VIDA+HORA EXTRA A ressignificação do corpo e do tempo nos serviços prestados pelas empresas de Criônica

May 26, 2017 | Autor: Amanda Ovando | Categoria: Biopolitics, Biopower and Biopolitics, Consumo, Morte
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ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING (ESPM–SP) GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL COM ÊNFASE EM PUBLICIDADE E PROPAGANDA

VIDA+HORA EXTRA A ressignificação do corpo e do tempo nos serviços prestados pelas empresas de Criônica PEN SÃO PAULO 1 / 2016

VIDA+HORA EXTRA A ressignificação do corpo e do tempo nos serviços prestados pelas empresas de Criônica PEN Projeto de Graduação Monográfico apresentado à Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-SP) como requisito parcial para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda Orientadora: Profª. Paola Paci Mazzilli

SÃO PAULO 1 / 2016

Traduzir-se (Ferreira Gullar)

Uma parte de mim é todo mundo:

Uma parte de mim

outra parte é ninguém:

é permanente:

fundo sem fundo.

outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim é multidão:

Uma parte de mim

outra parte estranheza

é só vertigem:

e solidão.

outra parte, linguagem.

Uma parte de mim pesa, pondera:

Traduzir uma parte

outra parte

na outra parte

delira.

— que é uma questão de vida ou morte —

Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta.

será arte? De Na Vertigem do Dia (1975-1980)

Agradecimentos “Quando entrei na ESPM comecei a usar óculos” Essa afirmação não é só literal. Assim como as lentes, esses quatro anos me permitiram enxergar melhor e cada vez mais longe. Os mestres-mentores-ídolos-amigos (condições que eventualmente recaíam sob os mesmos sujeitos) que me guiaram, e pacientemente me despiram das certezas e convicções que eu cheguei trajando, foram indispensáveis e essenciais na lapidação dessas lentes oculares. Algumas aulas despencavam como tempestades, deixando tudo confuso e embaçado. Ainda que demorasse, tudo acabava claro e nítido. Essas lentes, que hoje fazem parte de mim, me acompanharam tanto dentro quanto fora do campus, e graças à elas, eu passei a enxergar tudo de uma nova maneira. Ao mesmo tempo em que essas lentes me fizeram perceber o quanto eu era diminuta, também revelaram quão grandiosas eram as pessoas à minha volta. Gigantes estes, que me colocaram sob seus ombros para mostrar quão longe eu podia sonhar. Ou chegar! Era só querer! Com a visão mais apurada, foi possível observar com mais clareza às pessoas a minha volta. O que não faltaram foram exemplos: do que fazer e do que não fazer! Ironicamente, meus mentores me ensinaram a questionar tudo. Até o que eu enxergava! Mestres que não me situaram o quanto eu era pequena, e sim quão grande o mundo é. Ora com foco, ora sem foco...se esses quatro anos fossem um livro, a última página estaria em branco: um infinito de possibilidades que está por vir.

Nessa profusão caótica de novas perspectivas, sentidos, pensamentos, ponto de vistas, entendimentos, compreensões, interpretações, ângulos, óticas (e semióticas) nem tudo é apolíneo. Mas, “o que seria do doce se não houvesse o amargo”1? Esses momentos de agruras e desventuras serviram para constatar quem seriam os estimados que eu carregaria para o resto da vida, se não ao meu lado, ao menos no coração. Sem estes, cada uma das mais de 800 horas despendidas nas salas de aula não teriam o mesmo brilho: Gabriela Pacheco, Nicole Ackermann, Giovana Candezani, Laura Helena, Giovana Gebrim, Isadora Viessa, Rafael Gonçalves, Giulia Gonzales, Tomas Falzoni, Luísa Lancelotti, Gabriel Diniz, Renata Rapyo, João Melara, Gabriel Cardinalli e Dariely Belke, um muito obrigada! E os cristais, que por algum motivo permaneceram ocultos durante mais de três anos, mas emergiram providencialmente no momento mais difícil: Stephanie Queiroz (Stephoda), Camila Boarini (Camilinda) e Felipe Steinbruch (Philosofil). Nós quatro, que tanto nos ajudamos mutuamente nesses últimos meses. Tão recentes, porém tão raros e incomparáveis. Ao lado desses “condiscípulos da ABNT” tive a honra de ser orientada, iluminada, aconselhada e amparada pela Paola. Que depositou em mim confiança, transmitiu tanta calma quanto foi possível e acima de tudo tudo tudo tudo, teve comigo uma paciência homérica. Paola, você é fenomenal, obrigada pela oportunidade de ser #Paolovers #TeaMazzilli. À minha família, base e essência de tudo. Que me ensinou a ter sonhos e me permitiu persegui-los. Que nem sempre acreditou em mim, mas nos momentos mais penosos e angustiantes: estava lá preparando café madrugada adentro e assando tortas de ricota para que eu não desfalecesse. Obrigada mãe e tia, pelo apoio moral e alimentar. Obrigada José Luis e Jorge, pelos conselhos profissionais (por exemplo: não cursar publicidade ou desejar a carreira acadêmica. Os quais não acatei nenhum, mas valeu mesmo assim o esforço). Obrigada Pedro, Júlia e Olívia pela alegria pueril contagiante, por impedirem que eu ficasse melancólica, consternada ou deprimida. Muito obrigada Bethânia, que em toda sua singeleza e candura não sabe ler, mas tem dentro de si toda virtude, beleza e bondade que um ser pode carregar. Ela que me acompanhou fiel e devotamente desde a primeira sílaba deste trabalho, até a última. Tão de perto, que na versão física desse trabalho tem pelos. Por fim, ao meu pai, que hoje é constelação: me Norteia, nas noites escuras me ilumina o caminho e mesmo quando não se enxerga, está lá no alto. 1

De acordo com a Associação Brasileira de Normas e Técnicas, eu devo referenciar que essa frase é do filme Vanilla Sky, 2001, e foi proferida pelo Tom Cruise.

OVANDO, Amanda da Penha. A ressignificação do corpo e do tempo nos serviços prestados pelas empresas de Criônica. Escola Superior de Propaganda e Marketing, 2016, 119.

RESUMO Partindo das discussões sobre corpo, subjetividade e cultura do consumo, o presente trabalho propõe uma reflexão acerca da oferta dos serviços de criônica disponíveis, específicamente da empresa Alcor, que possui alcance mundial e destaque no segmento. Evidenciando sua relevância em termos não só econômicos mas também sócio-políticos por meio da aderência do pensamento “self emprendedor” em uma cultura de performance na qual a literatura de auto-ajuda e as ferramentas de otimização se tornam um lócus privilegiado para novos engendramentos subjetivos. Do ponto de vista metodológico, esta pesquisa vale-se tanto de uma bibliográfica de autores como Foucault, Rose, Bauman, Sibilia, Freire-Filho quanto de um estudo de caso único acerca do site da Alcor.

PALAVRAS-CHAVE: consumo; corpo; subjetividade; tempo; morte; criônica; Alcor.

OVANDO, Amanda da Penha. A ressignificação do corpo e do tempo nos serviços prestados pelas empresas de Criônica. Escola Superior de Propaganda e Marketing, 2016, 119.

ABSTRACT Starting from the discussions on body, subjectivity and consumer culture, this paper proposes a reflection on the supply of cryonics services available, specifically Alcor company, has global reach and prominence in the segment. Showing their relevance, not only economic but also social and political through the grip of thought "self entrepreneur" in a performance culture in which self-help literature and optimization tools become a privileged locus for new engendering subjective. From a methodological point of view, this research is worth both a literature of authors such as Foucault, Rose, Bauman, Sibilia, FreireFilho as a Single Case Study on the website of Alcor.

KEY WORDS: consumption; body; subjectivity; time; death; cryonics; Alcor.

LISTA DE IMAGENS Figura 1 - Figura 1 - Divulgação da Exposição O Fantástico Corpo Humano ....................................................................................... 17 Figura 2 - Artista Petr Pavlensky enrolado em arame farpado durante um protesto em St. Petesburgo, maio de 2013, foto Reuters . 20 Figura 3 - Performance “The Third Hand” da série “Involuntary Body” do artista Sterlac ...................................................................... 24 Figura 4 - Performance “Ear on Arm” do artista Sterlac ......................................................................................................................... 33 Figura 5 - Azulejaria Verde em Carne Viva” da artista brasileira Adriana Varejão, (2000) .................................................................... 38 Figura 6 - Vanitas (1671) Louvre, Paris. Philippe de Champaigne ......................................................................................................... 42 Figura 7 - Divulgação da exposição O Fantástico Corpo Humano ......................................................................................................... 45 Figura 8 - Performance “Nude with skelton” da artista Marina Abramovic, 2002 ................................................................................... 51 Figura 9 - Caixa eletrônico questionando: “você gostaria de mais tempo?” ........................................................................................... 58 Figura 10 - Pés Congelados ................................................................................................................................................................... 65 Figura 11 - Curva de temperatura .......................................................................................................................................................... 68 Figura 12 - Procedimentos ..................................................................................................................................................................... 69 Figura 13 - Orgânico e Virtual ................................................................................................................................................................. 73 Figura 14 - Imagem ficcional de tanques Criônicos ................................................................................................................................ 75 Figura 15 - Homepage Transtime ........................................................................................................................................................... 78 Figura 16 - Homepage KrioRus .............................................................................................................................................................. 78 Figura 17 - Homepage Cryonics Institute ............................................................................................................................................... 78 Figura 18 - Logo Alcor ............................................................................................................................................................................ 80 Figura 19 - Menu de Navegação Alcor ................................................................................................................................................... 81 Figura 20 - Homepage Alcor ................................................................................................................................................................... 83 Figura 21 - Testimunhal na Homepage Alcor ......................................................................................................................................... 84 Figura 22 - Chat Online na Homepage da Alcor ..................................................................................................................................... 85 Figura 23 - Desdobramento do menu About Cryonics ........................................................................................................................... 86 Figura 24 - Imagem de divulgação da equipe Alcor ............................................................................................................................... 87 Figura 25 - Materiais utilizados no procedimento emergencial .............................................................................................................. 87 Figura 26 - Desdobramento do Menu Cryonics Myths ........................................................................................................................... 89 Figura 27 - Formas de pagamento Livro Alcor ....................................................................................................................................... 91 Figura 28 - Exemplo de "citação notável" ............................................................................................................................................... 92 Figura 29 - Perfil e depoimento do CEO Alcor ....................................................................................................................................... 94 Figura 30 - Desdobramento do menu About Alcor ................................................................................................................................. 94 Figura 31 - Demostrativo de Fluxo Financeiro de paciente suspenso .................................................................................................... 96 Figura 32 -- Conteúdo da Library Alcor .................................................................................................................................................. 98 Figura 33 - Estatísticas ........................................................................................................................................................................... 99 Figura 34 - Perfil dos Membros ............................................................................................................................................................ 102 Figura 35 - Tag utilizada por Membros ................................................................................................................................................. 103 Figura 36 - Desdobramento do Menu Library ....................................................................................................................................... 104

Figura 37 - Cobertura BBC Alcor .......................................................................................................................................................... 106

INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................................................................................... 10 OBJETO ..................................................................................................................................................................................................................... 15 PROBLEMA ............................................................................................................................................................................................................. 15 OBJETIVO GERAL .................................................................................................................................................................................................. 15 OBJETIVOS ESPECIFICOS .................................................................................................................................................................................... 15 METODOLOGIA ...................................................................................................................................................................................................... 16 1. O CORPO .............................................................................................................................................................................................................. 18 1.1 O CORPO NA BIOPOLÍTICA - do Indivíduo às Massas ......................................................................................................................................... 20 1.2 O CORPO COMO EMPREENDIMENTO - Estruturas Otimizantes ...................................................................................................................... 24 1.3 O CORPO MUTAÇÃO - Ilusão da Autonomia .......................................................................................................................................................... 33 1.4 O CORPO CONSUMO - O Livre Comércio da Matéria ........................................................................................................................................... 38

2. A MORTE ............................................................................................................................................................................................................. 43 2.1 MATÉRIA MORTAL - Dimensões da Carne ............................................................................................................................................................. 45 2.2 IMORTALIDADE MATERIAL - A Subjetividade da Substância ......................................................................................................................... 51 2.3 CONSUMAÇÃO DA MORTE - Empreendendo a vida contra morte .................................................................................................................. 58

3. A MORTE DA MORTE ....................................................................................................................................................................................... 66 3.1 CRIÔNICA - Método da Vida em Suspensão ........................................................................................................................................................... 67 3.2 CRIÔNICA – Um sintoma Transumanista ............................................................................................................................................................... 73 3.3 CONGELAMENTO - um mercado em "aquecimento" ........................................................................................................................................... 75 3.4 ALCOR - Life Extension Foundation ......................................................................................................................................................................... 79 • Home .......................................................................................................................................................................................................................................................... 82 • About Cryonics ...................................................................................................................................................................................................................................... 86 • What is Cryonics e Cryonics Procedures .................................................................................................................................................................................... 86 • Cryonics Myths ...................................................................................................................................................................................................................................... 88 • FAQ e Scientists' FAQ .......................................................................................................................................................................................................................... 90 • Alcor Book ............................................................................................................................................................................................................................................... 90 • Notable Quotes ...................................................................................................................................................................................................................................... 91 • Problems about Cryonics .................................................................................................................................................................................................................. 92 • About Alcor ............................................................................................................................................................................................................................................. 93 • The Patient Care Trust ....................................................................................................................................................................................................................... 95 • Members/Patients Stats .................................................................................................................................................................................................................... 99 • Member Profiles .................................................................................................................................................................................................................................. 101

• • • •

Membership .......................................................................................................................................................................................................................................... 103 Library ..................................................................................................................................................................................................................................................... 104 News ........................................................................................................................................................................................................................................................ 105 More e Contact ..................................................................................................................................................................................................................................... 105

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................................................................. 107 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................................................................................... 112

INTRODUÇÃO

[...] é permitido a todo indivíduo que tenha consciência da verdade regularizar sua existem, é permitido ao homem novo tornar-se um homem-deus, seja ele o único no mundo a viver assim. (DOSTOIÉVSKI, 1955, p. 1119)

O desejo de imortalidade remonta os primórdios. As técnicas de mumificação desenvolvidas por diversas civilizações desde 3000 a.C., as explicações religiosas em relação ao pós-morte e os próprios túmulos no cemitério refletem uma preocupação constante do ser humano em relação ao “mundo desconhecido” que sucede o instante fatal. Diversas tecnologias são constantemente desenvolvidas e aprimoradas com intuito de fazer com que cada vez menos o corpo seja uma barreira na jornada humana em “direção ao futuro”. O homem avança a passos largos no que diz respeito ao domínio da natureza, começando pelo fogo e chegando ao espaço (1957). Esses esforços refletem o desejo maior: de fazer com que a matéria física seja cada vez menos um obstáculo e cada vez mais um instrumento que manifeste o máximo de “liberdade”. Apesar das evoluções no campo das ciências, findando algumas mazelas, aprimorando tratamentos, minimizando o sofrimento e estendendo a expectativa de vida, ainda não há nada expressivo ou derradeiro em relação a imortalidade. Segundo Bauman (2007) a morte é a única imposição sob a qual não há negociação ou argumentação, ela é a anulação de tudo, do passado, do presente e do futuro. Do ponto de vista cultural, o autor pontua que no passado o medo da morte carregava uma conotação de tom redentor, já no momento atual, pós-moderno, teor recai para o sentido mais impiedoso, quase punitivo. As dinâmicas do medo presumem que ele seja potencializado quando disperso, nebuloso. “A escuridão não constitui a causa do perigo, mas é o habitat natural da incerteza – e, portanto, do medo” (BAUMAN, 2007, p.8) e quando se trata da morte é um terreno muito obscuro e contingente.

Todos os animais convivem com o medo da morte de maneira primária e instintiva, reagindo à ameaças manifestas e imediatas. Entretanto só os humanos apresentam além desse, algo que cientistas da psicologia social chamam de “Medo de Segundo Grau” (BAUMAN, 2007, p.9). Esse medo é resquício de uma experiência ou da consciência de suscetibilidade ao perigo, e esse medo da violência, do sofrimento, de doenças, de acidentes e da própria morte é constantemente alimentado pela mídia e pela interação social. Entretanto, Bauman aponta que a sociedade líquido-moderna permitiu desenvolver alguns mecanismos culturais que buscam transformar a vida com medo da morte em algo tolerável e menos agressivo. No livro Admirável Mundo Novo de 1932 o autor Aldous Huxley narrava o condicionamento de crianças a enfrentar e conviver com a morte, presenteando-as com seus doces preferidos quando se deparassem com parentes em leito de morte. Isso teria como intuito, por assim dizer, diminuir a assimilação negativa. Fora da literatura clássica, Bauman enumera três mecanismos que pretendem uma melhor convivência com o medo iminente da morte. O primeiro se pauta em negar a morte como um fim. Esse raciocínio visa reforçar a ideia de que independente de um posterior juízo final, reencarnação ou eternidade, a morte não é um término definitivo. A segunda se escora nas ideias da memória póstuma, defendendo que caso alcançada fama ou algum destaque, apesar do corpo padecer, a lembrança do indivíduo será eternizada na história. Por fim, existe a ideia de marginalização, desvalorização da morte, que reforça a proposição de que o “agora” vale mais que o Depois, e assim deveríamos nos importar com o presente e não com o futuro. Diante desse axioma indecifrável e inexorável que é a morte, surge então um questionamento: e se apostássemos na capacidade do ser humano contemporâneo, a ponto de crer que dentro de alguns (indeterminados) anos teremos capacidade de curar males que nos dias de hoje são irremediáveis? Após descobertas em 2007 relativas às células-tronco, células encontradas nos cordões-bilicais dos recémnascidos e na polpa do dente, aqueceu-se a discussão em torno desse campo da biomedicina. Por meio do congelamento desses materiais algumas doenças podem ser prevenidas/tratadas posteriormente, porém algumas empresas vão um pouco além dessa proposta e oferecem algo que até então se restringia a ficção científica: a Criônica humana total. Atualmente existem quatro empresas no mundo que oferecem a possibilidade de congelamento do corpo todo ou só da cabeça. A segunda opção, tida como uma versão mais “econômica” do procedimento, parte do

pressuposto de que todas as memórias, conhecimento, emoções e personalidade estão alocadas no cérebro, logo, essa cabeça poderia ser reimplantada num corpo qualquer, preservando e ressuscitando o indivíduo que optou pelo congelamento craniano. A possibilidade de se “descongelar” futuramente pode trazer à tona para discussão diversas questões de ética, religião, biopolítica, filosofia, economia, ecologia e principalmente o consumo. A suposta oferta de imortalidade tem seu preço, e qualquer um que deseje ‘aguardar’ a evolução da medicina em uma câmara a -197˚C deve desembolsar uma quantia de pelo menos U$ 28.000,00 (enquanto algumas empresas do segmento chegam a cobrar 10 vezes mais)2. As descobertas científicas ao longo dos anos alimentam não só a esperança de quem pode ter a vida preservada por uma nova tecnologia, mas também permite e estimula a criatividade dos mais visionários (e sonhadores) em relação a imortalidade. Não se tem datada a primeira menção histórica ao processo de criônica, porém em 1931, o escritor estadunidense Neil Ronald Jones publicou uma série chamada “Amazing Stories”, na qual o personagem fictício, Professor Jameson, tem o corpo conservado ao longo de 40.000.000 anos graças a tecnologia de uma cápsula despressurizada. Após esse período ‘desacordado’ ele é encontrado por uma civilização que o revive. Parte do que se considerava pura ficção tornou-se realidade. A ciência evoluiu, e os estudos criogênicos3 desenvolvidos inauguralmente pelo americano Robert Ettinger, “o Pai da Criogênia” nos permitem atualmente manter embriões, óvulos fecundados e células-tronco congeladas de maneira segura e passível de uso posterior. Na década de 60, Robert Ettinger publicou um livro, The Prospect of Immortality, que levantou questionamentos e reflexões não só por parte da sociedade científica. Nesta obra ele defendeu a tese, segundo a qual "era possível conservar o corpo indefinidamente", de modo que um dia "a ciência médica pudesse reparar os problemas causados pela doença e a própria criogenia".

