegan e free, pois a ideia freegan surgiu do veganismo, onde se evitam impactos ambientais, mas expandindo isto com o anarquismo, ao boicotar também tudo o que gera custos humanos. Desta forma, a curto prazo, o freeganismo propõe reaproveitar alimentos e objetos descartados pela sociedade de consumo, reduzindo o desperdício gerado por ele; a longo prazo, propõe que o movimento seja o produtor de seus próprios meios de sobrevivência. Assim, os freegans buscam construir autonomia, vasculhando, ao invés de comprar, e coletando comida no lixo, ao invés de adquirí-la. Isto faz com que a maior parte dos freegans habite grandes cidades, onde o lixo é abundante e rico. Uma prática comum entre os freegans é o mergulho no lixo, de onde eles obtêm móveis, roupas, utensílios e comida.

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Seriam estes objetos apenas ‘estranhos’, não usuais ou a sua comestibilidade estaria associada à quem este se destina? A hierarquia do comestível começa a aparecer nesta discussão a partir do momento em que certos alimentos se tornam comestíveis para certas pessoas, e deixam de ser para outras, ou ainda, nunca foram ou irão ser. O comestível, ou o processo de transformar algo em comida, está diretamente associado à categoria de pessoa do comensal. O dilema do omnívoro, que podemos considerar como o grande paradoxo atual acerca da alimentação, se demonstra nas situações descritas neste trabalho como muito mais complexo do que uma simples insegurança quanto à eleição dos alimentos. O paradoxo do omnívoro se constituiria em, por un lado, por ser dependiente de la variedad, el omnívoro se encuentra impulsado a la diversificación, a la innovación, a la exploración, al cambio, que pueden ser para él vitales. Pero por otro lado y simultáneamente, está obligado a la prudencia, a la desconfianza, al «conservadurismo» alimentario: todo alimento nuevo, desconocido, es, en efecto, un peligro potencial (Fischler,1995: 62).

Neste contexto de situações limite, a escolha dos alimentos se associa a muitas outras variáveis. Não se pode, assim, conceber a eleição dos alimentos como, no limite, cerceada pelos fatores biológicos em si, pois de fato este não existe de forma pura. Por que comemos? Entende-se: por que comemos o que comemos? Segundo Fischler (1995), essa pergunta parece absurda, uma vez que comemos o que é comestível e isso é tudo. Porém, como lidamos com o fato de que estamos muito longe de consumir tudo o que nosso organismo estaria disposto a nos deixar absorver? Ao invés de perguntar por que comemos certos alimentos mais do que outros, a pergunta central desta investigação se concentra em questionar o porquê de não comermos certas substâncias, isto é, por que não consumimos tudo o que é biologicamente comestível? Porque somente certos objetos se tornam comida e mais ainda, somente para certas pessoas? Para respondê-la, devemos percorrer o trajeto da construção da comestibilidade para assim compreender o que está envolvido neste processo classificatório, que é um processo de exclusão e hierarquização.

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Nos estudos antropológicos sobre alimentação é consenso que a variabilidade das eleições alimentícias humanas advém, em grande medida, da variabilidade dos sistemas culturais: “se não consumimos tudo o que é biologicamente comestível, se deve ao fato de que tudo o que é biologicamente comestível não é culturalmente comestível” (Fischler, 1995:29, tradução livre). Contudo, mais do que um aspecto cultural, a comestibilidade vai se delineando como um demarcador social. Em uma perspectiva estruturalista, Fischler (1995) afirma que as regras de comestibilidade só podem ser compreendidas estruturalmente, sem tentar reconstituir as regras de causa e efeito que cada uma delas, tomadas isoladamente, possa implicar. Isto é, nas palavras de Mary Douglas (1982), a cultura pode e deve ser explicada em termos culturais. O comestível e o bom para comer são, ambos, frutos das relações que estabelecem e das que os estabelecem. Nesse sentido, a separação, ou ainda, a determinação dos aspectos nutricionais sobre os sociais ou culturais e vice versa não toca no cerne da questão, não se mostrando assim proveitosa para as análises propostas aqui.

O bom para comer

É comum nos estudos sobre alimentação e nutrição humana encontrar uma barreira que impede a transposição de certas categorias da antropologia para o estudo dos alimentos, ou ainda de certas temáticas sobre os alimentos para os estudos antropológicos. Não só a partir da perspectiva antropológica per se, mas também nos estudos sociológicos, culturais e até mesmo em certa vertente da psicologia existe um limite que se mostra praticamente intransponível – o limite da necessidade física por alimento. Contudo, desde estudos de autores da década de trinta, como Audrey Richards (1932), é possível encontrar análises nas quais o ato de pensar a nutrição humana através da perspectiva da limitação e da necessidade não é concebido como uma maneira profícua para avanços no estudo da alimentação. Segundo Richards, the attempt for instance, to account for man’s food getting activities as the product of an inherited ‘nutritive instinct’ has led to a dangerous over-

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simplification of the whole problem . The whole problem of nutrition in human society has not only been neglected but also definitely misunderstood (1932:3).

Para a autora, de todos os impulsos biológicos, a nutrição é o fator mais dependente da formação de um complexo de hábitos na vida do indivíduo. “Can we prove that man selects food according to an inherited neural disposition? Is hunger and its associated affects the drive behind his food getting activities?” (Richards,1932:8). Cotidianamente, decidimos o que comer e, sem mesmo pensar, classificamos aquilo que consideramos comida e aquilo que não o é, ou deixou de ser. Escolhemos aquilo que gostamos de comer, mas também aquilo que definimos como comestível. Nesse momento, a sutileza entre o comestível e o comível aparece. É senso comum pensar que olhar um alimento, sentir seu cheiro e sua textura é algo ‘natural’, isto é, que experienciamos sensações que são fisiologicamente dadas e, conjuntamente a um saber científico que está cotidianamente imbricado em nossas relações, decidimos o que é ou não passível de ser consumido como alimento. Ao pensarmos na palavra comida, diversos símbolos, metáforas, sensações, desejos e memórias são despertados por todo o corpo. Os órgãos do sentido podem sofrer as mais profundas transformações pelo simples lembrete da necessidade/vontade de um dos atos mais culturais das atividades básicas à sobrevivência (Mintz, 2001; Belasco, 2008; Ashley, 2004). A comida, neste sentido, é vista como conexão entre pessoas, como memória, identidade e pertencimento. Segundo Mintz, “há uma estranha congruência entre conservadorismo e mudança que nos acompanha no estudo da comida” (2001:1). Apesar das evidentes mudanças no gosto e nas preferências de cada pessoa, a memória e o peso do primeiro aprendizado alimentar e algumas das formas sociais aprendidas talvez permaneçam para sempre em nossa consciência, como sugere o antropólogo. É através deste tipo de percepção que a célebre história das “Madeleines de Proust” é invocada em uma miríade de textos da antropologia da alimentação, com o objetivo de resgatar a importância da comida enquanto memória e, mais ainda, enquanto marcador de uma identidade ou de pertencimento. Na obra Em Busca do Tempo Perdido O Caminho de Swan (2009), Proust narra a incrível e mágica experiência do personagem

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principal ao voltar à casa de sua mãe e comer alguns bolinhos, bebendo chá, que o leva de volta ao passado: on my return home, my mother, seeing that I was cold, offered me some tea, a thing I did not ordinarily take. I declined at first, and then, for no particular reason, changed my mind. She sent for one of those squat, plump little cakes called "petites madeleines," which look as though they had been moulded in the fluted valve of a scallop shell. (...), I raised to my lips a spoonful of the tea in which I had soaked a morsel of the cake. No sooner had the warm liquid mixed with the crumbs touched my palate than a shudder ran through me and I stopped, intent upon the extraordinary thing that was happening to me. An exquisite pleasure had invaded my senses, something isolated, detached, with no suggestion of its origin. And at once the vicissitudes of life had become indifferent to me, its disasters innocuous, its brevity illusory - this new sensation having had on me the effect which love has of filling me with a precious essence; or rather this essence was not in me it was me. I had ceased now to feel mediocre, contingent, mortal. Whence could it have come to me, this all-powerful joy? I sensed that it was connected with the taste of the tea and the cake, but that it infinitely transcended those savours, could, no, indeed, be of the same nature. Whence did it come? What did it mean? How could I seize and apprehend it? (Proust, 2009:71).

Ao ler uma descrição como essa, podemos ficar com água na boca pensando nas famosas ‘madeleines’ ou, no mínimo, recordar de alguma comida ou prato em especial que produz o mesmo efeito mágico. Todavia, alguns outros objetos, além de não despertarem tais sentimentos, podem, ao contrário, causar repúdio e não se enquadrarem assim, na categoria de comida. Da mesma maneira que nos lembramos daquilo que nos dá prazer, o nosso corpo como um todo também parece se lembrar do que nos incita repúdio, e esse processo de classificação nos faz pensar sobre o que definimos como bom para comer. Em uma das minhas visitas a Sapopemba, após passar a manhã toda tentando observar a feira do Madalena sem me tornar a atração principal do lugar, resolvi conjuntamente com meu amigo visitar Ana Paula, sobre quem já comentei na introdução deste trabalho. Havíamos almoçado a comida de Dona Nazinha, cozinheira formidável do CEDECA. Comemos muito. O tempero caseiro de dona Nazinha e o amor com que ela prepara a comida, independente das possibilidades de alimento que tem a seu dispor, fazem de sua comida quase impossível de se parar de comer. Tomamos um cafezinho para ajudar na digestão e depois nos dirigimos, por volta das duas da tarde, para a casa de Ana. Chegando lá, conversamos com ela sobre uma próxima visita à feira, na qual ela pudesse

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me acompanhar e para que também pudéssemos trocar algumas ideias sobre minha pesquisa. A casa da Ana é uma casa de alvenaria, pequena, sem acabamento e dividida em praticamente dois cômodos. Uma cozinha junto à sala e o quarto no fundo. Existe uma parede que separa a área privada da área social da casa. A cozinha se localiza na entrada. Logo do lado da porta, ao lado a pia junto à geladeira com os armários de alimentos acima, fica o fogão. Quando entrei em sua casa, já senti um cheirinho de comida sendo feita. Ana estava cozinhando feijão e refogando algumas cebolas com alho, pois “estava com muita vontade de comer feijão tropeiro”. O cheiro da comida dava água na boca, mesmo depois de ter almoçado havia tão pouco tempo. Após conversarmos um pouco sobre como gostávamos de feijão e sobre a comida de Dona Nazinha que havíamos comido, Ana olhou para mim e disse: “Você que gosta de podre né? De estudar comida do lixo, o que você acha desse frango? Encontrei ele descongelando no lixo, mas acho que se eu der uma fervida fica bom né?” (Diário de Campo, dia 27/03/2013). Sem responder, fui olhar o frango que Ana já ia tirando do pacote de isopor para colocá-lo na panela e percebi que ele estava com uma aparência bem esverdeada, e quando ele caiu na panela e começou a cozinhar, senti um cheiro muito forte. Na lateral da embalagem do frango havia um aviso: “Este alimento tem alto risco de contaminação alimentar”. Particularmente, não acho muito agradável o cheiro do frango cozido e logo após colocá-lo na panela, Ana adicionou um pouco de vinagre pra “matar todos os bichos”. Acho que nesse momento minha expressão não era muito boa. O cheiro do vinagre misturado ao do frango cozinhando em um dia especialmente quente começou a me enjoar. Fiquei preocupada com a possibilidade de Ana me oferecer o frango para experimentar, porque realmente não saberia o que responder, mas como havíamos dito que já tínhamos almoçado, essa possibilidade me pareceu distante. Tentando quebrar o gelo da situação, Ana me disse que outro dia, quando tivesse ‘outra comida’, me chamaria para um almoço gostoso.

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Diferentemente das ‘madeleines’ de Proust (2009), posso duvidar que a descrição dessa cena tenha trazido bons sentimentos e sensações ao leitor, porém, trago essa comparação exatamente para falar sobre as escolhas alimentares e as variáveis que atuam sobre elas. Para além da pergunta discutida anteriormente, a saber, o que classificamos como comida, podemos pensar um pouco mais além, naquilo que está envolvido nesta classificação: o que faz algo ser considerado ‘comida’? Fischler (1995), ao se debruçar sobre o tema da classificação do ‘bom para comer’, afirma que o espírito humano apresenta a particularidade de produzir categorias, taxonomias, normas e regras. O autor cita Tylor para falar da “tendencía del espíritu humano a agotar el universo por médio de una clasificación (to classify out the universe)” (Fischler, 1995:59), assumindo, assim, que o processo mental que consiste em criar categorias constitui nosso principal meio de conceber o mundo, de dar sentido ao que vivemos e às nossas experiências. “Parece constituir una particularidade de la espécie, responder pues, a la naturaleza humana”(Idem, ibidem). Contudo, se partirmos da comparação entre as ‘madeleines de Proust’ e o ‘frango de Ana’, como podemos pensar essa particularidade da ‘natureza humana’ ao tratarmos de um alimento que poderia ser visto apenas como uma forma de sobrevivência? Lévi-Strauss (1997) chega mais longe nesta discussão ao dizer que, apesar dos conteúdos das categorias variarem, as categorias em si mesmas, ou ainda, a relação entre elas, são, ao menos em parte, universais. Segundo Fischler, em referência a esta concepção levistraussiana, “si existe uma unidad en el funcionamento cognitivo del hombre, el processo complejo que preside la elección de los alimentos parece tener lugar muy destacable” (1995:59). Quando pensamos o ‘bom para comer’ em uma situação como a de Ana Paula, nos parece que o limite desta classificação se daria nas fronteiras do que é biologicamente comestível, sendo este embasado pela variável que pode ser denominada de “a quantidade de fome de um indivíduo”. No entanto, o que quero trazer à tona falando sobre a classificação é um questionamento das próprias categorias que a definem. A variável da necessidade e da precariedade poderia ser definida como um extensor do ‘bom para comer’, trazendo a seu comensal diversos sentimentos, sensações e

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memórias da mesma maneira que as ‘madeleines’ de Proust de forma tão conhecida nos remetem. Como afirma Lévi-Strauss, e posteriormente Mary Douglas, esse processo de classificação é parte da estrutura social da comida; “the first human relationship ever formed by the young organism is almost entirely nutritional” (Richards,1932:30). Ao falarmos na classificação do frango de Ana enquanto comida, poderíamos justificar esta ação como motivada por uma falta, por uma necessidade ou ainda uma situação específica de precariedade. O papel de Ana enquanto um ser humano que classifica estaria sempre condicionado ao limite de sua fome. Entretanto, como já foi apontado acima, nem tudo que é biologicamente comestível é também culturalmente comestível. Assim, se podemos aplicar essas duas variáveis em diversas situações, até mesmo na situação do frango encontrado no lixo, não nos parece fazer sentido pensar o comestível ou, mais ainda, o bom para comer associado a esses dois campos duais do saber. A própria ideia de necessidade também pode ser questionada em sua relação com a classificação como um processo universal. A relação entre o bom para comer e o comensal que o classifica seria o foco desta discussão. Ao analisar Ana enquanto classificador, podemos chegar a algumas conclusões sobre o processo de classificação das pessoas e mais ainda das pessoas em relação às coisas e vice e versa, pois é parte da definição da categoria de pessoa classificar e decidir, não podendo separar esse estatuto da questão da categorização. Também indo na direção contrária de certos estudos que afirmam que “los pobres no comen lo que quieren, no lo que saben que deben comer, sino lo que pueden” (Garcia, 2009:9), pretendo ressaltar neste tópico da discussão que a proposição ‘bom para comer’ é parte de nossa definição enquanto pessoa, e isto traz uma perversidade que acaba por estar intrínseca a qualquer classificação (Douglas, 1976): a exclusão. É importante afirmar que, mesmo vivendo das sobras, não são quaisquer objetos que são vistos como comida. Quando em Ilha das flores 7 o tomate não adequado 7

O filme Ilha das flores foi a principal fonte de inspiração para o desenvolvimento de meu projeto de mestrado que veio a se transformar nesta dissertação. Coloco aqui o trecho principal usado em minhas análises do podre: Dona Anete é um bípede, mamífero, possui o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. É, portanto, um ser humano... Os alimentos que Dona Anete trocou pelo dinheiro (...) serão consumidos por sua família num período de sete dias (...). Alguns tomates (...) foram transformados em molho para a carne de porco. Um destes tomates, que segundo o julgamento altamente subjetivo de dona Anete, não

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ao consumo da família de Dona Anete é jogado fora, e posteriormente rejeitado pelos porcos para somente depois ser escolhido como comida por “alguns seres humanos sem dinheiro”, não podemos esquecer que esses seres humanos sem dinheiro também o selecionaram, e que esta analogia da ordem de escolha dos restos traz um pensamento muito comum nos dias atuais; se estamos tão atrelados à necessidade, talvez estejamos nos afastando um pouco de nossa humanidade, talvez estejamos nos tornando aquilo que consumimos. ***** A preocupação em desvelar os meandros do processo classificatório levou Mauss e Durkheim a dedicarem um ensaio datado do início do século vinte sobre As Formas Primitivas de Classificação (1981). Segundo os autores, na forma mais simples de classificação, “a classificação das coisas reproduz a classificação dos homens” (1981:199). As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais, as primeiras classes de coisas foram classes de homens nas quais as coisas foram integradas, isto é, “as coisas eram tidas como fazendo parte integrante da sociedade e era seu lugar na sociedade que determinava seu lugar na natureza” (Idem, ibidem). Na análise dos autores, os mesmos sentimentos que estão na base da organização social também presidiram à repartição lógica das coisas; “as coisas, de certo modo, mudam de natureza segundo as sociedades” (Durkheim et Mauss, 1981:201). Em relação à alimentação e a classificação dos objetos enquanto alimentos, pensamos fazer o

tinha condições de virar molho, foi colocado no lixo. Lixo é tudo aquilo que é produzido pelos seres humanos, numa conjugação de esforços do telencéfalo altamente desenvolvido com o polegar opositor, e que, segundo o julgamento de um determinado ser humano, num momento determinado, não tem condições de virar molho (...). O lixo atrai todos os tipos de germes e bactérias que, por sua vez, causam doenças. As doenças prejudicam seriamente o bom funcionamento dos seres humanos. Além disso, o lixo tem aspecto e aroma extremamente desagradáveis. Por tudo isso, ele é levado na sua totalidade para um único lugar, bem longe, onde possa, livremente, sujar, cheirar mal e atrair doenças (...). O tomate que dona Anete julgou inadequado para o porco que iria servir de alimento para sua família pode vir a ser um excelente alimento para o porco e sua família, no julgamento do porco (...). Os materiais de origem orgânica, como os tomates (...) são dados aos porcos como alimento. Durante este processo, algumas mulheres e crianças esperam no lado de fora da cerca na Ilha das Flores. Aquilo que os porcos julgarem inadequados para a sua alimentação, será utilizado na alimentação destas mulheres e crianças. Estas mulheres e crianças são seres humanos, com telencéfalo altamente desenvolvido, polegar opositor e nenhum dinheiro. (Texto Original de “Ilha Das Flores”, de Jorge Furtado).

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caminho inverso, mas podemos observar com as descrições já apontadas que o lugar das coisas na sociedade ainda determina o lugar das coisas e das pessoas em relação à natureza. O frango classificado por uma pessoa como lixo foi, posteriormente, classificado por Ana como comida. O frango tem sua classificação de comestível definida em relação às diversas variantes que vão além do que chamamos de biologia, sendo esta também um constructo social e uma das vozes que o classificam. Nesse sentido, o que pensamos advir da própria natureza, ou ser um fato científico, também é construído através de paradigmas de nossa própria sociedade, e assim não nos diferenciamos tanto do que Mauss e Durkheim (1981) chamavam de povos primitivos. Além desta primeira aproximação, a relação entre as coisas e as pessoas trabalhadas na construção desta etnografia também são explicitadas a partir da comparação com as primeiras formas de classificação descritas por Mauss e Durkheim (1981). Se classificamos as coisas em relação ao lugar que elas têm na sociedade, isto é, a partir de construções sociais que também são biológicas, psicológicas, físicas, entre outras, vemos que a incorporação dos objetos os quais classificamos enquanto comida vai, conforme seu processo de absorção, se tornando um classificador de seu comensal. Não nos afastamos muito do que pensamos ser sabedoria dos povos ditos primitivos quando concordamos com a afirmação ‘somos o que comemos’, ou ao menos, que o que comemos se converte em nós mesmos. Esta ‘creencia’ se encuentra por doquier, y especialmente en el mundo occidental desarrollado. En nuestra própria cultura, la sabiduria popular sostiene una ideia que no es diferente. El alimento consumido tiende a transferir analógicamente al comensal algunos de sus caracteres (Fischler, 1995:67).

Segundo Fischler, esta maneira de representar a incorporação parece traduzir, em efeito, uma característica essencial do vínculo do homem com seu corpo. Ela parece fundar a tentativa constante na maioria das culturas de dominar o corpo e através dele o espírito, a pessoa, a identidade. No interior de uma mesma cultura um grupo define muito frequentemente o grupo vizinho como ‘comedores de...’, como muito bem apontado por Dumont (1997) sobre a Índia, na qual a estrutura hierárquica da sociedade se traduz claramente através dos alimentos que cada casta pode consumir. 33

Dessa forma, a classificação dos alimentos como ‘bom para comer’ e sua análise através da perspectiva do bom para pensar contribuem para entendermos a classificação dos objetos, e mais ainda, a classificação das pessoas em relação a eles. A comestibilidade dos objetos também se mostra associada à ideia de animalidade e humanidade, ou o que defino mais adiante como o estatuto de pessoa, e neste ponto a classificação dos alimentos se prova ainda ‘melhor para pensar’. Ana, ao classificar o frango do lixo como alimento teve sua noção de pessoa (Mauss, 1974) deslocada e aproximada de uma ideia de animalidade, de comer como bicho, pois, mesmo se encontrando em uma situação mais perversa do que aborda Sahlins (1979) em relação aos comedores de cavalo, podemos dizer que a humanidade de uma pessoa é proporcional à categoria de comestibilidade de certos alimentos. “La comida ‘en bruto’ es portadora de um peligro, de um salvajismo que conjura el aderezo: así marcada pasando de la naturaliza a la Cultura será considerada menos peligrosa” (Fischler, 1995: 76). A comida da Ana não era uma comida em ‘bruto’, uma comida crua, mas era mais do que isso, era uma comida que vinha do lixo, que estava de volta ao domínio da natureza, dos processos não controlados de vida e morte. Quanto mais o frango de Ana se aproximava da natureza, isto é, da vida vista enquanto vida biológica, prestes a transformar-se sem nenhum controle humano, mais perigo à vida de Ana ele poderia trazer, e assim cada vez mais a vida de Ana era associada a uma vida de necessidades, de sobrevivência; uma vida animal8. A passagem da natureza para a cultura de forma controlada nos daria a humanidade e, nessa perspectiva, é exatamente inserida nesta discussão que a categoria do podre poderia contribuir, ainda mais se associada a uma perspectiva da antropologia da alimentação, vista como um campo para além das divisões disciplinares.

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Esta ideia de necessidades e da vida animal em oposição à condição humana será melhor trabalhada nos capítulos a seguir, e aqui só aponto a direção da discussão.

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A cozinha da antropologia

A antropologia, como ciência que estuda o humano em suas especificidades e universalidade, sempre teve interesse na análise da comida como hábito específico de uma sociedade ou grupo. Todavia, “a comida9 enquanto tal (intrinsecamente) tem sido talvez, um objeto de estudo menos interessante para a antropologia do que as suas implicações sociais” (Mintz, 2001:32). Assim, apesar de ser clara a importância da comida em diversos estudos antropológicos, desde os clássicos aos mais contemporâneos, principalmente pensando comida como um fato social altamente condensado (Belasco, 2008), um pensar questionador da comida, que veja “o que se come enquanto relação” (Viveiros de Castro, 2002), não é dominante na disciplina antropológica. Apresento esta afirmação tendo como premissa a centralidade da comensalidade nos estudos da alimentação, a qual não é, entretanto, compreendida partindo do objeto em si, mas das próprias relações sociais que definem este objeto. Segundo Fischler (1995), ao realizarmos uma rápida análise da abundante literatura sobre alimentação humana, parece que, entre os trabalhos notáveis (os quais são bastante raros), existem poucos que pensam a alimentação através de seu caráter multidimensional, mesmo que para o autor, os objetos complexos e multidimensionais como a alimentação se oponham naturalmente à restrição uni disciplinar. A questão da alimentação está presente na antropologia desde sua criação, entretanto, a especialização da disciplina em uma área delimitada, isto é, a antropologia da alimentação, é um desdobramento recente e ainda assim passível de ser questionado. Por que pensar os alimentos através de uma antropologia da alimentação? Não seria a alimentação mais um objeto de estudo que poderia ser compreendido através de uma visão mais abrangente da própria antropologia enquanto questionadora de suas próprias práticas e objetos? Ou ainda, não seria a alimentação, o alimento e suas relações um objeto de estudo

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A noção de ‘comida enquanto objeto’ será desenvolvida como tema principal do terceiro capítulo, tendo aqui função de apresentação da discussão e de um breve levantamento da bibliografia sobre o tema.

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que poderia contribuir para discussões clássicas e extremamente importantes sobre a própria disciplina antropológica? A questão central da alimentação está na própria problemática trazida pelo tema e nas maneiras de abordá-lo, pois, à primeira vista, a comida é concebida como uma questão dividida em dois terrenos epistemológicos distintos: as ciências “duras” e as ciências humanas. Segundo Fischler, em sua obra O omnívoro (1995), referência nos estudos deste tema, duas ilusões dominaram o terreno no campo das ciências duras. Por um lado, a ideia de que as práticas alimentares são somente um hábito ou um comportamento e, por outro, um positivismo ingênuo (ou perverso) que sustenta implicitamente a concepção de que ciência e verdade se confundem. As ciências humanas compreenderiam, então, o fato de que a alimentação humana comporta uma dimensão imaginária, simbólica e cultural, e teria como lugar comum a ideia de que não nos nutrimos somente de nutrientes, mas também do imaginário. Todavia, a antropologia, bem como a sociologia da alimentação, estaria restrita ao aspecto simbólico e identitário da comida, e foi a partir deste viés que este ramo da disciplina foi sendo desenvolvido. Foi a partir de 1920, conjuntamente com o desenvolvimento da disciplina antropológica, que a temática da alimentação se delimitou enquanto objeto de estudo antropológico (Malinowski, 1922, 1935; Wissler, 1927, Richards, 1932, 1939), mas foi somente em 1950 que a comida se tornou um objeto de estudo relevante por si só, começaram a surgir obras especializadas em antropologia da alimentação (Salaman, 1949; R.Firth, 1943; Firth, 1936,1946). Por volta de 1980 (Goody, 1982; Ohnuki, 1993; Coe, 1994; Brown, 1994; Archetti, 1997; Counihan, 1998; Çaglar, 1999, Lentz, 1999), mas neste campo é possível afirmar que a sociologia, e não a antropologia em si, apresentou maiores avanços, e talvez por isso minhas pesquisas não sejam consideradas da área da antropologia da alimentação enquanto referencial teórico, mas, sim, por ver o alimento enquanto objeto. É interessante ressaltar, contudo, que no princípio do desenvolvimento da antropologia já existiam estudos sobre alimentação que compartilhavam de uma perspectiva que se aproxima muito da concepção de estudos da comida que pretendo propor neste trabalho. No momento de ruptura com as ideias evolucionistas e na formação do

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funcionalismo, a alimentação foi vista como um problema central que deveria ser compreendido de forma complexa e multidimensional, e foi através desta visão que a antropóloga Audrey Richards, concretizou um clássico do funcionalismo inglês chamado de “Hunger and work in a savage tribe” (1932). Talvez pelo fato de que algumas ideias evolucionistas que pensavam a vida como um todo integrado terem ainda permanecido na discussão antropológica, ou talvez, pela antropologia que pensava os alimentos e as relações que eles criavam e permeavam ainda não ter sido compartimentada em “antropologias” diversas, ou ainda, pelo fato do funcionalismo inglês conceber a necessidade de se pensar as “instituições sociais através de sua funcionalidade em uma sociedade existente e em relação com as necessidades culturais que elas satisfazem” (Richards, 1932: 19), foi possível compreender esses “objetos” tão específicos através de uma visão integrada. Contudo, o ponto de vista de Audrey Richards aparecerá por muito tempo como singularmente ilhado nas ciências humanas, que estiveram dominadas por aproximações que postulam explícita ou implicitamente a autonomia do social com respeito às influências biofísicas (Fischler, 1995:19).

Muitos dos panoramas realizados acerca dos estudos da alimentação afirmam que durante as décadas de 30 a 60 a alimentação era apenas vista como parte dos muitos aspectos que formavam o todo chamado sociedade, tal cenário permanecendo praticamente imutável pelo fato de que comida e a sua preparação sempre foram consideradas como um trabalho de mulher, o qual não recebia muita atenção dos antropólogos homens, que eram a maioria. Apesar de estes estudos estarem imbricados em uma visão na qual a alimentação era um dos muitos fatores que se somavam na construção do “real” ou, em outros casos, considerada ‘apenas’ a expressão de um sistema simbólico, assim como outras expressões, como a linguagem, por exemplo, a antropologia teve e tem estudos extremamente interessantes sobre a comida e suas relações. Partindo desta perspectiva, vejo como importante refletir, em relação à antropologia, ou mais especificamente aos estudos que se propõem como dentro de uma delimitação específica da antropologia da alimentação, sobre a maneira na qual a comida é pensada e nos domínios que ela abrange, mais do que sobre a forma como esses estudos são 37

organizados, ou em sua proeminência em face de outras questões da compreensão que a antropologia abarca. É extremamente relevante, portanto, questionar os domínios da antropologia e, ainda, as esferas que a temática da alimentação abarca através das próprias experiências que surgiram em campo: Em minha primeira visita à coordenação do programa Mesa Brasil, a nutricionista que me recebeu, logo ao começarmos a conversar, me perguntou: ‘você é nutricionista?’ Ao receber minha resposta negativa, um desapontamento foi mostrado em suas expressões. (Diário de campo, dia 03/04/2013).