2

Disponível em : http://www.cryonics.org/the-ci-advantage/ Acesso em Abr/2016 Tendo-se em mente a distinção terminológica de que a Criogenia é o ramo da física e engenharia que estuda a produção e uso de temperaturas muito baixas e Criônica é a preservação a baixas temperaturas de humanos ou mamíferos com o objetivo de serem reanimados no futuro, podemos nos adensar nas técnicas utilizadas. 3

Esse assunto desperta tanto a curiosidade e a imaginação da sociedade que diversas obras surgiram após o primeiro congelamento, que data 1967. A história em quadrinhos Transmetropolitan (1997) traz a tona algumas questões e reflexões do lado negativo de tais experimentos. O primeiro ponto abordado no livro é econômico e social: na história os personagens são descongelados e acabam como mendigos. A inflação e outras oscilações nas reservas monetárias em nível global, nos fazem pensar nos impactos a longo prazo que teriam as economias com os descongelamentos posteriores, a exemplo de aumento populacional, saturação do mercado, escassez alimentícia/hídrica, dentre outros. Outro problema seria a inadequação às culturas e tecnologias da época, que poderiam resultar em distúrbios psicológicos de várias ordens. Observando do prisma religioso, a criônica colocaria em crise maioria das religiões atuais, uma vez que todas postulam um destino pós-morte. No caso de congelamento seria “suspenso” o juízo final no caso de religiões não-reencarnacionistas? Que destino teria a “alma” nesse processo? Em caso de reencarnação, seria a mesma alma a retornar ao corpo? Há também a questão da bio-ética, que é o estudo transdisciplinar entre Ciências Biológicas, Ciências da Saúde, Filosofia (Ética) e Direito (Biodireito) que investiga as condições necessárias para uma administração responsável da Vida Humana, animal e ambiental. Até mesmo em relação as questões de células tronco, clonagem e aborto, que atualmente estão muito mais disseminadas e comuns na sociedade, ela se mostra um tanto incipiente, rudimentar. O fato de esbarrar em outras questões humanas torna o ponto mais delicado. Apesar de não termos como objetivo responder, ou sequer debater tais questões, consideramos importante sinalizar estes impasses, já que são estas algumas das questões que emergem dos serviços de criônica. De fato, reflexões dessa ordem só se mostram pertinentes para esboçar uma contextualização das questões que pretendemos aprofundar neste monográfico. Vamos apresenta-las, a seguir. Atualmente há quatro empresas ao redor do mundo que oferecem o serviço de congelamento: a Alcor, a Cryonics Institute, a Kriorus e a Transtime (três nos EUA e uma na Rússia) todas dispõem de páginas na internet que podem ser acessadas de qualquer lugar do planeta. O discurso de venda será analisado sob a ótica da comunicação e das disciplinas pertinentes a ela.

Essa pratica configura uma nova modalidade de capitalização, algo denominado por Denise Sant’Anna (2008) como “outra humanidade”, pois a partir de um Darwinismo Social associado a mercantilização do intangível passa-se a consumir um bem alocado no futuro. Futuro este, que não está determinado, muito menos garantido, uma vez que toda ciência e tecnologias envolvidas no descongelamento são especulativas e prototípicas. A possibilidade – não atestada cientificamente – de se preservar a personalidade e intelecto é tema abordado por Sant’anna (2005), como tendência de reconstrução do mercado por capitalizar o patrimônio virtual, imaterial. Momento que a mercadoria e consumidor se mesclam de maneira indiscriminável, e que o próprio serviço oferecido se configura como Potencial. Apesar da natureza indômita presente no desejo de postergar a existência terrena “todos os desejos humanos de imortalidade contêm um pouco de mania de sobreviver”4, a conquista da “eternidade” por meio da criônica ainda demanda cuidados no que diz respeito a impactos sociais, ambientais e éticos da prática. Porém este trabalho não tem como objetivo contestar tais esferas, apenas o que toca a pertinência da publicidade envolvida. Todos esses fatos corroboram o fato de que a oferta de congelamento corporal (parcial ou fracionário) pautado numa tecnologia até então não ratificada pelos órgãos oficiais, é algo que visa apelo subjetivo, emocional, psicológico, no âmbito da possibilidade/desejo de combater mais que enfermidades e mazelas, e sim, combater a perecibilidade da matéria física, fenômeno também conhecido como: a morte. Para o “Pai da Criogenia” o futuro passa por: Nós precisamos apenas nos preparar para ter os nossos corpos, após nós morrermos, armazenados em refrigeradores adequados contra o tempo quando a ciência possa ser capaz de nos ajudar. Não importa o que nos matar, seja por envelhecimento ou doença, e mesmo se técnicas de refrigeração ainda sejam simples quando nós morrermos, mais cedo ou mais tarde os nossos amigos do futuro deverão ser capazes de nos reviver e nos curar. Esta é a essência do argumento principal. (ETTINGER, 1964, p.11, tradução livre).

4

In: Elias Canneti. Massa e Poder. São Paulo: Melhoramentos; Brasília: UnB, 1983, p.251

OBJETO Com base no material divulgado por todas as empresas que oferecem o serviço atualmente5 (Alcor, KrioRus, Cryonics Institute e Transtime) será feita uma análise sob a ótica da publicidade, examinando seus discursos de venda, visando entender as estratégias utilizadas no canal online (site oficial).

PROBLEMA De que forma o discurso institucional presente nas empresas de criônica, em especial da Alcor, trazem novas acepções de como lidar com o corpo e com a morte, por meio de uma gestão rigorosa da vida.

OBJETIVO GERAL Compreender ante o cenário de um produto/serviço pouco conhecido e discutido pela sociedade, como argumentam os discursos publicitários das agências de Criônica no mundo.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS Como objetivos específicos, foram eleitos como essenciais ao entendimento da monografia: 1. Investigar a maneira como o sujeito contemporâneo se relaciona com o corpo, a perecibilidade, o medo e a morte; 2. Problematizar as novas acepções de vida e morte decorrentes de uma série de avanços históricos e médicos. 3. Mapear práticas e ofertas do ramo da Criônica a partir de um estudo de caso da empresa Alcor 5

Até a data de maio de 2016.

METODOLOGIA

Ao longo do estudo o objeto será abordado por diferentes atravessamentos; num primeiro momento ocorre uma pesquisa bibliográfica, a fim de se conceber e prover ao leitor subsídios que percorrem desde a história do Corpo e da Morte, até os principais conhecimentos e dados acerca da técnica empregada no processo de Criônica. A partir dessa aproximação do objeto, escorada nas referências de ordem técnica e conceitual, será iniciada uma observação específica acerca de uma empresa, Alcor Foundation, por meio de um Estudo de Caso Único (Yin, 2005), que terá como objetivo identificar e relacionar as teorias apresentadas a respeito desse processo de ressignificação com o discurso apresentado pela empresa em questão.

Figura 1 - Figura 1 - Divulgação da Exposição O Fantástico Corpo Humano (Fonte: http://fantasticocorpohumano.com.br/plus/)

1. O CORPO

O impressionante é o corpo. Isso quer dizer o que? É uma reação de certos filósofos que dizem: escutem, parem com a alma, com a consciência, etc. Vocês deveriam antes tentar ver um pouco, de início, o que pode o corpo. O que é…? Não sabem nem mesmo o que é um corpo e vêm falar da alma. Então não, é preciso ultrapassar. Deleuze, Curso sobre Spinoza6

O corpo humano no contexto anatômico e científico é uma substância física ou estrutura, de cada indivíduo. Se analisarmos pela ótica biológica, é um organismo vivo, composto de milhares pequenas unidades que vão de células a sistemas, passando por tecidos e órgãos. Para a química, é uma porção de matéria. Estudiosos tidos como "Reducionistas" pensam no corpo como uma ferramenta, algo como uma máquina biológica complexa, no qual o funcionamento e constituição são análogos ao funcionamento e constituição dos demais corpos de outras espécies de animais. Fora estas definições científicas existem muitas outras visões e concepções acerca do corpo. Foucault, por exemplo, concebeu o corpo como o lugar de todas as "interdições" e "relações" a partir dos quais são construídas as redes de sentidos, saberes e poderes. No geral as regras sociais tendem a construir um corpo - ou corpos pelo prisma de múltiplas determinações. Em Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano (1990), temos o corpo como “lugar de cristalização” de todas as interdições, liberdades e misticismos. “Cada sociedade tem seu corpo, assim como tem sua língua” Certeau (1982). Em O Erotismo, Georges Bataille (1987) definiu o corpo como “uma coisa vil, submissa e servil tal como uma pedra ou pedaço de madeira”. Em O Discurso do Método, Descartes, pensador cartesiano, diz que o corpo é uma máquina, comparandoo a um relógio. Enquanto Espinosa buscava desconstruir o maniqueísmo mente/corpo e outros diteísmos do iluminismo como natureza/cultura, essência/construção social, concebe o corpo como tecido histórico e cultural da biologia. Para Gilles Deleuze, um corpo pode ser controlável, já que a ele pode se atribuir sentidos lógicos “máquinas ainda que nas suas menores partes, até o infinito” (2007, p.21). Afirmou este filósofo que somos 6

Disponível em: http://www.webdeleuze.com/php/texte.php?cle=194&groupe=Spinoza&langue=5 >Acesso em Mar/2016

"máquinas desejantes". Em sua teoria, ao discorrer sobre corpos-linguagem disse que o corpo "é linguagem porque pode ocultar a palavra e encobri-la". Ana Botafogo, dançarina brasileira, traduz o corpo como uma ferramenta vital7 O corpo – ou os corpos – não pode ser compreendido meramente com uma ideia definida de unidade. Devem ser lidos como uma ampla cadeia de inúmeras combinações. Frente a essa enorme gama de possibilidades, subjetividades e significados que o reveste, Baudrillard nos chama a atenção para as conotações que o corpo carrega. O corpo traz consigo a infinita possibilidade, de se expressar, de se afirmar como sujeito ou indivíduo único, por vezes até se tentar demonstrar superioridade por meio de alguma prática ou dispositivo cultural.

7

Disponível em: https://issuu.com/revistadancabrasil/docs/revista_db_novembro2012 >Acesso em Mar/2016

1.1 O CORPO NA BIOPOLÍTICA - do Indivíduo às Massas

Figura 2 - Artista Petr Pavlensky enrolado em arame farpado durante um protesto em St. Petesburgo, maio de 2013, foto Reuters (Fonte: http://img.gazeta.ru/files3/103/7882103/detail_1368182207.jpg)

Ao longo dos anos as culturas das sociedades convergiram para a valorização de determinados conceitos, que permeiam essas relações com o corpo citadas anteriormente. Muitos dos aspectos valorizados culminaram se tornando obsessões, tais como a busca implacável pela juventude, elegância, virilidade, feminilidade dentre outros. Em outras sociedades, com outros valores e culturas poderia ser diferente, mas segundo Baudrillard (1981), no mundo contemporâneo o Corpo adquiriu uma conotação de “objeto de salvação” que tem como pretensão substituir a alma na função moral e ideológica (BAUDRILLARD, 1981, p. 165). As necessidades são muito objetivas e podem ser evidenciadas por um médico ou um biólogo com certa precisão e objetividade, ao contrário das vontades e desejos, que são subjetivas e muitas vezes nem nós mesmo sabemos expressar o que desejamos. É exatamente como forma de expressão e construção que entra o consumo segundo Colin. O mundo pós-moderno permite uma construção de identidade mais flexível e aberta, nos livramos da antiga ancoragem cultural, não existem regras: apenas escolhas. A exemplo da descrição pessoal nos anúncios de jornal temos todas as características físicas e psicológicas como moldura para a “real identidade”, que deve ser encontrada na relação/reação do indivíduo com tais produtos, e não nos produtos em si. A liberdade de se recriar da sociedade atual permite que os gostos sobreponham o status/posição social, o que não ocorria antigamente, sendo assim nossas escolhas, e como lidamos com elas diz muito a nosso respeito, uma vez que agora nos é permitido efetivamente escolher. Diante disso temos que: comprar é um processo interativo de reconhecimento interno. O modo como agimos e reagimos com os diferentes produtos é reflexo da nossa identidade, e o próprio ato de consumo é uma comprovação de nossa existência. A compra não motivada pela necessidade, mas a compra impulsionada pelo desejo, com plano de fundo de uma sociedade na qual todos podem ser qualquer um e a consciência de busca (de significado e identidade) não tem a ver com a compra, tem a ver com o ser, segundo April Benson, citado por Campbell, (2006). Algo que subverte todo o raciocínio travado até então é como o desejo interfere na realidade. Até que ponto o desejo de um indivíduo impacta na oferta e demanda de determinado produto. Algumas correntes (Nova Era e neopagãs) acreditavam em algo quase que místico, mágico, nessa relação. Apesar de não entrarmos no âmbito dessa questão, que

se torna periférica ao mundo espiritual, fica clara a intenção (e desejo) cada vez maior das sociedades (e dos indivíduos) em satisfazer o self. Para Jean Baudrillard (1981), na sociedade capitalista, o estatuto do corpo é um fato de cultura, o princípio da propriedade privada aplica-se também ao corpo, à prática social e a representação mental que dele se tem. As estruturas de produção e consumo induzem os indivíduos a uma dupla prática/percepção do próprio corpo: o corpo como capital e como feitiço (objeto de consumo). A relação de propriedade privada e corpo aproxima-se até a necessidade de investimento: o autor reforça a ideia do constante investimento (físico, psicológico e econômico) nas questões do corpo. Paula Sibilia (2002) cita Foucault em O Homem Pós-Orgânico e atenta para o conceito de segmentação do Homem Corpo (indivíduo) e do Homem Espécie (massificante) ao comentar como as imposições da sociedade e do Estado tem impactos nos dois sujeitos de maneira diferente. Edgar Morin corrobora a ideia da autoafirmação social na obra O Homem e a Morte quando escreve: “A participação do indivíduo no corpo social é um dado imediato, contido no sentimento que ele tem da própria existência” (MORIN, 1970, p.38). Mas toda essa visão e dimensão de responsabilidade sob o corpo e consequentemente sob o destino do indivíduo é algo relativamente moderno. Em Tempo Liquido, Bauman (2007), nos lembra que em outros tempos a sociedade em geral culpabilizava Deus quando estava infeliz, adoecia ou não alcançava êxito em alguma situação. Bauman comenta que atualmente a sociedade transferiu a responsabilidade e a culpa para o próprio indivíduo, reforçando a questão da forte autonomia e liberdade observada por Nikolas Rose (2011). Quando defrontamos esses três autores: Bauman, Foucault e Rose, observamos uma transferência gradual de poderes e responsabilidades no corpo social. A princípio a sociedade que depositava toda a incumbência e comprometimento do destino do indivíduo a encargo de Deus, na sequencia se deparou com um Estado que era responsável pelo indivíduo (Poder Soberano, Foucault), e atualmente no mundo pós-moderno “neoliberal” convive com um homem pautando na crença de que todo sofrimento decorre de falhas ou irresponsabilidades consigo mesmo, assim como a salvação resulta do oposto (ROSE, 2011).

Rose diz “Não é Deus que castiga, é o próprio corpo” (ROSE, 2011, p. 40), e sendo o corpo um patrimônio, uma propriedade que corresponde aos investimentos físicos, psicológicos e econômicos anteriormente citados, teríamos responsabilidade total em relação a nossa realização, felicidade e saúde.

O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar; o biológico reflete-se no político; o homem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão (FOUCAULT, 1985, p.134).

Conforme elucida Foucault, a biopolítica é algo próximo de uma solução de cunho político-tecnológico dado a um conjunto de fenômenos novos: aumento da população somada a concentração urbana e a organização capitalista num novo modelo de trabalho. Destino e realidade passam a ser encargo individual que tem poder de moldar a sua vida (e seu corpo) através de escolhas.