Acredito que por causa da minha temática de estudo, isto é, o comestível e a classificação dos alimentos, o campo do qual eu deveria advir só poderia ser o campo da biologia, da concepção do alimento enquanto nutriente e não veneno. Se o comestível está relacionado com a propriedade do alimento de não ser prejudicial à nossa saúde e o comível seria associado ao sabor, ao aspecto cultural, como já explanado anteriormente, o campo de domínio deste tema só poderia ser legitimado através da biologia. No entanto, já em 1932, Audrey Richards insistia que a nutrição em uma sociedade não pode nunca ser considerada como algo a parte do meio cultural na qual ela se manifesta 1932:10), pois, para a antropóloga, “of all the biological impulses, nutrition is that which is most dependent for its fullfilment on the formation of a habit complex in the individual’s life time” (1932:3). Dessa forma, é importante ressaltar que, para lograr questionar o comestível e as variáveis que permeiam essa classificação e a definem, é necessário compreender o processo de desenvolvimento da antropologia e do surgimento da área da antropologia da alimentação para, assim, articular um referencial teórico que consiga abarcar a alimentação como um objeto de estudo que não pode ser visto somente através de um ponto de vista disciplinar. Para além desta dualidade entre o biológico e o cultural, é possível conceber a necessidade de adicionarmos a esta equação a questão da hierarquia e do poder no contexto da alimentação. Segundo Contreras (2011), como a alimentação está ligada aos modos de produção dos bens materiais, a análise da cozinha, por sua vez, deve ser relacionada à distribuição dos poderes e da autoridade na esfera econômica, ou seja, aos sistemas de 38

classes ou de estratificação social e às suas ramificações políticas (Goody, 1984). Mais concretamente, o estudo dos modos de abastecimento e de transformação da alimentação faz referência a quatro grandes operações: cultivar, repartir, cozinhar e comer, que representam as fases de produção, distribuição e consumo. A elas deveria se adicionar uma quinta fase, frequentemente esquecida, mas que tem importância cada vez maior, dado o seu aumento progressivo: a eliminação dos detritos. E é através do podre que este ponto é abordado de forma a pensar a relação entre a hierarquia e a distribuição de poderes, partindo de uma perspectiva da classificação do alimento para chegarmos a considerações sobre as classificações de seus comensais. Por outro lado, mesmo compreendendo a importância de tais estudos, atualmente, a preocupação com a comida está em um processo de afastamento de sua associação com a fome e a carência de nutrientes, se concentrando mais especificamente na qualidade daquilo que se come. Segundo o filósofo italiano Paollo Rossi, citado por Dória (2014), a alimentação será “um dos grandes cenários da antropologia”. Todavia, mesmo sendo o possível foco das discussões antropológicas da contemporaneidade, a comida ainda se mostra separada entre o domínio da necessidade, imperando entre os pobres, e as questões de prazer e gosto, que dominam o cenário da alimentação e do ‘mundo gourmet’. O mito fundador da preocupação contemporânea com a alimentação dentro das ciências humanas se deu durante as décadas de 70 e 80, quando o ‘mal da vaca louca’ trouxe à tona uma angústia e insegurança alimentares pela sensação de não sabermos realmente o que estávamos comendo. Nesse processo, a qualidade do que se come foi privilegiada em relação à abordagem da alimentação centrada na fome ou na carência de alimentos, o qual era muito comum nos anos 50 (Dória, 2014) 10. Por conseguinte, na contemporaneidade, ainda estamos presos a essas duas únicas possibilidades de pensarmos a comida, sem perceber que a própria palavra ‘comer’ 10

A partir dos estudos de Josué de Castro, o tema da fome e da segurança alimentar passou a se tornar um tema com importância global. Josué Apolônio de Castro (Recife, 5 de setembro de 1908 - Paris, 24 de setembro de 1973), mais conhecido como Josué de Castro, foi um influente médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor, ativista brasileiro que dedicou sua vida ao combate à fome. Destacou-se no cenário brasileiro e internacional, não só pelos seus trabalhos ecológicos sobre o problema da fome no mundo, mas também no plano político em vários organismos internacionais. Disponível em: . Acessado em 13/10/2014.

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compreende um universo muito mais amplo de significados, indo muito além da dicotomia relativa ao excesso e à falta de alimentos. Afinal, trata-se de um ato de incorporação através do qual se pode “obter prazer fazendo penetrar um objeto em si; destruir esse objeto; assimilar as qualidades desse objeto conservando-o dentro de si” (Fischler, 1995: 67). Nesse sentido, pensando nas possibilidades de expansão que o universo da comida pode abarcar, defendo o estudo dessas discussões dentro da própria antropologia da alimentação, mesmo que esta não forneça todos os referenciais teóricos de partida, pois we contend that the study of food and eating is important both for its own sake since food is utterly essential for human existence (and often issuficiently available) and because the subfield has proved valuable for debating and advancing anthropological theory and research methods. Food studies gave illuminated broad societal processes such as political-economic-value-creation, symbolic value-creation and the social construction of memory (Mintz, 2002:100).

Segundo Jack Goody, que ofereceu certas bases para a afirmação de Mintz citada acima, os estudos antropológicos da alimentação amadureceram o suficiente para serem considerados um veículo para análises de grandes e variados problemas de teoria e método de pesquisa. Para além disso, sistemas alimentares tem sido usados para examinar tensões entre “elicited taxonomies and the categorias people use in everyday life” (Goody, citado por Mintz, 2002: 100). Sendo assim, é a partir desta perspectiva que desenvolvo o estudo sobre a vida podre e as trajetórias da classificação dos alimentos.

O bom para pensar: o podre

Imagine-se indo à feira por volta das seis da manhã. Visualize todos os alimentos recém-chegados dos mercados distribuidores da região. O sol ainda não está forte e os odores dos alimentos parecem atenuados. O tempo vai passando e algumas ‘transformações naturais’ vão ocorrendo nos alimentos da feira. A barraca de peixe, que consiste em uma tenda com uma mesa repleta de gelo com os peixes frescos expostos em cima, vai perdendo a refrigeração e aos poucos o gelo se transforma em água e o cheiro dos peixes vai dominando a atmosfera da região. Os temperos na barraca ao lado também exalam odores mais fortes. A banca de frutas apresenta uma maior concentração de moscas.

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O mamão, com sua casca frágil e tendo percorrido uma longa viagem até chegar ao seu destino final, vai sentindo na pele o passar do tempo e o aumento da temperatura. O sol do meio dia traz uma sensação nova: a proximidade da morte. Uma proximidade tão cotidiana que não notamos sua presença. A casca do mamão já foi vencida por uma nova forma de vida que traz em si a morte de seu hospedeiro. Os fungos formam culturas vivas no mamão, que apodrece. Sem percebermos, a morte foi tomando conta da feira. Um após o outro, os alimentos vão se aproximando de seu estado de putrefação. Entretanto, poucas pessoas veem à ida à feira como uma atividade que remete à proximidade da morte, e eu poderia estar sendo demasiada radical com esta minha proposição. Porém, a vida dos objetos não é associada à nossa própria vida, ao menos não diretamente, e por isso é difícil pensar na vida destes e em sua morte. Vemos alguns objetos como comida ou lixo e nada mais. Afirmo, contudo, que este processo de aproximação da morte, e a classificação de certos objetos enquanto comida pode nos dizer muito mais sobre a vida dos seres humanos do que pensamos ser possível. Acrescento a essa afirmação que até mesmo a definição de podre e as relações às quais ela está envolvida também são por si só uma categoria em debate ou, até, conceitos heurísticos que podem ser questionados.

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Tomemos como ponto de partida para esses questionamentos o iogurte. O iogurte é um alimento produzido a partir da fermentação do leite, o qual é produto da ação de duas bactérias principais, Lactobacillus bulgaricus e Streptococcus thermophilus, e que, diferentemente da maioria dos produtos industrializados que consumimos, ainda contém bactérias e fungos que se mantêm vivos. No Mesa Brasil, a doação de iogurte pode se considerada de natureza ordinária, pois grandes redes de supermercado preferem doar esses alimentos quando a data de validade está se aproximado ao ter que lidar com seu despejo ou até com situações indesejadas de consumidores que encontram esse produto fora de sua data de validade. Contudo, as regras para recebimento deste produto são extremamente estritas.

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Primeiramente, o produto só é recebido pelo programa se o seu vencimento estiver programado para no mínimo quatro dias. Todo o lote deve estar devidamente refrigerado em uma temperatura entre 1º e 10º C, e seu transporte somente pode ser realizado em caminhões com refrigeração adequada. Para que a entidade possa receber o produto, ela deve estar equipada com freezer ou geladeiras que tenham a capacidade de manter na temperatura indicada todos os produtos recebidos, e estes devem ser consumidos o mais rápido possível. Uma entidade que não atender a esses critérios, ou ainda, que não atender uma quantidade suficiente de pessoas para consumir o produto até sua data de validade, é automaticamente excluída desta doação. A potencialidade do podre no iogurte é vista como sua principal propriedade pelo Mesa Brasil, isto é, o iogurte é um alimento que já se encontra em um processo de putrefação pelas suas próprias características de produção, e que, se não for devidamente transportado, manuseado e armazenado, pode trazer grandes riscos aos seus consumidores. O próprio fato de ser um dos poucos produtos industrializados com uma ‘cultura viva’ traz ao iogurte um risco inerente de proximidade com a morte deste enquanto objeto; de sua mudança de estatuto de comida para lixo. Todavia, ao sairmos do contexto sócio-cultural brasileiro, o iogurte, exatamente por sua ‘propriedade de vida’, é visto como estando naturalmente em um processo de putrefação e por isso não necessita de nenhum cuidado adicional, a não ser o próprio tempo de vida deste alimento. Em uma experiência de estágio no Laboratório de Estudos da Alimentação da Universidade de Barcelona, Espanha, ao mencionar meu objeto de estudo e os alimentos que analisava, outros pesquisadores se mostraram surpresos com o fato de existir data de validade para o iogurte no Brasil e ainda mais surpresos com a atitude de manter o iogurte refrigerado. Antes da existência de latas, freezer e geladeiras, a fermentação11 era a principal forma de se evitar que uma comida estragasse, isto é, “a fermentação (assim como outras técnicas de conservação como a salga, a defumação e a secagem) proporcionou um recurso 11

A fermentação pode ser considerada parte do processo de apodrecimento do alimento, ao passo que outras formas de vida começam a proliferar neste objeto, mudando sua forma, cheiro, gosto, textura. No entanto, por não definir o que é o podre em si, somente aponto essa possibilidade de se pensar a vida através deste processo que ao mesmo tempo pode ser considerado o início da morte ou uma forma de conservação.

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importante de segurança alimentar, permitindo que grandes populações sobrevivessem a longos meses de entressafra e resistissem a colheitas ruins” (Pollan, 2014:291). Se este processo pode ser visto como a prolongação da fase da vida de um objeto enquanto comida, não faria sentido, então, pensar no fim da vida de um alimento que para alguns já está apodrecendo, ou que deixou de ser comida. Entretanto, estar apodrecendo parece então, significar ter uma ‘cultura viva’ se desenvolvendo; isto é, concordar com o fato de que “tudo o que vive” pode ser considerado “o anfitrião para o germe de sua própria dissolução” (Pollan, 2014:279). A partir desta perspectiva de definição do podre, “o gosto pela deterioração parcial das coisas pode ser tornar uma paixão, a aceitação do lado tosco da vida que se expressa melhor por meio de paradoxo” (Mcgee citado por Pollan, 2014:277). Todavia, na própria definição do iogurte enquanto alimento em putrefação ou não, em vivo ou morto, existe mais de uma delimitação da categoria do que seria o podre e de sua relação com a temporalidade da categoria de comida, e é nesta pequena nuance que pretendo insistir, isto porque a aproximação da natureza ou da cultura são um dos principais fatores para o repúdio ou apreciação do podre. Para tanto, vejo como relevante pensar primeiramente na nomeação, nas palavras que usamos para tratar de todos esses ‘podres’, alimentos e processos. O ‘podre’ é lexicamente uma classificação, pois se apresenta como um adjetivo e, nesse sentido, define semanticamente a característica de algo. Tem como significado estragado, corrompido, putrefato; que não está são; infecto, mefítico; fétido; contaminado, pervertido. Ao tentarmos visualizar essas definições através de nossa imaginação, muito provavelmente sensações e sentidos relacionados à nossa experiência trarão à tona imagens de alimentos com o seus cheiros, cores e até sabores. Entretanto, durante a realização de minha pesquisa de campo, a palavra ‘podre’ foi pouquíssimas vezes evocada por meus interlocutores. Equivalentes como sobras, restos, lixo, estragado, e algumas vezes até mesmo ‘contaminado’ eram as palavras que saíam da boca dos ‘nativos’ quando conversávamos sobre comida. Partindo da ideia de que o significado não está na palavra em si, mas em seus usos (Das, 2006), fui buscando então os

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usos destas palavras para assim criar um denominador comum que tratasse da vida dos objetos e das pessoas. O podre surgiu como uma forma de pensar a categoria de comestível enquanto polissêmica, com sentidos em cada uso, não bastando nesta análise o imanentismo das categorias nativas enquanto uma exotização que encapsula os léxicos. Ao concordar com a premissa de Wittgestein (1979), na qual a ‘nomeação prepara a descrição’, vejo o problema do etiquetamento como central em minhas análises e, por isso, proponho neste momento uma compreensão das razões da escolha do podre como objeto que iluminaria a discussão sobre o comestível e sua relação com as nomeações nativas envolvidas nesta categorização. Lévi-Strauss, em sua obra O Cru e o cozido, diz ser o objetivo de tal trabalho mostrar de que modo categorias empíricas, como as de cru e cozido, fresco e podre, molhado e queimado, (...), que a observação etnográfica basta para definir com precisão, sempre a partir do ponto de vista de uma cultura particular, podem servir como ferramentas conceituais para isolar noções abstratas e encadeá-las em proposições (2004:9).

Assim como proposto pelo autor, pretendo também, a partir da categoria de podre, advinda de uma abstração, ou ainda, de uma sintetização em um mínimo denominador comum das categorias empíricas, isolar certas noções abstratas e encadeá-las em proposições para compreender de que maneira estas categorias se articulam em variáveis que acabam por definindo a vida de seus classificadores. Contudo, é importante ressaltar que as noções citadas acima constituem formas vazias: elas não dizem nada sobre a culinária de qualquer sociedade específica, pois é só a observação que pode nos dizer o que cada uma quer dizer com cru, cozido e podre; cada posição deve ser ocupada por fenômenos particulares que a natureza distinta é mais próxima daqueles que deram a representação simbólica (Levi-Strauss, 1997:29).

O podre12 é então, o mínimo denominador comum (virtual e não existente) que para além de trazer discussões sobre questões relacionadas à culinária de uma sociedade específica, questiona essas próprias definições, articulando-as com categorias universais do pensamento e da classificação. 12

Poderia ter explorado o cru da mesma maneira que explorei o podre, tendo em vista a inspiração levistraussiana, entretanto, escolhi o podre por sua associação tão comum e ordinária com aqueles que são vistos como a escória ou o lixo da sociedade, pois afinal, falo de objetos para também pensar nas pessoas.

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Em minhas idas a campo e nas conversas com interlocutores sobre o tema do podre, escutei a mesma frase diversas vezes: “isso que você fala não é podre. Isso são restos, sobras, lixo. Porque se fosse podre ninguém comia”. Quais as categorias que eram então reduzidas a esse termo? Por que utilizá-lo em detrimento de vários outros sinônimos? Foi partindo de uma inspiração teórica que essa categoria delimitou-se, mas foi através de sua ressonância no campo que ela se definiu enquanto categoria analítica. Em O triângulo culinário (1997), Claude Lévi-Strauss inicia uma análise da culinária a partir da perspectiva de que a comida é uma forma universal da atividade humana, assim como a linguagem. Constrói, dessa forma, a hipótese de que a culinária supõe um sistema, o qual é expresso através de um triângulo de oposições, delimitado em um campo semântico, isto é, um triângulo abstrato, no qual todas as oposições são norteadas pela oposição central entre natureza e cultura. Cada vértice corresponde, respectivamente, às categorias de cru, cozido e podre. O cru seria o polo considerado não marcado, e os outros dois polos seriam fortemente marcados em direções diferentes, e desse modo o cozido corresponderia à transformação cultural do cru e o podre, à transformação natural deste (Lévi-Strauss, 1997). Poderia se pensar então que, para Lévi-Strauss, estas três categorias seriam polos opostos associados simplesmente, em um extremo, à natureza, e em outro, à cultura, mas em qual lado se localizaria exatamente o podre? Ele não é visto, no texto em questão, como uma categoria presa a um dos polos em oposição, pois apesar de dizer que o podre é a transformação natural do cru, a análise de Lévi-Strauss ainda tem presente o dualismo entre elaborado e não elaborado. Nesse sentido, o autor coloca o podre ao lado de produtos vistos como elaborados, pois em suas análises empíricas foram encontradas evidências de que, assim como não existem condições em que o alimento seja puramente cru, o podre também só é consumido, segundo Lévi-Strauss (1997), de maneiras específicas, tanto espontaneamente como controladamente. Para além desse processo de mediação entre natureza e cultura, o qual se constitui em um produto natural transformado pela cultura e, portanto, denominado como “cozido”, a questão do podre aparece como algo nebuloso, um limiar entre o natural e o cultural. O podre seria assim tanto uma transformação do cru como do cozido, isto é,

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produto da natureza e da cultura que, no entanto, não deixa de ser uma transformação natural desses dois processos. O autor apresenta em seu texto mais de uma contradição na construção de sua oposição entre natureza e cultura. Além de ficar perceptível a localização do podre no limiar entre natureza e cultura, a discussão de Lévi-Strauss (1997) nos leva a pensar também o podre, não como categoria empírica, mas sim como um classificador que ilumina as esferas nas quais esta transita. O autor deixa claro que o triângulo culinário é uma representação simbólica, pois, segundo ele, o campo delimitado por essa representação é um campo visto de fora, no sentido em que cada posição referente ao cru, cozido e podre, e até mesmo referente ao dualismo natureza e cultura, deve ser ocupada por fenômenos particulares que tenham em sua natureza distinta uma proximidade com aqueles símbolos que lhes concederam a representação simbólica. É essa liminaridade que Mary Douglas, em Pureza e Perigo (1976), aborda em relação à alimentação. A antropóloga vê no podre e outros tipos de confusões, isto é, naquilo que não é purificado, elementos que são abominados em muitas culturas. Nesse sentido, o podre seria algo abominado, pois traz a lembrança da confusão, da desordem e do lixo. Quando a ciência tenta classificar o que é podre, a tentativa seria, então, de uma organização, de delimitar a identidade desse objeto para que ele não ameace a boa ordem, a partir do momento em que é identificado e, assim, varrido, excluído. Entretanto, essa associação da ciência com o podre e sua classificação é vista como uma forma de proteção pura do perigo imanente dessas categorias, tendo em vista que “tememos a patogenia transmitida através de micro-organismos” (Douglas, 1976: 88), porém, “nossa justificação, geralmente, de os evitar através da higiene, é pura fantasia” (Idem, ibidem). A ciência, neste sentido, seria concebida como simbolismo ou uma das várias formas de ver o mundo. Mas o que esse simbolismo gera em termos de práticas sociais, normas e sociabilidades? Para Mary Douglas (1976), nas culturas contemporâneas, evitar a sujeira, o podre, o híbrido, é uma questão de higiene ou estética, mas não está associada à religião, pois nossa ideia de sujeira é dominada pelo conhecimento de organismos patogênicos. O podre seria visto como claramente conectado a uma série de micro-organismos que podem

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causar doenças e por isso, por causa de uma saúde pública a zelar, ele deveria ser evitado. Entretanto, não se percebe que a “cultura, no senso comum, padronizou os valores de uma comunidade, serve de mediadora da experiência dos indivíduos, e assim, as categorias culturais são assuntos públicos” (Douglas,1976: 54). Assim, o podre classificado socialmente pela voz da biologia seria visto como um assunto público, mas em cada lugar que a classificação lança luz, ela se mostra como um objeto diferente, mesmo quando pensamos que, muitas vezes, por ser fruto de percepções sensoriais, uma categoria já é vista como biologicamente, e assim, naturalmente, dada. “Todas as nossas impressões são esquematicamente determinadas desde o início. Tudo que tomamos conhecimento é pré-selecionado e organizado no próprio ato da percepção” (Douglas, 1976:53). A partir de debates teóricos que apontam para as potencialidades do podre, podemos chegar a algumas considerações que indicam caminhos para a análise dos dados de campo e posteriormente para a escrita etnográfica. O podre é, a partir desta perspectiva teórica, um classificador, o qual sintaticamente pode ser nomeado como um adjetivo ou qualificativo. Ao propormos pensar o podre enquanto categoria analítica, devemos assumir que este não pode ser ‘usado’ na ciência, mas, a priori, deve ser analisado, isto porque todo classificador já é, por si só, um ato político. Considero importante reiterar os limites da nomeação durante a escrita etnográfica, tendo em vista que os nomes escolhidos por si só podem ser vazios, mas neste caso, para além da relevância teórica dos conceitos, o próprio campo me levou a pensar sobre a classificação da comida e nos significados do podre. Ao nos atentarmos para uma frase em particular de Lévi-Strauss em O triangulo culinário (1997), no qual o autor explicita que o podre só é consumido de maneiras específicas, tanto espontaneamente como controladamente, começamos a pensar no que seria o podre exatamente e, mais ainda, sobre qual podre me remeto na discussão presente nesta dissertação. Primeiramente, ainda associado à nomeação ou ao podre enquanto categoria virtual, enquanto denominador comum que não existe, é possível questionarmos através

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desta concepção uma categoria central na antropologia: a relação entre ‘nós’ e ‘eles’. Quem come o podre é sempre o outro, a expressão mais comum que crianças e adultos costumam usar para descrever comidas fermentadas de outra cultura é alguma variação da palavra podre. Muitas dessas comidas ocupam uma fronteira biológica – a beira da decomposição – que também se revela uma fronteira cultural muito bem patrulhada (Pollan, 2014:294).

O podre é, assim, sempre a ‘comida dos outros’. Contudo, em um estudo de ‘nossa própria sociedade’, essa divisão cultural, ou melhor, essa separação de nomeação, me parece estar muito mais vinculada a uma demarcação social, ou o que a sociologia chama de estratificação social, do que propriamente identitária. É exatamente este podre que considero neste estudo. O iogurte pode ser considerado um podre apreciado por diferentes culturas apesar de seu significado ser diferente em outras situações sócio-culturais. Todavia, este podre apreciado foi, em algum momento, por um motivo específico, considerado sem valor comercial e assim não apto para consumo humano, ou melhor, para alguns humanos específicos. Em um determinado momento, sua associação natural passou a ser vista como um risco à vida de certas pessoas e por isso foi descartado e posteriormente doado a outras pessoas. O podre que poderia significar um alimento em estado de fermentação foi transmutado para algo que poderia ter como sinônimo a palavra ‘contaminado’. Fica claro então que, indo mais além da discussão levistraussiana, o podre é mais do que um conceito culturalmente construído, ou ainda é algo além disso. Retomando mais uma vez a classificação do iogurte como um alimento que para existir deve estar em putrefação13, podemos concluir que “um dos principais processos pelos quais a natureza desintegra coisas vivas para reutilizar sua energia em outras coisas vivas, a fermentação nos põe em contato com a eterna presença da força exercida pela morte” (Pollan, 2014:280). Nesse sentindo, podemos pensar o podre como articulador de vida e morte em um processo que vai além das dicotomias.

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Utilizo desde termo em referência a biologia, pois essa é uma vez presente e legitimada na análise e nos estudos sobre objetos- comida.

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Toda culinária é transformação, e dentro de cada sistema culinário podemos encontrar diversas formas de podre. “A maior parte de nossas transformações consiste em exemplos de apodrecimento interrompido, de postergar ‘ao pó retornarás’” (Idem, ibidem). Nas maneiras de cozinhar, expressamos toda nossa relação com a natureza, e o podre, seu controle e sua forma de consumo nos permite pensar a nossa relação enquanto espécie com a natureza, a morte, a vida, e com os outros seres vivos. O podre traz em si a liminaridade de todas essas categorias, ele desloca e é deslocado por elas de acordo com diferentes variáveis. Assim como afirma Mary Douglas (1976), o podre visto como objeto é alvo de uma repulsa, mas as suas representações através de sinônimos são mais presentes em nossas vidas do que pensamos. “Pelo menos 1/3 de toda a comida na alimentação mundial é produzida em processos que envolvem fermentação” (Pollan, 2014: 281), isto é, que envolvem o controle do podre, o controle da vida e da morte. Atualmente, sua importância evolutiva também tem sido invocada; o domínio da fermentação pela humanidade rivaliza com o controle do fogo em sua importância para o nosso sucesso enquanto espécie. Todavia, esse controle cultural do alimento não é total. A fermentação é um processo de dominação da natureza de forma imperfeita. O vinho, a cerveja, o queijo, iogurte, missô, chucrute, entre outros, dependem da cuidadosa administração do apodrecimento pelo fermentador, de levar à decomposição essas sementes, frutas e carnes até certo ponto e nenhum passo além dele. Mas o que acontece quando o apodrecimento é considerado um processo, em si, natural? O podre que apreciamos, que permitimos ter relação com o objeto-comida é o podre controlado, aquele que Lévi-Strauss (1997) define como elaborado. A proximidade com a natureza incerta ainda nos traz medo, ainda é perigosa, e é desse podre que falo, pois é exatamente ele que pode questionar essas categorias duais de natureza e cultura, biologia e sociedade e, mais ainda, do domínio de um desses campos sobre o outro. Quando Lévi-Strauss (1997) fala da oposição entre natureza e cultura representada na dualidade do cru e do cozido, respectivamente, o podre se mostra então como um lugar interessante para se pensar na gradatividade desta classificação. O podre, para o autor, não é somente natural, mas, apesar de poder ser uma transformação controlada

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da natureza, esse controle ainda é incerto. O podre pode ser uma transformação do cru, como o mamão se transformando na feira, ou ainda, pode ser um processo de transformação de algo já cozido. O podre é, assim, uma potência no sentido do vir a ser enquanto processo de vida, mas também no sentido teórico filosófico que sua problematização etnográfica pode trazer. Pois, se o compreendemos como um processo de liminaridade, através da perspectiva de Turner, “liminality14 is not only transition but also potentiality, not only going to be but also what may be, a formulable domain in which all that is not manifested in the normal day-to-day operation of social structures”(Turner; Turner, 1978:3). Pensar o podre pode questionar nossa forma de organizar o mundo, e ainda, de conceber os domínios da natureza e da cultura enquanto campos separados, no qual, no limite, a necessidade impera. É a partir das variáveis associadas à classificação do podre, que foram surgindo durante o percurso de campo e que contribuíram para a delimitação deste mínimo denominador comum, que podemos ir além da definição de vida, e na relação entre a vida das pessoas e dos objetos.

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Mais uma vez ressalto que a liminaridade aqui tratada se dá no processo de vida do objeto enquanto objeto comida ou objeto lixo, tendo neste conceito uma concepção que supera a teleologia da vida do alimento.

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Capítulo 2 – As variáveis da classificação: risco e valor Eram mais ou menos 10 horas da manhã de uma quinta feira quando cheguei a Sapopemba pela primeira vez. Tinha como objetivo principal daquela ida a campo conhecer a feira do Madalena e alguns interlocutores que poderiam contribuir para a construção de minha pesquisa. Fui levada ao CEDECA, o qual seria meu ponto de apoio no bairro, e de lá iria conhecer a Ana que me levaria à feira. Eu estava com pressa, pois para mim, passado das dez horas da manhã, já era muito tarde para uma feira. Ao chegar ao CEDECA, no entanto, fiquei por lá conversando com D. Nazinha, que me disse ser ainda cedo para tal tarefa. Depois de um tempo conversando com os educadores da instituição, fui ao encontro de Ana em sua casa. Disse a ela que gostaria de conhecer a feira e ela me perguntou sobre as horas. Ao saber que ainda não havíamos passado do meio dia, disse que me levaria andar pela favela e depois iríamos à feira, pois afinal ainda era muito cedo. Eu já estava ficando angustiada com a possibilidade de chegar ao lugar dedicado ao mercado de rua e não haver mais nada. Caminhei bastante com Ana e ela foi contando as histórias de sua vida, a história do bairro, da favela, algumas questões relacionadas à urbanização do local, e quando estávamos chegando perto da feira ela me perguntou se eu havia assistido a um vídeo, o qual ela fazia parte, sobre a feira do bairro, intitulado: “Que feira é essa?15” Respondi positivamente e falei que esse vídeo também foi uma de minhas inspirações para tal investigação. Ela começou então a me contar sobre os feirantes e explicar o que era a questão das sobras dos alimentos, da xepa16 e da relação dos “consumidores” com os feirantes, o principal motivador para a realização do curta.

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O vídeo “Que feira é essa?” foi realizado como parte do projeto “Oficina Tela Brasil de Sapopemba”, no ano de 2009, tendo a participação de Ana, uma de minhas principais interlocutoras. O vídeo completo está disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=GrmZqDcpJfA>. 16 Xepa, em linguagem popular, é o nome da comida servida nos quartéis. É também o nome dado às últimas mercadorias comercializadas nas feiras livres, apresentando menor qualidade e vendidas por um preço mais barato. É o nome dado àquela comida que restou do almoço e que será servida no jantar, devendo ser requentada, cujo sabor já não é o mesmo, além de uma gíria usada entre os jornaleiros quando se referem a uma folha já lida e desgastada, que foi colocada novamente para a venda. (Disponível em: http://www.significados.com.br/xepa/. Acessado em: 12/08/2013)

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Segundo Ana, a feira do Madalena só era boa para ela e para muitas pessoas do bairro depois das 13hs. Somente depois deste horário era possível realizar uma compra e quando não havia dinheiro para compra nem mesmo da xepa era muito comum que os moradores já conhecidos pelos feirantes pedissem algumas sobras e ‘catassem’ os alimentos que não poderiam mais ser comercializados e que eram descartados no chão ou em lonas e caixas de madeira. Saímos da favela e caminhamos em direção ao CEDECA. A feira do Madalena acontece em uma rua perpendicular à rua do CEDECA, já a alguns metros da favela no bairro que deu o nome à feira. Nesta rua, instala-se em todas as quintas uma feira cuja extensão atinge três quarteirões, e em todos os domingos, com uma extensão de cinco quarteirões. As principais barracas são de frutas, verduras e legumes. Às quintas-feiras além das hortaliças, legumes e frutas existem também duas barracas de brinquedos e roupas, uma de consertar panelas, outra de produtos para cozinha, duas de temperos, três ou quatro de pastel, uma de peixe e uma de frango. Cheguei à feira com a Ana e ela conhecia todo mundo. Juntou umas moedinhas que tinha e foi andando conversando com os feirantes, reclamando do preço e escolhendo algumas coisas que já estavam a um preço bem barato. Digo isso, pois, para mim, considerei que o preço naquele momento estava barato, tanto em relação às outras feiras as quais eu costumava ir quanto em relação ao preço do momento em que chegamos e iniciamos o passeio nesta feira. Enquanto andávamos pelas duas ruas principais da feira, que se organiza em formato da letra ‘T’ sendo a parte central dividida em dois corredores principais, Ana foi me contando que atualmente os feirantes não separavam mais as sobras para os moradores da favela que iam pedir comida. Era preciso comprar os produtos na xepa, ou ainda, ‘catar’ a comida do chão após o fim da feira; às vezes os comerciantes estendiam uma lona e jogavam todos os restos de alimentos para que as pessoas os recolhessem, para que, segundo Ana, as pessoas ‘catassem’ a comida do chão, como porcos. A feira estava lotada, os feirantes iam anunciando a queda dos preços antes mesmo de terem tempo para mudar o que estava escrito nas plaquinhas. Em determinado momento, os preços não eram nem alterados nas placas e o consumidor perguntava

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diretamente ao feirante que estava ainda mais propício a negociações. Os saquinhos com uma quantidade específica de produtos por um preço fechado no qual quem comprava não podia selecionar os produtos era o tipo de venda mais comum. Havia pacotes de mandioquinha, cenoura e outros legumes, bacias de mamão e laranja. Ana ia observando as bancas e falando do tipo de comida que ela normalmente comia, foi me contando um pouco das ‘estratégias’ para garantir sua alimentação e disse que nunca comprava as comidas em grandes quantidades, mas apenas para uns dois ou três dias. Ela selecionou alguns tomates não muito maduros para durarem mais e um cacho de banana; segundo ela, o mamão estava muito caro aquela semana. Ficamos por ali um bom tempo e percebi que a estratégia da maioria dos consumidores era a mesma. Negociavam o preço, pediam desconto e, nesse processo todo, passavam algumas pessoas conhecidas pelos feirantes que pediam os alimentos sem ter que pagar por eles. Essas pessoas, porém, tinham razões que pareciam justificar essa ‘troca’ ou mesmo, ‘doação’. Havia uma lixeira que passou e pediu algumas frutas para as filhas, uma senhora idosa que disse que havia tempo não comia mamão. Ana, entretanto, não tinha nenhuma justificativa que desse razão para essa doação. Ela era uma daquelas que poderia escolher entre comprar os alimentos com o dinheiro que tinha durante a xepa ou ‘catar’ as sobras do chão. É notório o fato de que, para além da organização da feira, da forma de escolha dos alimentos e até mesmo das estratégias de aquisição destes, que incluem o dinheiro, mas também a ‘lábia’, a história de vida e as relações sociais, o tempo da feira foi a questão que mais me chamou a atenção durante a pesquisa de campo. Em todas as visitas à feira do Madalena essa mesma situação se repetia. Cheguei inúmeras vezes bem cedo ao bairro pensando ser interessante observar a feira do início ao fim, apesar do constrangimento que minha figura estranha, que permanecia na feira durante toda sua duração, causava, e não era possível deixar de notar a ínfima quantidade de pessoas que percorriam suas bancas desde manhã até por volta do meio dia. A principal justificativa apresentada por todas as pessoas indagadas sobre a vantagem da compra dos alimentos na feira em relação a outros pontos de venda está

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associada à ideia de frescor dos alimentos17. A feira seria o lugar no qual os alimentos parecem ter percorrido o menor caminho do produtor ao consumidor. A quantidade de intermediários sempre é pensada como a menor de todas, e muitas vezes o preço um pouco maior da feira em relação aos mercados e supermercados é justificado levando em consideração a qualidade dos alimentos, a qual envolve basicamente seu frescor e aparência. É somente em relação a essa característica definidora da feira enquanto instituição nas cidades e metrópoles que existe a xepa. Dessa forma, mais interessante do que pensar a feira em um contexto de precariedade em relação com o podre, é pensar a xepa e quais as condições necessárias para sua existência, pois ela mesma lida com a ideia do tempo de vida do objeto-alimento. A xepa pode ser definida como uma instituição, um momento específico e variável do tempo de duração de uma feira livre, no qual os produtos vão perdendo seu valor comercial. Conforme o tempo vai passando, o valor destes produtos cai cada vez mais; eles vão deixando de ser comida para uns e se tornando comida para outros. É importante ressaltar, todavia, que em mesmo uma feira que vende outros produtos que não alimentos perecíveis, a xepa só acontece com os produtos alimentícios que tem um prazo de validade curto e definido pelos próprios consumidores. Durante o passar do tempo, a comestibilidade dos alimentos entra em jogo e as variáveis que definem essa categoria vão sendo articuladas em sua construção, porém, para além da classificação do alimento estendida entre os polos da natureza e cultura, outras variáveis como a de valor, tempo e risco entram em jogo nesta transação.

O tempo

Nas conversas com Dona Nazinha, cozinheira do CEDECA, sempre que a feira era mencionada, ou as compras de alimento, um mesmo tipo de pensamento se repetia: a feira de dona Nazinha era uma feira diferente das outras pessoas do bairro que iam mais cedo. A feira de Ana e de muitas de suas vizinhas também era diferente da feira que os 17

Durante o processo de vida do objeto enquanto comida, o frescor é uma propriedade central.

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educadores do CEDECA faziam: “feira boa mesmo era ‘a feira das 13 ou 14 horas’”, porque “no fim era tudo a mesma coisa e com vinte reais você poderia comprar comida pra semana toda” (Diário de campo, dia 12/12/12). Percebendo a importância desta constatação feita por diversas pessoas do bairro, cheguei à conclusão que a feira das treze ou catorze horas era então uma feira diferente da feira das seis da manhã, não somente em suas características físicas, nas pessoas, nas relações, mas na própria concepção simbólica da feira e na compreensão desta concepção tomada pelos seus consumidores. Todavia, qual eram as variáveis que a tornavam diferente? Ao falarmos de consumo, pensamos sempre em categorias econômicas racionalizadas que definem nossas experiências e escolhas. No entanto, a categoria, ou ainda, a variável que se destacou como marcadora destas diferenças ‘nas feiras’ que existem dentro de uma mesma feira no Madalena é uma categoria ao mesmo tempo relativa e extremamente importante para pensarmos a vida de um objeto: a categoria de tempo. Por que, de maneira geral, as pessoas gostam de comprar frutas e verduras nas feiras? É o frescor dos alimentos a principal qualidade que destaca os produtos da feira ao compararmo-los com os produtos de outros pontos comerciais. Contudo, a categoria de frescor é vista como uma qualidade dada do objeto-comida, e sua tradução ou associação a outras categorias não é racionalizada por aqueles que a utilizam. Antes de qualquer coisa, a noção do “frescor” está diretamente associada com a vida dos alimentos, isto é, com o passar do tempo e das fases de desenvolvimento, que se conectam com a questão do valor em uma lógica do consumo. É em relação à vida dos alimentos que o valor de troca ou valor comercial destes produtos é pensado. Parece-nos estranho que em determinado momento de sua vida um alimento comercializado perca seu valor de troca, ou ainda que continue ‘apto para consumo humano, mas sem valor comercial’, pois não associamos o valor econômico com a vida, com a vida dos objetos e das pessoas no mundo. É a categoria de tempo que nos ajudará a iniciar essa discussão, porque ela é uma categoria que não pode ser desassociada da ideia de valor, uma das variáveis que constroem a definição do comestível.

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Quando falamos de cozinha e do ato de cozinhar nos parece óbvio compreendermos as temporalidades para garantir a transformação de um produto natural em algo cultural. Contudo, ao pensarmos no alimento que não tenha passado necessariamente por aquilo que chamamos de transformação cultural, isto é, o cozimento, o tempo é deixado de lado. Outras categorias, ou ainda, características mais visíveis ou aparentemente palpáveis são consideradas em detrimento desta categoria ‘abstrata’. Ao escolher uma maçã podemos dizer que ela está fresca ou está passada sem pensar que estamos falando da vida deste objeto e é o tempo que define esses adjetivos em relação a sua definição como comida. Deixamos de escolher essa maçã, pois ela estaria velha, sem associar a velhice da maçã com a nossa, e assim, com a categoria de vida. O tempo não se materializa aos olhos dos consumidores através de um fungo crescendo, de uma alface murchando; estes não são visto como fases da vida. Na verdade, muitas vezes o tempo somente é marcado quando passa de um limite, isto é, quando algo deixou de ser comestível por ter seu prazo de validade expirado ou por ser tarde demais para comer aquele alimento, quando a sua incidência faz os objetos deixarem de ser comida. Não é à toa que nas feiras livres, por ser o frescor dos alimentos algo central, os preços tem seu ápice no início da feira e vão diminuindo até o momento da xepa. Existe aí uma legitimidade na definição científica de vida e morte que informa as normas de Segurança Alimentar incidente nestes tipos de comércio e nas próprias definições dos comerciantes e consumidores. Quando pensamos no tempo de vida de um alimento, o podre enquanto objeto nebuloso é central para a definição da comestibilidade de um alimento ou ainda, dentro desta definição, o seu valor. Um alimento perecível, isto é, suscetível de perecer, de findar ao longo do tempo, tem a putrefação como um fim natural iminente, e o medo deste momento chegar faz com que o passar do tempo seja algo a ser combatido, pois é exatamente aí que o estatuto do objeto muda e ele deixa de ser comida. Buscamos alimentos com vida, ou melhor, que pareçam estar sempre longe da morte. Uma miríade de processos é utilizada para evitar a deterioração e prolongar a vida dos alimentos, e mesmo aqueles que são feitos a partir de um processo de apodrecimento controlado, o passar do tempo é visto como algo negativo, como no caso do iogurte e os padrões de conservação

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adotados para seu consumo, talvez porque nos pareça extremamente estranho a ideia de que muitas vezes “a segurança de uma comida é garantida por bactérias ainda vivas nela presentes” (Pollan, 2014:287). No entanto, a morte é parte do ciclo de estar na vida, e o que entendemos como vida é muitas vezes uma concepção específica desta categoria. Nesse sentido, o tempo que parte da categoria de vida biológica, asséptica e pasteuriana e o apodrecimento associado a essas definições ficam restritos a um só olhar. Da mesma maneira em que Evans- Pritchard (1978) questiona a concepção de tempo dos Nuer em relação ao tempo ‘biológico’ ou o que ele chamaria de ‘relações ecológicas’ e sua inferência e dependência com o sistema social, afirmando que as limitações ecológicas e outras influenciam suas relações sociais, mas o valor atribuído às relações ecológicas é igualmente significativo para a compreensão do sistema social, que é um sistema dentro do sistema ecológico, parcialmente dependente

deste

e

parcialmente

existindo

por

direito

próprio

(Pritchard,1978:107),

podemos pensar o tempo de vida dos alimentos em relação à voz da ciência e da biologia, mas também questionando-as, assim como questionamos a determinação do mundo social. Porque, muito próxima da maneira em que os Nuer veem a relação entre o sistema ecológico e social, nós também vivemos uma relação de interdependência sobre aquilo que entendemos como natureza e cultura. Até mesmo as definições de tempo associadas à vida presente na biologia trazem algumas incongruências que o podre pode nos ajudar a iluminar. A comestibilidade pode ser vista, então, como uma fase da vida dos objetos, do mesmo modo em que Appadurai (2008) vê a mercadoria como um momento na vida dos objetos, permitindo, desta maneira, pensarmos em todo o processo de vida sem nos prendermos a uma fase específica de seu crescimento, maturação, decadência e morte. Ao retomarmos a análise de alimentos que foram produzidos culturalmente a partir do controle do podre, como é o caso do iogurte, ou de conservas de chucrute, pepino, entre outras, que seriam consideradas como “a elaboração cultural do cru por meios naturais” (Lévi-Strauss, 1997), percebemos que em muitos casos, quanto mais tempo esses

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produtos tem de vida, ou seja, quanto maior o processo de maturação, mais seguro este alimento pode ser, em termos de contaminação biológica. O queijo de leite cru, por exemplo, tem um tempo obrigatório de maturação que tem sido estendido, de forma compulsória, por órgãos de vigilância sanitária, ao partir da constatação de que essa medida irá “provide a measure of pathogen reduction, the idea being that drying and acidification associated with aging would prove increasingly inhospitable to pathogens” (Paxton, 2008: 28). Desta forma, assim como Pritchard apontou em sua obra clássica, o tempo é uma relação entre as diversas vozes que operam em uma sociedade, e neste caso o tempo associado ao tempo de vida de um objeto é definido a partir de diversas variáveis; a comestibilidade deste é pensada não apenas como uma fase, mas como uma característica inerente do objeto-alimento. A biologia, vista como o estudo do processo de nascimento, crescimento, maturação e morte, não dá conta, sozinha, de prover explicações para a relação entre tempo e comestibilidade, pois a própria categoria de comestibilidade pode ser vista como uma categoria híbrida, ou que vai além da dicotomia entre natureza e cultura. Ao pensarmos nas frutas, verduras e legumes18 da feira do Madalena, não podemos aplicar a mesma constatação utilizada para os “podres controlados”, pois este processo que se dá na feira é visto como natural, e a aproximação da morte sem nenhum controle, o apodrecimento como parte do processo de maturação que leva ao fim da vida é visto como carregado de perigos. O tempo é inimigo nesta situação, pois este não é controlado.

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É preciso pensar que as frutas, verduras e legumes tem uma classificação em torno de seu tempo de validade e apodrecimento muito diferente dos produtos cárneos, e ambos possuem outra categorização se os compararmos aos derivados do leite, sem esquecer obviamente que dentro destas três principais categorias também residem diferenças. A vida de cada um desses alimentos tem uma especificidade. – porém todos são considerados perecíveis, isto é, se deterioram ao longo do tempo e morrem. Me concentrei nos quatros alimentos citados no início desta dissertação por serem de ‘categorias diferentes’ de alimentos, mas não pretendo compreendê-los fisiologicamente como um todo.

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O Valor

Estive uma manhã inteira sozinha na feira do Madalena. Minha presença causava um grande estranhamento não somente aos consumidores, mas principalmente aos feirantes. Algumas brincadeiras relacionadas à minha atividade ali ou ainda a possibilidade de me conquistar enquanto consumidora eram incessantemente realizadas. Aproveitei essa oportunidade de contato com os feirantes e comecei a conversar sobre a feira, os preços dos produtos e a qualidade dos alimentos. Em meio a diversas frases sobre o frescor dos alimentos e a qualidade deles em comparação ao supermercado, uma frase me chamou a atenção. Um dos feirantes, dono de uma banca de frutas, me disse que aquela era a pior feira que ele fazia na semana. Eu não entendi muito bem o que ele queria dizer, porém ele logo completou sua frase com uma explicação: Olha, eu faço feira todos os dias da semana, e na quinta-feira é o dia aqui da feira do Madalena. Quinta e domingo. Esses dois dias são os piores pra mim. Veja bem, na feira normalmente as pessoas gostam de ir cedo, comprar produtos frescos. Aqui não, até quase meio dia não tem ninguém comprando. Eu acordo as quatro da manha para vir para cá e só vou conseguir vender alguma coisa lá pro fim da manhã. E daí não dá né, o preço já tá lá em baixo (Diário de Campo, dia 21/05/2013).

O valor dos objetos muda com o tempo, estando associado a mudança de estatuto e do uso deste objeto; é ele o responsável pela perda repentina do valor de um alimento, ou ainda, sua queda paulatina. O valor parece ser, na fala do feirante, uma propriedade inerente deste objeto específico, sobre o qual, nós, meros humanos, vendedores ou consumidores, não temos nenhuma influência Podemos dizer, ao pensar sobre alienação no processo de criação e perda de valor, que este processo em si envolve muito mais do que as categorias de valor de uso e valor de troca, ou ainda sua classificação enquanto mercadoria, pois falamos aqui de forma conjunta tanto dos alimentos vendidos (comercializados) como daqueles objetos considerados sobras e restos. O valor é uma variável comum a todos esses alimentos, independente de sua comercialização ou troca monetária19. 19

Faço aqui uma discussão direta com a teoria da vida dos objetos proposta por Appadurai e Kopytoff (2008) e por isso remeto à discussão marxiana sobre valor.

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Nos estudos contemporâneos sobre a vida social dos objetos em uma situação de consumo (Appadurai, 2008; Kopytoff, 2008), isto é, em um contexto como o da feira, é comum pensar a trajetória destes a partir da perspectiva da mercadoria, sendo essa discussão fruto de uma concepção marxista da produção e consumo. Marx, em um de seus textos mais controversos, define a mercadoria como um “objeto exterior que satisfaz as necessidades humanas de qualquer espécie, tendo sua origem no estômago ou na fantasia” (1989:166). Com essa primeira definição, poderíamos pensar que todos objetos que tem cumprida a potencialidade de ser comida, desde aqueles comprados como os doados ou recolhidos, são definidos como mercadoria, entretanto, Marx (1989) complementa a denotação de seu conceito dizendo que para produzir uma mercadoria é necessário não só produzir valor de uso, mas também valores de uso sociais, o que ainda enquadraria todos estes no conceito de mercadoria. É somente quando Marx (1989) ressalta que para ser mercadoria é necessário que o produto seja transferido para outra pessoa e que essa pessoa deve utilizá-lo como valor de troca, que devemos rever as categorias para pensar o objeto-comida, ou ainda, rever a própria definição de valor. A xepa é uma instituição na qual esse processo de criação e perda de valor é materializado em um curto período de tempo. Entretanto, se partirmos da concepção marxista de valor, dividindo-o em valor de uso e valor de troca, a análise do alimento e de seu processo de desenvolvimento, isto é, crescimento, maturação e decadência, perde o sentido. Marx (1989) aponta em seus estudos que não é a troca que regula a grandeza de valor de uma mercadoria, mas sim a grandeza de valor que regula suas relações de troca. Contudo, pensando nos alimentos e nas relações que eles estabelecem partindo da feira, e mais especificamente da xepa, vemos que a perspectiva da mercadoria traz somente uma pequena contribuição a este estudo, pois estes objetos devem ser vistos como algo além deste momento de consumo ou troca, e sua definição de comestibilidade também deve ser pensada em relação a todas as variáveis que se constituem durante seu processo de vida.

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É então a partir desta perspectiva que Appadurai (2008) e Kopytoff (2008) pensam a vida dos objetos. Appadurai, em seu texto “Mercadorias e Políticas de Valor”, presente na coletânea intitulada A vida social das coisas (2008), organizada por ele mesmo, propõe uma nova perspectiva sobre a circulação de mercadorias na vida social. Segundo o autor, é a troca econômica que cria valor, e o valor é concretizado nas mercadorias que são trocadas. Dessa forma, concentrar-se nas coisas trocadas em vez de apenas nas formas e funções da troca possibilita a argumentação de que o que cria vínculo entra a troca e o valor é a política. Kopytoff (2008), em uma análise complementar, propõe uma metodologia da biografia cultural das coisas, na qual é possível realizar perguntas similares as que fazemos às biografias de pessoas, isto é: qual a carreira que as pessoas consideram ideal para esse tipo de coisa? Quais são as ‘idades” ou as “fases de vida” reconhecidas de uma coisa? Quais são os mercados culturais para elas? Como mudam os usos das coisas conforme elas ficam mais velhas? E o que acontece quando sua utilidade chega ao fim? (2008:92).

Para responder a essas perguntas, o autor parte da premissa de que as mercadorias devem ser não apenas produzidas materialmente como coisas, mas também culturalmente sinalizadas como determinado tipo de coisas, isto porque, do total de coisas disponíveis na sociedade, apenas algumas são apropriadamente sinalizadas como mercadorias. Poderíamos, nesse sentido, pensar a criação de valor de um alimento a partir desta perspectiva e analisar a trajetória desses objetos pensando em sua biografia cultural. No entanto, esta concepção ainda está atrelada a uma separação entre a materialidade e a subjetividade das coisas, e a definição de um objeto enquanto comestível vai além desta dualidade, assim como a criação de valor vai além de sua caracterização enquanto mercadoria e valor de uso e valor de troca. Quando pensamos na xepa, a concepção de que o valor é concretizado nas mercadorias que são trocadas mistifica a perda de valor e as razões desta queda em relação a um período específico de tempo. Quais razões encontraríamos, então, através desta lógica, para o consumo da feira do Madalena somente ser realizado de forma significativa após as

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catorze horas e, mais ainda, para os comerciantes manterem o início da feira as cinco da manhã mesmo sem nenhum comprador? O que, para além da troca e da relação com a mercadoria, define o valor desses objetos em relação a sua definição como comida? Primeiramente, é necessário analisar os alimentos enquanto objetos a partir de uma visão que compreenda sua trajetória e história para além da dicotomia entre suas propriedades materiais e suas representações simbólicas. Kopytoff (2008) propõe, a partir de suas perguntas centrais para a construção da biografia cultural das coisas, uma metodologia que compreende a vida dos objetos enquanto processos, aceitando suas fases, mas o faz tendo como central a fase da mercadoria. O papel da cultura, ou do simbólico, estaria limitado nas análises de Appadurai a “criar uma equivalência de valores dentro de diversas esferas específicas de mercadorias” (Appadurai, 2008:98). Como venho ressaltando ao longo do texto, os alimentos são objetos que tem uma especificidade, podendo ser, através da perspectiva biológica, considerados vivos, fruto da criação da natureza, ao mesmo tempo em que também são frutos de um processo simbólico (cultural) de definição e de transformação real em comida. Nesse sentido, antes mesmo de sua definição enquanto mercadoria, enquanto objeto de consumo, um alimento tem que passar por um processo de transformação deste objeto em comida, e este processo é duplamente biológico e cultural. A criação de valor não seria assim somente um processo social, e a perspectiva de Appadurai (2008) e Kopytoff (2008) não daria conta desta análise dos objetos, pois o valor do objeto-alimento se dá em relação à sua definição enquanto comida. Sendo os objetos entidades com vida, devemos pensar a criação de valor associadas às fases desta vida para concomitantemente associarmos estas fases à nossa própria vida, e é a fase da comestibilidade que proporciona a estes objetos serem considerados úteis com valor. Nas análises dos objetos nas ciências sociais e humanas a questão da agência é de extrema relevância. É notória a contribuição de autores como aqueles citados acima sobre a maneira em que, de um ponto de vista metodológico, “são as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano e social” (Appadurai, 2008:17). E por isso, seria interessante “seguir as coisas em sim mesmas, pois seus significados estão inscritos em suas formas, seus usos e suas trajetórias” (Idem, ibidem).

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O valor se daria na relação dos objetos com os homens e dos homens com os objetos, pois segundo Munn, ao analisar o kula, “embora os homens pareçam ser agentes na definição do valor das conchas, eles não podem definir seu próprio valor, quanto a isso, conchas e homens são agentes recíprocos na definição de valor de um e de outro” (citado por Appadurai, 2008:36). A agência dos objetos estaria assim presente no processo entre os objetos e as pessoas nos quais ambos se definem e criam materialidades a partir de seu uso simbólico e prático. Na xepa, o valor do alimento estaria associado à relação que este estabelece com seus consumidores, assim como com a inferência de desejos e demandas. Para Appadurai, vemos a demanda como um mistério, “talvez porque supomos que ela possui uma relação com o desejo e com a necessidade”, contudo, “devemos tratar a demanda, e, portanto o consumo como aspecto geral da política econômica das sociedades” (Appadurai, 2008:46). A demanda surge como uma função de uma série de práticas e classificações sociais ao invés de uma misteriosa revolução das necessidades humanas, de uma reação mecânica a manipulação social, ou de uma redução de um desejo universal e voraz por qualquer coisa, que por acaso, esteja disponível (Appadurai, 2008:46).

Neste sentido, a diferença entre qualquer objeto quando este se torna uma mercadoria não residiria em uma diferença de espécies, mas sim em uma diferença de demandas ao longo do tempo, ou, algumas vezes, entre locais de produção e consumo (Appadurai, 2008). Os alimentos da feira teriam uma mudança de demanda ao longo do tempo de duração da feira. Em seu início, a demanda seria maior e, portanto, seu valor seria mais alto, enquanto que com o passar do tempo, a demanda seria menor e assim seu valor iria diminuindo para incentivar a compra daqueles produtos que restaram e que não tem mais tanta procura. Entretanto, como já foi mencionado acima, no caso da feira do Madalena, essa análise não pode ser feita a partir da perspectiva da demanda, isto é, a feira, considerada a pior da semana pelos feirantes, uma vez que os consumidores não compram na parte da manhã, não tem um processo que se desenvolve ao longo de sua duração de diminuição da demanda, a qual teria seu ápice no início da feira.

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Se na feira do Madalena a maior parte dos consumidores realizam suas compras depois de certo horário, horário este que coincide com a xepa, ou seja, com a diminuição dos preços, a questão da demanda não pode ser vista como a variável que mais incide sobre a criação de valor dos alimentos. O tempo já foi apontado como tendo um papel importante neste processo, mas não porque as demandas vão mudando ao longo dele. O valor das coisas, dos alimentos, estaria relacionado à outra categoria, e esta pode ser apreendida a partir de uma perspectiva que vai mais além do que a ideia da análise da materialidade e da subjetividade dos objetos enquanto agentes com vida social. Estes consumidores estariam esperando então o podre ser mais ‘visível’ para que eles ‘possam’ comprá-lo; esperando este objeto deixar de ser comida para outras pessoas para assim o serem para eles. Eles manipulam, assim, esta percepção social de constituição de valor. Assim como a questão do tempo e do valor presente no mercado dos alimentos na feira, essa mesma relação é extremamente relevante na proposta do programa do SESC, Mesa Brasil. Em sua definição autóctone, é informado que é objetivo do programa recolher alimentos que perderam seu valor comercial, mas que ainda estão aptos para consumo humano; são comida somente para algumas pessoas. Nesse sentido, a demanda não poderia ser analisada como uma das questões que definem o valor, tendo em vista que o valor dos alimentos no Mesa Brasil não é um valor monetário, mas ainda sim existe e incide sobre as pessoas, pois afinal de contas muitos alimentos recebidos pelo programa não são definidos como comida, não tem valor de alimentos comestível e são assim descartados. Tim Ingold (2011), em sua análise dos objetos, faz uma apreciação do desenvolvimento da antropologia argumentando que neste processo o foco dos estudos se deu, segundo o autor, na materialidade dos objetos, ao invés de se concentrar nos objetos e suas propriedades. Para Ingold, “we would learn more by engaging directly with the materials themselves, following what happens to them as they circulate, mix with one another, solidify and dissolve in the formation of more or less enduring things” (2011:35). Segundo o autor, diferentemente da proposta de Appadurai (2008), Kopytoff (2008), Gell (1998), entre outros, “if we follow active materials, rather than reducing them to dead matter, then we do not have to invoque an extraneous ‘agency’ to leven them up again.” (Ingold, 2011:36)

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Principalmente quando falamos de objetos que em momentos específicos podem ser concebidos como vivos, se torna evidente que a oposição entre realidade e representação, ou seja, entre “society versus the material realities of external nature, polarity of mind and matter” (Ingold, 2011: 40), não traz nenhum contribuição para as análises antropológicas já existentes. Quando o objeto por si só se mostra além desta dualidade, não nos é interessante trazê-la para o plano das análises e das ideias, isto porque, reforçaria uma polaridade que nos incentiva a continuar vendo feitos como fatos (Latour, 1994). “Students of material culture have contrived to dematerialize or to sublimate into thought the very medium in which the things in question once took shape and are now immersed” (Ingold, 2011:42). Dessa forma, para pensarmos os objetos que são aqui o objeto de análise dessa dissertação e compreender como o valor destes é criado, para assim compreender a relação das coisas com as pessoas, é necessário um questionamento da própria maneira em que concebemos e analisamos antropologicamente os objetos. Portanto, vejo como central a concepção de que os alimentos “do not presente themselves as tokens of some common essence, materiality, that endows every wordly entity with its inherent objectness; rather they partake in the very processes of the world’s ongoing generation and regeneration” (Ingold, 2011:45). Assim, o valor dos alimentos é relacional à história de vida destes objetos, mas a vida enquanto processo amplo de estar no mundo. Bringing things to life, then, is a matter not of adding them a sprinkling of agency but of restoring them to the generative fluxes of the world of materials in which they came into being and continue to subsist. This view that things are in life rather than life is in things (Ingold, 2011:48).