O CORPO COMO EMPREENDIMENTO - Estruturas Otimizantes

Figura 3 - Performance “The Third Hand” da série “Involuntary Body” do artista Sterlac (Fonte www.sterlac.com )

De acordo com Foucault, um dos fenômenos mais importantes da transição do século XVIII para o XIX foi “a assunção da vida pelo poder, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de estatização do biológico”. (2008, p.285). Em Corpos de Passagem, Denise Sant’Anna (2001) diz que a evolução das tecnologias referentes ao corpo almeja evitar que o corpo seja um obstáculo para poder entrar em todos os lugares, reforçando a ideia de liberdade e autonomia do sujeito pós-moderno. As novas práticas e modos de pensar, julgar e agir não se enclausuram apenas no campo das reflexões, para Rose, atualmente até o modo de se falar a respeito mudou o que antes se tinha por “deveres e obrigações” hoje são “direitos e liberdades” reforçando novamente o papel atuante do indivíduo. O corpo continua correspondendo a uma figura socialmente construída onde a cultura é processada e orientada, porém com tantos incrementos na esfera da identidade o “corpo físico vem se tornando obsoleto e necessita upgrades” nas palavras de Paula Sibilia (2002, p.15). Como Rose e outros estudiosos/pesquisadores sugerem, iremos usar o conceito de Self, que é a representação da pessoa como uma entidade naturalmente única, os limites do corpo contendo a vida interior da psique, na qual estão inscritas as crenças, desejos e experiências de uma biografia igualmente individual. Foucault (2008) pertinentemente relaciona muitas vezes o Self com formas de poder, poder este que permeia tudo e age com finalidade de modelar. Foucault examinou tais modos de avaliação e atuação e denominou de Tecnologias do Self na dimensão da Ética as técnicas que permitem os indivíduos realizarem, por seus próprios meios ou com a ajuda de outros, um número de operações em seus próprios corpos e almas, pensamentos, conduta e forma de ser, de modo a se transformarem com o propósito de atingir certo "estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou imortalidade". Essa dimensão que ele intitula “ética” se refere ao ato de analisar, decifrar e agir sobre o próprio indivíduo partindo do pressuposto que há algo certo em oposição a algo errado (e cabe aí a distinção e escolha de um para o seu destino). Essa liberdade que determina o futuro do indivíduo, sua satisfação, realização através de escolhas “corretas” é denominada por Rose como Self Empreendedor, pois deriva da própria cultura empreendedora que compartilha dos mesmos princípios de administração e investimentos corretos que maximizam os resultados positivos.

O Self Empreendedor é pautado na auto direção, no alto controle da existência social por meio de escolhas. A luta por satisfação, excelência e realização sempre na maior medida. A vida é análoga a um empreendimento e visa maximizar o próprio capital humano e se moldar a fim de se tornar aquilo que deseja ser. A existência desse conceito é potencializada pela ilusão capitalista neoliberal de que o indivíduo é soberano. Simultaneamente há outro “fenômeno” que partilha das características do self empreendedor: a autoajuda. Essa “técnica” consiste em ofertar uma ‘solução’ para um problema por meio de profissionais que detém uma resposta pontual e técnica aliado ao esforço do indivíduo que busca uma qualidade de vida aprimorada. “Indivíduos contemporâneos são incitados a viver como se fossem projetos: eles devem trabalhar seu mundo emocional, seus arranjos domésticos e conjugais, suas relações com o emprego e suas técnicas de prazer sexual; devem desenvolver um ‘estilo’ de vida que maximizará o valor de suas existências para eles mesmos”. Rose chama esses indivíduos característicos das democracias liberais avançadas de “engenheiros da alma humana” por desenharem (ou pelo menos terem a possibilidade de) cartesianamente seus destinos.

Torne-se inteiro, torne-se o que você quiser, torne-se você mesmo: o indivíduo deve tornar-se, por assim dizer, um empresário dele mesmo, procurando maximizar seus próprios poderes, sua própria felicidade, sua própria qualidade de vida, embora aprimorando essa autonomia e, assim, instrumentalizando suas escolhas autônomas a serviço do seu estilo de vida. O Self deve moldar sua vida através de atos de escolha, e quando não conseguir conduzir sua vida de acordo com normas de escolha deve procurar ajuda especializada. No território da terapêutica, a conduta da existência diária está remodelada como uma série de problemas manejáveis a serem compreendidos e resolvidos pelo ajuste técnico em relação à norma do Self Autônomo, aspirando Autodomínio à felicidade (ROSE, 2011, p.220).

Talvez essas “escolhas” decorrentes da autonomização e responsabilização do Self que Nikolas Rose menciona sejam os Upgrades Necessários que Paula Sibilia faz referência, ambos aliam o autocontrole ao hedonismo com a finalidade de realização e satisfação. Seguindo por essa linha de estudo e pesquisa organizada por Rose, os eventuais problemas enfrentados ao longo da vida - como anteriormente citados problemas no trabalho, problemas sexuais, problemas de relacionamento – são considerados pela Psicoterapia Behaviorista como Sintomas, todos passíveis de Terapia para solucioná-los. Rose evidencia: “Nosso regime contemporâneo do Self não é antissocial. Ele constrói os

“relacionamentos” do self com os parceiros amorosos, a família, as crianças, os amigos e os colegas tomados como centrais, tanto para a felicidade pessoal quanto para a eficácia social. Todos os tipos de desajuste social, desde crianças problemáticas, saúde insatisfatória, perturbações no trabalho até frustrações em casa, passaram a ser compreendidos como provenientes de incapacidades remediáveis em nossas “interações” com os outros”.( 2011, p.221). Em Medo Líquido, Bauman discorre que a morte é a anulação de tudo que se planeja, de tudo que se conquistou, do futuro, do passado, do presente, de tudo que é essência ou matéria, e por isso causa medo em todos que estão sujeitos a ela. Nikolas Rose descreve que tanto o sofrimento, a decepção, a frustração e a própria morte como grandes ameaças ao self autônomo, pois atingem diretamente as imagens de soberania, autodomínio, poderes onipotentes, satisfação secular e felicidade através do estilo de vida com o qual se está ligado. Portanto para novas terapêuticas da finitude, o sofrimento não deve ser tolerado, mas sim remodelado através da expertise, sendo administrado como um desafio e um estímulo para os poderes do self. Em Admirável Mundo Novo, de Huxley já se observava algo de “terapêutico”, as crianças eram “imunizadas/condicionadas” em relação ao temor a morte recebendo seus doces favoritos quando se deparavam com um ente debilitado, tal ato tinha como intuito modificar a visão dos jovens em relação ao leito de morte, transformar a experiência em algo mais associado a coisas positivas do que a negativas. Alguns mecanismos culturais para suportar o medo/consciência da morte são observados pela sociologia, psicologia e organizados por Bauman da seguinte maneira: o primeiro deles é a negação da morte como um fim, é postular que após a morte há algo, seja a eternidade, o juízo final ou a reencarnação. O segundo deles é glorificar a morte com a fama, eternizar a memória do indivíduo na posteridade para que seja lembrado independente de sua ausência. E por fim há a marginalização da morte, banalização da passagem e enfatização do agora como momento mais importante que o depois. Toda essa autonomização do self, reforçada pela ilusão de domínio absoluto do corpo e do destino, discutidas nesse capítulo recaem em alguns fenômenos de intervenção físicas muito comuns na contemporaneidade. No cenário macroscópico Foucault chamou de “estatização do biológico” a ação dos Estados em impor normas e controlar questões de natalidade, saúde, raça, moradia e etc. com intenções de “ortopedia social”- termo cunhado também por ele para expressar tal ‘modelagem’ social.

O ápice desse conceito biopolítico pré-moderno reside no chamado Poder Soberano, que Foucault designou como a autoridade capaz de sancionar se um sujeito vive ou morre. Foucault se dedicou a uma análise detalhada dos mecanismos disciplinadores e biopolíticos nas sociedades industriais, de maneira mais amena ele observa o “talhamento” de corpos e almas em outras instituições, as quais ele chama de Normalizadoras, como escolas, academias militares e penitenciárias. O que deveria gerir a vida de maneira a funcionar como uma “ortopedia social” em sua teoria para talhar corpos e almas em função de um bem comum, acabou se rendendo ao capitalismo e a questão do consumidor. As técnicas e procedimentos que norteiam e dirigem as condutas das sociedades atuais caminharam para a clara definição do indivíduo operário e consumidor, que tem papéis pré-estabelecidos na trama social das nações. Toda essa ‘normalização’ da sociedade por meio de instituições controladoras é criticada no livro alemão Regras para o Parque Humano, onde se faz uma analogia aos parques zoológicos e toda a questão de adestramento de corpos e comportamento voluntário/induzido. Para Deleuze, as relações de poder atualmente estão mais pulverizadas, flexíveis e flutuantes. De certa forma pode-se entender como uma reação da evolução das sociedades industriais capitalistas liberais que dependem dos indivíduos se deixarem levar pela coerção do Estado, que não se faz de maneira Soberana, como na Revolução Francesa por exemplo. A produção de corpos e almas de maneira esculpida ao gosto de quem detém o poder chegou ao nível genético, e hoje é possível patentear formas de vida. Foucault (2008) colocou entre aspas o termo “eventualmente modificar”, porém com as atuais descobertas das ciências é possível se apropriar e comercializar desde genes, até organismos ou espécies. Apesar de nada ter sido efetivamente criado, apenas modificado, uma vez que todas as células já pré existiam, apenas foram reorganizadas a fim de criar uma estrutura específica, como no caso da soja resistente ao herbicida da Monsanto, ou a ovelha Dolly, clonada em laboratório, o material genético se transformou numa mercadoria. Mais que uma mercadoria, passou a categoria de ‘invenção humana’.

Sendo assim, o biopoder chegou a níveis celulares, e a sociedade hoje tem capacidade de talhar os indivíduos de dentro para fora, até mesmo antes de nascerem8. Atualmente as relações de poder se mostram mais pulverizadas, flexíveis e flutuantes, como pontuaram Deleuze e Guattari, em Mil Platôs (1995), por meio do capitalismo produzimos consumidores que almejam exercer poder de alguma forma, nem que seja sobre o próprio capital, através de bens de consumo. Exercer alguma forma de poder por meio do consumo e o self empreendedor citado anteriormente são facetas da autonomização, do desejo e da capacidade de tomar decisões, ser o senhor do seu destino, ser responsável por cada detalhe, cada minúcia. O mundo ideal para Bauman é um local isento de perigos, onde tudo é previsível e sem surpresas. A própria palavra Utopia deriva das palavras gregas Eutopia e Outopia, que significam respectivamente um Lugar Bom e Lugar Nenhum. No mundo atual ser feliz e confiante apesar desses medos/incertezas requer a negação dos perigos ou a certeza de que se é mais “esperto” que os próprios perigos. Entretanto Bauman chama a atenção para o fato de a sociedade moderna priorizar o presente, ao passo que as sociedades anteriores priorizavam o futuro. Por meio de uma analogia, ele relaciona o mundo pré-moderno com os guarda-caças. Estes eram indivíduos que tinham como função garantir que as propriedades tivessem a menor interferência possível, desarmando armadilhas, recolhendo lixo etc. Já o mundo pós-moderno é comparado ao jardineiro, que é o mais relacionado à utopia, pois ele participa da construção desse mundo melhor. O jardineiro se empenha em selecionar sementes, escolher mudas que convivam, limpa o terreno, poda, colhe e etc. Ele gerencia todos (ou a maioria) dos fatores buscando o melhor ambiente possível. Já o mundo atual é comparado por Bauman ao indivíduo caçador, que pouco se preocupa com questões futuras. Ele caça indiscriminadamente sem a preocupação com os impactos no meio ambiente, na cadeia alimentar, se determinado animal entrará em extinção ou se seus filhos terão animais para caçar. Essa lógica se depara com a construção de utopias, pois para o indivíduo atual, caçador, chegar no objetivo é o oposto da intenção legitima. Para o homem-caçador alcançar a caça significa o fim da missão, fim do jogo. O progresso (e realização) vem da corrida atrás da utopia, e não na sua realização, é a ‘caçada da falsa lebre’. 8

Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2009/03/090302_bebeescolhaeuafn.shtml >Acesso em Dez/2015

Bauman compara a percepção de infelicidade nos tempos passados com o momento atual: antigamente a infelicidade recaía sob as costas de Deus, atualmente assumimos o posto e a culpa de nossa felicidade/infelicidade. Tornar-se outra pessoa é a nova redenção/salvação, podemos constantemente recomeçar do zero e nos reconstruir de maneira que desejarmos. Vivemos numa era de experiências, e alcançar a lebre pressagia o fim das experiências que vivemos na caça, na nossa sociedade de caçadores, o fim da caçada é apavorante. Na sociedade de jardineiros a utopia estava no fim da estrada, na de caçadores é a própria estrada, é o caminho, é o aqui e agora. Essa definição de caçador reforça o hedonismo característico do homem que deseja ter controle de tudo, principalmente do corpo. A sociedade líquida desenhada por Bauman tem por princípio o pontilhismo, a pulverização. Os desejos, a carreira, os amores, os sonhos, os projetos não correm de maneira linear, e sim pulverizada. Iniciam-se e findam-se independentemente, assim como as “espumas” e “esferas” citadas por Deleuze e Guattari em Mil Platôs para ilustrar a volatilidade. Esses traços estão presentes nas constantes recriações do corpo que ocorrem atualmente. É a possibilidade de se tornar outra pessoa, ou mesmo modificar/moldar o self, o “eu” como um sistema flexível de identidade. Como já comentado anteriormente, a terapia é capaz de modificar a psique, os “sintomas”, já as possibilidades de intervir no físico vão do nível celular às cirurgias plásticas passando pela academia de ginástica. O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo, ter um corpo, condições de existência, probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se podem modificar; o biológico reflete-se no político; o homem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão (FOUCAULT, 1985, p.133).

Conforme elucida Foucault, a administração dos corpos e gestão calculista da vida caracteriza o biopoder empregado em larga escala pelo homem pós-moderno, que faz uso de numerosas técnicas – anatômicas e biológicas - para obter a sujeição dos corpos e o controle das populações. Peter Pál Pelbart reforça o pensamento deleuziano em seu livro (PAL PELBART, 2009, p.83) no qual aborda questões do capitalismo rizomático: O ideal hoje é ser o mais enxuto possível, o mais leve possível, ter o máximo de mobilidade, o máximo de conexões úteis, o máximo de informações, o máximo de navegabilidade, a fim de poder antenar para os projetos mais pertinentes, com duração finita, para o qual se mobilizam

as pessoas certas, e ao cabo do qual estão todos disponíveis para outros convites, outras propostas, outras conexões. A própria figura do empreendedor já não coincide mais com aquele que acumula tudo, capital, propriedades, família – ao contrário, é aquele que pode deslocar-se mais, de cidade, de país, de universo, de meio, de língua, de área, de setor.

O termo “projeto” refere-se a um dispositivo transitório, e a vida uma sucessão de projetos. A volatilidade que recai sobre esse pensamento acerca da vida nos remete aos conceitos de fragmentação, pulverização recorrentes em Deleuze e Bauman, fato este, que endossa a percepção de um mundo cada vez mais etéreo. Foucault ilustra a evolução do domínio corpóreo por meio dos exércitos: até a metade do século XVIII existiam arquétipos e padrões, tanto físicos quanto comportamentais, os quais eram indispensáveis e substanciais para ingressar na carreira militar. Já na segunda metade do século XVIII o soldado tornou-se algo passível de ser “fabricado” a partir de um “corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. ” (FOUCAULT, 2008, p.117). A respeito do livro O Homem Máquina, de La Mettrie, Foucault pontua ser ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável ao corpo manipulável. “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2008, p.126). Foucault batiza os métodos que permitem sujeitar e impor a relação docilidade-utilidade de “disciplinas”. Disciplinas essas que visam ao mesmo tempo aumentar o domínio de cada um sobre o próprio corpo e estabelecer uma relação que torna o corpo tanto mais obediente quanto mais útil, necessariamente. Em outras palavras, aumenta as forças do corpo em termos econômicos e utilitários, e diminui nas mesmas proporções as forças em termos políticos. “Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 2008, p.119) Neste ponto é importante relembrar o início do capítulo, no qual foi abordada a forte carga conotática que tem o corpo e seu peso de singularidade. Em tempos de descarte e consumo compulsivos o corpo demanda “upgrades”, como menciona Sibilia, a publicidade constantemente reforça as questões do corpo como capital e manipula habilmente a miséria libidinal

do consumidor. Num cenário no qual é possível se recriar com a facilidade e rapidez de um clique, o sujeito cartesiano arraigado no princípio da unidade entra em crise.