Os alimentos seriam compreendidos como objetos que têm vida, e a sua comestibilidade relacionada ao seu valor estaria associada a esta propriedade específica e temporal dos objetos. Isto porque, como venho apontando no percorrer deste texto, o mundo físico, material, não pode ser separado do mundo das ideias (Ingold, 2011), assim como os alimentos não podem ser analisados a partir destas esferas vistas como antagônicas.

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Na xepa, os objetos iriam perdendo o seu valor ao decorrer do tempo em relação a sua mudança de estatuto e esta mudança, para além de sua relação com a demanda, é associada à ideia de risco, pois os alimentos por si só podem ser vistos como portadores de um perigo iminente ao serem um dos poucos objetos de consumo que são incorporados por seus consumidores. O valor de um produto comprado às catorze horas é menor do que o mesmo produto comprado às seis da manhã, pois este está cada vez mais próximo de sua morte enquanto objeto comida, mesmo sendo essa uma morte simbólica (muitas vezes o alimento pode ser considerado já morto, como uma carne de origem animal). Ao tomarmos os objetos como algo com vida e a comida como uma fase deste processo concebemos que a morte é parte deste desenvolvimento e esta é temida, pois, estes ao serem ingeridos, pode causar risco à vida de seu comensal. Os feirantes continuam indo à feira às cinco da manhã, mesmo que o cálculo econômico incite o contrário, pois a feira enquanto instituição acontece em relação ao tempo de vida dos alimentos, e assim a condição para que a xepa ocorra é o passar do tempo dos alimentos naquele local, o passar da vida. “No objects lasts forever; materials always and inevitably win out over materiality in long term” (Ingold, 2011:46), contudo, um objeto que já é previamente definido como perecível tem na ideia de vida a variável que mais incide sobre seu valor, e a morte, em sua oposição, como um momento a ser temido.

O Risco

Mary Douglas, no prefácio de Risk and Blame (1994), faz um apelo aos estudiosos das ciências humanas que pensam a relação entre risco, perigo, pureza e poder dizendo que o dia em que os antropólogos “give up their attempt to ground meanings in politics and economics will be a sad day” (1994:IX). Partindo desta perspectiva e da relevância de construir significados tanto na política como na área de economia, este estudo mostra a relevância de se pensar a concepção política de risco, ou ainda, a maneira em que o perigo é politizado. Ao falarmos de tempo e valor já estamos inferindo sobre categorias

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vistas como econômicas, e ao problematizar a ideia de risco, nos adentramos no terreno da construção de certas categorias políticas. Longe de realizar um panorama dos estudos sobre risco e perigo, ressalto que o presente estudo busca compreender certas categorias como a de vida e morte dos objetos no qual a ideia de risco se mostra essencial para elucidá-las. Quando afirmo que o valor de um alimento está associado ao tempo, e este tem íntima relação com a vida destes objetos e sua proximidade com a morte, ressalto que a categoria ‘risco’ reside exatamente neste ponto analítico. Assim, se mostra crucial compreender o que é entendido por ‘risco’ e como esse conceito é estruturado teoricamente e desenhado através de sua reflexibilidade na construção etnográfica. ***** Fui autorizada pelo SESC a fazer duas colheitas e distribuição de alimentos com o Mesa Brasil. No primeiro dia da colheita, cheguei ao SESC Carmo antes das seis da manhã, pois os caminhões saem de lá entre seis e sete horas. Sheila me disse que estávamos um pouco atrasados, pois tínhamos que esperar uma confirmação de uma grande doação de um dos colaboradores no CEAGESP. Esperamos muito tempo até que a Sheila autorizou nossa saída. Descemos e eu fui apresentada ao motorista e ao ajudante do seu carro. Todos os dias, esse caminhão tinha que passar em um supermercado de alto padrão na Vila Madalena para recolher suas doações. Neto, o responsável pela seleção dos alimentos, disse que não acha muito bom passar nesse tipo de supermercado porque “quanto mais chique, pior são as doações e o estado de conservação delas” (Diário de Campo, dia 17/07/2013). Estava chovendo um pouco, uma garoa intermitente, e Neto pediu para que eu ficasse no carro enquanto ela avisava que havíamos chegado e que estávamos esperando as doações. Depois de uns 20 minutos, um dos funcionários do local pediu para que entrássemos para ver as doações. No caminho para os fundos do estabelecimento, Neto me disse que nesse tipo de supermercado eles sempre deixam as sobras muito perto do lixo e assim o Mesa Brasil não pode recolhê-las. Chegando lá, havia somente algumas alfaces muito murchas que estavam próximas demais do lixo e por isso negamos a colheita.

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Entramos novamente no caminhão e nos dirigimos para o CEAGESP. Ao chegarmos lá, uma placa bem na entrada alertava: “Não recolha comida dos lixos. Procure o banco de alimentos do CEAGESP. Cuide de sua segurança”. Fomos para o estacionamento de carga e descarga, havia uma fila gigante de caminhões e tivemos que ficar ali esperando. Íamos ser responsáveis pela colheita de um caminhão inteiro de mamão papaia, e assim que os outros caminhões conseguissem realizar seus cronogramas, iriam nos ajudar. Depois de mais de quarenta minutos parados, todos já estavam fora do caminhão impacientes. As ruas estavam muito sujas, com pedaços de comida apodrecendo, papel e pedaços de madeira. As lixeiras e caçambas estavam todas espalhadas pelo lugar e os “lixos” eram jogados ali indiscriminadamente. Aquela parte do CEAGESP poderia ser descrita como uma minicidade. Existem blocos que são chamados de “armazéns”, locais aonde são armazenados e vendidos os produtos no atacado, e entre cada bloco de armazém existe uma rua que os separa. Nessas ruas ficam a maior parte das caçambas nas quais os trabalhadores do armazém vão selecionando e já eliminando os produtos não desejados. Abóboras são cortadas e selecionadas e aquelas consideradas lixo são instantaneamente descartadas. Apesar do aviso sobre o banco de alimentos, a quantidade de produtos alimentícios nos lixos e caçambas é enorme. Depois de uma longa espera, o dono do armazém de venda de mamão chamou o responsável do Mesa Brasil e disse que poderíamos começar a colheita, mas que ela seria feita dentro do caminhão, pois todo o mamão que estava contido nele foi rejeitado por uma rede de supermercados de luxo e agora seria descartado se o Mesa Brasil não tivesse interesse em recolhê-lo. O pessoal do Mesa Brasil iniciou, assim, o processo de colheita. Muito rapidamente o motorista e o responsável do caminhão começaram a tirar caixas de plástico brancas do caminhão e a colocar sacos de plástico dentro delas. Eles já estavam vestindo luvas de silicone, uma touca e um avental branco. Subiram no caminhão de mamão para iniciar a colheita ali mesmo e eu fiquei esperando um pouco para ver o que me orientavam a fazer. Perguntaram se eu queria subir para olhar mais de perto e assim eles podiam ir me explicando os critérios de seleção.

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Subi no caminhão. Lá em cima, Neto ficou me explicando o que poderia ser doado e o que deveria ser descartado. “Mamão com fungo, mesmo que pequeno, daqueles redondos que você aperta e seu dedo fura a casca não pode ser recolhido de maneira alguma”. “Aqueles cortados também não”. Eu perguntei se isso acontecia, pois, o fungo, mesmo que de um tamanho não muito grande, contaminaria todo o resto do mamão, e Neto respondeu que, na verdade, era porque o Mesa Brasil não teria como garantir que os cozinheiros que iriam receber o mamão veriam o fungo e o removeriam de forma integral. Segundo ele, o projeto “não poderia correr esse risco”. Somente abóboras poderiam ser adquiridas quando previamente cortadas. Perguntaram-me, então, se eu queria ajudar na seleção para ver exatamente quais as regras que deveriam ser seguidas. Eu aceitei. Recebi um avental e uma touca, pois a luva eu já usava para manusear os mamões que me eram mostrados. Comecei a seleção. Havia dentro do caminhão por volta de seis ou sete pallets de caixas de mamão empilhadas. Em cada caixa de plástico cabia uma média de uns vinte mamões. Tirei a minha primeira caixa da pilha, peguei o primeiro mamão e ele estava bem feio. Tinha uma aparência toda amassada, mas não possuía nenhum corte e nenhum fungo. Esse era na verdade o mamão mais apropriado para o consumo. Coloquei-o então na caixa branca de plástico. Próximo mamão, bonito, firme, com uma aparência de supermercado, tinha, porém um pequeno fungo, redondo, com as bordas brancas e o meio preto, do tamanho de uma moeda de dez centavos. Foi descartado. Mamões cortados, mamões abertos. Aqueles com uma pequena baba branca ao redor eram considerados “normais” e iam sendo colocados de maneira organizada em uma caixa plastificada. O processo consistia em retirarmos uma caixa da pilha de mamões devolvidos, colocá-la perto de uma caixa branca do Mesa Brasil e selecionar os mamões. Os que deveriam ser doados iam sendo organizados nas caixas branca, os que deveriam ser descartados iam para caixas pretas que depois eram utilizadas para jogar esses mamões em uma caçamba a uns três metros do caminhão. Esses mamões já haviam sido descartados uma primeira vez, não por seus comensais, mas pelo distribuidor, a rede de supermercados de luxo, que não via mais valor comercial neste produto. Eles não eram mais comida. A fase da vida em que esses objetos

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se encontravam não permitia sua comercialização enquanto tal. Sem nem questionar sua comestibilidade, os mamões perderam o “valor comercial”, mas ainda eram vistos como comestíveis para certas pessoas. Pessoas sem dinheiro. Entretanto, esses mamões, na fase que estavam, entre objeto-lixo e objetocomida, podiam causar risco à vida de seus comensais e por isso eram selecionados com tanta precaução. O perigo de contaminação pela ingestão desse alimento é concebido como um perigo iminente, e todo o cuidado parece ser pouco quando estamos falando de um objeto que é incorporado e se torna parte de uma pessoa. Se resgatarmos os estudos sobre magia do início da disciplina antropológica, poderíamos compreender o perigo de tal ato através da ideia de que a comida em bruto é portadora de un peligro, de um salvajismo que cojura el aderezo. (...) En definitiva, lo que esta em juego cada vez que se há tomado y cumplido la decisión de incorporación es la vida y la salud del sujeto que come, además de su equilíbrio simbólico (Fischler, 1995:76).

Contudo, em nossa ‘sociedade moderna ocidental’, estamos sempre tentando nos distanciar de associações chamadas de ‘primitivas’, na qual existiria uma conexão entre moral e perigo. Para nós, a tecnologia dissolveu esse laço, e o perigo é conhecido a partir desta perspectiva, na qual magia e tabu são sinônimos de ignorância. Quando o mamão é descartado por possuir um pequeno fungo e a justificativa para tal ato se encontra no risco que esse fungo pode trazer à vida de certas pessoas, devemos analisar a situação a partir de duas visões que se complementam. Primeiro, a ideia que se tem de risco relacionada às fases de vida dos objetos enquanto alimento e de seu valor. Posteriormente, devemos pensar na relação do risco com a vida daqueles que consomem tais alimentos e na ideia da vulnerabilidade ligada a uma falta de autonomia no conhecimento destes riscos e nas decisões que devem ser tomadas perante a eles, associada ainda à criação de especialistas na área de alimentação. A concepção que temos de risco nos faz pensar que somos muito diferentes dos “povos primitivos”, que explicamos de maneira muito distinta o perigo e a desgraça: “they engage dangers politically on behalf of the constitution, we have desengaged dangers from politics and ideology and deal with them by the light of Science” (Douglas, 1992:7). Fazemos isso pensando que a ciência em si permite identificar perigos reais, cujas causas 70

são objetivamente identificáveis, apoiados pela autoridade dos experimentos e suas teorias validadas. Bruno Latour (1994), ao discutir o desenvolvimento da ciência nas sociedades industriais, traz importantes questionamentos, como a ideia de que “aquilo que chamamos de ciência não possui nenhuma demarcação que possamos tomar como fronteira natural” (Latour, 1994:23), e através de sua concepção de objeto híbrido aponta que a constituição moderna inventa uma separação entre poder científico, encarregado de representar as coisas, e o poder político, encarregado de representar os sujeitos (Latour, 1997). Para os profissionais que estudam o risco, segundo Douglas (1992), se tem como objetivo chegar à essência real da percepção do risco antes que ela seja poluída por interesses e ideologias. O mamão descartado e pronto para ser selecionado é analisado a partir da perspectiva de que, após inúmeros experimentos validados, a presença de fungos em sua pele é uma fonte de risco, tirando esse objeto da categoria de comestível através da voz da ciência. A comestibilidade é percebida então como uma categoria pura e dada dos objetos, assim como o seu valor, que é definido através de uma visão econômica e objetiva de demanda. A política em seu sentido mais amplo parece estar desvinculada destas classificações, pois “risk would have become the idiom of politics” (1992:13), entretanto, toda classificação é política e gera uma exclusão (Douglas, 1976). Os objetos que deixarem de ser comida e foram descartados carregam em si a potencialidade do podre (em sua concepção biológica) e são assim classificados, primeiramente, como não comestíveis por serem associados ao perigo, à sujeira e ao lixo. O mamão com fungo é visto pelos microbiologistas e pelas nutricionistas como um fator de risco. Entretanto, podemos analisar esse mesmo processo de classificação a partir de outra hipótese. Comparando novamente nossas práticas de higiene e prevenção de risco, acredito que a afirmação de Mary Douglas de que “não devemos esperar entender as ideias de outros povos sobre contágio, sagrado ou secular, até que as confrontemos com as nossas” (1976:42), poderia ser pensada de forma inversa buscando entender as nossas categorias a partir de outras confrontações. Digo isso por me parecer essencial voltar às ideias sobre pureza e perigo para melhor compreender o que entendemos por risco e como essa categoria atua de fato na vida das pessoas.

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Os teóricos da antropologia clássica, ao se debruçar sobre o tema das religiões e elaborar uma teoria para diferenciá-las, separando-as entre primitivas e avançadas, usavam como critério a categoria de impureza para balizar tal distinção. As religiões primitivas seriam aquelas em que as regras de santidade e impureza seriam indistinguíveis; por outro lado, nas religiões avançadas, as regras de impureza se desconectariam destas ao serem relegadas à cozinha, ao banheiro e a limpeza pública (Douglas, 1976). Como é a cozinha, ou melhor, sua matéria prima o elemento crucial para entender o objeto deste estudo, é interessante pensar como compreendemos essas regras de pureza e higiene que definem a classificação daquilo que comemos. Novamente o frango aparece nesta discussão atestando a hipótese de que, diferentemente do que pensamos, acreditando “que nossas práticas são solidamente baseadas em higiene e as deles (os primitivos) são simbólicas: nós matamos germes, eles afastam espíritos, a semelhança entre alguns de nossos ritos simbólicos e a nossa higiene é algumas vezes estranhamente estreita” (Douglas, 1976:88). Encontrei Sueli, coordenadora do CEDECA, para uma conversa sobre a situação do bairro em relação à alimentação. A coordenadora se mostrou extremamente interessada em minha discussão e me disse que quando iniciou seus trabalhos no CEDECA havia organizado um grupo de mulheres que conjuntamente realizava uma colheita urbana tanto nos supermercados quanto feiras e em uma granja que existia na região. Segundo ela, esse movimento coletivo dava mais legitimidade à demanda por alimentos da família e fazia com que as mulheres conseguissem muito mais doações do que indo até lá sozinhas (Diário de Campo, dia 04/04/2013).

Depois desse bate papo, Sueli me disse que estava se lembrando de duas histórias “muito boas” sobre a questão da alimentação no bairro: havia uma granja na rua atrás do CEDECA que dava diretamente na rua da entrada da favela do Madalena. O dono da granja, amigo dos moradores do bairro, segundo Sueli, doava uma grande quantidade de frangos, que chegavam mortos para os moradores, e bicos e pés para o sopão da região. Ela me disse que o cheiro perto da granja era terrível porque muitos frangos morriam no transporte e os ovos que se quebravam iam apodrecendo e se misturando ao cheiro dos frangos mortos. As pessoas que chegassem primeiro nos dias das doações conseguiam recolher os melhores frangos, aqueles que estavam mortos há menos tempo, “mais fresquinhos”.

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Segundo ela, era possível organizar uma rede entre amigos, instituições, família e supermercados que possibilitasse o recolhimento de alimentos durante a semana toda e a garantia de uma refeição que não estivesse somente baseada na “catação”. Algumas estratégias surpreendiam Sueli e sobre elas conversamos um pouco mais. Depois de um tempo, Sueli começou a dar muita risada e me falou em meio aos risos que precisava me contar um caso que aconteceu com a fundadora do CEDECA, Mônica. Foi ela quem iniciou as atividades do Centro conjuntamente com as comunidades eclesiais de base e tinha, assim, muito contato com a população do bairro.

Em um domingo, foi convidada a almoçar na casa de uma família do bairro no qual ela realizava trabalhos com os jovens e adolescentes. Chegando lá, havia um banquete preparado. O clássico frango com macarrão e farofa do domingo estava maravilhoso. Monica não entendeu muito bem como essa família que não tinha dinheiro para nada havia conseguido comprar um frango tão bonito e carnudo. Para não fazer desfeita perguntando a origem do alimento, ela não disse nenhuma palavra sobre o assunto e passou o almoço com a família aproveitando muito bem a refeição servida. Todos estavam muito felizes com o almoço e por isso Mônica imaginou que haveria algum motivo não mencionado para tanta fartura. O almoço de domingo correu como de costume, durou mais tempo que os outros durante a semana, foi seguido de sobremesa e um cafezinho para animar um pouco o dia “perdido”. Saindo da casa, Mônica não aguentando de curiosidade perguntou para uma das crianças aonde eles tinham conseguido esse frango. Um deles disse simplesmente que havia pego na rua, Monica perguntou então se ele havia sido doado pela granja, mas não acreditava muito nesta possibilidade pois era um frango muito bonito. O garoto disse mais uma vez que “tinha pego numa rua, perto do cemitério, numa macumba muito grande” (Diário de Campo, dia 04/04/2013).

Sueli quase não conseguiu terminar a história, pois estava rindo muito, e somente conseguiu dizer que Mônica era muito religiosa e foi correndo para sua casa, pois já estava passando mal com a comida do almoço. Sueli repetia: “Você acredita? Comeu frango de macumba! Pra encontrar um frango bonito assim...” (Diário de Campo, dia 04/04/2013). Comparando a questão da contaminação no consumo do mamão com fungos e com a reação que Mônica teve em relação ao frango, ou ainda, pensando de que maneira ambos os medos se traduziram em uma concepção de risco, é possível afirmar que, apesar da aparente distância entre as razões pelas quais o frango e o mamão fossem considerados

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não comestíveis por comensais específicos, a noção de sujeira e contaminação é comum aos dois e dela advém o que chamamos de higiene e aquilo que caracterizamos como risco. Estou de acordo, então, com a afirmação de Mary Douglas na qual “nossas ideias de sujeira também expressam sistemas simbólicos e a diferença entre o comportamento da poluição em uma parte do mundo e outra é somente uma questão de detalhe” (1976:47), pois quando pensamos no frango comido por Mônica, vemos sua concepção de poluição e contágio como muito distinta das elaboradas pela ciência, recusamo-nos a confundi-la com nossas ideias habituais, como por exemplo, fazer a pureza provir da higiene (Douglas, 1976). Entretanto, não se pode abstrair tudo o que se diz respeito ao estatuto e papel social dos objetos e pensar pureza e impureza como limpeza e higiene. No mamão, nós tememos a patogenia transmitida através de micro-organismos, ou ainda, sua indefinição enquanto objeto-lixo ou objeto-comida, já em relação ao ‘frango da macumba’, vemos o medo de Mônica como pura fantasia, mas ambos são evitados pelo medo do perigo que podem causar. O processo de comer é potencialmente poluidor, entretanto, onde não há diferenciação, não há contaminação e risco, e é no processo de definição da comestibilidade que essas categorias emergem. Ao nos inspirarmos nas contribuições de Mary Douglas para pensarmos as variáveis que definem a classificação do comestível, a ideia de sujeira e sua relação com higiene se mostram como uma excelente rota. A sujeira concebida enquanto uma ofensa à ordem, não é absoluta, mas “existe aos olhos de quem vê”, e se relaciona de maneira muito profícua com a categoria analítica do podre. “Nas culturas contemporâneas, evitar a sujeira é uma questão de higiene ou estética, mas essa não estaria de maneira nenhuma associada à religião” (Douglas, 1976:50). Para a autora, nossa ideia de sujeira estaria dominada pelo conhecimento de organismos patogênicos, e aqui penso ser possível acrescentar algo, que me parece essencial, às hipóteses de Douglas: o podre enquanto denominador comum não classificável dissolve a distinção entre o que a autora define como nós e eles e permite pensar nas diferenças e semelhanças que acontecem no interior de ‘nossa sociedade’, indo além desta problemática e questionando categorias que são parte da construção da própria disciplina antropológica.

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Quando Douglas afirma que nossa ideia de sujeira é dominada pelo conhecimento de organismos patogênicos e “antes disso a sujeira poderia ser considerada um subproduto de uma ordenação e classificação das coisas que implica em rejeitar elementos inapropriados” (1976:50), como “os híbridos e outras confusões abomináveis” (1976:53), podemos pensar o podre como parte deste processo de classificação em que o não classificável cria um ‘embaraço social’ e, assim, uma exclusão. “A desordem”, segundo Douglas, “é nociva para os modelos existentes, assim como tem também suas potencialidades, simbolizando tanto perigo como poder” (1976: 117). O podre enquanto objeto nebuloso, fruto de uma abstração reflexiva, traz essas potencialidades para pensar as classificações acerca da comida. Ao passo que a desordem é considerada perigosa e posteriormente, após uma transfiguração semântica, um risco, podemos agrupar em uma mesma categoria comparativa o mamão com fungos e o ‘frango da macumba’, porque ambos apresentam confusões classificatórias que são vistas como abomináveis. Ao falarmos do não comestível, falamos também do lixo, do sujo, do destino dos não classificáveis, onde “o longo processo de pulverização, decomposição e putrefação aguarda qualquer coisa física que tiver sido reconhecida como suja” (Douglas, 1976: 194). Nesse sentido, o podre se torna símbolo deste processo classificatório por partirmos da perspectiva de que aonde não existe diferenciação também não há classificação (Douglas, 1976). Contudo, tratamos aqui de uma ‘coisa física’ específica, a comida, e esta “sendo absorvida internamente pelo indivíduo, através do ato de cozinhar é pré-digerida coletivamente” (Douglas, 1976:155), isto é, a comida, apesar de sua incorporação individual, também é significada e digerida em relação ao mundo social. ***** A classificação, enquanto ato cognitivo, é um processo social, e o comestível, definido a partir deste processo, também o é. Pré-digerimos a comida coletivamente, pois a classificamos a partir de uma perspectiva de grupo, de pertencimento e oposição. Entretanto, o ato de classificar é parte de diversas disputas de poder. Nesse sentido, busco compreender no presente texto de que maneira “o perigo é politizado” (Douglas, 1992:X),

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levando em consideração que a partir do momento que classificamos algo como comestível, um outro objeto será classificado como não comestível e será excluído, tendo o seu consumo associado ao perigo e, posteriormente, ao risco. As instituições que regulamentam a produção, distribuição e consumo de alimentos definem cotidianamente aquilo que pode ser considerado comida e aquilo que não é, ou ainda, que deixou de ser. Apesar de não ter realizado uma etnografia das instituições, e muito menos uma etnografia específica da relação entre Estado e poder no que concerne à alimentação, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) se mostrou, ao longo do campo, como uma voz recorrente. A partir da etnografia no programa Mesa Brasil, pude perceber como os profissionais relacionados à saúde e alimentação participam da definição do comestível. São as regras de boas práticas e higiene alimentar que definem qual mamão poderá ser doado, se a banana pode ou não se tornar um alimento e como o iogurte deve ser conservado para garantir sua comestibilidade. Penso, então, ser válido o questionamento de Mary Douglas (1992) no qual a autora busca compreender qual o uso de toda essa discussão sobre perigo em um contexto contemporâneo, e ainda, refletir sobre nosso lugar na criação desta problemática. A linguagem do perigo foi ao longo do processo de desenvolvimento tecnológico se transformando na linguagem do risco, pois como já foi mencionado anteriormente, este seria visto como longe da poluição por interesses e ideologias. A comestibilidade como classificação pode ser vislumbrada neste processo cognitivo, no qual foi a linguagem do perigo que permitiu uma equivalência na compreensão das lógicas e métodos de pensar dos diversos grupos humanos. Afirmo, assim, que é exatamente essa percepção do perigo transformada em uma linguagem de risco que influi diretamente na comestibilidade de um objeto previamente descartado. É a quantidade de risco que uma pessoa aceita correr ao ingerir um potencial perigo que define se esse objeto será considerado comida ou não. No entanto, partindo de um panorama histórico destes estudos, no final dos anos setenta, nas sociedades ocidentais modernas, ocorreu uma politização aberta dos riscos e uma percepção pública do perigo no qual permitiu o surgimento de uma profissão

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especializada neste processo: o analista de risco. Este profissional tinha como objetivo chegar à essência real da percepção do risco antes que ela fosse poluída por interesses e ideologias, pois para eles, “apesar das pessoas como um todo serem avessas ao risco, todos se arriscam muito, ou seja, são de forma geral, muito tolos” (Douglas,1992:13). Esse profissional, ou ainda, esse tipo de informação veiculada a partir desta nova categoria de entendimento, passou a ser base para a definição de políticas públicas, ao ser o risco uma ideia proeminentemente levantada no debate, além de ser usada como moeda de trocas nas próprias políticas públicas. Ocorreu, segundo Castel (citado por Rabinow, 1999: 27), uma mutação das tecnologias sociais que minimizam a intervenção terapêutica direta, ao “enfatizar um gerenciamento administrativo preventivo de populações de risco” (1999: 28). A prevenção moderna, segundo o autor, é antes de tudo o mapeamento de riscos. Ela se define, no entanto, como “a vigilância não do indivíduo, mas de prováveis ocorrências de doenças, anomalias, comportamentos desviantes a ser minimizados e comportamentos saudáveis a serem maximizados”, ela busca “projetar fatores de risco que desconstroem e reconstroem o sujeito individual ou grupal” (Idem, ibidem).

É neste

contexto que instituições como a ANVISA e outros programas que partem da mesma prerrogativa atuam na sociedade. É também a partir desta perspectiva que o conceito de Segurança Alimentar vem se desenvolvendo no decorrer da história. ***** Os alimentos que foram descartados no final da feira ou aqueles mamões que não foram aceitos pela rede de supermercados de luxo foram considerados não comestíveis para certas pessoas que não aceitam correr nenhum tipo de risco ou que não precisam se questionar sobre o risco dos alimentos que consomem, pois já existe alguém ou alguma instituição que se preocupa por eles; tais objetos são descartados diretamente por sua aparência ou por sua perda de valor comercial20, associado perda de sua propriedade de comestibilidade. Contudo, o processo de tornar alimentos que deixaram de ser comestíveis em comida, como é o caso do aproveitamento de alimentos realizado pelo Mesa Brasil 21, 20

Essa definição inclui diversas variáveis já trabalhadas anteriormente, mas que são mistificadas em algumas categorias que atuam através da voz da ciência e desta como voz do Estado. 21 É importante ressaltar que para o Mesa Brasil os objetos-alimento recebidos, selecionados e redistribuídos nunca deixaram de ser considerados comida.

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traz uma ideia de risco imanente no processo de transformação, e esse perigo é problematizado através de um conceito específico: o conceito de Segurança Alimentar. De acordo com Maluf e Menezes (2002), o conceito de “Segurança Alimentar” surgiu no período pós-Segunda Guerra Mundial e se referia à capacidade de soberania alimentar dos países. Foi somente em 1974, na 1ª Conferência Mundial sobre alimentos organizada pela FAO (Organização da ONU ligada a Alimentação e Agricultura) que o conceito passou a abranger a ideia de preocupação com a garantia a uma determinada população de uma alimentação que seja adequada à sobrevivência, tendo regularidade na quantidade e qualidade dos alimentos. Segundo os autores, “é neste contexto que começa a se perceber que, mais do que a oferta, a capacidade de acesso aos alimentos por parte dos povos em todo o planeta mostra-se como a questão crucial para a Segurança Alimentar” (2000:2). Atualmente, com uma mudança paradigmática na capacidade de suporte dos países e com uma produção mundial de alimentos que produz mais do que consumimos22, o conceito de “Segurança Alimentar” tem se referido cada vez mais à noção de higiene alimentar. E é a partir desta noção que os objetos deixam de ser comida e voltam a sê-lo em um contexto específico. Acredito, entretanto, que a transformação de um objeto que deixou de ser comida para retornar ao seu estado de alimento se mostra como um processo extremamente significante para a compreensão da classificação do comestível através da categoria do podre, e mais ainda através de articulação das variáveis discutidas neste capítulo. As variáveis que atuam na definição a priori de um objeto na categoria de comida e no controle das características deste objeto para que ele se mantenha no estado de comida não se evidenciam de forma tão clara como as do contexto no qual o objeto deste estudo se define, um contexto de precariedade, e uma situação marcada de classe.

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É notório o fato de que apesar da capacidade de produção de alimentos ter crescido exponencialmente nas últimas décadas, vivemos uma era de extremos, com ‘epidemias’ de obesidades ao mesmo tempo em que milhares de pessoas ainda morrem de fome. Entretanto, sendo o conceito de Segurança Alimentar um conceito político em disputas, é importante ressaltar a mudança em sua concepção para assim refletirmos sobre as razões desta transformação e o que está envolvido nesta definição.

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O Mesa Brasil é, então, um local que nos proporciona uma análise da prática dos profissionais que atuam na sociedade através do conceito de Segurança Alimentar articulando-a com a ideia de risco. Como já discuti anteriormente, os profissionais que trabalham no projeto são, em sua maioria, da área das ciências médicas e biológicas, e assim detém o saber sobre a alimentação em um sentido único, que para eles está diretamente relacionado à vida das pessoas que se alimentam dos produtos doados e à garantia de bem estar associado à saúde23. Muitos dos mamões que não foram aceitos pelos responsáveis pela colheita do Mesa Brasil tinham uma aparência que, a partir de padrões estéticos do que se espera como a ‘forma do mamão’24, poderiam ser considerados perfeitos e, posteriormente, foram selecionados por outras pessoas que os tiravam da caçamba de lixo e davam prioridade exatamente para esses mamões, que estavam maduros e sem amassados ou arranhados, mas com um pequeno fungo em uma das extremidades. Esse pequeno fato nos ajuda a pensar sobre a autonomia das escolhas alimentares em um contexto de especialização e profissionalização das atividades básicas à sobrevivência ou à vida, e assim pensar como a categoria de risco é avaliada e produz efeitos diretos naquilo que é chamado de “dilema do omnívoro”, ou em como nos alimentamos e escolhemos nos alimentar. Segundo Fischler, La inquietud contemporánea es doble: primero está la de los excesos y de los venenos de la modernidad; y ante este peligro, la de la elección y sus criterios (Fischler, 1995:13). La gran angustia del comensal moderno, como tal vez la del «primate ancestral», resulta, en definitiva, de una incertidumbre ligada a la elección de los alimentos. Y esta angustia, como veremos, es consustancial a la condición de omnívoro, un estado propio de nuestro ser biológico, de nuestro metabolismo, pero sin duda también de nuestra mente” (Fischler, 1995:14).

Todavia, mesmo incorporando essa concepção do “dilema do omnívoro” proposta por Fischler (1995), vejo como essencial acrescentar alguns aspectos a essa 23

O SESC se baseia nos parâmetros da ONU para definir saúde em termos do equilíbrio orgânico e mental, bem como a ausência de doenças, sendo todos esses preceitos incluídos no contexto social no qual estão inseridos. 24 “A falta de forma é por isso um símbolo adequado do começo, do crescimento, assim como da decadência” (Douglas, 1976:195).

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discussão: quando falamos deste dilema presente na modernidade, nos parece clara a ideia de que apesar de podermos classificar como comestíveis diversos objetos, nós não sentimos segurança nesta escolha alimentar, pensando sempre que não sabemos comer. Ao tratarmos de pessoas vistas pelo Estado e/ou instituições de assistência como pessoas em situação de vulnerabilidade25, podemos pensar que essas pessoas são concebidas como tendo uma autonomia menor ainda em suas escolhas. Se aqueles que apresentam uma situação socioeconômica mais privilegiada, ou ainda, que possuam informação e formação para distinguir aquilo que seria bom para sua saúde e aquilo que não o é também não sabem bem o que comer, os ‘pobres’ ou ‘vulneráveis’ sabem menos ainda. Acredito que como as pessoas em situação de vulnerabilidade estariam esticando a noção do comestível, e aqueles citados por Fischler (1995) como em dúvida em relação a algo que já é comestível trabalhariam dentro de um comestível pré-definido, a tutelagem em relação ao primeiro é maior do que em relação ao segundo, mesmo ambos vivendo uma grande angústia relacionada às incertezas das escolhas alimentares e uma relação direta com o perigo e com o risco. Como o risco daqueles que comem as sobras estaria diretamente arrolado à aceitação deste risco, me parece que as instituições de assistência tomam para elas a responsabilidade pelo risco que seus atendidos correm, agindo através de uma relação de tutelagem. Segundo Fischler (1976), contribuindo com as análises de Turner (1982) sobre antropologia da saúde, desde os finais do século XIX, o ocidente bem alimentado criou uma disciplina médica especializada, a nutrição, que cada dia mais impõe a exigência de situar os perigos, recomendar as melhores opções e dizer o que é comida boa e o que é comida ruim. Indo mais além desta afirmação, eu diria que a nutrição e sua legitimidade não é apenas uma criação do ‘ocidente bem alimentado’, mas que essa especialização e profissionalização das análises do perigo e risco afetam toda a sociedade moderna, e talvez controlem até mais aqueles que comem comida “podre”.

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As categorias utilizadas para pensar processos sociais e de classe como a de inclusão e exclusão foram substituídas pela ideia de vulnerabilidade, e é neste sentido que trabalho no presente texto.

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Se, desde a Segunda Guerra Mundial, ocorreu uma elaboração de padrões alimentares, de standards dietéticos e de recomendações nutricionais que adquiriram relevância central no desenho das políticas públicas e posteriormente nas sociedades industriais, havendo assim uma aumento da importância da saúde pública, do consumo e da segurança alimentar, aquelas pessoas que comem comida que já não era mais considerada como tal se enquadram mais ainda na definição destas categorias. A modernidade alimentar caracterizada, segundo Gracia (2005), pela tomada de decisões individuais, compulsivas e anômicas que promovem em qualquer caso uma demanda maior de conselhos nutricionais em matéria de alimentação é, no caso das sobras, ainda mais influente, ao colocar sob responsabilidade dos profissionais da área a decisão da definição de comestibilidade, partindo da premissa de que “los pobres no comen lo que quierem, ni lo que saben que deben comer, sino lo que pueden” (García, 2009:9) No Mesa Brasil, essa definição da comestibilidade acontece nas práticas cotidianas. Longe de ser a voz do Estado, ou ainda da ANVISA e da medicalização e profissionalização do campo da alimentação, sua voz era a dos profissionais que, através de uma concepção de risco e de valor, iam definindo o que era comida, o que voltou a ser, o que já deixou e aquilo que nunca foi. Durante meu campo, pude participar de algumas atividades educativas que o programa oferece aos responsáveis pela alimentação das entidades atendidas. Assim, fui a um workshop para cozinheiros que tinha o objetivo de ensiná-los a aproveitar de forma integral alguns alimentos que seriam recebidos do Mesa Brasil em grande quantidade. No espaço reservado para o curso, logo ao chegar, fiquei conversando com a nutricionista responsável pelas atividades educativas, com as estagiárias de nutrição e com a culinarista que havia desenvolvido receitas para esse evento. Aos poucos, os cozinheiros foram chegando e tocas, aventais e luvas foram distribuídos a todos. Eu, mesmo sem ter nenhum contato direto com os alimentos, tive que colocá-los e fiquei na plateia junto com eles para a introdução da nutricionista responsável. Ela explicou que eles estavam todos reunidos naquele espaço para uma formação acerca do aproveitamento total dos alimentos que seriam recebidos pelas entidades as quais eles representavam. Esse tipo de formação já era comum e todos se lembravam da ultima formação que tinha sido feita por causa do recebimento de algumas toneladas de casca de banana. Desta vez não seria a

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casca de banana o principal ingrediente, mas sim a cabeça do salmão. Quando o alimento foi nomeado grande parte dos cozinheiros já começou a cochichar e dizer que as crianças e adolescentes muito provavelmente não iriam gostar de comer peixe, ainda mais cabeça de peixe em suas refeições. Nesse momento a culinarista foi chamada e ela explicou que assim como a casca de banana, que parecia um alimento não usual, a cabeça do salmão poderia ser utilizada para diversas receitas. Ela disse a todos os participantes que o microbiologista havia sido consultado para garantir as boas práticas no preparo desse alimento e que deveriam iniciar os cuidados que eles já haviam aprendido em outros cursos. Nesse momento todos os cozinheiros se dirigiram para as pias da cozinha e dos banheiros para lavar muito bem as mãos, retirar anéis, pulseiras, colocar o avental, a touca e as luvas. Depois de todos estarem devidamente preparados para o trabalho na cozinha as receitas a serem realizadas foram apresentadas. A tão conhecida casca de banana voltava ao cardápio e ainda seriam preparados vários pratos com a carne da cabeça do salmão. Todo o cardápio com as receitas estavam impressos em um pequeno livreto e os participantes foram se dividindo em grupo para cumprir cada uma das tarefas já estipuladas pelas nutricionistas (Diário de Campo, dia 12/06/2013).

Alguns conselhos foram passados aos cozinheiros: “não é recomendável fazer receitas com o peixe cru porque a conservação pode ser comprometida, trazendo riscos aos consumidores”; “se a casca da banana tiver feia, joga fora. Não precisa higienizar a casca porque ela vai ser fervida”. E durante o preparo as nutricionistas seguem alertando sobre as “boas práticas” na cozinha, nas qual todos os alimentos e temperos devem ser lavados antes do preparo, para experimentar uma comida deve-se ter uma colher separada para o ato ou deve-se usar um pote extra, não se pode usar sapato aberto, brincos e anéis devem ser retirados, a faca deve se manter sempre pra baixo, e as mãos devem ser lavadas quando se chega da rua, quando se troca de função e quando mudamos de alimento a ser preparado (Diário de campo, dia 12/06/2013).

Nesse período de tempo tão pequeno foi possível perceber que a ideia de perigo, intrínseca ao alimento e mais intensa naquele que por um momento deixou de ser considerado como tal, é vista a partir da perspectiva do risco, e principalmente do risco à vida daqueles que estão em uma situação de vulnerabilidade se tornando, então, uma linguagem especializada e legitimada por aqueles que detêm o conhecimento deste campo (Bourdieu, 1996). Todos os alimentos, neste caso, são concebidos como um perigo em potencial, principalmente pelo fato de que o objeto-comida é incorporado, e assim, todo o processo de transformação das sobras em alimento novamente é dotado de uma potencialidade que pode ser tanto destruidora quanto criadora.

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Em um contexto em que o modelo biomédico assinala a evolução da enfermidade e não a história do padecimento, a nutrição reproduz este modelo, nos permitindo realizar um paralelo da própria concepção de risco e doença com a vida, dos objetos e de seus comensais, no qual ambas as concepções estão pautadas em um modelo biológico purista que não compreende a vida como um processo de maturação, decadência e padecimento.

Comida: um demarcador social Diga-se Diamond, naqueles dias em que deu aulas com as janelas totalmente fechadas, uma ou outra vez se pôs a pensar se aquilo não seria uma tentativa de regresso à civilização por parte dos próprios materiais, dos restos que existiam nos lixos. Porque o que estava naqueles sacos era o que muitos haviam expulsado do mundo humano; era o considerado já inútil e, por isso, com uma natureza não humana o lixo era para pôr para fora, para pôr longe, para afastar da cidade. (Tavares, 2013:31).

Apesar do campo da alimentação, como venho apontando neste texto, ser necessariamente interdisciplinar, ou ainda, indisciplinar, ao longo do desenvolvimento das ciências enfocadas na temática da alimentação e na prevenção de riscos houve uma restrição da legitimidade dos saberes deste campo a uma área específica das ciências médicas e biológicas (Turner, 1982; Gracia, 2005; Freitas, 2003). Todavia, quando pensamos a alimentação a partir de esfera do social, nos remetemos muito prontamente à capacidade da comida de ser um demarcador social, de definir identidades e pertencimento, e até mesmo exclusão. É objetivo deste último tópico pensar a comida enquanto demarcador social, indo mais além de sua definição como pertencente ‘somente’ ao campo da cultura, da identidade ou da classe, mas se aproximando do processo biológico e social de incorporação e do próprio processo de definição da comestibilidade em relação à natureza e cultura. Sendo assim, as variáveis discutidas anteriormente são essenciais para compreensão da argumentação que será proposta. Mary Douglas afirma, em uma miríade de estudos, que a comida tem uma capacidade especial para marcar relações sociais. Indo ao encontro desta afirmação, Audrey

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Richards relata que, “since food is often given, shared and handled in a primitive society according to fixed rules of relationship, the objects of savage diet are never considered simply and solely food itself” (Richards, 1932:174). Transportando então estas análises para uma construção de uma reflexibilidade sobre o campo, penso que a comida nunca é simplesmente comida, tendo em vista que nem mesmo sua própria definição enquanto tal é pura e simples. A comida que por um tempo deixou de ser definida assim, ou que nunca o foi e para algumas pessoas passou a ser, além do perigo imanente de sua incorporação, traz em si o perigo de contaminação; não somente a contaminação que está imbuída na incorporação de um objeto que era lixo, mas simplesmente a contaminação que advém da relação dos seres humanos com as sobras, com a sujeira e com o perigo. Ao realizar a colheita do mamão, já descrita anteriormente, uma cena que pode ser definida como um fato social total (Mauss, 2003) foi sendo desenhada em frente aos meus olhos e assim fui construindo simultaneamente a hipótese desta dissertação. O dono do armazém do CEAGESP que foi responsável pela doação dos mamões ao Mesa Brasil, vendo a demora no processo de seleção, teve uma ideia para facilitar a organização. Como já descrito, o processo consistia em retirarmos uma caixa da pilha de mamões devolvidos, colocá-la perto de uma caixa branca do Mesa Brasil e selecionar os mamões. Os que deveriam ser doados iam sendo organizados na caixa branca, os que deveriam ser descartados iam para caixas pretas que depois eram utilizadas para jogar esses mamões em uma caçamba a uns três metros do caminhão. A ideia do dono do armazém era dar ré no caminhão até que ele se aproximasse o máximo possível da caçamba e assim jogaríamos os mamões diretamente no lixo. O motorista do caminhão deu ré. Agora podíamos ir à beira da carroceria do caminhão e descartarmos os mamões diretamente na caçamba. Começamos esse nova metodologia e não sei exatamente porque, talvez pelo horário, várias pessoas começaram a se aproximar da caçamba. Conforme íamos jogando os mamões que foram primeiramente rejeitados pelo supermercado e depois rejeitados pela seleção do Mesa Brasil, os homens que haviam se aproximado da caçamba iam selecionando os mamões do lixo (Diário de campo, dia 17/07/2012).

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Na caçamba havia de tudo. Alguns mamões se desmanchavam com a queda no lixo, outros continuavam quase intactos amortecidos por legumes e vegetais que já estavam se decompondo e formavam uma cobertura fofa. Havia pedaços de caixas de matéria, papel e outros dejetos de tipos variados. Aqueles que realizavam a catação conseguiram umas caixas com os funcionários do armazém, alguns conseguiram até martelos e uns pregos para consertar as caixas. Eles aparentavam ser empregados no CEAGESP. Um deles usava uniforme de carregador. O mesmo tipo de seleção que ocorria na boleia do caminhão estava ocorrendo no chão, na caçamba de lixo. Os homens reviravam com cuidado o que havia sido descartado, buscando selecionar o mamão com a melhor aparência. Diferente do que pensavam os funcionários do Mesa Brasil, aqueles mamões que estavam firmes, com a casca lisa, mas que continham um pequeno fungo, eram os mais requisitados. Essa dupla seleção ocorreu por bastante tempo. Selecionávamos os mamões que apresentavam “a menor possibilidade de risco” para aqueles que iam consumi-los e jogávamos o resto no lixo. Ali embaixo outras pessoas selecionavam os mamões que pareciam mais bonitos, ou até mais frescos, os organizavam em caixas e iam embora levando no mínimo uma caixa cheia de mamão para casa. Quando terminamos a seleção, ainda tivemos que esperar os outros caminhões chegarem para a realização do transbordo, isto é, a divisão de toda a colheita para que as entidades pudessem receber um pouco de tudo. Fomos para outra área do CEAGESP que ficava muito perto do local aonde as caçambas eram depositadas para que seu conteúdo fosse posteriormente recolhido. Ali, muitas pessoas que estavam por perto começaram a catar as sobras das sobras das sobras, e “o mesmo” mamão que havia sido rejeito pelo supermercado, pelo Mesa Brasil, pelos catadores de dentro do CEAGESP era agora escolhido por um grupo de pessoas, provavelmente moradores de rua. ***** Ao pensarmos na cena descrita acima podemos perceber a articulação das diversas variáveis que atuam na definição do comestível, mas além desta percepção, é possível compreender como a comestibilidade dos alimentos vai também definindo a humanidade de seus comensais. A cada descarte por qual um objeto passa, o perigo em sua

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ingestão ou na relação com esse alimento, que no caso é o mamão, vai aumentando (pois, ele vai perdendo sua propriedade de comestibilidade), assim como o risco em consumi-lo, e tal escolha implica, dessa maneira, em uma demarcação da vida de quem o consome. Entretanto, esse estatuto de pessoa definido em relação aos objetos e o perigo contido nestes também se apresenta, muitas vezes, preso à dualidade entre natureza e cultura, o cru e o cozido. Portanto, mesmo realizando um questionamento de natureza teórico sobre O triangulo culinário de Lévi-Strauss (1997), no qual o podre é relegado a um papel de menor importância, é notório na construção desta etnografia como os campos do cru e do cozido operam de forma a demarcar a vida humana. Vemos que na comida de forma geral, não somente aquela advinda das sobras, a natureza ou o lado biológico da vida social traz em si a impureza ou o podre não controlado. Por outro lado, a transformação cultural de um objeto, mesmo esse advindo das sobras, ainda guarda em si um pouco de ‘humanidade’, ou aquilo que é visto como o que nos diferencia dos outros animais. Ana, mesmo comendo um frango que estava no lixo, que não era mais comida, transformou esse objeto em alimento, seguindo ainda as normas de uma cozinha26 específica, e levando-o da natureza para a cultura, ou seja, realizando a transformação cultural deste objeto, sua transformação em comida. No entanto, as pessoas descritas no início desta dissertação, que catavam as laranjas nas poças d’água da Rua do Mercado Municipal de São Paulo, estariam aí se igualando aos animais, comendo somente por necessidade, vendo como comida um objeto ainda menos ‘culturalizado’. Essa separação pura e simples entre a necessidade advinda da esfera biológica e as escolhas advindas da esfera cultural não existe. O próprio ato de selecionar a comida, mesmo sendo esta parte do lixo, traz em si a humanidade, faz parte do movimento de ‘estar no mundo’ que vai além desta concepção dualista entre natureza e cultura, ou seja, “todas Utilizo o conceito de cozinha assim como Fischler postula em sua obra: “Se define habitualmente la cocina como un conjunto de ingredientes y de técnicas utilizadas en la preparación de la comida. Pero se puede entender «cocina» en un sentido diferente, más amplio y más específico a la vez: representaciones, creencias y prácticas que están asociadas a ella y que comparten los individuos que forman parte de una cultura o de un grupo en el interior de esta cultura. Cada cultura posee una cocina específica que implica clasificaciones, taxonomías particulares y un conjunto complejo de reglas que atienden no sólo a la preparación y combinación de alimentos, sino también a su cosecha y a su consumo” (Fischler, 1995:34). 26

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as nossas impressões são esquematicamente determinadas desde o início. Tudo que tomamos conhecimento é pré-selecionado e organizado no próprio ato da percepção” (Douglas, 1976:53). Entretanto, mesmo buscando ir além desta dualidade no campo analítico, é possível perceber, como afirma Dumont em Homo Hierarchicus, que “a impureza marca a irrupção do biológico na vida social” (1997:111) e com isso traz o medo do perigo contido nos objetos. Nesse sentido, segundo Fischler, podemos dizer que “o objeto comida, marcado e passando da natureza para a cultura será considerado menos perigoso”. (1995:76). Ao compararmos, no entanto, as ideias de sujeira, pureza e perigo expressas em nossa sociedade com as mesmas expressas na sociedade indiana, podemos chegar à conclusão de que com frequência se procuram justificativas higiênicas para as ideias sobre impureza sobre impureza, a fonte imediata da noção se encontra na impureza temporária que o hindu de boa casta contrai em relação com a vida orgânica – é a especialização nas tarefas impuras de fato ou de direito – que leva à atribuição a determinadas categorias de pessoas de uma impureza rígida ou permanente (Dumont, 1997:98).

Mesmo sendo o fungo do mamão visto como um risco em potencial, é na verdade a relação com a vida orgânica que traz a definição de sua comestibilidade. Assim, se começarmos a pensar na categoria de ‘vida’ a partir de uma perspectiva que vai além desta dualidade, tendo o podre como um espectro ou ainda um ponto virtual localizado na liminaridade de categorias, é possível elucidar e trazer para o debate algumas categorias concebidas como dadas. ***** Jacob Doherty, autor da dissertação intitulada Infrastructures of Disposability: Waste, Belonging, and the Politics of a Clean Kampala (2014), traz uma importante contribuição sobre a questão das sobras e da relação entre os detritos e as pessoas, ao afirmar que “garbage occupies a contentious position in contemporary Kampala in part because of the ways in which it is enrolled in projects to mark, maintain and produce changing patterns of economic differentiation”, buscando assim compreender “the

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processes by which people, places and things are rendered disposable within contestations over urban transformation.” (Doherty, 2014). Indo mais além na hipótese de Doherty, acredito que não somente o lixo em si traz um padrão de diferenciação econômica, mas concordo com Dumont, para quem a questão central relacionada à impureza está na ideia de uma queda: “uma queda do estatuto social ou risco de uma queda corresponde ao aspecto orgânico do homem, fundamento elementar e universal da impureza está nos aspectos orgânicos da vida humana, de onde deriva diretamente a impureza de certos especialistas” (1997:98). Ao tratarmos de uma sociedade de classe e não de castas, podemos afirmar que a queda não é necessariamente de certos especialistas ou do estatuto social em si, mas da própria categoria de pessoa (Mauss, 2003). O objeto alimento é incorporado então, não somente a partir de sua ingestão, mas pelo contato que se tem com ele. E aqui é possível constatar que este processo ocorre de modo inverso ao processo descrito por Dumont em sua análise da sociedade hindu, no qual “objetos não são poluídos pelo simples contato e sim pelo uso que se faz dele, por uma espécie de participação no uso do objeto na pessoa” (Dumont, 1997:100). São as pessoas que se tornam associadas àqueles objetos com os quais elas tem relação, o mamão do lixo, o frango estragado, a laranja da rua, as sobras das feiras. É a relação com as sobras, ou a associação com o risco que se estabelece nesta relação, que define as pessoas. Dumont ainda coloca que, abordando a especificidade de uma área da Índia denominada de Panjab, “em matéria de alimento, só não pode ser comida aquilo que foi tocado pelos lixeiros” (1997:108), pois afinal de contas, “não é só de impureza que se trata aqui, trata-se antes de um meio de provocar queda de estatuto” (1997:109). No caso de uma sociedade de classes, com suas diferenças em comparação com a sociedade de castas, os objetos são previamente definidos em relação à sua pureza e impureza, de acordo com sua história de vida, sem uma necessária relação com o estatuto da pessoa a qual este pertencia. Aqui, o objeto em si é visto como algo que está na vida e por esta relação é possível dizer que é essa vida dos objetos que apresenta risco à vida ou ao estatuto de pessoa dos seres humanos, pois afinal de contas, “o que se come é uma relação” (Viveiros De Castro, 1996).

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É muito comum pensar a comida enquanto um demarcador social tendo em vista o status e a identidade que vem imbuída no ato de comer certos alimentos e não comer outros tantos. Como aponta Richards, “sucess in the food quest is directly correlated with the social status and fame. In the absence of other valuables, possession or control of fodd may be the only possible means of diferentiating one member of the primitive community from another” (1932:89). Todavia, a comida se mostra neste estudo como não somente um demarcador de identidade, pertencimento e status e diferenciação (Bourdieu, 1996), mas sim como uma real definição das pessoas em relação àquilo que elas comem em uma junção de todos os aspectos da vida desta pessoa. Falamos desta forma do perigo em relação à sujeira, à comida vinda do lixo, tratando, porém, de um objeto específico que está em nossa concepção biológica da vida, diretamente ligado à nossa saúde, à qualidade de nossa vida. E, nesse sentido, não se pode deixar de pensar que a separação entre natureza e cultura, biologia e sociedade ainda opera em nossa maneira de pensar e principalmente de classificar. O alimento na sociedade de castas indiana participa, uma vez cozido, da família que o preparou, ele é apropriado como um objeto de uso (vaso ou roupa) ou até mais intimamente. Mesmo sem ter ainda penetrado o corpo, pois a ingestão é só uma parte do processo, o perigo do alimento se encontra no fato deste ter passado do mundo natural para o humano. Nas histórias da Ana ou daquelas pessoas que cataram o mamão da caçamba de lixo, exatamente por ele ser ainda considerado do mundo natural que ele participa da definição daquele que o classifica como comida. Em relação à sua ingestão, podemos pensar que o movimento é o contrário, pois a hierarquia nesse sentido se dá entre o mundo animal e o cultural (nós e eles) para além das hierarquias de classe. Quando o objeto é visto como integrante do mundo natural, e sem nenhum controle deste por parte do mundo social, e alguém se relaciona com ele, o consome sem transformações culturais, é que está presente o maior perigo – a impureza estaria no mundo natural – esse visto como animalizado e bárbaro. Portanto, “en definitiva, lo que esta em juego cada vez que se há tomado y cumplido la decision de incoporación es la vida y la salud del sujeto que come, además de

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su equilíbrio simbólico” (Fischler, 1995:67). Sendo assim, a classificação dos homens se remete à classificação dos objetos, não sendo um dado primeiro advindo de uma classificação universal do puro e do impuro e se mostrando exatamente o inverso do que Dumont conclui em sua obra, no qual aponta que “essa classificação dos alimentos remete no essencial à classificação dos homens e as relações entre grupos humanos” (1997:196). Pois são as diferentes fases da vida de um objeto que apresentam diferentes níveis de risco para a vida daqueles que o consomem, e por isso é tão importante pensar sobre o tempo e o valor da vida dos objetos e das pessoas, articulando-os com a ideia de perigo e risco. É essa associação que define a comestibilidade das sobras de alimento, e é somente através do questionamento da concepção que temos de vida que poderemos compreender a intrínseca relação entre a comida e seu comensal em todas as esferas. O mamão descartado pela rede de supermercados de luxo e posteriormente rejeitado pelo Mesa Brasil foi considerado comida por um ser humano que, no cálculo de valor de sua vida, “aceita” correr o risco de consumi-lo. O podre é, então, o denominador comum que permite compreender essa equação perversa e que perpassa todas essas categorias. É a definição do comestível neste processo de valoração da vida que demarca ‘gente’, que diz quem tem ou não o estatuto de pessoa.

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Capítulo 3 - Sobre a Vida Podre A comida, para ser vista como tal, isto é, dotada de outras propriedades que não somente as biológicas que nutrem o corpo, mas também daquelas simbólicas que nutrem a alma ou o espírito em seu sentido mais amplo, precisa ser comida de determinada maneira, ou ainda, precisa simplesmente ‘ser’ de uma maneira específica. A propriedade de comestibilidade de um objeto27 faz com que esse seja um objeto diferente em cada um de seus momentos da vida, podendo chamá-lo talvez de um “objeto vir a ser comida”, ou um objeto que já não o é. No entanto, trabalho somente com objeto-comida neste estudo, e é em relação a ele, à sua vida, que penso a vida das pessoas. Para que as pessoas que comem este objeto sejam então consideradas ‘pessoas’ é também necessário que elas incorporem a comida de maneira específica. Não somente o objeto em si, mas a maneira pela qual ele é incorporado, como e com quem define o comensal humano. Partindo da premissa de que a comida simbolicamente define aquele que a consome, o programa Mesa Brasil teve seu nome escolhido em relação à noção de dignidade e acesso, ambos associados ao ato de comer à mesa. Para além de uma ideia de cidadania e civilidade, os criadores do programa conceberam que comer à mesa significa ser pessoa e permitir tal possibilidade seria um dos gestos mais humanos de solidariedade. A comida em si, isto é, o objeto comida seria visto como um objeto com propriedades já definidas e dadas, e seu aspecto simbólico seria associado à maneira que se come, e com quem se come, ou seja, às relações sociais, e não com as propriedades do objeto em si. A comida, ou melhor dizendo, o alimento28, é visto pelo Mesa Brasil, através de seus funcionários especializados na área da nutrição, como um objeto com propriedades 27

Nas bibliografias sobre ‘objetos existe uma diferenciação dos termos empregados para tratar das ‘coisas’, podendo ser designadas como ‘coisa’, ‘objeto’, trecos’ ou ainda ‘artefatos’, no entanto, neste texto não realizo tal distinção e não utilizo estes termos enquanto conceitos, pois é o objeto comida que é definido como conceito em si. 28 Faço essa diferenciação entre comida e alimento baseada na própria diferenciação posta nos estudos sobre alimentação. "o alimento é algo neutro, a comida é um alimento que se torna familiar e, por isso mesmo é definidor de caráter, de identidade social, de coletividade" (Roberto da Matta, 1987).