1.3 O CORPO MUTAÇÃO - Ilusão da Autonomia

Figura 4 - Performance “Ear on Arm” do artista Sterlac (Fonte: www.sterlac.com )

Partindo da filosofia clássica do “conhece-te a ti mesmo” passando pelo epicurismo, estoicismo e chegando aos primórdios da era cristã, o cuidado de si manteve como determinação conceitual a ideia de princípio no qual o indivíduo deve ocupar-se de si mesmo. Existem duas vertentes a respeito do cuidado de si: de um lado quem crê se tratar de um dever ético, que fundamenta toda e qualquer prática no âmbito social; por outro lado, é um esforço moral, como se fossem diretrizes que alimentam a moral ética. Até hoje observamos um esforço para manter unidas essas duas essências na concepção do sujeito. Para Foucault, a vida é também uma bandeira de luta dos movimentos contra esse poder (ou poderes): “o direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação de necessidades, aos prazeres – que, concebendo-a como a essência concreta do homem reivindica o direito a uma vida outra, diferente desta vida que nos é imposta”9. Para tanto chegamos a níveis cromossômicos de liberdade individual, nos quais alcançamos um poder equivalente ao soberano sob o nosso corpo, adestrando tecidos, desenvolvendo aptidões, exercitando forças, potencializando habilidades, disciplinando comportamentos e reorganizando moléculas. Muitas práticas nas quais o alto risco e a própria biologia conduzem à um lapso de esperança. Entretanto o sonho de biomédicos, médicos, geneticistas, cientistas, pacientes e seus familiares, é o diagnóstico "présintomático", seguido de uma intervenção técnica, para justamente reparar ou incrementar o organismo. De acordo com seu auto entendimento esclarecido, a medicina serve à saúde, faticamente, ela conquistou posições inteiramente novas, alterando a relação do ser humano consigo mesmo, com a enfermidade, a dor, a morte e o mundo. Graças às ciências biológicas, não só podemos escolher precisamente a hora de nascer como podemos escolher dentre diversas características, previamente uma combinação que nos agrade para nossos herdeiros. Durante a vida podemos alterar anatômica ou biologicamente o corpo que habitamos, consertando eventuais falhas da natureza ou para maximizar a eficiência de alguma maneira. Para evidenciar quão longe chegaram as ciências no que diz respeito a autonomização do ser, senhor de si, que desenha seu corpo e destino, atualmente estão disponíveis diversas intervenções/manipulações no campo 9

Disponível em: http://www.ibamendes.com/2011/08/liberdade-num-recorte-foucaultiano.html >Acesso em Fev/2016

da genética que possibilitam desde escolher o sexo do bebê, características físicas do mesmo a prever desde o nascimento doenças as quais ele estará propenso ao longo da vida. Também é possível, nos primeiros momentos de vida, coletar e armazenar materiais que eventualmente no futuro poderão curar enfermidades do indivíduo. Peter Pál Pelbart sintetiza a essência das principais reflexões sobre o tema: “a própria noção de vida deixa de ser definida apenas a partir dos processos biológicos que afetam a população. ” (PAL PELBART, 2003, p.25). Como Peter cita a resolução de Maurizio Lazzarato a respeito da existência em seu livro: “A vida deixa de ser reduzida, assim, a sua definição biológica para tornar-se cada vez mais uma virtualidade molecular na multidão, energia orgânica, corpos-sem-órgãos. O bios é redefinido intensivamente, no interior de um caldo semiótico e maquínico, molecular e coletivo, afetivo e econômico. ” (PAL PELBART, 2003, p.39). Aquém da divisão corpo/mente, individual/coletivo, humano/inumano a vida ao mesmo tempo se pulveriza e hibridiza, se moleculariza e se totaliza. “Ao descolar-se de sua acepção predominantemente biológica, ganha uma amplitude inesperada e passa a ser redefinida como poder de afetar e ser afetado, na mais pura herança espinosana”. (PAL PELBART, 2003, p.83). Beck problematiza recapitulando Habermas: Há um outro ponto de vista crucial que até agora foi mencionado apenas marginalmente: a estrutura de ação do “progresso” medicinal como uma normalidade de uma subversão inconcessa das condições sociais de vida. Como é possível que tudo isso aconteça e que, somente em retrospecto, contra o otimismo profissional da reduzida e em si mesma pouco influente claque de especialistas em genética humana completamente obcecados com sua charada científica, as questões sobre efeitos, metas, ameaças etc. Dessa revolução social e cultural tenham de ser feitas sem alarde por uma esfera pública crítica?

Quando adentramos na ampla questão de modificações corporais nos deparamos com diversas técnicas em resposta a diversas necessidades, as quais para fins estudo serão divididas, sem juízo de valores, entre intervenções compulsórias e facultativas. São compulsórias intervenções sem as quais o indivíduo padece enfermo ou mesmo morre, enquanto as facultativas não têm impactos dessa magnitude, caso realizada poderia beneficiar o sujeito, mas não são imprescindíveis. Como já mencionadas, as modificações podem ser de natureza anatômica ou biológica, e atualmente, com os processos e tecnologias disponíveis no mercado alcançaram um propósito de autenticidade. Toda a

subjetividade presente em toda a extensão do corpo passível de ser decomposta e recombinada ao agrado do indivíduo. Indivíduo este que empreende seu corpo como um gestor, reivindica controle à nível celular, agora pode reorganizar seu material genético de maneira que potencialize alguma característica específica ou suprima outra. Essa “autenticidade” foi transformada em mercadoria, segundo Peter Pál. A crítica à massificação, o desejo de singularidade, de diferenciação, foi endogeneizado, mercantilizado, e seguiu-se a produção de produtos autênticos, “diferentes”, o que representou uma ocasião para os empresários superarem uma saturação do mercado, adentrando domínios antes alheios ao mercado. Sob pretexto de humanização, tomaram a cargo a produção de bens “autênticos”. Transformação do não-capitalizável em capitalizável, seres, valores, bens, tesouros. O capitalismo transforma o não-capital em capital, não só paisagens, ritmos, mas também maneiras de ser, de fazer, de se ter prazer, atitudes, e nisso consiste sua inventividade nos últimos anos, na intuição de antecipar os desejos do público, com a importância crescente dos investimentos culturais e tecnológicos. Mercantilização da diferença, da originalidade – que claro, logo se perde -, de um novo sentido, que também se esvai, gerando novas formas de inquietude e talvez novos limites (PAL PELBART, 2003, p.104).

Em O Homem Pós Orgânico, Paula Sibilia argumenta que na sociedade modernos ambos os vetores – disciplina e biopolíticas- encadeiam no contexto do capitalismo industrial como dois conjuntos de técnicas orientadas para a dominação reforçando as grandes cargas sociais e multilateralidade que o assunto carrega. Ao passo que hoje podemos já existem bactérias, vírus, moléculas e outros materiais genéticos patenteados, as possibilidades que envolvem modificação10 ou prevenção11 genética pré-natais, pode-se postular mais um trecho de Sibilia “no mundo contemporâneo, a vida passou a ser definida como um produto, como uma mercadoria, uma invenção humana” (SIBILIA, 2002, p.172). Garcia Laymert se aprofunda na temática genética e potencial, que estão inerentemente ligados ao consumo: Não se sabia, e ainda muitas vezes não se sabe o que fazer com tais recursos genéticos. O que importava era sua apropriação antecipada. A lógica de tais operações é a seguinte: os seres biológicos – animais, vegetais e humanos- não tem valor em si, como existentes; o que 10

Disponível em: http://www.jornalciencia.com/tecnologia/biotecnologia/1872-molecula-patenteada-pode-tornar-os-dentes-a-prova-de-caries-matando-bacteriasem-60-segundos.html Acesso em Dez/2015 11 Disponível em: http://www.otempo.com.br/interessa/nova-tecnologia-gen%C3%A9tica-permite-escolher-embri%C3%A3o-livre-de-doen%C3%A7a-1.1014337 Acesso em Dez/2015

conta é seu potencial. Para sobreviver, bem como para consumir, é preciso se antecipar. (LAYMERT, 2003, p.128).

Citando Ulrich Beck, que escreveu a respeito das Sociedades de Risco “A promessa de segurança avança com os riscos e precisa ser diante de uma esfera pública alerta e crítica, continuamente reforçada por meio de intervenções cosméticas ou efetivas no desenvolvimento técnico-econômico” (BECK, 2011, p.24). Enquanto Bauman pontuava as diversas causas do medo, Morin relacionava-os à morte passando pelo pensamento de Levy Bruhl ao citar a diferença entre o risco de morte e o suicídio. Isso se dá uma vez que o suicídio sanciona “a solidão, o empobrecimento, a ausência de participações”, enquanto o risco de morte tem como característica a presença e riqueza de participações como pontuou o filósofo e sociólogo francês. O paradoxo do risco da morte é que para matar é preciso estar suscetível a morrer. No caso do suicídio há o aniquilamento completo do instinto de proteção. Instinto esse que no próprio nome (segurança) flerta com os riscos. Riscos são produtos históricos, são o ainda-não evento que desencadeia a ação, complementa Beck que não passam de a “imagem especular de ações e omissões humanas, expressão de forças produtivas altamente desenvolvidas”. A sociedade de risco, que não só gera como alimenta de condições sociais é a ameaça e promessa de isenção da ameaça que ela mesma produz fazendo com que “os riscos se convertam no motor da auto politização da modernidade na sociedade industrial- e mais: com eles, alteram-se conceito, lugar e meios da ‘política’” (BECK, 2011, p.29). O sujeito tornou-se objeto; mas como foi visto antes, não um objeto presente, atual, e sim um objeto potencial cuja relação futura aos estímulos da “rede agregada de valor”, Laymert Garcia (2003) projeta exatamente no futuro o valor construído no indivíduo. Valor este, que o sujeito alcançou investindo tempo, dinheiro, recursos materiais e imateriais na construção deste self, buscando maximizar, otimizar, aperfeiçoar e por fim, obter um retorno maior. Mas segundo Laymert, o retorno estará sempre no futuro. Seria o futuro Pós Morte?

1.4 O CORPO CONSUMO - O Livre Comércio da Matéria

Figura 5 - Azulejaria Verde em Carne Viva” da artista brasileira Adriana Varejão, (2000) (Fonte: https://www.anajustra.org.br/espacocultural/imprimir_post.aspx?id=382)

Assim, a morte nunca é o que dá sentido à vida; pelo contrário, é o que lhe tira todo o significado. Se devemos morrer, a nossa vida não tem sentido, pois os seus problemas não recebem nenhuma solução e o próprio significado dos problemas permanece indeterminado. Toda existência nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por acaso (SARTRE apud MORIN, 1970, p.281)

Dada a importância do consumo nas sociedades atuais, não só no que tange a relação indivíduo-coletivo (homem-espécie) mas também no que interpele a conexão intrapessoal do indivíduo (homem-corpo), se faz imprescindível dedicar um subcapítulo à observação de como esses fatores se comportam no que diz respeito ao corpo. A palavra CONSUMO deriva do Latim CONSUMERE que significa “comer, desgastar, desperdiçar”, de COM, intensivo, mais SUMERE, “tomar, pegar”, formado por SUB, “abaixo”, mais EMERE, “comprar, tomar, pegar”. O consumo, segundo Bauman “é uma condição, e um aspecto, permanente e irremovível, sem limites temporais ou históricos; um elemento inseparável da sobrevivência biológica que nós humanos compartilhamos com todos os outros organismos vivos. Visto dessa maneira, o fenômeno do consumo tem raízes tão antigas quanto os seres vivos – e com toda certeza é parte permanente e integral de todas as formas de vida conhecidas a partir de narrativas históricas e relatos etnográficos” (2008, p.37). Muito foi comentado a respeito do hedonismo e individualismo característicos das sociedades e do modo de vida contemporâneo, tanto o Corpo Empreendimento quanto o Corpo Mutação supracitados decorrem de uma tentativa de investimento e capitalização. Para Bauman, recai no conceito de Vendabilidade, ou seja, obter/desenvolver qualidades para as quais exista uma demanda de mercado, ou reciclar as que já se possui, transformando-as em mercadorias, visando aumentar a atratividade para si. O consumo evoluiu ao longo dos anos, ganhou força e complexidade, atualmente reside principalmente nas esferas mais abstratas, entregando mais valor social e autoestima que bens materiais. Vai além da satisfação de “necessidades, desejos e vontades”, atualmente os membros da sociedade de consumo são eles próprios mercadorias de consumo, e é justamente tal fato que os torna autenticamente

membros dessa sociedade. “Tornar-se e continuar sendo uma mercadoria vendável é o mais poderoso motivo de preocupação do consumidor, mesmo que em geral latente e nunca consciente. É por seu poder de aumentar o preço de mercado do consumidor que se costuma avaliar a atratividade dos bens de consumo” (2008, p.76). Dentro deste pensamento reside outra questão de extrema pertinência abordada por Bauman e Anders: a noção de que ninguém nasce como uma criatura humana completa. A possibilidade de “tornar-se”, “recriar-se”, “construir-se” encanta o indivíduo contemporâneo, individualista, hedonista e que acredita no controle sobre si. Citando Nietzsche, Anders sugere que o corpo humano (tal como foi recebido por acidente da natureza) é algo que “deve ser superado” e deixado para trás. O corpo “bruto”, despido de adornos, não reformado e não trabalhado é algo que se deve ter vergonha: ofensivo ao olhar, sempre deixando muito a desejar e, acima de tudo, testemunha viva de falência do dever, e talvez da inépcia, ignorância, impotência e falta de habilidade do “eu”. O corpo nu, objeto que por consentimento comum não deveria ser exposto por motivo de decoro e dignidade do “proprietário”, hoje em dia não significa como sugere Anders, “o corpo despido, mas um corpo que nenhum trabalho foi feito” – um corpo “reificado” de modo insuficiente. (BAUMAN, 2008, p.89).

As leis de mercado se aplicam de maneira igual às “coisas escolhidas e aos selecionadores” nas palavras de Bauman, uma vez que nas sociedades de consumo os membros são igualmente vendáveis, possuem um valor atribuído, um medo eminente é da inadequação ou perda de valor. E os mercados de consumo tiram proveito dessa insegurança produzindo bens de consumo que se prontificam a guiar e auxiliar seus clientes diante do desafio da “autofrabricação”. Diante dessa economia de trocas simbólicas e em busca desse “preço ótimo de venda” os indivíduos se submetem as mais diversas intervenções e reinvenções, que neste estudo se limitam às questões do corpo, mas que facilmente podem ser estendidas a aplicadas à todas as esferas que concernem o sujeito. A possibilidade de se recriar é uma nova forma de redenção, salvação, nas sociedades modernas. Fruto da autonomização e individualismo, característicos da contemporaneidade, Bauman referencia o famoso “faça-vocêmesmo” como “mantra” das sociedades líquido-modernas. Entretanto, devido a uma série de fatores o próprio conceito acabou terceirizado. E atualmente não faltam ofertas de “ferramentas” e “facilitadores” que promovem e auxiliam no processo (personal sylist, personal trainer, personal shopper, personal diet, etc.)

Campbell conceituou o consumo como atestado de existência, Bauman foi além, e aumentou a complexidade relacionando o consumo com valor social. Garcia Laymert ao falar das novas tecnologias aponta para a velocidade cada vez mais intensa com a qual descartamos as coisas que se tornam obsoletas, ao passo que Paula Sibilia, em sua obra O Homem Pós Orgânico atenta para a ocorrência do mesmo fenômeno no homem: “o corpo humano está se tornando obsoleto, upgrades se fazem necessários”. Assim o “Eu” se mostra cada vez mais flexível no que diz respeito a identidade. Foucault se volta ao tema relacionando as técnicas que permitem aos indivíduos realizar operações no corpo e alma, pensamentos, comportamento, com objetivo de alcançar a felicidade, pureza, perfeição, imortalidade, sabedoria, a isto ele deu o nome de “tecnologias do Self”12. Nikolas Rose, que já foi explanado com mais detalhes anteriormente, tem sua definição de Self Empreendedor pautada na auto direção, no alto controle da existência social por meio de escolhas. Satisfação, excelência e realização são palavras de primeira ordem. A analogia que o autor faz a um empreendimento a fim de maximizar o próprio capital humano e se moldar até alcançar aquilo que deseja ser está intrinsecamente ligado ao consumo. A vida do indivíduo adquire conotação de patrimônio, como define Baudrillard, passível de auto regulação, administração e constantes investimentos (físicos, psicológicos e econômicos). Todos os autores citados confluem num conceito de autonomização e autocontrole do ser. Em maior ou menor intensidade subordinam tais conceito ao consumo, tornando a vida por um lado o alvo supremo do capital, por outro lado, a vida mesma tornou-se um capital, senão “o” capital por excelência.

12

Life ascending - The ten great inventions of evolution” Nick Lane, ed. Norton, University College de Londres

2. A MORTE

Peste bubônica

E o corpo ainda é pouco

Câncer, pneumonia

E o corpo ainda é pouco

Raiva, rubéola

Assim...

Tuberculose e anemia Rancor, cisticercose

O pulso ainda pulsa

Caxumba, difteria

E o corpo ainda é pouco

Encefalite, faringite

Ainda pulsa

Gripe e leucemia

Ainda é pouco

E o pulso ainda pulsa

(O Pulso, poema de Arnaldo Antunes,

E o pulso ainda pulsa

gravado pela primeira vez no álbum “Õ Blesq Blom”, Titãs, WEA, 1989.)

Hepatite, escarlatina Estupidez, paralisia Toxoplasmose, sarampo Esquizofrenia Úlcera, trombose Coqueluche, hipocondria Sífilis, ciúmes Asma, cleptomania

Preparação para a Morte

O espaço, infinito, Preparação para a Morte

O espaço é um milagre.

A vida é um milagre. O tempo, infinito, Cada flor,

O tempo é um milagre.

Com sua forma, sua cor, Seu aroma,

A memória é um milagre. A consciência é um milagre.

Cada flor é um milagre.

Tudo é milagre.

Cada pássaro,

Tudo, menos a morte.

Com sua plumagem, seu vôo,

Bendita a morte,

seu

que é o fim de todos os

canto,

milagres!