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naturais dadas, que pode ser simbolizado, e de fato o é, mas através de relações específicas; e que pode também ser conectado à categoria de humanidade das pessoas, mas somente em relação à maneira como comemos, isto é, em relação à parte concebida como estritamente cultural ou social, daquilo que chamamos alimentação, e que é definida como a própria relação social. Dito de outro modo, alimentar-se é uma relação social. A comestibilidade enquanto objeto, enquanto ‘coisa’, e não como objeto de estudo, precisa ser problematizada a partir de uma perspectiva que vá além das dualidades presentes em nossa forma de pensar o mundo em que vivemos. A separação entre sujeito e objeto, biológico e social, realidade e representação (simbólico), pensamento e matéria, entre outras dualidades, não dão conta da experiência de estar no mundo. Pensando no desenvolvimento das ciências sociais em relação a seu objeto de estudo, o movimento de dedicação à análise e compreensão de todos os fenômenos que representam o que hoje chamamos de sociedade, relações sociais ou simplesmente sujeito foi notório. Em relação aos objetos, desde Durkheim e Mauss (1981) o estudo das pessoas associado às coisas deveria ser sempre, afinal, reconduzido às relações sociais. W.H.R. Rivers já apontava em 1914 que “the whole movement of interest on anthropology is away from the physical and material towards the psychological and social” (Rivers citado por Henare et al, 2007:1). Neste processo, a sociedade se tornou o objeto por si só das ciências humanas, e as relações dadas, o foco dos estudos. A aura do divino, antes atribuída às coisas físicas, passou, nos estudos das sociedades, a ser designada às relações sociais. Prestar atenção demais às coisas seria visto, segundo Miller, como uma diminuição da capacidade de apreciar as pessoas (Miller, 2013). Entretanto, será que manter a aura do divino e atribuí-lo à sociedade não terá sido mais um problema que um recurso? (Latour, 2002). A comestibilidade ou o estatuto de comida das “coisas” vai de encontro com essa visão, pois são essas ‘coisas’ que, em sua materialidade, ao mesmo tempo em que têm sua classificação, também definem o valor da vida das pessoas, opondo-se ainda à concepção simplista de que os objetos apenas nos dão significados ou nos representam, que são somente signos ou símbolos que simulam pessoas.

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No capítulo anterior, tentei tornar evidente a concepção das ‘coisas’ enquanto conceitos heurísticos que produzem sujeitos, relações, espacialidades, vozes, ou ainda, que são todas essas categorias em si mesmas, e foi através das concepções de Lévi-Strauss (1997) e Mary Douglas (1976) que fui delineando a relação entre as ‘coisas’ e as pessoas. Ocorre, entretanto, que o mamão que o funcionário do CEAGESP retirou do lixo e levou para sua casa enquanto comida não é, através de seu componente biológico, apenas um código que transmite mensagem sobre as relações sociais compreendidas em certos padrões, isto é, mensagens sobre diferentes graus de hierarquia, inclusão e exclusão, fronteiras e transações através de fronteiras. Os próprios conceitos das variáveis de risco e valor, criados através deste objeto que tem a comestibilidade como uma temporalidade central em sua definição, ao mesmo tempo em que são feitos dele, fazem-nos partir da premissa de que devemos pensar em um conceito de materialidade, ou em uma concepção sobre as “coisas”, o qual “needfully adresses the ‘social life’ of stones in relation to the social life of persons” (Ingold,2011:83). É no sentido de pensar a vida social das coisas em relação à vida social das pessoas que busquei contar a vida destes objetos, pois eles próprios me mostraram que “the properties of materials, in short, are not atributes, but stories” (Ingold, 2011:51). No entanto, para que estes pudessem iluminar essa perspectiva necessária para sua concepção, é mandatória uma compreensão sobre a produção intelectual acerca da noção de ‘objeto’ ou ‘coisa’.

A comestibilidade enquanto objeto O adágio “a forma segue a função”, longe de ser apenas uma manifestação das concepções expressas pelo senso comum, mostra-se presente em uma considerável gama de estudos sobre a vida em sociedade, trazendo a importância da utilidade dos objetos como um dos aspectos da adaptação da humanidade ao seu ambiente. Entretanto, concordando com a hipótese de Miller (2013), se nossos costumes sociais e culturais fossem ligados à função, a humanidade seria completamente homogênea, e sua variação seria correlata às diferenças nos ambientes. Trazendo essa generalização

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para o campo da comida, tudo o que fosse biologicamente comestível, que cumprisse a função da nutrição, seria comestível em todos os lugares de acordo com a produção possível em cada ambiente. Como a concepção de que a comestibilidade enquanto um conceito, ou ainda, uma fase do objeto que torna a comida um objeto por si só já foi explicitada, parece claro que existe algo mais na definição dos objetos do que apenas a sua associação com a necessidade, assim como também existe algo mais na própria concepção que temos de objeto. No entanto, é senso comum na antropologia a ideia de que os significados só podem ser pensados como abstrações, isto é, “understood as a realm of discourse, meaning and value, culture is conceived to hover over the material world but not to permeate it” (Ingold citado por Henare et all, 2007:3). Assim, significados se ligam às ‘coisas’, impõemse em relação a elas, podem até se inscrever ou se incorporar nelas, “but are always presumed to be, in the first instance distinct from things themselves” (Idem, ibidem). Isso aconteceria por causa de uma preocupação epistemológica, de uma antropologia modernista que vê como sua a tarefa de elucidação de contextos sociais e culturais, sistemas e frameworks usados para dar sentido à vida social. “In this scheme the primary task of anthropologists is to slot things into the social and historical systems (society and culture) wherein their significance is produced”, tendo como efeito o fato de que “the system itself becomes the object of study, its artefacts reduced to mere illustration” (Idem, ibidem). Os objetos se tornam então exemplos ou reflexos de significados produzidos fora deles. Em relação à comida, esta seria compreendida como o reflexo de relações outras produzidas socialmente, e não produto e produtor destas relações e demarcações. A comestibilidade não seria vista como uma propriedade da coisa ‘vir a ser comida’, mas, sim, uma representação de sua materialidade que é expressa em relação à vida fora dela. A classificação do comestível seria somente uma representação da realidade para um tipo de humanidade específica, ou seja, uma cultura/sociedade particular. No entanto, “ali onde reina a desigualdade, há tantas humanidades distintas quantas forem as categorias sociais” (Tocqueville, citado por Miller, 2003:71), isto é, ao conceber o objeto comida enquanto apenas uma representação de características culturais

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específicas, eu aceitaria e partilharia da ideia de que ele é parte da diversidade cultural ou até mesmo da diversidade de ‘mundos’, e a cena da Ana comendo um frango o qual ela própria definiu como não adequado para meu consumo, seria apenas uma questão de diversidade na forma de classificar e simbolizar, o que ainda geraria práticas, mas que estas estariam separadas uma das outras. Não obstante, as análises propostas estariam, desse modo, presas a um relativismo absoluto no qual tudo poderia ser considerado ‘comida’, sem que este objeto implicasse uma mudança no estatuto de pessoa ou de humano daquele que o consome. A comestibilidade estaria unicamente associada a uma diferença representacional da realidade, vista como uma só. Partilho, então, da metodologia proposta no compêndio de textos sobre objetos, chamado Thinking Through Things (2007), no qual é vislumbrado “rather than accepting that meanings are fundamentally separated from their material manisfestation the aim is to explore the consequences of an apparently counter intuitive possibility: that things might be treated as sui generis meanings” (Henare et al, 2007:3). Nesse sentido, assim como é indicado no compêndio citado acima, acredito que a antropologia não está necessariamente errada em sua previsão que estrutura o mundo de acordo com oposições binárias, mas, segundo os autores, essas noções não são universalmente compartilhadas e, portanto, “may not be particularly usefull as a lens through which to view others people’s lifes and ideas” (Henare et al, 2007:4). Compreendo como essencial para o estudo da comestibilidade e suas variáveis a ideia de que “the material itself enunciates meanings” (Ingold, 2011: 40) todavia, no contexto estudado nesta dissertação, no qual se vê presente, na racionalização de nossa experiência no mundo, as dualidades anteriormente mencionadas, este ponto de partida que prevê noções não universalmente compartilhadas se disfarça de ponto de chegada, gerando uma perversidade na associação entre sujeito e objeto, mistificando como alteridade algo que não está no registro da igualdade formal, mas sim no registro da desigualdade. A meu ver, ao tomar o objeto como sendo ele mesmo um predicador de significado, é possível, através da análise da comestibilidade, se afastar da criação de “um "outro" exótico e (portanto) aceitável, enquanto se ignora a alteridade das pessoas que existem em carne e osso — pessoas que frequentemente se parecem mais com os "pobres"

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do que com as imagens idealizadas de um passado folclórico” (Fonseca, 2000:145). Considero, portanto, de extrema importância a contextualização da situação de pobreza e miséria em todo esse processo de classificação, não como uma determinação econômica para os limites da vida, mas como uma das variáveis que atuam na valoração desta. Ao tomar como relevante e analiticamente significativo o contexto previamente descrito em que o campo foi realizado, considero importante trazer a reflexão de Claudia Fonseca, na qual se pensa que: os pobres de nossa sociedade estão demasiadamente próximos de nós. Olhando bem, encontramos elementos interessantes — a música, a religião — algo que ainda se encaixa nos nossos limites de alteridade ou soa bastante folclórico para merecer atenção. Mas as facetas brutas permanecem muito numerosas. As vozes agudas, os sorrisos desdentados, as roupas gastas nos perseguem — impertinentes — nos corredores dos hospitais, na fila dos desempregados, nos empurrões dos ônibus. Elas se impõem ao nosso quotidiano. Não temos sequer o consolo das imagens hiper-reais que nos protegeriam contra o choque. (...) Sem nome, o "pobre" não tem história, nem existência própria. Dessa forma, não temos de fazer perguntas quanto à nossa relação com ele. Por este silêncio, encobrimos o que seria o lado sórdido de nossas existências. Não temos que confrontar uma alteridade radical que nos faria sentir o lado frágil de nossas certezas, o caráter cultural e de classe de nossos valores "universais" (Fonseca, 2000:147).

E, assim, enfatizar que “devemos recuar o suficiente para escrutar os diferentes sistemas de simbolização no seio da sociedade moderna e reconhecer que, entre estes, o aspecto de classe não é de menor importância" (Fonseca, 2000:148). Neste sentido, a relação entre sujeito e objeto, ou ainda, o mundo produzido a partir da concepção desta dualidade, é extremamente significativa nos processos sociais vivenciados no campo. Para além de uma ideia de objetificação ou alienação enquanto criadoras do que chamo de “Vida Podre”, isto é, no qual os sujeitos se tornariam objetos, penso que seriam os objetos, assim como os sujeitos, as classificações, as práticas e os conceitos que construiriam a nossa vivência no mundo, e estes também são informados pela pobreza e miséria. Postulo, então, como afirma Richards, que “food is actually a diferente object to the hungry and the fullman” (1932:14), porque o objeto comida em si também o é. Longe de uma determinação da necessidade enquanto fator biológico sobre a comestibilidade

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como categoria social são as variáveis de risco e valor construindo um objeto “híbrido”

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que definem essas diferenciações entre os valores da vida. O salmão recebido pelo Mesa Brasil não deixa de ser salmão e sua cabeça, para além de representar uma parte menos ‘preferida’30 pelas pessoas, tem propriedades nutricionais enquanto alimento que são as mesmas ou até mesmo mais significantes do que as outras partes do peixe. No entanto, longe de ser apenas uma diferenciação econômica ou nutritiva strictu sensus, ou de ser uma representação cultural dos significados sociais de ingerir uma cabeça, é o risco em comer este objeto, ou seja, a incorporação deste risco como propriedade do objeto comestibilidade que define seu valor e o valor daqueles que o consomem31. As outras propriedades tidas como dadas, como a nutrição, a oferta e o status do objeto por si só são associadas à variável de valor, como esta foi explanada no capítulo anterior. A comida, então, não se apresenta como atributos dados da materialidade, com sua objetividade inerente, mas sim, participa do processo contínuo de geração e regeneração do mundo (Ingold, 2011). O processo de tornar algo em comida se dá por essa transformação ou no mínimo por esse controle de risco32, e não por um valor que a materialidade deste objeto já teria como previamente definido. Todos esses objetos descritos ao longo dos outros capítulos haviam deixado de ser ‘comida’ e voltaram a ser por uma especificidade em suas propriedades e também por uma especificidade das propriedades das pessoas que os consomem; relações que as pessoas que os consomem estabelecem entre si e com os mesmos objetos. Pensando no objeto comida como um objeto que está na vida, concluo que a comida não é apenas simbólica das relações humanas que ela mesma traz à vida, mas que ela está na vida e cria relações assim como os seres humanos. 29

Latour utiliza a ideia de híbrido como um objeto ou uma coisa que não pertence somente a um domínio, ou da cultura ou natureza, mas sim é constituído pelos dois. No entanto, eu partilho da afirmação de Henare ao dizer que “it is not tha hybrid is not new. It is simply not new enough insofar as it still refers recursively back to those concepts it seeks to replace” (2007:20). Nesse sentido, não utilizo o conceito de híbrido enquanto conceito central do texto para não remeter sempre as dualidades que ele carrega. 30 Aqui faço referencia à Sahlins sobre as partes preferidas das vacas e a questão da comestibilidade debatida no artigo “La pensée Bourgeoise” em Cultura e Razão Prática (1979). 31 Afirmo isso como uma concepção do Mesa Brasil e não daqueles que o descartaram ou que ainda irão consumi-lo. 32 Trato aqui do risco presente na liminaridade de um objeto ser ou não ser considerado comida.

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Essa afirmação se torna muito relevante, pois, “if we follow active materials rather then reducing them to dead matter, then we do not have to invoque an extraneous ‘agency’ to liven them up again” (Ingold, 2011:36). As próprias ‘coisas’ encontradas no campo se apresentaram durante a pesquisa oferecendo estas possibilidades teóricas, pois elas eram consideradas por aqueles com os quais se relacionavam como uma matéria viva. Era principalmente a ideia de frescor, de vida e do afastamento da morte que definia aquilo chamado de comestível, não sendo possível então pensar a comida a partir de uma perspectiva que a visse apenas como um objeto que circula e representa algo do mundo social e, portanto, que necessita de uma agência exterior. Segundo Ingold, the focus of anthropology has tended to be on the materiality of objects rather than on materials and their properties. We would learn more by engaging directly the materials themselves, following what happens to them as they circulate, mix with one another, solidify and dissolve in the formation of more or less enduring things (Ingold,2011:35).

Nesse sentido, uma concepção dos objetos que os compreenda enquanto vivos e na vida, ao passo que incorpore a ideia de que os objetos também não duram para sempre, isto é, “materials always and inevitably win out over materiality in long term” (Idem, ibidem), permite uma concepção plena do ‘objeto-comestibilidade’ e da relação dele com as pessoas. Quando deixamos de lado a qualidade dos materiais e nos orientamos especialmente para as propriedades, notamos a ideia de que “the world continually unfolds in relation to the beings that make a living there. Its reality is not of materials objects but for its inhabitants” (Ingold, 2011: 49), e assim as coisas são as suas relações. No entanto, ao tratar do mamão, do frango e do iogurte estou falando também da Ana, da Dona Nazinha, dos atendidos pelo programa Mesa Brasil e também daqueles que não são assistidos de maneira alguma por nenhum desses programas. E esses não são vistos como vivendo, mas sim sobrevivendo. Ana, em uma de nossas primeiras conversas, me perguntou o que eu pretendia estudar em relação à alimentação. Estando eu ainda em meus primeiros dias de campo, não sabia muito bem como transformar em palavras inteligíveis o objetivo de meu campo, e via

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na compreensão do podre em si meu objeto de pesquisa, o que tornava essa explicação ainda mais complicada. Respondi, então, que queria entender como as pessoas faziam suas escolhas em relação aos alimentos, o que comiam e o que não comiam. Ela muito rapidamente respondeu com uma pergunta: “Ué, mas você não sabe cozinhar?” Eu disse que sabia, mas na verdade queria saber como as pessoas escolhiam os alimentos que iam comer ao catar esses alimentos da rua, do lixo, da xepa. Depois de um tempo pensando, Ana me olhou e disse: “Ah, você quer saber como a gente sobrevive né?”. Quando ainda se está preso a uma concepção de vida que se conecta diretamente com a vida ‘biológica’, vida dos fatos, da realidade, vida presa aos processos de nascimento e morte, sem se atentar para tudo que permeia esse dois momentos, a sobrevida se torna um ponto iminente. Ao vermos nos objetos suas funções como definidoras de seu valor, a separação entre o que é necessidade e o que é prazer separa nos seus comensais o que é vida e sobrevida, e assim, a sobrevida das coisas, mais uma vez, fala da sobrevida das pessoas. Entretanto, no que tange a compreensão das pessoas e suas vidas, ou sobrevidas, considero significativa a afirmação de Sahlins, de que “os homens não sobrevivem simplesmente. Eles sobrevivem de maneira específica” (1979:169). É, então, sobre essa vida e sobre esses homens que busco a compreensão a seguir.

Vida e Estar na vida

Dona Nazinha, quando conversava comigo sobre as comidas de que gostava de preparar, sempre mencionava algumas qualidades específicas desses alimentos. Uma das principais qualidades das comidas mais desejadas era o frescor e a proximidade destas com o lugar de seu nascimento, de sua origem. O tomate que vinha fresquinho da feira, com uma aparência que denotava ter sido colhido há pouco tempo, e por isso parecia estar ‘vivo’, sempre trazia alegria ao ser consumido. Com relação à carne, mesmo sendo fruto de um ser que havia morrido, parecia também haver a qualidade de fresco ou pelo menos um resquício de vivacidade, o que a diferenciava de uma carne já passada ou ainda de uma carne curtida em algum processo de conservação.

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Não obstante, sempre que esses alimentos eram descritos, a palavra ‘vida’ nunca era usada para se referenciar a eles. O frescor parecia uma qualidade inata e separada de qualquer outro atributo do alimento, a vivacidade só é usada aqui como um recurso de escrita escolhido por mim, pois tal característica somente era atribuída às pessoas. O tempo dos alimentos e de seus processos de nascimento, crescimento, maturação, decadência e morte são comumente concebidos como uma data de validade que todas as coisas simplesmente possuem. Dito de outra maneira, os alimentos enquanto objetos podem representar, ter agência e até simbolizar em relação aos seres humanos e suas relações sociais, mas eles por si só não são percebidos em sua análise e por meus interlocutores como estando na vida. Como pensar a vida de uma maçã? Ela morre quando cai ou quando colhida do pé? Quando outras formas de vida começam a devorá-la, estaria ela mais próxima da morte? E ao falarmos da carne? Como descrever algo como fresco? E o iogurte, sendo esse um compêndio de seres vivos, quando ele apodrece? Ele morre quando as suas bactérias morrem? De acordo com Ingold, “people do not always agree about what is alive and what is not, and that even when they do agree it might be for entirely diferent reasons” (2011:83). Isso porque a vida não é, de maneira alguma, um atributo das coisas. Quando Ana me disse que eu gostaria de estudar de que maneira ela e as pessoas que vivem de comida do lixo sobrevivem, a ideia concebida por ela como o significado da vida e da sobrevida está intimamente associada à concepção biológica que temos de seu significado. A separação entre zoé e bios

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, assim, mostra-se como a forma

pela qual o nosso próprio ato de viver e estar na vida são compreendidos. Dividimos nossos atos em vida e sobrevida, em vida animal, para sobrevivência, e aquela outra que permite nossa completude enquanto seres humanos. No entanto, essa definição de vida é datada e remete ao desenvolvimento da biologia nos séculos XVII e XVIII. De acordo com Foucault (1971), os profissionais que estudavam a natureza não utilizam o conceito de vida como base para seus estudos, pois 33

Segundo Giorgio Agamben, os gregos não tinham uma palavra única para o que chamamos de ‘vida’. Existem dois termos para tratar desta noção. Zoé seria o simples fatos de viver, comum a todos os seres vivos, e bios a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou um grupo. A vida qualificada é própria dos homens (Agamben, 2002).

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esta era uma noção da qual não se servia, não havia necessidade em seu uso. Posteriormente, com o progresso do microscópio e das reações químicas, todo o domínio dos objetos apareceu. Isso foi chamado de vida, ou seja, a noção que servia para indicar o campo de objetos e de novos domínios que a ciência deveria percorrer. A vida se tornou então um indicador epistemológico. Portanto, apesar da vida já ser pensada como associada aos objetos e ao domínio sobre eles, ela é concebida como um processo destinado a um fim iminente. Nesse sentido, seu lado oposto, isto é, a morte, se torna um mero representante do fim de uma entidade biológica que era a vida. E no processo de desenvolvimento das sociedades, conjuntamente ao desenvolvimento da ciência, que tem a vida como objeto principal, ela volta a se aproximar dos objetos. A morte como os restos materiais do processo sociais se torna assim, segundo Daniel Reis Costa De Lucca (2008), fatos naturais moldados culturalmente pela história e pela experiência coletiva; morte e lixo se tornam similares. Os objetos que se tornaram comida eram antes lixo, sobras dos processos de estar na vida, e compreendendo-os, ou mais ainda, tomando-os como vivos ou mortos a partir da concepção que temos de vida biológica, acabamos por definir as pessoas que com eles se relacionam. Ao irmos além da dualidade concebida pela noção biológica de vida, podemos compreender os organismos e até mesmo as coisas como “a trail of movemente and/or growth; it’as trail along which life is lived” (Ingold, 2011:89). A vida não seria somente a experiência de estar no mundo, mas também um conceito analítico poderoso, um indicador epistemológico que forma nossa visão de mundo. Pensando a partir da perspectiva epistemológica da vida biológica, todo o processo de compreensão do valor e do risco contido em cada fase da vida dos objetos é incorporado e transformado em risco para a vida de seus comensais. Mas tal processo se perde na vida destes comensais. No que tange à compreensão da vida enquanto objeto de estudo, é parte do debate contemporâneo nas ciências humanas e na filosofia da ciência (Latour, 1994, 1997; Rabinow, 1999; Ingold, 2001; Haraway, 2009; Butler, 1993, 1998) a discussão sobre o poder político a respeito da vida e sua relação com o poder científico. Desde as analises de Foucault acerca do biopoder, a vida das pessoas, concebida a partir da noção de população

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e o controle destas, muitas vezes associada à prevenção de riscos, tornou-se objeto não somente de análise, mas de disputa. A partir desta concepção, a própria ciência passou a ser questionada no que tange ao seu papel enquanto legitimadora da compreensão do mundo natural, tomado ao mesmo tempo como dado e como um apanhado de fatos e regras que podem ser comprovados a partir de um método científico e experimental. O estudo dos alimentos, domínio da ciência da nutrição e da biologia, começa então a ser visto como uma das vozes que podem tratar deste objeto sem que a ciência moderna seja concebida como a única legitimada. Latour (1994; 1997), filósofo contemporâneo que tem sua obra dedicada a esta temática, postula, então, a importância dos objetos híbridos que estariam para além do que a constituição moderna define como uma separação entre o poder científico encarregado de representar as coisas (os objetos dados) e o poder político encarregado de representar os sujeitos (Latour, 1997). No entanto, esta explanação que parece solucionar a questão da relação entre a vida das pessoas e dos objetos, sendo ambos concebidos como naturais e culturais simultaneamente, isto é, a concepção de híbrido, traz uma dualidade em si mesma. O que, tratando-se de objetos e pessoas, não seria híbrido? O frango da macumba comido por Mônica foi visto pelas crianças que o roubaram do cemitério como um alimento, para além das noções nutricionais e biológicas de perigo, contaminação e nutrição. Mônica o concebeu como algo contaminado (nãocomida, objeto-lixo), não por suas características da vida biológica ou da chave da ciência, mas sim pela concepção simbólica da macumba enquanto um perigo incorporado na oferenda. Pensando de outro modo, poderíamos tentar compreender este frango como um objeto híbrido, formado por concepções que temos da natureza e daquelas simbolizadas pela cultura, objeto e comida sendo conceitos que se opõem. No entanto, a concepção de híbrido “still reffers recursively back to those concepts it seeks to replace” (Henare et al, 2007:20), e, além disso, mantém de certo modo uma ideia de que o campo da cultura trataria das representações e o da natureza continuaria a ser uma realidade dada. No caso do frango, o perigo em si já é um objeto que transcende os campos duais da ciência.

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Quando falamos do comestível e do podre enquanto ponto virtual que permite a visualização dos limites da comestibilidade associado ao risco e ao valor, ao tomarmos a concepção de híbrido e a dualidade entre natureza e cultura que este conceito pretende explodir, ainda nos tornamos presos aos limites destes campos que constroem o objeto. A partir da concepção latouriana de uma meta-teoria, na qual “the inclusion of nonhuman/human hybrids portray everything as a network of entities that breach the object/ subject divide” (Latour citado por Henare et al, 2007:7), buscando assim “to transform the semantic emphasis of things from matter of fact to matters of concern”(Idem, ibidem), continuamos operando na chave da oposição entre a realidade e a representação. Nesse sentido, operando com essas dualidades podemos cair em dois extremos que, ao tratar da vida das pessoas, podem ser muito perversos. Um deles concerne à teleologia do podre. Dito de outra maneira, ao analisarmos a comestibilidade de um alimento, partindo da premissa de que este é um objeto híbrido, ou seja, é informado pelos campos da natureza e da cultura, o campo da natureza compreendido através da voz da biologia impõe um limite à vida deste objeto, o limite de sua putrefação e dos riscos que este pode trazer ao ser consumido. Tendo este limite como ponto máximo da vida dos objetos, aquelas pessoas que estendem o ponto de putrefação estariam estendendo somente a simbolização do que seria o podre, mas estariam ainda orientadas por um podre definido biologicamente. Estas pessoas não seriam vistas como agentes no processo de criação de objetos e conceitos, do processo de invenção pelo qual a realidade é constituída (Wagner, 2010). Por outro lado, ao tomarmos como pressuposto a ideia de mundos diferentes, que o próprio conceito de híbrido traz, sem associá-lo à ideia de diferentes representações, criamos uma separação política entre as realidades criadas. Ana, ao comer o frango que ela mesma julgou como não sendo comestível para mim e meu colega, estaria estendendo a comestibilidade deste objeto e assim criando um novo conceito que “is transformed in the very act of being” (Ingold, 2011:22). Isto é, o fato de Ana comer um frango que havia perdido seu estatuto de comida não é associado à perda de estatuto de pessoa de Ana, ou ainda, não é visto pelas ciências que estudam a comida e pelas políticas criadas a partir destes estudos como associado à vida dos objetos definindo diretamente a vida das pessoas.

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Apesar da Ana, desde o princípio, perceber e apontar para estatutos diferentes de pessoa entre eu e ela, à própria concepção de híbrido, mesmo não carregando a separação entre sujeitos e objetos, falta uma noção de sobreposição dos valores das vidas tratadas, permitindo uma diversidade de definições sem que estas impliquem em noções de poder. Dessa forma, a despeito desta problemática e suas dualidades soarem como abstrações da construção etnográfica, elas estavam ali, sendo enunciadas no campo e ressoando neste segundo momento etnográfico (Strathern, 1999), a escrita, pois diziam muito sobre minha questão central, o valor da vida. Foi então a partir deste problema ontológico na definição de meu objeto de estudo e seu referencial teórico que a concepção ingoldiana no que concerne à relação entre sujeitos e objetos que estão na vida se mostrou extremamente profícua, não somente concebendo a vida como categoria analítica, ou seja, como referencial epistemológico, mas sendo ela própria objeto de estudo. Sendo o mamão, o frango e o iogurte concebidos enquanto ‘coisas’ que estão na vida, assim como nós, não necessitamos invocar uma agência externa para associá-los à definição das pessoas que os consomem e muito menos tomá-los como objetos híbridos que são constituídos por dois campos opostos de representação da realidade, no qual um deles é, por ser natural e dado, o limite para sua existência. Ao concebermos a ideia de ‘dwelling’, a saber, a noção de ‘habitar o mundo’, podemos encontrar um caminho para superar a enraizada divisão entre os ‘dois mundos’ da natureza e da sociedade, que marcam a forma como nós concebemos o nossa experiência de vida. Assim é possível “to re-embed humans being and becoming within the continum of the lifeworld”, e ir além da falácia da evolução: “to suppose that organic forms pre-exists the process that give rise to it” (Ingold, 2011:26). A partir da mudança deste referencial teórico, ou o que Henare (2007) chama de mudança ontológica na concepção de mundo, é possível pensar novos conceitos que se tornam ‘existências’. Segundo Strathern, este processo “under determines what a person might be, such that it allows for attention to be focused on ‘relations’ rather than entities” (Strathern citada por Henare et al, 2007:20).

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Assim como as sobras de alimentos são concebidas como restos do processo de habitar o mundo, a sua transformação semântica em comida mistifica a ideia de concepção, isto é, do ato de criar conceitos, “a mode of disclousore (of metaphorical vision) that creates its own objects, just because it is one and the same with them” (Henare et al, 2007:7), ao passo que também mistifica a própria relação das pessoas com esses objetos, que eram, antes de tudo, lixo. Essa nova noção destes objetos revela-se importante pela própria mudança de estatuto em relação à concepção de seus comensais, isto porque ver e reconhecer estes objetos já é um processo de criá-los enquanto objetos de relevância analítica. Quando analisamos os processos de higiene alimentar ou a própria ideia de segurança alimentar associada ao risco, e vemos os objetos enquanto comida mais ou menos possível de trazer riscos de contaminação para aqueles que o consomem, poderíamos nos referir diretamente a concepções foucaultianas sobre biopoder; o poder que se incumbiu da vida e cobriu toda a superfície do corpo à população. Nesta problematização, a biopolítica, no sentido puro, isto é, políticas de gestão da vida, se uniria com o processo simbólico de classificação para definir coisas e pessoas. Apesar de ambas as concepções (foucaultiana e ingoldiana) tratarem da vida, e mesmo Foucault compreendendo que “the point is not that discursive claims order reality in diferente ways – according to diferente regimes of thruth- but rather that they create new objects in the very act of enunciating new concepts” (Foucault citado por Henare et al, 2007:13), o autor ainda parte da premissa de que “a real world fodder out there”, separando os objetos em realidade (natureza) e representação (cultura), reforçando a posição de que a biopolítica toma a vida como objeto, pois essa está no campo da natureza, ou seja, da realidade, e pode ser concebida a partir de suas propriedades inatas. Essa perspectiva, quando transmutada para o objeto-comida, faz suas propriedades serem tomadas como inatas e sua concepção ser parte de um sistema simbólico específico, que diferencia aqueles que têm acesso aos bens materiais que garantem uma subsistência daqueles que não o têm. Mas, no fundo, somente uma destas visões seria compatível com a realidade: a concepção biológica. Concordaríamos, assim,

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com Gosden (1999) quando este afirma que, por um lado, temos as mentes humanas, e por outro, o mundo material, a paisagem e os artefatos. Os objetos definiriam sim seus comensais, mas somente a partir da perspectiva da representação, ou seja, da analogia ‘pobres são como podres’ (Veloso, 1993), e não através da relação de ambos na vida, sendo a própria definição do podre.

O estatuto de pessoa Em Barcelona, Espanha34, em uma escola pública, um garoto por volta dos dez anos de idade foi indagado sobre o que ele pensava da comida que era ofertada no refeitório de sua escola. Após conversar um pouco sobre a questão das bandejas e sobre o ambiente em que a comida era oferecida e consumida, o garoto disse que o que mais lhe incomodava era o fato de que esta não era servida na ordem ‘comum’ de pratos, no qual o primeiro prato seria o da salada ou massa e o segundo das carnes, seguido de uma sobremesa. Para ele, era um absurdo a atitude de servirem todos os pratos ao mesmo tempo, e muitas vezes misturados na bandeja, pois, “aquilo não podia ser considerado comida de gente”. Em outro contexto, essa constatação voltou a aparecer. Um brasileiro que estudava em uma escola pública espanhola se disse hostilizado por seus colegas de turma, pois preferia comer todos os pratos de forma conjunta, o que era visto por seus pares como um ato de animalidade, de não civilização. Isso também “não era coisa de gente”. Uma terceira situação, também passada em Barcelona, deu-se em um refeitório público, estilo “Bom Prato” 35, no qual seus usuários não tinham direito a comer com garfo

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Durante quatro meses entre o final do ano de 2013 e o início de 2014 realizei um intercâmbio na Universidade de Barcelona, mais especificamente no Observatório da Alimentação. Foquei nesse período do intercâmbio no aprofundamento de minhas bases teóricas e na prática docente. No entanto, a gama de pesquisas realizadas no observatório na área da alimentação e também em relação à alimentação em contextos de precariedade era enorme, o que permitiu a realização de um campo comparativo, que apesar de não ser o objetivo desta pesquisa trouxe luz a diversas questões no que concerne minha pesquisa etnográfica na cidade de São Paulo. Uma das situações que me levou a desenvolver as bases para se pensar o tema deste tópico se deu em uma pesquisa de campo realizada em um refeitório escolar, no contexto da crise econômica na Espanha. A pesquisa era enfocada nos sentidos da alimentação escolar e foi o tema da dissertação de Bárbara Atie Guidalli, intitulada: Más allá de los menús: discursos y prácticas en torno al comer en la escuela”. 35 O Observatório de Alimentação da Universidade de Barcelona vem desenvolvendo uma pesquisa pedida pelo governo espanhol sobre a crise alimentar, intitulada: Individualismo alimentario y sociabilidad en una

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e faca, podendo somente usar uma colher, o que era justificado como uma maneira de evitar brigas no interior da instituição. Ao serem indagados sobre essas regras, os usuários diziam que era um ato que afetava diretamente a sua dignidade, o seu estatuto de pessoa. Nas frases de Ana e nas conversas com os responsáveis pela colheita no Mesa Brasil, e mais ainda com aqueles atendidos pelo programa, a questão de ser pessoa definida através daquilo que se come era central. Por que não levar então essa constatação a sério? O que está sendo invocado na disputa por esse estatuto. ***** Mauss afirma, em seu texto ensaístico, Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a de ‘eu’, que “nunca houve um ser humano que não tenha tido o senso, não apenas de seu corpo, mas também de sua individualidade espiritual e corporal ao mesmo tempo” (Mauss, 2003:371). Nas situações descritas acima, não somente a noção do próprio ser-humano sobre seu senso de individualidade e de seu direito enquanto tal foi apontada, como também a visão dos outros em relação a eles. Sendo a comida um objeto que define muitas de suas relações e sendo ela vista por seus comensais como um demarcador de identidade, status e posição social, essas declarações apontam para o questionamento do estatuto de pessoa que certas comidas ou formas de comer questionam. De acordo com Mintz (2001), comer é uma atividade humana central, não só por sua frequência constante e necessária, mas também porque cedo se torna a esfera onde se permite alguma escolha. “A comida entra em cada ser humano. Somos então substanciados – ‘encarnados’ a partir da comida que se ingere” (2001:32), o que permite uma associação entre essa incorporação e a noção de carga moral imbricada neste ato, pois “nossos próprios corpos podem ser considerados o resultado, o produto de nosso caráter que por sua vez é revelado pela maneira como comemos” (Idem, ibidem). Indo mais além na constatação de Mintz (2001), arrisco afirmar que não é apenas uma carga moral que o objeto comida carrega e é transubstanciado quando este é comido por pessoas, mas, sim, posso dizer que é o direito em forma de objeto que é sociedad de consumo en crisis: dietas de elección, dietas prescritas, dietas de necesidad y dietas de precariedad, e foi neste contexto que a pesquisa nos refeitórios públicos foi realizada.

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incorporado pelo comensal. De acordo com Mauss (2003) em suas análises sobre a formação da noção de pessoa que temos na modernidade, parte do que é conhecido como tal está diretamente relacionado com a ideia de direito. Segundo ele, a ‘persona’ é mais do que um elemento de organização, mais do que um nome ou o direito a um personagem e a uma máscara ritual, ela é um fato fundamental do direito. É o direito que define o que cabe na categoria de pessoa (Mauss, 2003:385).

Atualmente, quando pensamos em alimentação, a ideia de direito vem à tona nesta discussão, porque o acesso à alimentação está diretamente relacionado com o cumprimento dos direitos humanos mais básicos, e principalmente associado com o conceito de segurança alimentar e nutricional36. Contudo, quando pensamos e designamos a ideia de direito à noção de humanidade, a categoria de pessoa é obscurecida, trazendo à luz a oposição entre humanidade e animalidade através da comida. Neste contexto, voltamos à ideia de vida, e mais precisamente de vida humana, e concluímos que esta é pensada a partir de uma perspectiva cartesiana que a separa em dois domínios, o social e o ecológico. Segundo Ingold, as pessoas vivem assim uma vida dividida em duas: meio organismo, meio pessoa (2011:173). Quando o lado considerado ‘meio pessoa’ é retirado da vida dos seres humanos, somente nos resta o lado organismo, e este não nos diferencia de nenhum outro animal. Podemos perceber esta constatação tanto nas frases das pessoas que catavam lixos e sobras quanto na etnografia de Frangella sobre os moradores de rua, quando esta afirma que “habitualmente associados ao lixo e à extrema pauperização pelo imaginário urbano, os moradores de rua se sentem impelidos a marcar sua desassociação com o que é materialmente deteriorado, desintegrado, podre” (2009:239). Em outras situações onde a pobreza não é tão eminente, como na associação das mulheres de Paraisópolis, a relação com o objeto comida também é questionada, mas a partir de aspectos que tratam da dignidade das pessoas, tendo sua expressão mais marcante na noção de civilização. Uma das integrantes da associação de mulheres da favela de

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Até o ano de 2010 não havia na Constituição Federal Brasileira o direito à alimentação básica. Esse processo de inclusão do direito à alimentação se deu em conjunto com diversas medidas do governo brasileiro desde 2003, sendo a principal delas o Programa Fome Zero e a criação do Ministério de Desenvolvimento e combate à fome.

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Paraisópolis me apresentou um novo projeto do grupo que consistia em um serviço de catering37 realizado pelas mulheres do bairro que já cozinhavam ‘para fora’, mas que ainda não estavam organizadas em uma empresa. Essas mulheres, segundo a presidente da associação, não haviam, até aquele momento, iniciado os trabalhos, pois ainda estavam fazendo um curso de especialização na área. Ao questionar sobre a temática do curso, fui respondida com um nome já bastante conhecido, o curso de ‘boas práticas’. Tornou-se evidente que o curso não visava o ensinamento de técnicas de cozinha, ou ainda de receitas de comidas possíveis para esse tipo de prática, mas sim um processo de civilização naquilo que é considerado como a forma ideal de se cozinhar. Tendo em vista que esse serviço seria contratado por terceiros e, mais ainda, terceiros de fora da favela, era necessário garantir que os hábitos de higiene e limpeza legitimados e convencionalmente estabelecidos fossem seguidos. Para a presidente da associação, quando indagada sobre o porquê desta formação, está claro que “elas sabem cozinhar né? Mas não sabem cozinhar pra fora, pros outros, seguindo as normas”. Dessa maneira, podemos dizer que é o modo de se relacionar com o objeto comida e não o objeto em si que designa o estatuto daqueles associados a este objeto. Aquele que se relaciona com a comida e a prepara estaria submetido ao mesmo processo de contaminação daquele que a ingere, transferindo também esse perigo ao comensal se as normas de boas práticas não fossem seguidas. Assim, em contraposição com o que afirma Frangella, (2009) no qual “nos modos de cozinhar e comer expõe-se um embate constante entre um parâmetro civilizador idealizado e a realidade subtrativas na qual as formas de cozinhar e comer tem que ser adaptadas” (2009:24), concordo com a afirmação de que “the atitud to food, table manners, customs of common eating - the morals of food, as we might call it, - the things permitted, forbidden and enjoyed, all form a complex and developed ideology of food (Stoller,

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Até o ano de 2010 não havia na Constituição Federal Brasileira o direito à alimentação básica. Esse processo de inclusão do direito à alimentação se deu em conjunto com diversas medidas do governo brasileiro desde 2003, sendo a principal delas o Programa Fome Zero e a criação do Ministério de Desenvolvimento e combate à fome.

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1990:3), pois tanto para o selvagem como para o homem civilizado não existe nada mais importante do que a maneira como comemos e o que comemos. Quero dizer que a comida em si (me referindo ao termo “food” em inglês) se torna objeto que designa pessoas, sendo esta a própria materialidade estendida das definições de pureza e perigo, civilização e barbárie, humanidade e animalidade. Reivindico, assim, a categoria de pessoa para pensar os desígnios da comida a seus comensais, como uma maneira de defender o humanismo destas análises sem cair no relativismo, pois levando em consideração as próprias análises dos interlocutores, a noção de pessoa estaria associada à ideia de direito, e iria mais além do universalismo imbricado na categoria de humanidade. Nesse sentido, posso afirmar que Ana e/ou a presidente da associação de mulheres de Paraisópolis veem, assim como Mauss (2003), a palavra persona como sinônimo da verdadeira natureza do indivíduo. Para eles, além da associação da ideia de pessoa com direitos, ter o estatuto de pessoa também remete à sua moral e à sua verdadeira face, o que você realmente é. Desta forma, novamente é retomada a ideia de natureza associada ao lado animal ou primeiramente biológico da vida. Quando falamos do objeto comida, os comensais que são associados com o podre e com sua incorporação são vistos, da mesma maneira que afirmou Frangella (2009) sobre os moradores de rua, como ‘rebaixados’ ao lado natural da vida, o lado organismo. Nesse sentido, a vida destes comensais é associada com a animalidade ou bestialidade, as quais, a partir de uma visão evolucionista, podem ser relacionadas ao estágio da barbárie. Existe então uma clara hierarquia em relação aos domínios da vida, sendo o lado ‘natural’, nesta concepção, visto como inferior àquele associado à cultura, ou ao social. Essa hierarquização, também associada à comida, é discutida por Dumont, que afirma que “além do aspecto físico imediato (limpeza e higiene) a etiqueta da pureza corresponde, por um lado ao que chamamos de cultura ou civilização, as castas menos implicantes fazendo figura de bárbaro para as mais delicadas” (1997:111). Ainda tratando da Índia, mas pensando sobre a relação entre o objeto-comida e a organização social, o autor aponta que “as pessoas puras são, por um lado, o equivalente do que chamamos de ‘gente do bem’” (Idem, ibidem), da mesma maneira em que os interlocutores deste estudo

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apontam a relação com a incorporação ou o contato com a comida e o caráter de seus comensais e a possibilidade e o perigo de se transformar em gente ‘podre’. Desta forma, acrescentamos mais uma variável na definição do comestível, a categoria de pessoa. A categoria de pessoa se associa tanto ao risco de contaminação por um objeto associado à nebulosidade do mundo natural, como com o valor deste objeto em relação ao medo da incorporação de uma vida sem valor, uma vida animal. Complexificando a afirmação de Dumont na qual a “animalidade em si mesma é o fator virtualmente repulsivo” (1997:169), constatamos que são as propriedades dos objetos associados ao valor, ao risco e à vida, e com isso ao estatuto de pessoa daqueles que se relacionam com eles, que definem o fator repulsivo do podre. No entanto, para além da ideia de contaminação, de contração do risco de morte, ou de vida animal, e da questão do direito associado à comida, outro fator também permeia o estatuto de pessoa associado a esta: a ideia de escolha e autonomia (já apontadas anteriormente em relação à capacidade de avaliação do risco). Visitei uma entidade de hemofílicos que recebia as doações do programa Mesa Brasil. Segundo a coordenadora desta entidade, era necessário garantir o acesso a uma alimentação hospitalar para os pacientes do centro, mesmo que esta alimentação fosse advinda de doações. Para ela, estas ‘pessoas’, apesar de vistas como humanas, tinham associadas à sua categoria de humanidade a ideia de vulnerabilidade. Era também necessário que essa alimentação fosse gostosa, permitindo o acesso a certos alimentos que os pacientes não encontrariam ou não teriam em suas casas. A ideia de humanidade está claramente relacionada à classificação destes sujeitos. Entretanto, associando a vida dos objetos à vida dos sujeitos, estes últimos são vistos como em uma situação de vulnerabilidade que não permite a escolha. Nesse sentido, mesmo estando garantido o direito ao acesso, a impossibilidade de escolha e decisão no suprimento de ‘necessidades básicas’ também tiraria desses sujeitos seu estatuto de pessoa, como bem apontado pelas falas que iniciam esta discussão. A partir desta perspectiva, ser pessoa implica em poder escolher e decidir. É possível pensar essa relação também ao analisarmos uma situação apontada por Frangella (2009) (e muito comum nos noticiários) que trata da distribuição de sopa para

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os moradores de rua, a qual podemos melhor compreender se compararmo-la com a ideia de acesso declarada pelo Mesa Brasil. Segundo as análises de Frangella (2009), a sopa servida no fundo de uma garrafa pet não agrada a Secretaria de Assistência Social e não corresponde às demandas da Lei de Proteção dos Moradores de Rua, entretanto essa atitude é vista por muitas pessoas que trabalham em entidades de proteção a essas populações como uma manutenção da condição mínima de existência. Em oposição à política do Mesa Brasil, que vê na doação dos alimentos advindos de sobras uma possibilidade ao acesso e à garantia de dignidade, no caso dos moradores de rua a questão do estatuto de pessoa já lhes foi tirada, pois a vida deles é vista como uma vida de sobrevivência, Zoé, o simples fato de viver. O Mesa Brasil reitera ainda o fato de que eles lidam com ‘pessoas’, e pessoas sobrevivem de determinadas maneiras, mesmo que apenas sobrevivendo. O objeto comida é assim articulado para classificar a vida como um todo, rompendo de certa forma com a dualidade presente nas próprias definições do que seria sobrevivência, ou ainda, uma vida animalizada. Independente do estatuto de vida do comensal, é a relação com o objeto que estabelece sua definição enquanto pessoa. Esta proposição é mais uma vez elucidada através da etnografia de Frangella (2009), que aponta as duas principais maneiras de distinção social dos moradores de rua em relação à comida. Mesmo a antropóloga não tendo como foco a relação com as ‘coisas’, é possível perceber na construção etnográfica que os objetos e suas propriedades estabelecem associações de igual para igual com aqueles com os quais se relacionam. Segundo Frangella (2009), existem duas formas de distinção social buscadas pelos moradores de rua quando se trata da alimentação. A primeira delas reafirma o padrão classificatório que o morador de rua tem nas relações fronteiriças com seu universo. Neste caso, uma vez considerados parte da esfera do poluído e do sujo, eles procuram reverter seu estigma a partir do compartilhamento das representações sobre alimentação com o restante da sociedade: tornam-se exigentes em relação à higiene e ao bom tratamento dos estabelecimentos alimentares com os quais se relacionam. A segunda forma relatada pela antropóloga diz respeito à relação dos moradores de rua com seus pares, onde estar mais limpo que o outro marca diferença na forma de estar na rua. No entanto, segundo Frangella,

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“apesar das concepções de higiene e limpeza normativas sejam reafirmadas pelos moradores de rua em seu discurso, é impossível reproduzi-las integralmente na prática” (2009:246). Buscando compreender o estudo da antropóloga, acredito ser possível realizar uma mudança ontológica nas análises de Frangella (2009) para ir além da dualidade entre representação de limpeza e higiene e a realidade vista como normativa, para assim compreender o que está por detrás desta ideia de distinção social. Ao pensarmos as formas de distinção social dos moradores de rua é possível compreender como eles atuam na sua definição de ‘gente’ a partir dos próprios objetos com os quais se relacionam. Os objetos não são apenas códigos para a definição dos moradores em relação a outras pessoas, mas são a própria definição da vida materializada em suas propriedades. Mais do que tentar reproduzir concepções de higiene e limpeza, esses sujeitos estão trabalhando nas variáveis dos próprios objetos para assim tentar estender, dentro de suas possibilidades, as características legitimadas do que seriam ‘gente de bem’ (Dumont, 1997), ou seja, eles trabalham através da concepção legitimada de pureza e perigo, civilização e barbárie, humanidade e animalidade incorporadas no próprio objeto-comida e que serão posteriormente encarnados neles mesmos. Mostra-se importante, assim, levar em consideração o que atesta Miller (2013) ao dizer que é por meio das coisas que são feitas as pessoas, e expandir essa afirmação para reivindicar a superação da separação entre sujeito e objeto, mas sem perder de vista um humanismo na compreensão da vida das pessoas. Segundo Miller (2013), a melhor maneira de entender, transmitir e apreciar nossa humanidade é dar atenção à nossa materialidade fundamental. Para o autor, “nós também somos trecos, e nosso uso e nossa identificação com a cultura material oferecem uma capacidade de ampliar tanto quanto de cercear nossa humanidade” (2013:12). É a preocupação central de Miller mostrar como e porque uma apreciação mais profunda das coisas nos levará a uma apreciação mais profunda das pessoas. Indo em contraponto a esta afirmação final, creio que a associação das pessoas com aquilo que elas comem não se dá apenas através de uma compreensão da materialidade, ou seja, que a partir da nossa concepção como ‘trecos’ é possível realizar

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uma análise que compreenda de forma ampla a associação das pessoas às coisas. Retomando a discussão sobre os mamões através da cena de descarte destes no CEAGESP, é possível conceitualizar essa discussão ao visualizar uma pirâmide social dos homens nos mamões: mamões desiguais para homens desiguais. Ou ainda, uma pirâmide de valores de vida das coisas e dos objetos. Mais do que nos vermos como ‘trecos’, é importante conceber a ideia de estar na vida, e pensar nos objetos e suas histórias como tão relevantes quanto as pessoas e suas vidas, um operador totêmico, conforme Sahlins (1979). Frazer, no final do século XIX já apontava que: “el selvaje cree comúmnente que comiendo la carne de um animal o de um hombre adquire las cualidades no sólo físicas, sino también morales y intelectuales que son característica de ese animal o de ese hombre” (Frazer citado por Fischler, 1995:66). Hoje, alguns séculos depois e tratando daqueles que se veem como civilizados, pode-se dizer que essa afirmação ainda é verdadeira, e nos traz a importância de pensar as coisas não apenas como trecos, mas através de suas substancias, isto é, olhar mais para as substancias como pedra, madeira do que pensar os trecos principalmente como artefatos (Ingold, 2011). Dessa forma estaremos mais atentos às nuances da própria vida, não só dos objetos como das pessoas. Através desta perspectiva podemos afirmar que o podre enquanto ponto virtual na definição do comestível se torna conjugado com a ideia de valor, o valor das coisas e das pessoas e das vidas de ambos. Nesse sentido, existe uma hierarquização entre os domínios do natural e do cultural, como já apontado anteriormente, sendo o primeiro associado ao animal, ao repugnante, ao fora de ordem. Se continuarmos presos a esses dois referenciais enquanto conceitos heurísticos que utilizamos como meio para análise, não conseguimos perceber que o homem enquanto pessoa também pertence ao mundo, assim como as coisas. Esquecemos então das vidas dessas pessoas. É necessário, como diversos autores veem apontando, uma nova forma de pensar essa relação entre vidas, o estar no mundo. Segundo Miller, quando falamos das coisas, vemos que o problema com a materialidade é que, por alguma razão não parecemos estar interessados nela. No pensamento econômico a acumulação de bens materiais é em si mesma a fonte de nossa capacidade expandida como humanidade. A pobreza é definida como o limite crítico em relação à capacidade de nos realizarmos como pessoas, em razão da carência de bens (2013:106).

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No entanto, o que tento apontar neste estudo é que nossa questão com a materialidade não está apenas associada à acumulação de bens, pois devemos pensar as coisas como algo que extrapola sua definição enquanto bem ou mercadoria, valor de uso e valor de troca. Quando falamos do objeto comida e de sua comestibilidade, estamos pensando sim sobre a pobreza, mas na maneira em que ela é definida em relação ao valor da vida das coisas, e estas designando e sendo designadas pelo valor da vida das pessoas. Assim como afirma Ingold, concordo que “apesar deste ser um problema antropológico, ele requer uma solução mais do que antropológica, é necessário pensar uma nova ecologia, uma nova forma de se pensar o ‘being in the world’” (2011:4). É essa materialidade no sentido das propriedades e das histórias da vida dos objetos que vai definindo o que eu chamo aqui de Vida Podre.

Vida Podre Com o passar do tempo, ele pensa compreender que a vida – isso que parece tão comum, distribuído de forma tão equânime – é na realidade um bem escasso e aflora onde ele em princípio não esperaria encontrá-lo: crianças, mendigos, vira-latas, loucos – os únicos, segundo o pai, que cumprem com a única condição que a vida exige para ser vida verdadeira: atrever-se a desafiar tudo. O menino descalço que enfia a mão suja pela janela do carro parado no semáforo, o mendigo uivando num saguão, enrolado em sacos de lixo, o cachorro que fareja sem pudor a vulva da cadela afegã arrogante, o louco e seu mundo particular se sóis incandescentes e órgãos que devoram a si mesmos: as únicas anomalias felizes que o pai parece reconhecer nesse teatro unânime de mortos. Há mais vida lá, diz, nesses corpos cheios de calos, crostas, cicatrizes, nessa intempérie humana, que em qualquer outro lugar (Pauls, 2014:58).

Em todas as oportunidades que tive para apresentar partes do que viria a ser minha dissertação era recorrente o questionamento sobre o que eu definia como podre, se o podre realmente existia e, se sim, o que marcava sua definição. No processo de escrita do texto etnográfico, esse questionamento se mantinha ali, como uma sombra por detrás de todo o parágrafo que se desenhava. Uma dúvida que se passava não só em minha cabeça, mas em cada frase escrita no papel. Com o passar das linhas, essa dúvida que até já tinha certa resposta em termos analíticos se transformou em um questionamento da própria

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etnografia. Como falar da Vida Podre etnograficamente? O que o campo me trouxe para pensar sobre ela? Como pensar esse segundo campo (Strathern, 1999) em relação à própria ideia de podre que foi sendo construída teoricamente e ao mesmo tempo questionada durante a pesquisa? Buscando compreender como o podre articulava ideias, conceitos, objetos e pessoas, encontrei nas análises de Fravet-Saada (1977) algumas semelhanças, não somente em relação ao tema da magia e bruxaria que muito remetem à alimentação, mas principalmente na ideia de um ponto virtual e de sua relevância ontológica. Assim como a antropóloga concebeu a bruxaria no Bocage como um ponto virtual, percebi que o podre estabelecia exatamente essa relação com a comida, com o risco, o valor, e as pessoas. Ele era aquilo que estava por detrás de todas as relações na vida, mas não aparecia em forma de classificações nativas. Não havia sequer uma frase de uma entrevista, conversa ou da observação nas ruas e nas feiras em que alguém mencionasse o podre. Esse ‘não dito’ me levou a pensar, assim, nas escolhas das palavras para descrever e enunciar cada um daqueles objetos que se tornavam comida, e nesse momento o podre enquanto ponto virtual começou a se definir. O podre, como já foi apontado anteriormente, era somente enunciado como uma categoria acusatória quando se tratava de um objeto ou mesmo de uma pessoa. Era somente tratando do outro e de sua relação de comensalidade que o objeto e seu comensal poderiam ser definidos enquanto podre, por serem considerados como impuro, contaminado, corrompido. Em contraposição, quando era o ‘eu’ o ponto de partida, e se falava de alguém ingerindo, ou se alimentando de algo, este objeto era a priori nomeado enquanto comida. Nesse sentido, se tornou evidente que minha primeira hipótese etnográfica, que se assemelhava muito à hipótese de Fravet-Saada (1977) (estudar as práticas de bruxaria no Bocage), na qual eu buscava estudar as práticas geradas por classificações, não se mostravam profícuas no processo de construção do segundo campo, a escrita etnográfica. Isso porque o processo de vida se tornou central e a Vida Podre se mostrou como uma relação que pairava e tangenciava todas as outras, mas sobre ela não se falava. *****

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Quando tive que explicar pela primeira vez minha pesquisa para os sujeitos desta investigação, hesitei de todas as formas em falar sobre o podre ou defini-lo enquanto parte deste estudo. Ao ter como resultado desta escolha uma boa aceitação, nunca mencionei a tal palavra a nenhum de meus interlocutores. Justifico esta escolha com o fato de que era sobre a comida deles que eu estava falando, a qual, como já foi demonstrada inúmeras vezes, está claramente associada à vida e à sobrevida de seus comensais. Não obstante, o podre estava ali, como uma sombra sobre a definição do comestível. O podre era a comida que os feirantes jogavam na lona para que os moradores da favela do Madelena pudessem catá-la, era a comida que Ana comia quando morava na rua, era também como ela se sentia vivendo essa situação. O podre também era o frango morto de granja, o sopão para os moradores de rua e, por que não, o mamão rejeitado pelo Mesa Brasil e jogado na caçamba de lixo. Era a forma não ‘limpa’ ou ‘bárbara’ de preparar as comidas; a falta de ‘boas práticas’ na cozinha. Era também a falta da própria ideia de ‘cozinha’, era o cru que se decompõe. Era a transformação que não se dava através do homem. O podre então não existia na materialidade como a concebemos, mas estava sempre presente no discurso, e ao compreendê-lo como ‘coisa’, assim como propõem as metodologias discutidas nos tópicos anteriores, como algo que está na vida, pude passar a considerá-lo um objeto, mas um objeto com uma materialidade questionável. Um objeto discurso, um objeto classificação ou categoria. Nesse sentido, eu diria que o podre deixa de ser uma categoria analítica para se tornar um discurso. Partindo desta perspectiva, comecei a questionar esse objeto e seus usos, sua materialidade. Estando o podre presente na descrição de certas vidas e de certas pessoas, na maneira como certas atitudes são concebidas, no caráter e na natureza das coisas e pessoas, apesar de afirmar que este define objetos, acredito que essa definição está diretamente associada a uma ideia de caos, e até mesmo de não definição (Douglas, 1976), e assim pode ser compreendido através da noção de abjeto. Buscando ir mais além no pensar as vidas definidas pelo podre como vidas objetificadas, como pessoas transformadas em coisas, entendo que a incorporação do podre enquanto discurso muda, na verdade, o estatuto de vida desses seres, sua própria existência

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no mundo como sujeito. Segundo Butler (2002), em referência à discussão de Douglas realizada em sua obra Pureza e Perigo, o abjeto seria aquele que “vive dentro do discurso como figura absolutamente não questionada, a figura indistinta e sem conteúdo de algo que ainda não se tornou real” (2002:162). O podre seria, assim, ademais de um ponto virtual no processo de construção etnográfica, o próprio abjeto. Desta maneira, ainda que Douglas (1976) e Butler (1993, 2002) estejam falando de corpos, creio que este conceito se encaixa de maneira extremamente pertinente na construção do podre enquanto objeto e permite, a partir da ideia de incorporação relacionada à comida, pensar também nas pessoas. As relações com o podre se definem, neste sentido, como atos que constituem um domínio daquilo que não pode ser dito e que condiciona a distinção entre o próprio e o impróprio. O pensamento, ou até mesmo o discurso visto como objeto seria algo que “se passa pela cabeça, não nasce e não fica lá, investe e exprime o corpo da cabeça aos pés” (Viveiros de Castro, 2012:157). O corpo torna-se central nesta relação entre objeto, abjeto e vida, e é sobre ele que refletirei a seguir. ***** O corpo daqueles que se relacionam com o podre se torna semelhante a ele não apenas por sua associação simbólica, por assim dizer. O objeto-abjeto-podre é incorporado e este ato por si só transforma seu comensal; transforma seu corpo no sentido de tirar-lhe o estatuto de pessoa, como se esse também fosse uma propriedade das coisas. Diferentemente da concepção levistraussiana que toma “o corpo, as suas partes e emissões, composição e decomposição” (Vander Velden, 2004:118) como uma “matriz de símbolos e um objeto de pensamento” (Idem, ibidem), o corpo é aqui pensado como uma condição para viver seu estatuto de pessoa e é nesse sentido que o abjeto é incorporado e transforma o estatuto daqueles que o consomem. O “corpo não é apenas suporte das informações e alterações operadas pela sociedade, mas ele próprio é agente dessas ações, constituindo o locus da experiência do ser no mundo, porque esse mundo é pensado em termos anatômicos” (Hugh Jones citado por Vander Velden, 2004:118). Ou ainda, esse corpo é o objeto que permite a vida, sua existência como um todo, sem estar separado em uma matriz biológica ou cultural; o corpo é visto então como algo que está vivo (Ingold, 2011).