Cada pássaro é um milagre. (Manuel Bandeira, em Estrela da Vida Inteira, 1950)

2.1 MATÉRIA MORTAL - Dimensões da Carne

Figura 7 - Divulgação da exposição O Fantástico Corpo Humano (Fonte: www.fantasticocorpohumano.com.br)

Morte (do latim mors), óbito (do latim obitu), falecimento (falecer+mento), passamento (passar+mento), ou ainda desencarne13 (deixar a carne), são sinônimos usados para se referir ao processo irreversível de cessamento das atividades biológicas necessárias14 a caracterização e manutenção da vida em um sistema outrora classificado como vivo. Após o encadeamento da morte o sistema não está mais vivo. Os processos subsequentes (pós-mortem) normalmente são os que conduzem à deterioração dos sistemas. Dependendo de fatores e condições ambientais, processos diferentes podem sucede-la, por exemplo aqueles que levam à mumificação natural ou a fossilização de organismos.15 Se o conceito da vida já é algo difícil de determinar, por se tratar de uma intrincada e complexa combinação de matéria somado a “algo além”, o conceito de morte engloba várias outras indagações. A vida está presente na nossa consciência, já a morte, toda nossa experiência a respeito dela decorre do contato com a morte do outro. Ao se observar o conceito médico de morte ao longo dos anos, constata-se que a definição não é estática, está sujeita a múltiplas perspectivas e esta se renova ao passo que as ciências e tecnologias avançam, portanto, não é pretensão deste capítulo elucidar o que viria a ser o momento da morte, mas sim, analisar outros atravessamentos e desdobramentos do momento da morte e seus significados de uma perspectiva contemporânea. O famoso cientista russo Éliie Metchnikoff, no século 19 foi responsável por muitas descobertas no campo da microbiologia (por exemplo, descobrindo a fagocitose) defendia que, sem uma atenção sistemática à morte, ciências da vida não estariam completas. Com base nesse argumento, ele se dedicou a criação de uma disciplina especial, dentro da ciência destinada aos estudos específicos da morte. Ele argumentou que um estudo acadêmico iria ajudar aqueles que enfrentam a morte a ter uma melhor compreensão do fenômeno e reduzir o medo dela. Suas ideias eram baseadas numa pesquisa interdisciplinar que recaía sobre o fato dos estudantes de medicina examinarem apenas cadáveres e não terem quase nenhuma instrução ou conhecimento a respeito dos desvanecidos ou qualquer investigação sobre a causa da morte dos pacientes. Por falta de apoio dos 13

Definições obtidas no dicionário Michaelis Disponível em: http://engineering.mit.edu/ask/must-all-organisms-age-and-die Acesso em: mar/2016. 15 Persons, Humanity, and the Definition of Death - Página 23, John P. Lizza - 2006 14

estudiosos e educadores da época, suas ideias apenas foram implementadas ao longo das décadas que se seguiram. Com a Segunda Guerra Mundial o mundo se deparou com um número assustador, sem precedentes de óbitos, o que serviu de estímulo e inspiração para muitos filósofos e estudiosos repensarem as questões existenciais de vida ou morte. Com origem nesses estudos foi criada a base para um campo que atualmente é conhecido como Tanatologia. A história proporcionou diversas vivências ao homem, e há uma grande apreensão (e aprendizado) em períodos de guerra. Alguns autores calculam que a humanidade tenha passado 1 ano em paz para cada 13 anos em guerra ao longo de toda a história, como observa Morin (1970). O estado de guerra provoca uma mutação geral da consciência, alterando a percepção em todos os sentidos. A morte na guerra traz consigo uma honra, uma heroicização, exaltação que chega a evocar associações religiosas, ao mesmo tempo que é laica. A moral cívica é instável e tende a se dissolver a morte individual num status de religiosidade heroica ou na mística da comunidade, que também reside na memória coletiva. Apesar da perenidade inevitável do corpo, da matéria, a consagração ou a criação de obras, permite eternizar inventos ou memória para a posteridade, e ter algo do indivíduo eternizado. A virtude conquistada com a morte gloriosa é a consagração da individualidade que viveu, e alguns autores afirmam que o vazio social diminui com as guerras, trazendo a tona uma perspectiva quase que positiva dos períodos de conflitos para a humanidade em Morin (1970). Morin (1970) ressalta que o ser humano é o único animal que se presta a praticar um homicídio, matar um semelhante sem obrigação vital, isso demonstra uma ruptura com as práticas de proteção a espécie comuns nos animais, e mesmo no homem. Entretanto o homicídio também é reflexo de uma libertação extrema, dos impulsos mais primais e individuais em detrimento dos interesses coletivos. Existem comportamentos humanos mais limítrofes, como por exemplo: a tortura. A sofisticação de torturar é outra prática que também só se observa no humano. Os animais matam por necessidade e o fazem da maneira mais eficiente possível. O ser humano consegue desenvolver técnicas que permitem maior

sofrimento e maior duração. Essa prática se explica à luz da questão de afirmação. O homem deseja matar, mas não só deseja matar: deseja matar outro homem. É a afirmação por meio da destruição. Segundo Morin (1970), a tentação extrema da morte é o suicídio. O suicídio causado por desespero, solidão, neurastenia, que evidenciam a incapacidade e incompetência do Estado em interferir a tal ponto na vida do indivíduo. Afinal, em teoria, ele deveria garantir condições para a vida, e não para a morte. Neste caso, há o aniquilamento completo do instinto de proteção próprio. Para o autor a morte contida no suicídio representa uma significativa ruptura com o mundo e uma reconciliação com o indivíduo em si, que discorda em profundidade ou não compreende o contexto o qual está inserido. O risco de morte difere do suicídio uma vez que o suicídio sanciona a solidão, o empobrecimento, a ausência de participações, enquanto o risco de morte tem como característica a presença e riqueza de participações, como pontua Levy Bruhl. Hegel em Fenomologia do Espírito (2011) indica que esse é o momento de consciência de si e desejo de reconhecimento, refletindo uma vontade de poderio. O homicídio esconde o desejo de transferir a morte do indivíduo para outrem. Desejo que se confunde com medo, e a possibilidade de vencê-lo. Cada desejo individual de autoafirmação por meio da destruição vai inevitavelmente colidir com o de outros indivíduos e assim surgem conflitos, guerras, violência. O paradoxo do risco da morte, portanto, é que para matar é preciso estar suscetível a morrer. Do ponto de vista biológico a morte pode ocorrer para todo o organismo ou apenas para parte dele, como por exemplo, células individuais, ou mesmo órgãos, morrerem e ainda assim o organismo continuar vivo. Também é possível que um animal continue vivo, mas sem sinal de atividade cerebral (morte cerebral); nestas condições, tecidos e órgãos vivem e podem ser usados para transplantes. Neste caso, os tecidos sobreviventes precisam ser removidos e transplantados rapidamente ou morrerão também16. Normalmente a irreversibilidade é citada como condição sine qua non da morte, “Cientificamente, é impossível trazer de novo à vida um organismo morto, e se um organismo vive, é porque ainda não morreu anteriormente”17.

16 17

“Life ascending - The ten great inventions of evolution” Nick Lane, ed. Norton, University College de Londres In LOPES, wagner. A Morte da Morte, 2009. Editora Abrindo.

Entretanto, existem casos particulares que chamam atenção, como é o caso de um grupo de animais invertebrados denominados Rotíferas18. Estes animais podem "cessar" o metabolismo quando por algum motivo não estão propícias as circunstancias ambientais. A isso se dá o nome de Criptobióse. Esses animais podem se manter nesse estado por meses ou anos, até que as condições se restabeleçam, e então "reativam" seus metabolismos. Se a compreensão de morte clínica for estendida a essa espécie, é uma situação análoga a morte seguida de um renascimento. Como iniciamos o capítulo incitando a reflexão, as tentativas de definir o momento exato da morte sempre foram e são subjetivas, permitindo diversas interpretações, definições e perspectivas. O trecho a seguir ilustra, pela ótica da medicina o avanço em busca da definição mais adequada e precisa, que ocorre em função da cultura e tecnologia disponível: Por milhões de anos, foi fácil para os médicos diagnosticar morte: bastava verificar se o doente respirava. Mortos estariam os ineptos a essa função fisiológica essencial, a única da qual o corpo humano não pode prescindir por mais do que uns poucos minutos. De fato, privado de oxigênio por quatro ou cinco minutos, nosso cérebro costuma sofrer danos irreversíveis. Mas outros órgãos são bem mais resistentes à anóxia. O coração é um deles – capaz de bater por muitos minutos depois que a última molécula de oxigênio fugiu dos pulmões e até fora do corpo quando retirado cirurgicamente.

Identificar o momento da Morte Legal é especialmente importante atualmente, dentre outros motivos, em função do transplante de órgãos, pois o transplante deve ser realizado o mais rápido possível pensando na preservação dos tecidos. Estabelecer critérios para caracterizar a morte se tornou necessário a partir do aparecimento dos primeiros aparelhos de ventilação mecânica, que permitiram manter vivas pessoas incapazes de respirar por conta própria. Essa necessidade se tornou mais premente com o advento dos transplantes de órgãos na década de 1960. Reavaliações dos critérios de morte cerebral foram mais tarde realizadas por um comitê da Universidade Harvard (1968) e por uma conferência do Medical Royal Colleges (1976), da Inglaterra. Ficou, então, estabelecido o consenso de que a morte deveria ser definida como “a perda completa e irreversível das funções do tronco cerebral”. A definição considerava o tronco como o epicentro das funções cerebrais humanas, porque sem ele o organismo perde a capacidade cognitiva e a possibilidade de fazer movimentos voluntários ou reagir a 18

Disponível em: http://www.ucmp.berkeley.edu/phyla/rotifera/rotifera.html >Acesso em: mar/2016

estímulos do ambiente. Sem atividade no tronco cerebral, a vida humana podia ser considerada extinta. Mesmo na ausência de um tronco cerebral em funcionamento, o coração continua a repetir suas sístoles e diástoles, garantindo acesso de oxigênio ao resto do organismo para as atividades inerentes à vida vegetativa. Em 1995, a Academia Americana de Neurologia conduziu uma revisão a respeito das dificuldades para diagnosticar a morte e adotou os seguintes princípios: “A declaração de morte cerebral requer não apenas uma série de testes neurológicos cuidadosos, mas também o esclarecimento das causas do coma, a certeza de sua irreversibilidade, a resolução de qualquer dúvida em relação aos sinais neurológicos clínicos, o reconhecimento de possíveis fatores conflitantes, a interpretação dos achados de neuroimagem e a realização dos exames laboratoriais necessários. Com a descoberta dos aparelhos de ventilação pulmonar, o conceito de morte evoluiu do último suspiro para uma hierarquia de valores na qual certas atividades do sistema nervoso central valem mais do que todas as outras do organismo. São atividades essenciais para caracterizar a condição humana. Na ausência delas, admitimos extinta a vida, mesmo que os outros órgãos continuem saudáveis19

Ao passo que existe a ortopedia social por meio do controle da vida, aludido por Foucault em A Origem da Sexualidade e intitulado de Biopolítica, existe num cenário mais contemporâneo, a gestão social por meio da morte, e batizado de Tanatopolítica, também apontado e descrito por ele na obra.

19

Disponível em: http://drauziovarella.com.br/drauzio/o-momento-da-morte/ >Acesso em: fev/2016

2.2 IMORTALIDADE MATERIAL - A Subjetividade da Substância

[...] representação de um mundo onde, durante toda a sua vida, o homem dançará com sua própria mortalidade. A morte não é representada como figura antropomórfica, mas como consciência macabra de si mesmo, como um apelo constante do túmulo escancarado. (ILLICH, 1975, p.162)

Figura 8 - Performance “Nude with skelton” da artista Marina Abramovic, 2002 (Fonte: http://oglobo.globo.com/cultura/veja-imagens-de-trabalhos-historicos-de-marina-abramovic-12816850)

Tal assunto abre precedentes para tantas subjetividades e interpretações que o respaldo jurídico se faz essencial para minimizar embargos decorrentes dessas múltiplas leituras do que seria a morte. A justiça americana, por exemplo, legitimou em sua constituição uma “Zona da Morte”, que consiste basicamente na subordinação do momento da morte a uma definição pessoal, isentando assim, o Estado de uma responsabilidade tão sinuosa e obliqua. No modelo estadunidense, o cidadão tem a possibilidade de optar por ser ou não ressuscitado, e ele o faz num nível apurado de detalhamento, escolhendo as situações especificas as quais consente com as tentativas de reanimação dentro de um espectro chamado Grau de Reversibilidade (que está sujeito a revisões a cada avanço científico no campo da biologia). Atualmente a definição médica brasileira de morte é conhecida como morte clínica, morte cerebral ou parada cardíaca irreversível. Todo ser vivo, que depende de um metabolismo, está sujeito a um ciclo de vida com começo, meio e fim. Com todos os avanços e técnicas desenvolvidas, até hoje não fomos capazes de alterar essa dinâmica de percurso e a morte permanece nos atormentando com sua incógnita. Tais técnicas transladam nessa zona tão imprecisa, nebulosa e volúvel, que tange o instante do óbito desafiando a dicotomia vida e morte. O fato de haver uma gradação instituída em relação à transição do estágio de Vivo para Morto, preenche de arbitrariedades e ambiguidades o que antes se enxergava como absoluto. Numa publicação sobre Envelhecimento e Finitude, a estudiosa no campo da Gerontologia e Tanantologia, Ligia Py, levanta a reflexão: "Na radicalidade da nossa condição de humanos e mortais, somos, na verdade, a morada da nossa própria morte. Gestamos a nossa morte durante toda a nossa vida, para lhe dar à luz no momento final, na hora solene e fatal da despedida da vida."20 Paula Sibilia (2011) relata a dedicação das ciências em reconfigurar o corpo vivo em busca de combater o envelhecimento e a morte. Essa diligência, que eventualmente resulta em êxito, tem como efeito no corpo

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Disponível em : http://www.sescsp.org.br/files/edicao_revista/54042998-ac39-4be3-9805-7dbbec50fc38.pdf >Acesso em fev/2016

social uma ressignificação, que ela cita como amostra, a desvalorização sociocultural da morte, que ocorre desde as sociedades pré industriais, evidenciadas por Foucault, nas quais o foco na vida atenuava a morte. “Chegará o tempo do fim das surpresas, das calamidades, das catástrofes- mas também das disputas, das ilusões, dos parasitismos...em outras palavras, um tempo livre de toda matéria que são feitos os medos” (Victor Hugo, 2005 apud Bauman, 2006, p.8) nos atenta para que talvez haja uma sobreposição ou matriz em comum entre as ‘matérias que são feitos medos’, citados por Victor Hugo. Bauman faz uma analogia em relação a nossa trajetória, que representa a cada amanhecer, um passo a mais próximo do dia de nossa morte. Na medida que a nebulosidade de onde esse caminho nos levará se torna um tormento incessante. É nessa nebulosidade que reside o medo e a incerteza, mas também reside a esperança, uma vez que a vista embaçada enxerga o que deseja nos vultos. Ligia Py pontua esse trajeto de risco da seguinte maneira: (...) o ato mesmo do nascimento já é um perigo para a vida. Saídos da ventura do ventre materno, nos vemos lançados ao mundo, em estado de extrema prematuração que, diferentemente da maioria dos animais, impõe a necessidade radical de sermos cuidados por longo tempo. O medo, a ameaça, a vulnerabilidade se inscrevem no nosso psiquismo como desamparo, desde a nossa chegada ao mundo, nos assinalando com a precisão de sermos amados e cuidados, que nunca mais nos abandonará.21

Na obra Espiritualidade e Finitude de Py e Doll, o protesto contra a morte é articulado na trama inconsciente do desejo de imortalidade. Para viver esse sofrimento abissal, buscamos a revelação da nossa espiritualidade, uma característica humana que possuímos – e que nos possui – percorrendo o sentido da nossa vida e do mundo (DOLL; PY, 2005). Existe a crença de que o ser humano é o único ser vivo dotado de consciência de sua finitude, e adjunto à essa lucidez existencial, há o medo. Para Bauman o medo “é o nome que damos a nossas incertezas” (BAUMAN, 2006, p. 8), pois traz à tona nossas ignorâncias quanto ao que pode acontecer ou ao que deve ser feito, eventualmente situações que não estão sob nosso controle e uma vasta gama de possibilidades que não nos agradariam.

21

Disponível em http://www.sescsp.org.br/files/edicao_revista/54042998-ac39-4be3-9805-7dbbec50fc38.pdf Acesso em fev/2016

A nossa mortalidade, o nosso percurso do envelhecimento, as nossas possibilidades de transcendência são questões urgentes e atuais. O processo de maturidade humana implica em estarmos atentos a essas questões e, assim, desenvolvermos uma competência existencial de tal modo que possamos fazer da nossa vida algo que, ao final, ‘mereça comemoração (DANIEL, 1991, p.10).

A psicologia detectou a existência de dois tipos de medo: o primeiro, que compartilhamos com os demais animais, e recai sobre perigos manifestos e um segundo que apenas os humanos desenvolveram e diz respeito a ameaças latentes. Ou seja, a mente humana é capaz de temer “além do que os olhos podem ver”, ao contrário de um roedor que se apavora diante de uma cobra peçonhenta, nós nos apavoramos com índices de violência (mesmo que não tenhamos sido vítimas), queda no valor de determinada ação na bolsa, possibilidade de alguma catástrofe natural, acidentes e a própria morte. Tudo isso antecipadamente. E isso se dá, segundo Bauman, pela incerteza de como será ou o que virá depois de um acontecimento desses, pois, o medo “é mais assustador, quando disperso” (BAUMAN, 2006, p.10) e há algo mais disperso e incerto que o que sabemos sobre o que ocorre após o momento da morte? Entendemos aqui que esse paradoxo proposto: o medo e a esperança que florescem do mesmo lugar, é ponto de partida para o estudo dos serviços correlacionados e derivados da morte, de sua esperança e seu medo. Posto isso, é possível observar a constante tentativa em elevar o valor da vida sobre a morte de alguma maneira, almejando um dia quem sabe, numa quimera, triunfa-la. Aqui iremos argumentar como o consumo se comporta ante um cenário que por um lado é saturado de ansiedades e esperanças e de outro abundante em ofertas que salientam e realçam as potencialidades do Corpo e do Indivíduo. Perplexos e impotentes diante do mistério da passagem do tempo e da ideia da morte, mesmo sem nos darmos conta, criamos fantasias de imortalidade. Acontece-nos desde muito cedo, lá na intimidade inocente de recém-nascidos, nas primeiras vivências de satisfação. O desejo de imortalidade nos orienta para a ousadia de confrontar a verdade sobre o nosso destino: a morte. Esse poder de nos sabermos finitos é a maior ferida sangrando o nosso narcisismo: pretensamente imortais e inexoravelmente finitos (GREEN, 1998, p. 68).

Bryan Turner sugere que “devemos conceber o corpo” (apud BAUMAN, 2006, p. 117), entretanto, dentro da conjuntura abordada, essa concepção está intensamente atrelada ao consumo. O desejo de controlar o corpo, em todos os momentos, é algo que o mercado de consumo alimenta por meio da ansiedade. Ansiedade articulada por meio de promessas de satisfação, porém nunca efetivamente realizadas. Uma pesquisa encomendada pela Letters of America (apud BAUMAN, 2006, pág.118) indicou que dentre os títulos mais vendidos semanalmente, as duas únicas categorias que se conservam impavidamente (e antagonicamente) ao longo dos anos são: livros de dieta e livros de receitas. Tais tendências contraditórias evidenciam que não é apenas uma questão de ter controle, mas também o dilema de como controlar. Esse impasse entre liberdade e restrição recai novamente no mote essencial do capítulo: temos liberdades que antes não tínhamos, fazemos escolhas que vão desde a fase pré-natal até o que esbarra na reanimação de um indivíduo à “beira” do óbito, entretanto, a restrição magna continua sendo a morte. Temos consciência da nossa mortalidade ao passo que hoje sabemos da possibilidade de nos tornar muito idosos22. Mas não sabemos quando e como vamos morrer e não sabemos de que maneira será a nossa velhice, até porque, o envelhecimento, a vida e a morte caminham lado a lado, porém a morte pode atravessar a vida muito antes de alcançar a velhice. Entretanto, os avanços das ciências vêm causando transformações no entendimento e na relação com questões de natureza biológica, como doenças e a própria morte. A nova ética somática tema de debate do autor Nikolas Rose (2013), é um exemplo das implicações que se estendem para além das questões médicas. Em seu livro Políticas da Própria Vida, Rose pontua 5 "tendências" ou "sintomas" que acompanham as descobertas nos campos científicos e biológicos. O primeiro é a Molecularização, termo que o autor explora bastante relacionando principalmente ao corpo do indivíduo, que é visto como Corpo Molar, e com artifícios da biomedicina é passível de recombinação, isolamento e manipulação em níveis genéticos.

22

Disponível em https://www.publico.pt/sociedade/noticia/esperanca-de-vida-triplicou-desde-o-ano-1000-33484 > Acesso em fev/2016

O segundo é a Otimização, um assunto amplamente observado em diversos âmbitos da sociedade, que caminha paralelamente e converge na questão de potencial futuro, uma vez que o objetivo é assegurar o máximo aproveitamento, mesmo que isso implique em alguma abnegação momentânea. A Subjetificação, que trata da emergência de uma nova ética que abranja a cidadania biológica e todas suas minúcias somáticas. Rose coloca a Expertise Somática como mais um ponto de atenção, uma vez que novos temas fazem emergir novas especializações, novos debates, novos impasses. Por fim, e talvez o mais pertinente ao tema central deste estudo, está a Economia da Vitalidade, uma nova perspectiva econômica, a qual o capital recai na matéria viva, o chamado Biocapital ou Biovalor, compondo uma Bioeconomia. A relação de antigos atores, como indústria farmacêutica, por exemplo sofreu grandes transformações com essa nova estrutura de capitalização do valor humano. Empresas de Biotecnologia adentraram no setor com suas tecnologias pioneiras e expertise dando origem à um novo cenário geopolítico. A vida (assim como a morte) em si tornou-se "maleável" a essas novas relações econômicas, que decompõe a vitalidade em uma série de objetos distintos, que podem ser isolados, armazenados, recombinados, manipulados, e aos quais se pode eventualmente comercializar. Vida e morte adquiriram acepção flexível e perderam caráter opositivo, se transformando em algo orgânico, cada vez mais tênue. Rose comenta que na sua visão, que apesar de ser um momento de transformação de alguns conceitos, mudança de alguns paradigmas, não há um quadro de ruptura, estamos vivenciando a continuidade das evoluções em diversos campos de pesquisa, que se trata do "meio" do caminho. Ao se referir ao Corpo Molar, Rose adota a definição de um corpo passível de interferências, modificações, aperfeiçoamento e recombinação, algo que hoje em dia temos ocorrendo em larga escala, inclusive de "dentro para fora". Um conceito que evoluiu muito nos últimos anos, uma vez que no passado as modificações e otimizações não alcançavam o nível molar. Frente a isso, as definições que antes se delimitavam de maneira clara e dicotômica, atualmente fazem parte de um cenário turvo, como elucida o autor na passagem a seguir:

Já não é mais possível defender a linha tênue de diferenciação entre intervenções que visam à susceptibilidade, à doença ou à fragilidade, de um lado, e intervenções que visa ao desenvolvimento das capacidades, de outro (ROSE, 2013, p. 66)

2.3 CONSUMAÇÃO DA MORTE - Empreendendo a vida contra morte

Figura 9 - Caixa eletrônico questionando: “você gostaria de mais tempo?” (Fonte: https://pbs.twimg.com/media/CgsfoOtWIAIjXLI.jpg)

Hoje a morte está difícil Tem recursos, tem asilos, tem remédios Agora a morte tem limites E em caso de necessidade a ciência da eternidade inventou a criônica Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica. (LEMINSKI, 1994, p.288)

O verbo "consumar" nos permite três leituras semânticas igualmente oportunas para o caso; a primeira recai sobre concepção de finitude, "devorar-se”, "gastar-se até completa destruição". A segunda acepção incide no conceito de consumo capital, no que diz respeito a uma utilização para satisfação de necessidades ou desejos numa troca mercantil. E por fim, Consumação como validação ou oficialização de algo. Os três conceitos nos permitem levantar um debate interessante neste ponto: Sendo a morte a "Oficialização", “Legitimação” de término de uma vida que foi "Deteriorada", “Esgotada”, eis que então, nos deparamos com maneiras de Consumir essa morte, de forma capital. Nesta etapa do estudo, abordaremos algumas maneiras existentes no mercado atual de se comercializar o momento (ou o que precede e sucede o momento em si) da morte. Um fato evidenciado por alguns filósofos como Ariès e Morin em suas obras é a invisibilização da morte. Algo que anteriormente pertencia aos espaços públicos (vide prefácio de Vigiar e Punir) ou mesmo envolvia uma parcela considerável da sociedade que se reunia para essa "passagem", atualmente se tornou um evento oculto, cada vez mais privado e isolado. Esses dois trechos ilustram a transformação da relação social com a morte: “O quarto do moribundo passou da casa para o hospital. Devido às causas técnicas médicas, esta transferência foi aceita pelas famílias, estendida e facilitada pela sua cumplicidade. O hospital é a partir de então o único lugar onde a morte pode escapar seguramente à publicidade – ou àquilo que resta – a partir de então considerada como uma inconveniência mórbida. É por isso que se torna o lugar da morte solitária.” (ARIÈS, 2000, p.322).

Uma vez atestado o óbito, o hospital entrega o defunto para a família que, por sua vez, o entrega aos cuidados de uma organização especializada, a funerária. Esta assume, cada vez mais em nossos dias, os encargos ligados com um caso de morte: problemas de necropsia, sepultamento, questões de seguro social, herança... Assim, as pessoas vão se retraindo do trato com os mortos e assumindo o mero papel de espectadores. (MARANHÃO, 2008, p.17)

Etimologicamente, a palavra "pagão", em latim “paganus”, significa camponês. “Pagus” quer dizer campo de lavoura. Cada "pagus" ou campo de lavoura, possuía espírito que o comandava, pois, enterrar os corpos dos entes queridos tornava a terra sagrada. Nessa época, era costume construir as casas ao lado dos túmulos, era habitual entender a vida e a morte como intimamente ligadas, desde os conceitos até a origem das palavras. A palavra "Homem" deriva de "homo" que em latim significava "nascido da terra" (hummus). Enterrar os corpos dos entes queridos tornava a terra "sagrada", tanto que era costume construir as casas ao lado dos túmulos com objetivo de obter proteção desses espíritos que se tornariam guardiões. Atualmente existe uma situação paradoxal. Por um lado, observamos e participamos de um fenômeno de banalização da morte. Em nossa vida cotidiana, somos bombardeados com centenas de notícias e relatos o tempo todo. A morte aparece como fenômeno biológico, como uma mera fase da vida, ao lado do nascimento, da adolescência e da velhice. Também como fenômeno sócio-demográfico, ao nos referimos a taxas de natalidade, taxas de mortalidade e crescimento das populações. Entretanto, apesar de todas os avanços e êxitos das ciências, a morte permanece algo ímpar, desmedido e incomensurável. Algo que não tem explicação ou prevenção efetiva. E que continua encadeando Esperança e Medo numa relação que move a humanidade em busca de respostas, ou ao menos algo que amenize a dor das perdas, seja por meio de técnicas cientificas ou religiosas. Um tipo absolutamente novo de morrer apareceu durante o século XX, em algumas das zonas mais industrializadas, mais urbanizadas, mais tecnicamente avançadas, do mundo ocidental. Dois traços saltam aos olhos do observador menos atento: a sua novidade, evidentemente, a sua oposição a tudo o que precedeu, de que é a imagem revertida, o negativo: a sociedade expulsou a morte, exceto a dos homens de Estado. Nada avisa já na cidade que se passou qualquer coisa... A sociedade deixa de fazer pausas: o desaparecimento de um indivíduo já não afeta a sua continuidade. Tudo se passa na cidade como se já ninguém morresse. (ARIÈS, 2000, p.310)

Apesar de superficialmente legisladas até o momento, essas novas relações causadas pelos recémchegados processos corporais de produção de valor econômico já apresentam ofertas que visam satisfazer as ansiedades provocadas. É neste cenário que se encontra, dentre diversos serviços emergentes, a Criogenia. O consumo é uma prática simbólica subscrita em sua época, resultado de inúmeros fatores de subjetividade e sintomas de seu tempo, sendo assim, a criogenia não é o único processo que levanta dúvidas a respeito de sua eficácia e legitimidade. A sua própria existência como oferta no mercado nos indica que há um desejo, ora manifesto, ora latente, de se estender a vida, seja por algumas horas ou para sempre. A questão do envelhecimento, desfrute do agora, medo da violência, morte e novas modalidade de vida produzem novos contornos para a subjetividade, que acabam recaindo em tentativas de burlar ou amenizar os efeitos da dureza do tempo. Efetivamente, o tema da Morte causa mal-estar, visto que é uma das grandes (talvez a maior) fobia e inquietação do homem. Em função disso as empresas que lidam com a morte acabam tendo que conduzir o tema com muita cautela, ora obliterando, ora recordando a matéria do produto central. É corriqueiro a publicidade pressupor a ideia de morte ao vender produtos, de maneira suave e mitigada, esse discurso hedonista é debatido com frequência nas obras de Freire Filho, Lipovetsky e Everardo Rocha ao abordar a comunicação pós-industrial. Em se sabendo desse fim irrevogável, o “mercado da morte” oferece soluções que visam, por exemplo, atenuar o sofrimento. Como se trata de uma oferta que situa o sujeito rigorosamente diante dos medos, é frequente o discurso inverso: ao invés de falar da dor da perda ou do sofrimento causado pela doença, é largamente explorada a vida feliz que se levou, as boas lembranças que serão deixadas e a tranquilidade dos parentes que não terão que se preocupar com enterro. A dor, a perda, o desconforto e tudo que remeta ao deterioramento do corpo é atenuado. No primeiro capítulo abordamos a forte carga conotática presente no corpo, todo o investimento de recursos em seu cuidado e aprimoramento, toda a ideia e desejo de controle sob o funcionamento e então, uma fatalidade anula sumariamente toda a dedicação e zelo. A morte é um final físico, psicológico e temporal para o indivíduo, entretanto enquanto vivo o ser tem sua vida capturada e dissecada em cotação e quantificação.

Para a filosofia existe o “valor e o desvalor”. Foucault aponta que o Poder trata o indivíduo como "valor" ou "desvalor" de acordo com um cálculo muito específico que é melhor abordado e aprofundado por Agambem, ao propalar a questão do Homo Sacer. Dentro desse silogismo que Agambem propõe, com base na teoria de Walter Benjamim sobre a "Mera Vida"23 temos a questão das corporeidades que partilham a cultura atual, porém não tem influência política alguma. São indivíduos que estão inscritos historicamente na sociedade, porém, ao mesmo tempo se encontram marginalizados, excluídos e isolados. Walter Benjamim intitula essa Mera Vida de Vida Nua e hoje em dia temos uma concepção muito mais abrangente e inclusiva desse conceito; além dos mendigos e indigentes excluídos da sociedade, um ser humano em coma ou um embrião congelado, eventualmente um corpo adulto preservado em criogenia são vidas que não exercem presença ou preponderância política alguma. Em Homo Sacer, Agambem24 nos situa conceitualmente a partir de dois momentos históricos no Ocidente: primeiramente com os gregos, mais especificamente Aristóteles introduziu, o uso de dois termos para se referir à vida – "Zoé" e "Bíos". O conceito de Zoé recai sobre a mulher, o animal e o escravo. Já a Bíos alude ao varão, que pode lutar e até mesmo dedicar sua vida à política ou à filosofia. O segundo momento pontuado é a Idade Moderna: quando a Zoé passa a ser aceita (não exatmente "incluída) na esfera da socio-politica. Agamben comenta a partir da relação foucaultiana que a mera vida sempre esteve no cálculo e sempre esteve sob manipulação e controle por parte do Poder. Dentro desse nosso Tempo atual, diante de nossas competências e aptidões existem centenas de produtos e serviços que encontram dificuldade em se posicionar por não estarem completamente alinhados aos princípios morais, grau de instrução e capacidade de cognição da grande maioria. Um serviço "para" a morte e "contra" a morte. Que se dispõe à preservar o imprecificável, a vida humana, por U$ 200.000,00. Diante de todas as contradições possíveis e presentes nessa frase, e após percorrermos alguns pontos centrais a respeito da relação do indivíduo com anseios a análise transversal percorrendo neste momento o estudo mais voltado à oferta.

23 24

Disponível em:A morte como regulamento do oculto: https://vimeo.com/14208655 Acesso em Mar/2016 Idem.

A criogenia tem essa relação curiosa, pois ao mesmo tempo em que tem na morte a "matéria prima" de seu serviço ela oferece justamente a supressão ou suspensão desse ocorrido como produto final. Quanto você pagaria para rever seus entes queridos e amigos? Ou para ser revisto? Outro ponto de atenção igualmente notável está na questão de precificação; ao mesmo tempo em que o discurso publicitário se vale da máxima de que "a vida humana não tem preço" ele insere na sequencia uma cotação monetária referente ao congelamento. Seria a "precificação" do "imprecificável" na mesma sentença. Neste ponto a relação com o corpo se torna complexa de definir que os laços mais estreitos talvez se desliguem do material, uma vez que paralelo ao serviço de congelamento corporal completo dessas empresas, existe o congelamento exclusivamente cerebral e o investimento em técnicas que permitem recriar a mente de um indivíduo fora do corpo, num computador ou num androide, exemplo. Como postula Rose, o progresso humano nesses campos ainda tem muito que evoluir, mais do que preservar tecidos, principalmente no que diz respeito a manter a integridade da ética e humanidade nesse processo. Crer na possibilidade de um retorno no futuro traz consigo implicações às quais os pesquisadores do movimento intitulado Transumanista se dedicam a estudar. Os valores fundamentais orbitam ao redor de Segurança Global, Progresso Tecnológico e Amplo Acesso, com o objetivo de diminuir as limitações humanas, em todas as esferas. No primeiro capítulo introduzimos o conceito do Self Empreendedor, que depreendeu grandes investimentos, tanto no aspecto físico, quanto no emprego de tempo e dinheiro nesse "projeto" de vida. A morte é repudiada e temida, pois representa, mais que o cessamento das funções biológicas, o fim desse empreendimento que demandou tanto esmero. A ideia de estender a duração ou conceder uma "hora extra" a esse projeto atrai o interesse de milhares de pessoas. Essas pessoas que carregam um quê de "cientista Fáustico" dentro de si são os mesmos que acabam por recorrer à criogenia. Atualmente são aproximadamente 500 corpos em estado de suspensão25 e na

25

Somando-se os dados disponibilizados nos sites da s seguintes empresas:http://www.alcor.org/AboutAlcor/membershipstats.html,http://www.cryonics.org/cilanding/member-statistics/, http://www.kriorus.com/en/cryopreserved%20people Acesso em jan/2016.

faixa de três mil membros que demonstraram interesse e foram aprovados em vários critérios26para se tornarem pacientes no futuro.

26

Critérios e custos disponíveis em: http://alcor.org/BecomeMember/scheduleA.html Acesso em jan/2016

3. A MORTE DA MORTE

Guardemo-nos de dizer que a morte é oposta à vida. O vivente é tão somente uma espécie de morto, e uma espécie muito rara. – Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. Não há substâncias de duração eterna; a matéria é um erro tão grande quanto o deus dos eleatas. (NIETZSCHE, 2012, p.109)

Neste capítulo serão pontuadas e relacionadas questões específicas dos serviços de criônica. Para tanto, primeiramente iremos apresentar no que consiste, conceitual e tecnicamente, a prática criônica. Na sequência, buscaremos compreender de que forma esta maneira são incorporadas as estratégias de mercado. Tendo como referência as quatro empresas atuam nesse “segmento”, serão exemplificados aspectos gerais que caracterizam esta oferta. Finalmente, iremos focar nossa análise em uma dessas empresas especificamente, visando nos aprofundar na compreensão desse tipo de negócio, ainda pouco mapeado e discutido no âmbito acadêmico. Cabe ressaltar que para a elaboração desse capítulo será realizada uma pesquisa documental dos sites institucionais dessas empresas, com o objetivo de ilustrar de maneira bastante fidedigna como estes serviços estão caracterizados e são disponibilizados hoje no contexto de negócios. Sempre que possível estabeleceremos conexões com as discussões teóricas apresentadas ao longo da monografia, visando elucidar a pertinência e importância de um fenômeno de consumo como este na contemporaneidade. Num primeiro momento serão esmiuçados os procedimentos da técnica criônica de maneira que todos sejam introduzidos ao mecanismo utilizado. Após isso o mercado atual será abordado e mapeado, traçando um paralelo com base na oferta disponível no instante presente. Passaremos rapidamente pelo conteúdo acerca do Transumanismo, que visa tornar mais concreto o pano de fundo para outros elementos relacionados ou derivados dessas novas práticas em questão. E por fim será aprofundado o discurso de uma das empresas do setor, analisando-se detalhadamente todo o canal digital existente.