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No entanto, o corpo que tratamos aqui é, no limite, o corpo abjeto, o qual, assim como o podre, tem sua existência questionada. Diria, na verdade, que não somente sua existência é questionada, mas também seu valor. O risco de incorporar o abjeto, o objeto que mais se aproxima da morte, é pautado pelo valor da vida que o consome. O que faz Ana dizer que estava com vontade de comer ‘aquele frango’, mas que não o ofereceria a mim? O que a faz dizer que ‘da próxima vez’, quando ela fizesse uma ‘comida boa’, ela me convidaria para almoçar? É o valor das vidas medido pelo risco que cada vida pode correr, o qual está associado ao seu estatuto de pessoa que também define uma hierarquia entre os vivos e os que quase não são mais. Assim, não poderia afirmar aqui que o corpo de Ana é uma matriz de símbolos significada de maneira diferente da minha, principalmente em relação àquilo que ela concebe enquanto comestível. Ou ademais que sua lógica de qualidades sensíveis sobre essas substâncias naturais se transforma em um aparelho simbólico estruturador de relações sociais. Ao falar de pessoas, de corpos e de objetos, eu falo da vida e este processo de estar no mundo por si só já extrapola as ideias de aparelhos simbólicos em relações duais, com relações sociais e substâncias naturais. O corpo abjeto remete, desta maneira, à vida. Ele diz respeito a todos os tipos de corpos cujas vidas não são consideradas ‘vivas’, e cuja materialidade é entendida como não importante. A noção de abjeto compreende então a vida e seu valor, suas propriedades ou variáveis, e é concebendo o podre em si e as pessoas que o definem que encontro a justificativa para a ausência destes nas falas e nas observações, pois a vida do podre e dessas pessoas é quase inexistente. ***** Considero essencial retomar neste momento a discussão sobre os objetos, as coisas e sobre a mudança ontológica que permite que as coisas possam ser compreendidas como vivas, como estando na vida; e mostrar como existe nesta discussão sobre o corpo e as pessoas a mesma necessidade. Para Judith Butler, o domínio da ontologia é um território regulamentado: “o que se produz dentro dele, o que dele é excluído para que o domínio se constitua como tal é efeito de poder” (2012:161), ou ainda como diria Latour, “quanto mais espaço para as

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divindades, mas sujeitos jogados por engano, em um mundo de coisas”

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(2001:75). É

nesse sentido que o podre é um objeto excluído, pois assim como os corpos que ele define, ele não é uma ‘coisa’ inteligível e não tem uma existência legítima, em todos os sentidos. Ele nem mesmo existe, de forma marcada, na linguagem legitimada de biologia (Fassin, 2005, 2006; Latour, 1994, 1997). No entanto, este podre que flutua entre o puro e o impuro também é compreendido como um fenômeno que transcende a esfera da assepsia físico-biológica. O mamão que é rejeitado pelo programa Mesa Brasil o é por sua propriedade de causar risco, e esta é magicamente associada ao valor da vida de quem o incorporará. A incorporação, ao tratar do podre enquanto abjeto, é um perigo porque existem (mais do que) ambiguidades, e a demarcação de sua fronteira como objeto que existe é difícil ou até mesmo impossível. **** The mouth and the tongue enable us to ingest the outside world. (Paull Stoller, 1990)

“É pela boca que se predica. Diz-me como, com quem e o que comes e te direis quem és” (Viveiros De Castro, 2012:157). Longe de ser apenas um ditado que explana sobre ‘outros mundos’ ou aquilo que era chamado de ‘primitivo’ e selvagem, essa afirmação se mostrou mais do que válida para trazer luz às situações que ocorrem nas esquinas de casa, nos supermercados que frequentamos, nas ruas que passamos. Ela é válida não somente para nosso imaginário, mas para explicar alguns processos do ‘being alive’. El alimento absorbido nos modifica desde el interior. Es al menos la representación que se construye el espíritu humano: se considera que lo incorporado modifica el estado del organismo, su naturaliza, su identidade” (Fischler, 1995:66).

Incorporar um alimento é, para além do que Fischler chamaria de plano real e imaginário, incorporar todas as sua propriedades. Somos o que comemos. A fórmula alemã Man ist, was man isst (somos o que comemos) é verdadeira. E partindo da concepção das 38

Uso essa afirmação aqui exatamente para questionar a dicotomia entre coisas e pessoas, assim como Latour propõe, desmistificando as coisas como dadas e os sujeitos como puramente construídos. É então neste contexto que o podre também se define.

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coisas e das pessoas como ‘estando na vida’, esta afirmação adquire um sentido que extrapola as separações entre representação e realidade, biológico e cultural. Indo mais adiante da postulação de Fischler, na qual o antropólogo concebe a afirmação acima como “verdadeira no sentido literal, biológico”, pois los alimentos que absorbemos proporcionan no sólo la energía que consume nuestro cuerpo, sino también la sustância misma de este cuerpo, em el sentido de que contribuyen a mantener la composición bioquímica del organismo (1995:66),

acredito que ao tratar do podre enquanto objeto, ou ainda, abjeto, esta afirmação adquire uma maior perversidade. O podre não será aqui definido de maneira alguma, principalmente por tratar do inclassificável, daquilo que tem sua existência questionável e é até mesmo não ininteligível. Enquanto categoria, ele também deve ser analisado, e não tomado como fato. Contudo, ele se apresenta como uma sombra do comestível que, ao falarmos do ‘que se come’ lança luz sobre os objetos, as classificações, os nomes e as vidas, e por isso traz o lado perverso do processo de incorporação ao iluminar as propriedades que definem o comestível. É o abjeto podre, o não classificável que nos permite ver as propriedades de valor e risco que definem o comestível e que são incorporadas definindo corpos e estatutos de pessoas. Assim como a designação de antropofagia enquanto uma prática que “contribuiu para domesticação e incorporação de força ou substancias vitais” (Vander Velden, 2004:120), a incorporação do comestível, com todas suas propriedades, está também diretamente ligada à vitalidade, à vida. A hipótese de Sahlins deveria, dessa forma, ser concebida extrapolando suas dualidades: o esquema simbólico de comestibilidade se junta com aquele que organiza as relações de produção para precipitar, através da distribuição de renda e demanda toda uma ordem totêmica unindo em uma série paralela de diferenças o status das pessoas e o que elas comem (1979:176 – grifos meus).

A comestibilidade deve, então, ser pensada como um objeto, no sentido já expresso anteriormente neste texto, e assim, não mais a renda e a demanda precipitaria a ordem totêmica, mas sim as variáveis de valor e risco. Ademais, não poderia dizer que é somente em uma ordem totêmica que o estatuto de pessoa e o que elas comem estariam

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unidos, mas em sua existência no mundo, o processo de ‘being alive’. Portanto, posso afirmar que, em relação à comestibilidade, ao objeto comida, o sentido está sim na coisa em si, diferentemente do que postula Lévi-Strauss, mesmo tratando de ‘coisas’ distintas, e a relação parte desta premissa. “Food not only nourishes our bodies but also nourishes our higher nature” (Sêneca, citado por Stoller, 1990:23), sendo a expressão ‘higher nature’ concebida como ‘estar vivo’, no sentido de potência (Ingold, 2011), é possível questionar a categoria de vida e do podre, e pensando-as em conjunção com as variáveis de valor e risco, percebo que uma associação perversa acontece. Cada fase da vida dos alimentos, ao ter como propriedade certa quantidade de risco para aqueles que o consomem define quem vai comer o que. É o valor da vida das pessoas e o risco que esta vida pode correr que cria a comestibilidade dos alimentos. Desta forma, o podre que não aparece nas falas e nas observações de meus interlocutores nunca deixou de estar presente nas poesias, nas rimas, no lirismo e no mundo dos sentidos e abstrações, pois é ele que coloca luz sobre certas vidas. É o podre que nos permite compreender o que Ana quis dizer quando afirmou que havia entendido meu objetivo de estudo, “saber como ela sobrevive”, é ele que nos faz entender o que é comida de gente, o que não é, e o porquê de certas coisas voltaram a ser comida, mas somente para certas pessoas. Quando afirmo que “os homens reciprocamente definem os objetos em termos de si mesmo e definem-se em termo de objetos” (Sahlins, 1979:169), tendo sido o podre designado enquanto objeto-abjeto, estou na verdade tratando da criação e definição das ‘vidas podres’. Postulo assim, que estas vidas podres, abjetas, sofrem uma ‘desvivicação’, são sujeitos não mortos, mas, no limite, quase destituídos de vida no sentido de potência. O podre é a vida não classificável classificando vidas. E é a fome, enquanto móvel de disputa, que atenta para os limites desta vida e que produz desigualdades poderosas entre os valores de vida. É a fome que incide sobre o podre e me permite afirmar, assim como Taniele Rui, que “à medida que as pessoas se tornam semelhantes às coisas, essas é que adquirem nome, demarcam distintos usos e passam a ser objeto de políticas públicas” (2012:14). O podre, mesmo não existindo, delimita os limites da vida das pessoas, estende ou diminui a

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propriedade de comestibilidade dos objetos em relação ao valor da vida desses seres humanos, em relação ao risco que estes podem correr.

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Considerações Finais O resto da vida, aquilo que não se enquadra exatamente nas categorias aceitas está ainda presente e exige atenção (Douglas, 1976:198).

A principal inspiração para a escrita do projeto de pesquisa que veio a se tornar esta dissertação se encontra em O Triângulo Culinário, de Lévi-Strauss, como já apontado anteriormente. Foi a leitura dessa obra que chamou minha atenção para o podre e seu potencial, sendo este o ponto não marcado que transitava pelos eixos da natureza e da cultura. Neste texto, não só o podre como também a cozinha eram sinalizados como relevantes pontos de partida para se pensar a dualidade basilar da disciplina antropológica. Todavia, mesmo reconhecendo o potencial do podre para questionar esta dualidade e concebendo a cozinha como um processo de transformação tanto natural quanto cultural, o triângulo de Lévi-Strauss somente existe a partir de sua estruturação através do eixo natureza e cultura. Esta oposição durante o processo de pesquisa me levou não somente a “terríveis dificuldades lógicas” (Descola, 2004:42), mas também a um processo de aprisionamento nesta dualidade que não permitia compreender o principal objeto por detrás desta discussão: a vida. Foram então o primeiro e o segundo campo (Strathern, 1999) que me permitiram pensar sobre o podre como um objeto que traria luz às minhas principais questões e a cozinha como mediador desta construção. A ideia de comestível que a priori nos parece ser uma propriedade intrínseca do objeto-comida e, sendo assim, está associada diretamente com a capacidade de um alimento não fazer nenhum mal a quem o consome, ou ainda ser definido culturalmente enquanto tal foi sendo ao longo do texto desvelada em diferentes variáveis que trabalham em sua definição. Esse processo expôs a forma dual com a qual classificamos os objetos, as pessoas e as vidas. A partir dos conceitos de risco e valor percebemos que a separação entre objeto e sociedade, natureza e cultura, ou objeto e pessoa não traria nenhuma contribuição para pensarmos a associação que se dá entre o que se come e quem come. Partindo da premissa de que ‘você é aquilo que come’, buscamos entender o que a palavra ‘é’ significa e o que ela cria em um contexto de precariedade. Quando as comidas são diretamente

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associadas ao valor, à dignidade, ao ser pessoa, pensar a vida enquanto um movimento em direção ao fim, orientada por preceitos básicos de necessidade, só nos levou a um paradoxo no qual a classificação do comestível somente poderia ser compreendida como uma representação da realidade social de seus comensais. Segundo Descola, ao analisar as obras de Lévi-Strauss, é possível perceber que “a oposição natureza e cultura se dissolve quando é mediada pela cozinha”, pois esta “articula natureza e cultura desdobrando e invertendo qualidades e estados que decorrem destes dois domínios, à custa de uma inelutável simetria” (Descola, 2004:43). Assim como afirma Pollan (2014), através da cozinha podemos compreender processos como o de vida e morte, de transformações culturais e naturais, além do questionamento de temáticas que seriam somente do domínio de certas ciências. Nesse sentido, é a partir da potencialidade do podre enquanto objeto que clareia as propriedades da comestibilidade bem como as relações entre a cozinha, as pessoas e os objetos que algumas considerações finais se delineiam. A primeira delas está associada ao saber antropológico referente a esta ideia de cozinha, isto é, a antropologia da alimentação e a forma como esta se relaciona com o objeto comida. Em seguida, esboço uma pequena discussão sobre as contribuições do ‘podre’ para se pensar aquilo que sempre foi definido como nosso principal objeto de estudo, a cultura. ***** Ao pensar no campo da “Antropologia da Alimentação” somos quase que involuntariamente levados a compreendê-la como uma disciplina que pretende entender as implicações sociais e as questões de identidade e pertencimento associadas à comida. A própria palavra “alimentação” remete à relação que se estabelece com a coisa ‘comida’, ou melhor, com a coisa ‘alimento’, e não ao objeto em si. Mesmo sendo a comida vista nas ciências sociais como ‘o alimento transformado através da cultura’ e o alimento sendo um ‘objeto sem significado social antes desse processo’, o nome da disciplina que pretende compreender o objeto comida não deixa de ser “Antropologia da Alimentação”, talvez porque, assim como já mencionado

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anteriormente, a comida enquanto tal tem sido um objeto de estudo menos interessante para a antropologia do que as relações que ela estabelece. Nesse sentido, tive como objetivo neste estudo compreender a comestibilidade como um objeto em si que permite desvelar as relações que se estabelecem ao seu redor, e foi o ‘podre’ que possibilitou a elucidação dos caminhos teórico-metodológicos para alcançar estar compreensão. No entanto, esse caminho construído a partir da concepção do podre enquanto ponto virtual, ou ainda, como abjeto está diretamente associado com a crítica ao campo de estudos da alimentação, principalmente no que diz respeito ao objeto ‘comida’ e as formas de pensar tal objeto. É comum nos países nos quais a antropologia é concebida como uma disciplina dividida em campos separados entre os estudos culturais e a etnologia existir um campo próprio para estudos da alimentação denominado “Food Studies”. Esse campo do conhecimento se propõe desde sua concepção como interdisciplinar, englobando as diversas áreas legitimadas para pensar o alimento, como a nutrição, ciências dos alimentos, engenharia dos alimentos, gastronomia e também os estudos culturais. Todavia, apesar de sua proposta compreender todas essas áreas enfocadas em um único objeto, este objeto ainda é concebido nestes estudos de forma purificada (Latour, 1994), sendo analisado separadamente por cada um de seus domínios. Considerando a relevância de se pensar a comida de forma a abranger todas as suas esferas, acredito que o podre e o estudo da comestibilidade abordados neste trabalho contribuíram para indicar um caminho interessante. Não descarto assim a antropologia neste processo, pois a vejo como uma ciência que ao invés de competir em relação às outras ciências que estudam a comida, como a nutrição, biologia, ciências dos alimentos, entre outras, ela seria capaz de englobar a visão de todas essas áreas “assim como um olhar distanciado engloba outros menos distanciados sem excluí-los” (Bevilaqua et Leirner,2000:112). Levando em consideração a afirmação de Douglas, na qual “a falta de pesquisas nos usos culturais e sociais da comida é causada por uma separação fundamental entre ‘food sciences’ e pensamento social”, a “divisão das necessidades humanas entre coisas instrumentais e materiais e coisas espirituais auto justificadas além de não trazer

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contribuições profícuas, concebe o individuo como desocializado” (2003:3). Nesse sentido, a partir dos questionamentos apontados pelo objeto ‘podre’, considero extremamente relevante pensar o estudo da alimentação a partir da comida enquanto objeto, o qual tem imbricado em si suas propriedades, seus usos, suas práticas e relações compreendidas de forma simétrica. Como já foi discutido nos capítulos anteriores, estudar as coisas e suas propriedades poderia apontar para um abandono do estudo do homem, isto é, o próprio objeto da antropologia, no entanto, diversas pesquisas contemporâneas nos mostraram que o objeto em si e sua materialidade pode dizer muito mais sobre a própria humanidade do que apenas o estudo de suas relações. Assim, creio ser necessário questionar o próprio nome da área de concentração que compreende o tema da comida, e propor compreendê-la através de uma inspiração do “Food Studies” e denominá-la como “Antropologia da Comida”, ao conceber o objeto em si como fonte de conhecimento. Desta forma, através deste novo conceito, penso ser possível gerar reflexões sobre todas as relações que o envolvem, mas sem deixar de lado suas propriedades e sua própria materialidade que diz muito também sobre as pessoas com as quais estão em relação. O estudo da comida enquanto tal permitirá uma compreensão dos objetos como estando na vida e partilhando a construção e os processos desta com as pessoas. Após elucidar as propriedades da comestibilidade buscando mostrar que esta não é apenas uma combinação de aspectos sociais e culturais ou de aspectos biológicos e nutricionais, a ‘coisa’ comida surge como uma possibilidade de desvelar a separação entre esses dois campos que obscurece a compreensão da alimentação como um fenômeno que envolve todos os processos daquilo que chamamos de ‘estar na vida’. Para além de pensar a alimentação como “um fato que transcende a biologia e está intrinsecamente relacionado à cultura” (Contreras, 2011:126), quando analisamos o objeto comida em si podemos responder à pergunta “por que não consumimos tudo o que é biologicamente consumível?” indo além desta separação. O podre, sendo este ponto virtual que estende a própria ideia de comestibilidade, podendo ser uma transformação natural ou cultural de algo previamente concebido como de um dos campos, nos permite compreender que o objeto comida, o qual

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é criado em relação à cozinha, é definido para além dos “saberes e habilidades técnicas transmitidos de geração em geração com base na experiência de nossos antepassados e aprendidos por membros de uma determinada sociedade” (Contreras, 2011:139), sendo as coisas as suas próprias relações, que são construídas neste processo de “continuous birth, a generation of being” (Ingold, 2001:88). Pensando na afirmação de Ingold, no qual o autor diz que “stones too have history”, isto é, que “the properties of materials, in short, are not atributes but histories” (Ingold, 2011: 51), reivindico a relevância do estudo da ‘coisa’ comida para entender as relações que ela permeia, pois as coisas dizem muito sobre como nós compreendemos a nossa própria humanidade e definimos aqueles que compartilham ou não deste estatuto. O estudo da comida, pois, além de ser importante pelo próprio fato de que esta é essencial à existência do homem, também se mostra extremante profícuo para debater e desenvolver a teoria e a metodologia antropológica, pois questionando o interesse desta disciplina em passar do conhecimento do mundo físico e material para o mundo psicológico e social, pode-se contribuir muito para a compreensão do anthropos e de tudo que está envolvido na experiência de estar no mundo. ***** Esta segunda proposição diz respeito ao podre enquanto potência para questionar não somente o dualismo chave da antropologia, a oposição entre natureza e cultura, mas principalmente para questionar a própria ideia de cultura advinda desta distinção. Esboço neste sentido uma pequena digressão que o podre em sua materialidade questionável trouxe à tona. Ao pesquisar sobre a temática do apodrecimento, sendo este concebido a partir de suas propriedades físicas, sua definição enquanto um momento na vida dos alimentos gera diversos questionamentos. Entretanto, esses questionamentos sobre os limites do podre foram de certa forma ‘solucionados’ a partir da compreensão deste enquanto um ponto virtual, algo não definido que ainda assim atua na classificação das pessoas. Mesmo assim, pensar sobre o podre nos leva a pensar em diversos alimentos com os quais convivemos cotidianamente. O queijo mencionado no capítulo dois, o frango, os iogurtes e até mesmo algumas formas de conservação dos alimentos que tem no apodrecimento sua principal

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metodologia nos levam a pensar sobre a vida contida neste processo de transformação, além da própria relação entre ‘nós’ e os ‘outros’ no que concerne a nomeação do podre. Ambos processos podem então, ser designados como aquilo que entendemos como ‘cultura’ e é exatamente neste ponto que o podre pode nos ajudar a estender essa definição. Quando um alimento é definido como podre ele é na verdade entendido como ‘não comida’, ou ainda como a comida que o outro come, pois sua designação como tal está diretamente associada às propriedades do que viria a ser o podre, ou seja, à contaminação, ao caos, à sujeira e ao risco. No entanto, a partir de uma perspectiva que advém da própria biologia, o podre pode ser considerado como nada mais do que ‘culturas vivas interagindo’. Ao deixarmos de lado uma concepção higienista, ou ainda uma concepção que compreende a vida de forma purificada, podemos talvez ver no podre uma potência em relação à própria definição de vida e a maneira que a antropologia pode usar desta para ir além do que entendemos como cultura e definimos como seu único objeto. A comestibilidade de um alimento definida em relação ao risco contém em si algumas propriedades que estão associadas ao perigo do alimento causar algum malefício à vida de seu comensal. Com o processo de desenvolvimento da ciência, e sendo as ciências biológicas responsáveis pelo cuidado daquilo que compreendemos como vida, aqueles objetos que poderiam de alguma forma causar confusão, contaminação, doença e morte foram afastados da nossa existência no mundo, ou no mínimo, foram afastados daqueles cujas vidas não poderiam correr o risco de serem perdidas. Esse processo que pode ser compreendido como parte de uma biopolítica39, isto é, da vida enquanto objeto de poder, produziu um sistema de valoração do que seria a vida digna de ser vivida, não só das pessoas, mas também dos animais e dos objetos. Nesse sentido, ao tratar da comida e sua relação direta com a vida devido ao processo de incorporação do risco, pode-se dizer que les techniques d’hygiene collective que tendente à prolonger la vie humaine ou les habitudes de neglihence attaché à l avie dan une societé donnée, c’est 39

Aqui, penso a biopolítica para além das definições Foucaultianas, tendo em vista (como já foi mencionado anteriormente) que Foucault ainda se mostra extremamente enraizado em uma concepção de vida separada nos domínios do biológico e do social, e que por sua influência marxista, pensa na tecnologia política mais do que na vida em si, ou seja, se interessa pelas práticas sociais que se exercem sobre os corpos e os indivíduos, sendo assim o governo dos corpos que origina o governo da vida (Fassin, 2006).

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finalmente um jugement de valeur que s’exprime dans ce hombre abstrait qu’est la durée de l avie moyenne. La durée de l avie moyenne n’est pas la durée de la vie biologiquement normale, mas ele este em um sens la durée de vie socielement normative (Fassin, 2006:8).

Neste processo, o humanismo se tornou a forma por excelência das políticas da vida, sendo uma categoria que se repousa em um princípio de tratamento moral da vida humana. Foi então por essa razão que ressaltei neste trabalho a importância de pensar, não só as pessoas em sua categoria de humanidade, mas também em seu estatuto de pessoa, e pensar as coisas como participantes desta relação. Em um momento que impera a biolegitimidade, a legitimidade da vida, o reconhecimento da vida biológica como bem supremo, é importante “saber como ela se inscreve de maneira complexa, incerta e ambígua no coração de nossos sistemas de valor e ação e de nossas economias morais e políticas” (Fassin, 2006:12). O podre questiona dentro da própria ideia de biologia o que é considerado vida e assim o que concebemos como cultura neste processo, isto é, o que diferencia a vida humana das outras. Desta maneira, se para proteger a vida humana (aquelas que têm valor), aquilo visto como perigoso nos foi afastado, talvez para compreender a vida como um todo e protegê-la em sua complexidade seja necessário pensar para além do que concebemos como vida digna de viver. Aquilo que para outrem é designado como podre pode ser considerado dentro da própria biologia como um emaranhado de vidas, ou ainda, como uma grande diversidade cultural. O iogurte, conforme vai avançando em seu estado de decomposição, vai se tornando cada vez mais cheio de outras vidas. O queijo, para ser considerado mais seguro para o consumo humano, precisa ter uma cultura complexa de bactérias em sua composição. Nesse sentido, se mostra importante para a compreensão do objeto comida “valorizar os profundos vínculos entre a diversidade cultural humana e a microbiana e o modo como, ao longo da história uma tem alimentado e sustentado a outra” (Pollan, 2014:290). Nesse momento etnográfico, o podre impõe-se por si só iluminando a ideia de que “dissent over how to live with microorganisn reflects disagreement about how humans ought to live with one another, framing questions of food ethics and governance” (Paxson, 131

2008:16). Ou seja, a própria definição do podre e deste objeto enquanto caótico, sem existência garantida pelas propriedades contidas em sua nomeação, demonstra como lidamos com as vidas de diferentes pessoas. Enquanto antropólogos, vemos na biologia um limite para nossa atuação e não questionamos ou adentramos a própria influência desta disciplina na definição de nosso objeto de estudo. Em relação ao podre como concebido pela biologia, são os micróbios que detém todas as propriedades que seriam dotadas de risco para a vida humana. Nesse sentido, os micróbios são concebidos como elementos a serem eliminados para que “human polities might be cultivated”. O podre nos faz pensar assim que “anthropological attention to microbes might lead to a better understanding not only of certain human cultural artifacts, but ultimately of the central object of our study: anthropos, the human itself” (Paxson, 2008:19). Desta forma, a própria biologia, disciplina até então questionada pelo podre enquanto objeto nos aponta uma direção para uma melhor compreensão de nosso próprio objeto de estudo, pois segundo Paxson, “an indefensible focus on macrobes has distorted several basic aspects of our philosophical view of the biological world, and that the neglect of microbe continues to distort our anthropological view of the social world” (Idem, ibidem). Em um contexto de desenvolvimento industrial no qual a própria categoria de vida foi sendo transformada e tida como uma propriedade inata das coisas que pode ser estendida por processos ‘artificiais’, é possível encontrar movimentos advindos da biologia que buscam resgatar culturas indígenas, isto é, culturas tanto dos micróbios, quanto dos humanos, daquilo chamado de homogeneidade industrial. Neste sentido, os micróbios são concebidos como “natural fauna and flora, that materialize as specific communities within ecologies of human practice” (Paxson, 2008:35). A concepção do podre inserida nesta perspectiva permite ver a biopolítica atual, relacionada à comida, como predicada no controle indireto dos corpos humanos através do controle direto de corpos microbianos. A biopolítica contribui então para a produção do que se chama de ‘risco racional’, minimizando os sujeitos e criando uma governabilidade com o objetivo de gerenciar o risco de forma público.

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Este processo levaria ao que chamamos de criação dos objetos abjetos e posteriormente dos corpos abjetos, pois seriam aqueles que não se enquadrariam nas definições de valor e risco propostas por estas políticas de valor. Um questionamento que busca uma mudança ontológica sobre a maneira que vemos a própria cultura bacteriana, sendo esta legitimada pela voz da biologia que influi diretamente sobre nossas políticas de organização da vida, poderia contribuir para uma nova proposição no que entendemos como cultura, e um desvencilhamento desta categoria em relação à cultura humana, para assim concebermos uma nova maneira de pensar todos aqueles que estão na vida, uma nova ecologia. Isto porque, segundo Paxson, “if in Rabinow’s phrasing ‘in biosociality nature will be modeled on culture understood as practice’, in microbiosociality, the culture understood as practice includes microbial cultures”, pois, “practices of nature-cultura are microbial as well as human” (Paxson, 2008:39); ou ainda, não só de micróbios e de humanos mas de todos aqueles organismos que estão na vida. Portanto, uma antropologia que concebe todas essas formas de vida como constituintes do mundo iria contribuir para um “full picture of the human organism (seeing) it as a ‘composite’ of many species and our genetic landscapes as an amalgam of genes embedded in our Homo sapiens genome, and in the genome of our affiliated microbial partners” (Paxson, 2008:39). A vida humana seria vista como uma entre outras tantas vidas, colocando elas em simetria sem deixar de pensar nas propriedades que dão valor a cada uma delas.

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