3.1 CRIÔNICA - Método da Vida em Suspensão

Suspensão animada, então, irá se referir a condição de um corpo biologicamente morto que tenha sido congelado e armazenado a uma temperatura muito baixa, para que a degeneração seja interrompida e não progressiva. O corpo pode ser considerado como morto, mas não tão morto assim; ele não pode ser revivido por métodos atuais, mas a condição da maioria das células pode não diferir tanto daquela em vida. (ETTINGER, 1964, p.14, tradução livre)

Dentre todos os "serviços" que temos notícia na atualidade, que flertam com as questões corporais, envelhecimento, morte e ausência, a criônica desperta curiosidade pois não se posiciona plenamente em nenhuma categoria. Os próprios "pacientes" (como eles mesmos se referem27) se encontram em um estágio biológico que varia de acordo com a perspectiva: são corpos sem atividade cerebral ou cardíaca, podem ser decretados mortos, porém, em função da expectativa que se tem na evolução dos campos médico-científicos, eles podem ser identificados como vivos em "potencial" novamente, num futuro28. Em outras palavras: evidentemente não são vivos de imediato, porém, carregam em si a "capacidade" (que mais depende da tecnologia a ser desenvolvida) de "ressuscitarem" e voltarem para o "mundo dos vivos". Como explicamos anteriormente, criônica é uma prática que deriva dos estudos físico-biológicos da Criogenia. Essa técnica especificamente preserva corpos em temperaturas extremamente baixas na expectativa de trazê-los de volta a vida no futuro. A ideia é que se alguém vier a falecer em função de uma doença sem cura nos dias de hoje, a pessoa pode ficar em suspensão criônica até a cura ser encontrada. O princípio da criônica teve fundamento a partir de casos de pessoas (e animais) que após longas horas em lagos congelados, por exemplo, "Eles passaram quase uma hora sem respirar por causa da redução de seu metabolismo e funções cerebrais, mas incrivelmente se mantiveram vivos, funcionando em um estado em que quase não precisavam de oxigênio"29

27

Disponível em: http://www.alcor.org/Library/html/TerminusOfTheSelf.html >Acesso em Mai/2016 Disponível em: http://www.alcor.org/Library/index.html#researchreports >Acesso em Mai/2016 29 Disponível em: http://www.tecmundo.com.br/futuro/59679-criogenia-tecnologia-fazer-voce-acordar-futuro.htm >Acesso em: fev/2016 28

O processo que nos referimos consiste (independente do contexto que levou o paciente ao seu estado terminal) em aguardar a morte legal do paciente. Ou seja, aguardar que as funções cerebrais alcancem os menores níveis permitidos pela legislação vigente. Quando alcançam esse estado, de baixa atividade, porém não ausente, os médicos irão simular de maneira artificial as funções cardiorrespiratórias, de maneira a manter o cérebro irrigado e oxigenado, para evitar danos nas estruturas, que pretendem ser posteriormente revividas. Em seguida todo o líquido do corpo é retirado e substituído por Glycerol30, que é uma substância Crioprotetora, e não irá expandir ou vitrificar quando as temperaturas baixarem muito abaixo de 0˚C31.

Figura 11 - Curva de temperatura fonte: http://www.cryonics.org/ci-landing/procedures/ Acesso em fev/2016

30 31

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tIayH28s8Vg >Acesso em: fev/2016

Disponível em: http://www.bbc.com/future/story/20140821-i-will-be-frozen-when-i-die >Acesso em: fev/2016

Ao final dessa preparação (que em média leva 4 horas)32, o paciente é levado para uma “cama” de gelo, onde ele terá sua temperatura diminuída lentamente até chegar a 130 graus negativos. Por fim, o corpo é acomodado em um container e depositado em um grande tanque com nitrogênio líquido e outros gases e submetido a uma temperatura por volta dos 196 graus negativos33. Os corpos sempre são conservados de cabeça para baixo para que em caso de vazamento, o cérebro permaneça sempre protegido pelo líquido.34

Figura 12 - Procedimentos (fonte: http://www.cryonics.org/ci-landing/procedures/ Acesso em fev/2016)

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Disponível em: http://www.cryonics.org/ci-landing/guide-to-cryonics-procedures/ Acesso em: fev/2016 Idem 34 Disponível em: http://www.cryonics.org/ci-landing/procedures/ Acesso em fev/2016 33

Os pacientes dessas empresas são identificados com tags35 em pulseiras ou colares para que em caso de necessidade, os médicos ou socorristas sigam os procedimentos adequados que permitam a continuidade do processo da melhor maneira possível. Como a morte constitui-se da maior urgência e imprevisibilidade possível (mesmo em circunstâncias nas quais o sujeito encontra-se enfermo, o momento preciso é totalmente inadvertido e fortuito), a prontidão é um requisito comercializado com abundância. Quando se trata de Criogenia, o atendimento emergencial estampa sempre as primeiras páginas36. Essa oferta corrobora com a necessidade previamente referida, quando evidenciamos junto a Bauman, o pavor do inadvertido e surpreendente. Dentre todas as peculiaridades, a Criogenia oferece, nas palavras de uma clínica especializada37: "Another chance at life", ou seja, da mesma forma em que nos habituamos a dispor de um mecanismo de "reinicio" nos emuladores virtuais, agora, em tese, temos essa oportunidade estendida à vida. Não se trata de uma "nova vida", mas sim de uma prorrogação desta, inclusive com a personalidade e mentalidade preservadas, tudo evidentemente, na teoria. Para atender essas novas acepções que se desprenderam das dicotomias de vida e morte concebidas até então e sustentar o discurso que as clinicas criogênicas vendem, encontramos em alguns sites quadros38 como o seguinte conteúdo, que indicam novas manifestações semânticas:

CONDITION OR EVENT (Condição ou evento)

PRESENT TERMINOLOGY (Terminologia atual)

Clinical death or biological death (morte clinica ou morte biológica)

Death, legal death (morte, morte legal)

FUTURE TERMINOLOGY (Terminologia do futuro) Ametabolic coma, or biostatic coma - when in biostasis (coma ametabolico ou coma biostático - quando em biostase)

Tabela 1 – Evolução Semântica (fonte: http://www.alcor.org/Library/html/deathofdeath.html acesso em fev/2016) 35

Disponível em: http://www.alcor.org/BecomeMember/index.html Acesso em fev/2016 Disponível em: http://www.cryonics.org/emergency-situations/ Acesso em fev/2016 37 Disponível em: http://www.cryonics.org/about-us/ Acesso em fev/2016 38 Disponível em: http://www.alcor.org/Library/html/deathofdeath.html Acesso em Mar/2016 36

A evolução dos termos reflete uma evolução conceitual, que ocorreu, vigorosamente em função das evoluções nos campos da medicina e ciência. A própria conceituação de morte (não só no sentido literal) foi abordada no capítulo anterior, e pudemos observar como houve uma profunda transformação na maneira de se classificar e descrever esse momento exato (se é que podemos usar tal palavra de precisão aqui). Tão difícil quanto compreender a classificação desse serviço encontra-se a precificação do mesmo. Primeiramente por se tratar de algo altamente abstrato e de benefício potencial. A criônica pressupõe subverter a lógica da Morte Soberana, que prevalece sobre o ser humano há milênios austera e implacável. Em segundo lugar por se tratar de um serviço que nunca teve o processo concluído anteriormente. As empresas se comprometem a entregar apenas o congelamento, de maneira que não pode ter sua qualidade e eficácia comprovada, uma vez que a etapa de descongelamento fica a cargo da evolução tecnológica. Para tanto, não há garantias em relação a qualidade e efetividade, prejudicando qualquer intenção de comparação ou apreciação por parte do cliente. Além dos casos de pessoas que sobrevivem após períodos debaixo de rios e lagos congelados, é válido lembrar que os embriões utilizados para a fertilização in vitro são quase sempre congelados e quando retornam deste estado, estão plenamente utilizáveis e geram crianças saudáveis. Atualmente o maior dos desafios consiste na revivificação de células cerebrais sem danos. Até o momento, apesar dos avanços apenas conseguiram trazer de volta algumas redes de neurônios sem danos aparentes. A notícia mais otimista que se tem notícia foi um rato39 foi completamente trazido de volta após ser congelado a -132 graus. Macacos, ratos, cachorros e porcos40 (estes últimos que possuem órgãos e uma massa similar à nossa) já foram trazidos de volta com sucesso destes estados de quase congelamento através de um "aquecimento especializado, respiração artificial e choques elétricos para reativar os músculos. Infelizmente, nem todos os roedores conseguiram voltar em plenas condições, se tornando inférteis ou diminuindo o seu tempo de vida"41. Como a morte é questão posta à todos os seres vivos de maneira inevitável e inexcludente, do ponto de vista fundamental a criônica é um serviço o qual toda a humanidade é passível de ser cliente em 39

Disponível em http://www.tecmundo.com.br/futuro/59679-criogenia-tecnologia-fazer-voce-acordar-futuro.htm Acesso em Mar/2016 Idem. 41 Idem. 40

potencial, visto que, assim como todos bebem água, todos morrem inexoravelmente. Sendo assim a oferta de anulação ou adiamento dessa morte é de interesse de todos que estão sujeitos a ela. Como foi possível observar no segundo capítulo e nessa tabela, a oposição dicotômica entre "vida" e "morte" se torna cada vez mais perene com o avanço das ciências, não só semântica quanto conceitualmente. Assim, as empresas de criônica objetos de nosso estudo, exploram justamente esse nicho repleto de incógnitas e incertezas, que é a suspensão criônica em humanos. Para Robert Ettinger: Se a sobrevivência da estrutura significa a sobrevivência da pessoa; se o frio pode preservar estruturas essenciais com fidelidade o suficiente; Se tecnologias previstas podem reparar lesões do processo de preservação; Então a criônica deve funcionar, mesmo que ela não possa ser demonstrada hoje. Esse é a justificativa científica para a criônica. Ela é uma justificativa que fica mais forte com cada novo avanço nas tecnologias de preservação (página da ALCOR42, tradução livre).

42

“So if survival of structure means survival of the person; If cold can preserve essential structure with sufficient fidelity; If foreseeable technology can repair injuries of the preservation process; Then cryonics should work, even though it cannot be demonstrated to work today. That is the scientific justification for cryonics. It is a justification that grows stronger with every new advance in preservation technology.”> Disponível em ALCOR. What is cryonics? In: http://www.alcor.org/AboutCryonicsl Acesso em Abr/2016

3.2 CRIÔNICA – Um sintoma Transumanista

Figura 13 - Orgânico e Virtual (Fonte: http://www.thedailystar.net/op-ed/politics/when-higher-minds-serve-baser-instincts-182065)

Todas essas ofertas que divergem dos padrões ancestralmente cristalizados enfrentam obstáculos de diversas naturezas. A criogênia, como era de se esperar, tem dificuldade em se adequar à quase todas (senão todas) as religiões43 que se tem registro. Para tanto, os devotos da prática criogênica (e entusiastas de outros procedimentos) deram à luz a uma crença batizada de Transumanista44. O Transhumanismo é um movimento liderado por Nick Bostrom, que surge em defesa da ideia de que a biotecnologia e a medicina ultrapassarão os limites da terapia em direção a um ‘melhoramento humano'. Defende que tal abordagem deverá ser aplicada através do amplo acesso a técnicas que possibilitem esse 'melhoramento', manejadas pela autonomia do indivíduo na escolha e na decisão pelas mesmas - no que configuraria o 'Principio da Liberdade Morfológica', e no direito dos país em escolher características benéficas para os seus filhos - no que configuraria o 'Principio da Liberdade Reprodutiva'45 Apesar de não fazer parte, diretamente, do serviço a ser estudado, essas informações contribuem e auxiliam na construção de um pano de fundo para um tema tão impalpável, quanto o processo de congelamento humano para eventual descongelamento posterior.

43

Disponível em: http://www.alcor.org/Library/index.html#religion Acesso em Mar/2016 Disponível em: http://motherboard.vice.com/pt_br/read/a-igreja-transumanista-que-tem-fe-na-tecnologia Acesso em Mar/2016 45 Disponível em http://www.ierfh.org/br/ProjetoDireitoTranshumano.html Acesso em Mar/2016 44

3.3 CONGELAMENTO - um mercado em "aquecimento"

Figura 14 - Imagem ficcional de tanques Criônicos (Fonte: http://widenyourknowledge.blogspot.com.br/2014/01/cryogenics-and-its-application-in-space_28.html )

A produção de um sujeito criônico – vivo, morto, ou no misterioso espaço de suspensão – é possível apenas na base de um corpo Möbius, um corpo tanto dentro e fora da cápsula de nitrogênio, dentro e fora do tempo. (DOYLE, 2003, p. 67).

É, portanto, nessa incerteza e dependência do futuro que as empresas do segmento operam, ofertando dos mais etéreos aos mais concretos benefícios, e é isso que veremos neste capítulo, ao analisarmos desde o portfólio até o discurso de venda dessas empresas. A Alcor Foundation disponibiliza na biblioteca de seu site um texto46 que aborda "como" se vende um produto tão abstrato e desconhecido, que claramente não se apropria das mesmas técnicas mercadológicas de comodities e bens de consumo. Em suma, ele estimula que seja um tema debatido, que num primeiro momento é essencial que quem detém informação e conhecimento sobre o assunto, coloque-o em pauta, gerando reflexão e questionamento por parte de quem nunca pensou na possibilidade de "morrer" e "voltar". Olhando de forma mais abrangente para o setor como um todo, temos nesta tabela as empresas que prestam serviços de criônica humana com as principais características ofertadas. É possível observar que por demandar altíssimos investimentos e conhecimentos técnicos do processo, são poucas empresas no setor, e eventualmente casos de empresas que locam estrutura de outras.

46

Disponível em: http://www.alcor.org/Library/html/sellingcryonics.html Acesso em Fev/2016

Tabela 2 - Tabela Comparativa (Fonte: Tabela extraída parcialmente do site http://www.cryonics.org/the-ci-advantage/ in: março/2016)

Empresa

Preço em Dólar

Desde

Standby Opcional*

Congelamento de animais e armazenamento de tecidos

Cryonics Institute Alcor American Cryonics Society** KrioRus Trans Time

$28,000 $200,000

1976 1974

Sim Não

Sim Sim

136 141

1239 1042

www.cryonics.org

$155,000 $36,000 $150,000

1969 2005 1972

Sim Não Não

Não Sim ?

193 41 3

? ? ?

www.americancryonics.org

Pacientes

Membros

Site

www.alcor.org

www.kriorus.ru/en www.transtime.com

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A diferença de valor cobrado é nitidamente percebida, a empresa mais cara chega a cobrar quase 10 vezes o valor da que oferece pelo menor valor. Com base nas informações disponibilizadas nos sites não há diferença significativa no procedimento, a variação ocorre a partir do momento que algumas oferecem, por exemplo, maior cobertura na assistência emergencial. Apesar da pouca informação a respeito do fluxo financeiro na maioria dos sites, todas as empresas se propõem a oferecer respaldo por meio de um fundo de investimento para quando ocorrer o eventual "descongelamento". Pode-se observar uma clara polarização a respeito da detenção das técnicas: todas as empresas, com exceção da KrioRus (Rússia) são americanas. Foi em meio à turbulência do pós-guerra que foi iniciado o estudo de baixas temperaturas. Robert Ettinger, o "pai da criogênia" relata em seu livro The Prospect of Immortality de 1964, que após se ferir lutando na Bélgica passou algum tempo se reestabelendo em hospitais quando conheceu Jean Rostand, que na época estudava sobre o congelamento e descongelamento de esperma de sapos.

47

*Definição técnica de Standby “Standby/Transport involves standing by the bedside of a medically terminal patient destined to be cryopreserved, the application of a heart-lung resuscitator and ice-water cooling as soon as possible after declaration of death, and transport to a perfusion facility while tissues are still being stabilized at low temperature” in: http://www.americancryonics.org/comprocpol.html ** A American Cryonics Society não possui estrutura própria, ela faz uso das instalações da CI.

Para fins de comparação visual, a seguir temos a página inicial de cada uma das empresas citadas na tabela acima.

Figura 17 -- Homepage Cryonics Institute (fonte: www.cryonics.org )

Figura 15 - Homepage Transtime (Fonte: www.transtime.com )

Figura 16 - Homepage KrioRus (Fonte: www.kriorus.com/en )

A quantidade de informação é a principal diferença entre as empresas. Enquanto a Alcor disponibiliza vasto conteúdo para consulta e aprofundamento, as demais são sucintas e escassas no que diz respeito a informação, tanto técnica quanto institucional. 3.4 ALCOR - Life Extension Foundation Depois de introduzidos os principais procedimentos e empresas que atuam no setor, consideramos essencial para compreensão das implicações práticas das teorias citadas ao longo do trabalho, uma investigação mais aprofundada acerca da comunicação nesse segmento tão peculiar. Entre os dois domínios fundamentais do circuito econômico – a produção e o consumo do que quer que seja – existe um fator mais abstrato que é constituído pela publicidade e suas mensagens. A publicidade atribui identidade e particulariza cada oferta, distanciando do universo meramente produtivo. A definição de publicidade dada por Malanga (1979, p.12) é: “conjunto de técnicas de ação coletiva no sentido de promover o lucro de uma atividade comercial conquistando, aumentando e mantendo clientes”, claramente tais práticas evoluíram muito, manipulando cada vez mais formas de persuassão por meio da subjetivação, como observaremos no conteúdo a seguir. Após buscas nos conteúdos digitais das empresas existentes, fez-se necessário apontar uma em específico para se explorar detalhadamente cada individualidade. No processo de escolha da Alcor foram levados em consideração aspectos em relação, principalmente à quantidade e qualidade de informação disponível e representatividade no mercado. Foi considerado riquíssimo o conteúdo disponibilizado pela empresa em relação às práticas, técnicas, profissionais, teorias, mitos, pesquisas, questões financeiras e acervo para pesquisa. Também ficou evidente que dentro do segmento, restrito em número de players, a empresa a seguir se destaca em representatividade.

A Alcor: Life Extension Foundation não foi a primeira empresa a ser criada nesse segmento, desde o início da década de 70 algumas empresas se aplicam em oferecer o serviço a partir das descobertas do físico Robert Ettinger no campo da criogênia. Entretanto sua maior contribuição veio em 200148 quando suas pesquisas resultaram num novo processo de Vitrificação de tecidos, que permite a preservação sem gelo, diminuindo os danos causados pelo procedimento. A Alcor é uma organização sem fins lucrativos, cujos colaboradores estão na condição de voluntários que acreditam na eficácia do serviço e esperam contribuir nesse novo campo cientifico. Esta empresa afirma em sua página que é “a líder mundial em criônica, pesquisa em criônica, e tecnologia da criônica”49

Figura 18 - Logo Alcor (Fonte: www.alcor.org)

Em sua página, os fundadores Linda e Fred Chamberlain, dizem ter escolhido o nome da empresa inspirados em um catálogo de estrelas e livros de astronomia. Ao encontraram a estrela Alcor, 80 Ursae Majoris, uma distinta estrela com nome que pode servir de acrônimo para “Resgate Alopático Criogênico” (Allopathic Cryogenic Rescue). Desde então a Alcor se propõe a “tratar pacientes” através da criônica. A partir desse primeiro uso da combinação das palavras "tratar" e "pacientes" já se percebe a conotação (recente) que a organização confere ao que a princípio se trataria do que costumeiramente é chamado de "morte" e "falecido". A partir do primeiro momento que se entra na página, percebe-se uma ressignificação de diversos conceitos e termos, e o surgimento de paradoxos. A morte deixa de ser biológica, assim como a vida deixa de ser inerente ao metabolismo e à questão do convívio social. Tudo é subvertido às potencialidades do corpo em suspensão e a negação de antigas dualidades cartesianas. 48 49

Disponível em: http://www.alcor.org/procedures.html Acesso em Jan/2016 Disponível em: http://www.alcor.org Acesso em fev/2016

Todo seu discurso é pautado na esperança (e dependência) de tecnologias que permitam o "descongelamento", fato este, que reside num futuro incerto. Neste momento é interessante retomar a idéia de universos pontilhistas de Bauman, uma vez que não há uma linearidade existencial quando ocorre a suspensão. O pontilhismo, tal como proposto pelo autor (2008), se configura por universos indivuais, independentes e simultâneos entre si, um indivíduo que “morre” e se congela, está encerrando um desses universos pontuais, e a partir do descongelamento dando início a um novo e “único viver”. Nesse serviço a idéia de continuidade está pressuposta na possibilidade de se “repetir infindas vezes” a vida, como se a cada “término” pudesse ser transformado em um novo “ponto inicial”. Apesar da ideologia linear e contínua não fazer parte dos valores liquido-modernos propostos por Bauman (2008), é certo que a oportunidade de fazer a vida “continuar” alimenta o anseio do sujeito contemporâneo de permanecer em sua existência. Em outras palavras: é a possibilidade de se alcançar os desígnios de uma sólida existência linear, que possivelmente encantam os adeptos da criônica, ziguezagueiando por estes novos começos que parecem garantir a impossibilidade do fim. Atualmente o cenário reflete um mercado muito concentrado, no qual as poucas empresas oferecem serviços substancialmente semelhantes. Tanto nas questões técnicas equivalentes (algumas empresas compartilham o espaço e as tecnologias de armazenamento dos “pacientes” – apesar de cobrarem valores distintos pelo processo) quanto no discurso publicitário, que atualmente, faz uso medular dos mesmos tópicos e abordagens comerciais. A partir de agora iremos realizar um estudo de caso da empresa Alcor a partir do site www.alcor.org. A análise se dará com base no Menu de Navegação da página principal. Iremos a partir de agora pormenorizar o conteúdo de cada divisória, sequencialmente da esquerda para direita, desdobrando os tópicos mais interessantes:

Figura 19 - Menu de Navegação Alcor (Fonte: www.alcor.org)

Home A Alcor demonstra uma grande preocupação em exibir resultados recentes de pesquisas e materiais atuais, como por exemplo, press realeses e participações em eventos, ao contrário das empresas concorrentes, que eventualmente exibem um conteúdo muito desatualizado e se limitam a discorrer brevemente sobre a técnica. Neste aspecto, a Alcor apresenta um grande investimento em materiais de cunho institucional, como podemos observar abaixo, desde vídeos produzidos até materiais impressos gratuitos que podem ser solicitados por meio do site. Por todo o site é visível uma preocupação estética que preza por elementos que remetam a assepsia e esterilidade. Tons de azul e prateado conferem continuamente o aspecto médico/hospitalar. Em função de ser um serviço de comparação difícil, a presença em canais como Facebook e YouTube se tornam um fator de aproximação e tangibilização do processo. Pessoas que desconhecem os processos e até mesmo leigos em função dos termos técnicos muitas vezes apresentados nas matérias a respeito, ficam muito mais claros quando ilustrados e elucidados nos vídeos altamente didáticos a respeito. A navegação novamente se torna facilitada graças à ferramenta de busca que se encontra no canto direito. Um pouco mais abaixo, é possível observar uma caixa de diálogo, ambas se mantêm ininterruptamente durante a navegação pelas páginas e podem ser abertas a qualquer momento para dar início a um Chat com um profissional da empresa ou fazer uma busca por uma palavra específica.

Esta é a página inicial, seu conteúdo estático não sofreu mudanças durante o período de estudo da empresa (junho 2015-junho 2016).

Figura 20 - Homepage Alcor (Fonte: www.alcor.org )

É frequente a exploração de membros da fundação dando testemunhais a respeito de sua escolha, sempre de maneira muito natural e sutil. Neste momento observamos uma obliteração da presença da morte e seus correlatos como dor, perda, saudades e etc. Toda a mensagem é transmitida com foco na esperança e na confiança em relação às potencialidades e capacidades tecnológicas. Em sua página inicial ela afirma50 não ser uma “prática mortuária”, e sim uma “intervenção no processo da morte”. Claramente a criônica não pode ser comparada a um ritual fúnebre, até porque como já foi posto, ela não propõe uma "passagem" ou "transição" de um estado (no caso seria de vivo para morto na concepção mais "habitual" e "consolidada" na sociedade), ela se aplica a proporcionar uma suspensão. Os corpos criogenados esperam justamente o oposto de uma transformação. As baixíssimas temperaturas têm o propósito de cessar ou desacelerar ao máximo a degradação natural biológica que age na matéria.

Figura 21 - Testimunhal na Homepage Alcor (Fonte: www.alcor.org)

50

Disponível em: http://www.alcor.org/AboutCryonics/index.html Acesso em Fev/2016

Figura 22 - Chat Online na Homepage da Alcor (Fonte: www.alcor.org )

About Cryonics

Figura 23 - Desdobramento do menu About Cryonics (Fonte: http://www.alcor.org/AboutCryonics/ )

What is Cryonics e Cryonics Procedures Nesta página a Alcor conceitua que a “morte real” ocorre: "quando a estrutura da célula se torna tão “desorganizada” que nenhuma tecnologia pode restaurá-la ao seu estado original"51. Aqui há um direcionamento para um site de publicações de artigos médicos, nos chama a atenção especialmente a um artigo nomeado The technical feasibility of cryonics (1992) cujo autor, Ralph Merkle é responsável por descobertas relacionadas ao processo de vitrificação, que permite o "congelamento" mais eficiente com uso de substâncias crioprotetoras, que diminui significativamente os danos causados pelos cristais de gelo resultantes dos processos anteriores. Merkle também é responsável por cunhar o termo “critério de morte de informação teórica” (information-theoretic criterion of death) que sugere que a destruição de determinadas estruturas físicas 51

Disponível em: http://www.alcor.org/AboutCryonics/index.html Acesso em Mar/2016

que carregam informação no cérebro não permitiria que o sujeito fosse reanimado no futuro. Pelo menos não com sua identidade e subjetividade preservadas. Apesar de um vasto conteúdo a respeito dos procedimentos e técnicas, a empresa (o segmento no geral) preza por uma assepsia nas imagens. Não há conteúdo explícito (exceto no canal do YouTube, que exibe de maneira desvelada até procedimentos de cunho cirúrgico), as exemplificações se dão em resultados de exames (imagens de tomografias, por exemplo) e as simulações ocorrem em bonecos de teste. Apesar da sociedade se pautar muito em imagens, neste caso, a natureza delas deporia contra a empresa por carregarem uma conotação negativa. Posto isso, as imagens exploradas são mais conceituais e jamais ostensivas.

Figura 25 - Materiais utilizados no procedimento emergencial (Fonte:http://www.alcor.org/procedures.html)

Figura 24 - Imagem de divulgação da equipe Alcor (Fonte:http://www.alcor.org/procedures.html)

As explicações em todo o site ocorrem em linguagem acessível, todos os termos médico-científicos vêm acompanhados de uma elucidação simplificada e didática. Essa constante informação se torna um diferencial e referencial no assunto. Uma vez que os demais sites não oferecem informação tão vasta e de qualidade, os pacientes em potencial, eventualmente médicos, pesquisadores e curiosos que buscam detalhamento e conteúdo, acabam recorrendo à página da Alcor como fonte de pesquisa independente de contratar os serviços da empresa. As intervenções no corpo propostas pela Alcor, não deixam de ser upgrades introduzidos pelo pensamento de Paula Sibilia, uma vez que dentro da concepção da empresa, esses indivíduos não estão mortos. Essa manipulação dialoga com as questões pós orgânicas e de transumanismo. Apesar dos nomes diferentes (otimização e transumanismo), ambos os conceitos/teorias em algum momento abordam um potencial humano a ser explorado (ou manipulado) por meio do conhecimento e desenvolvimento de tecnologias. Entretanto, como pressupõe pesquisas em campos como ciência e medicina, tudo acaba condicionado à própria mente humano, colocando novamente o destino e todas as possibilidades decorrentes, na mão do indivíduo.

Cryonics Myths De maneira muito clara e objetiva, os principais “mitos” e ideias pré-concebidas a respeito da criônica são desvendados nessa aba. De maneira simples e pontual eles abordam os temas majoritariamente mais polêmicos e problemáticos. Dessa forma, os principais “contra-argumentos” são rapidamente “rebatidos”, afastando as principais teses mais céticas e preparando o leitor para mais teorias novas. Essa forma de discurso sugere "sinceridade" por parte da empresa, pois uma vez que ela expõe verdades e mentiras, assentindo que existem algumas informações negativas procedem, ela estimula a confiança por parte dos pacientes em potencial, que a enxergam como uma empresa "honesta" a respeito de suas fragilidades. A Alcor ainda afirma que “a criônica preserva pessoas mortas” é um mito. Ela afirma que "o propósito da criônica é o de salvar a vida de pessoas vivas, e não enterrar os corpos de pessoas mortas". Tal

posicionamento reflete muito acerca das acepções de "morte" e "vida" adotadas pela empresa que confrontam de diversas maneiras as definições e crenças atuais. O fato de se citar mitos a respeito da criônica, também evidencia que é algo debatido, que há por trás do discurso comercial, toda uma comunidade cientifica buscando desvendar os mitos, mas também há mais pessoas interessadas a respeito, que debatem, pesquisam e reproduzem informação. De qualquer maneira o serviço sempre estará posicionado como algo extremamente seleto. Tanto quem tem acesso ao procedimento, quanto quem se interessa, é frequentemente tratado com distinção. Isso fica evidente em um vídeo o qual o CEO da Alcor convida o público a fazer parte dos 0.00004%52 da população que é membro.

Figura 26 - Desdobramento do Menu Cryonics Myths (Fonte: http://www.alcor.org/cryomyths.html)

52

Disponível em: http://motherboard.vice.com/pt_br/read/a-arte-de-nao-morrer Acesso em abr/2016

FAQ e Scientists' FAQ Já na seção de FAQ, as perguntas se encontram categorizadas por segmento (General, Técnico, Ético, Espiritual, Financeiro, Associado, Mal Informados e Cientifico) e fazem parte de um desdobramento muito mais aprofundado. O fato de disponibilizar material de consulta para cientistas sugere confiança em seu conteúdo e transparência, características de conteúdo que o potencial paciente, mesmo sem entender na prática o que significa, se sente mais seguro em relação ao serviço e à atuação da empresa. Essa possibilidade de constatar as perguntas dos demais frequentadores do site, cria uma identidade, faz com que o visitante da página não se sinta sozinho.

Alcor Book Há uma aba para se fazer o pedido do livro de 570 páginas que aborda os seguintes temas: Ø O que é Criônica? Ø História da Criônica Ø História da Alcor Ø Pesquisas em Criônica Ø Tecnologias e Processos da Alcor Ø Ressucitação de pacientes de Criônica Ø Perspectivas da Criônica Ø Debates na Criônica

A grande maioria dos artigos presentes no livro encontram-se disponíveis para download em PDF na área chamada Biblioteca no site.

Figura 27 - Formas de pagamento Livro Alcor (Fonte: http://www.alcor.org/book/index.html )

Notable Quotes Na seção de Notable Quotes, as citações são divididas em duas categorias: negativas e positivas. Nas negativas há uma defesa científica na sequência, justificando o porquê a frase não procede de acordo com o conhecimento atual na área.

Figura 28 - Exemplo de "citação notável" (Fonte: http://www.alcor.org/notablequotes.html )

Problems about Cryonics Na área destinada a se falar sobre os problemas da Criônica são abordadas as questões do descongelamento (desvitrificação), procedimento delicado que até o momento não obteve sucesso, o que faz da criônica algo ainda não atestado. Neste momento, a empresa aproveita para apresentar os resultados mais recentes das pesquisas na área, informando e sustentando que apesar da inexistência de casos de sucesso, existe uma evolução progressiva e expressiva a respeito. Casos de "insucesso" são igualmente apresentados e descritos. Há total assunção do caráter empírico e incomprovado da técnica, apesar da grande expectativa gerada pelas pesquisas e estudos. Neste momento são evidenciados os diversos "fatores" que incidem no sucesso: há o estado de conservação do corpo, que é responsabilidade do paciente "em vida", há a eficácia da vitrificação,

e o mais importante, a inefabilidade do processo de "desvitrificação". Claramente depois da "desvitrificação" ainda haveria a questão de reintegração sócio-política-financeira do indivíduo no instante que viesse a retornar, mas não nos prenderemos à essa variável.

About Alcor A área sobre a empresa é nitidamente institucional. É manifesta a preocupação em esmiuçar detalhadamente desde a história, passando pela escolha do endereço da sede até toda a equipe da empresa. Novamente, pode-se aplicar a hipótese de que por se tratar de um procedimento pouco difundido, superficialmente conhecido e muito técnico, a Alcor se destaque uma vez que explora a relação de confiança por meio do detalhamento e minuciosidade o qual descreve sua atuação. Apesar de institucional, todo o site procura “humanizar” a comunicação sempre trazendo narrativas de pessoas reais que endossam, apoiam ou participam da comunidade. A presença heterogênea nos perfis e discursos abrem precedentes para que qualquer um que venha a se interessar pelo serviço se identifique de alguma maneira com o serviço, com a ideologia ou ao menos com um depoimento. Uma vez que a morte é o que há de mais democrático, o que transforma o serviço em algo passível de ser desejado pela totalidade das pessoas irrestritamente, a representatividade auxilia nesse “posicionamento” acessível. A partir daí o único limitador (ou segregador) torna-se a questão financeira, que é amenizada pela oferta das opções de congelamento fracionado. O tom é sempre de apresentar algo “desejado por todos”, mas de alguma maneira limitado. Seja pela questão financeira, seja pelo fato de ser algo até então desconhecido. As empresas oferecem então uma “oportunidade” de adentrar num universo pouco explorado, com poucos concorrentes e poucos conhecedores. Em se tratando de ciências é sempre algo assustador, porém tentador. Porém a ideia defendida é de que é muito mais “aceitável” se submeter a algo desconhecido, sem muitas evidências de êxito, quando se trata de algo que ocorre após decretada a “morte legal”, quando não há consciência ou sensibilidade, ao contrário de se entregar à empirismos em vida.

Figura 29 - Perfil e depoimento do CEO Alcor (Fonte: http://www.alcor.org/AboutAlcor/meetalcorstaff.html

Figura 30 - Desdobramento do menu About Alcor (Fonte: http://www.alcor.org/AboutAlcor/)

The Patient Care Trust Após uma apresentação formal da composição administrativa e operacional da empresa, o site se dedica a parte mais jurídica. The Patient Care Trust se destina a detalhar todo o fluxo financeiro que ocorre entre o membro/paciente durante o armazenamento. A mudança de nomenclatura se dá pelo fato de que enquanto vivo e pagando as taxas, o associado é chamado de membro, após sua morte ele passa a ser denominado paciente, e em função da permanência indefinida nas instalações da empresa essa troca monetária continua ocorrendo mesmo após o falecimento do contratante. Por isso a importância de discriminação de uso dos recursos. Dentro da Missão a qual a empresa se compromete, está a reintegração dos pacientes à sociedade e prestação de todo o suporte necessário diante da nova realidade. Levando-se em consideração que são gastos elevados confrontados com algo sem garantia de efetividade, tal pacto é (apesar de vão, uma vez que não há garantias de desvitrificação) uma segurança para os mais confiantes no procedimento. Essas informações alegorizam tanta relevância que a empresa disponibiliza relatórios desde os idos dos anos 90, quando ocorreram as primeiras vitrificações, nestes relatórios, que são públicos, ficam registradas todas as movimentações da Alcor e as relações diretas desse fundo individual.

Figura 31 - Demostrativo de Fluxo Financeiro de paciente suspenso (Fonte: Fonte: http://www.alcor.org/Library/html/financial.html)

Ao contrário das outras empresas encontradas, a Alcor disponibiliza documentação de toda natureza para consulta, a seguir vemos desde contratos e legislações tanto de interesse jurídico quanto de

interesse físico. Termos que autorizam a doação de órgãos (no caso de neuropreservação), argumentos para evitar a autópsia, declaração de intenção para menores de idade, orientações para o processo de standby (quando o corpo é resfriado, estabilizado e transportado – tudo que ocorre até o paciente chegar à clínica) e toda a sorte de documentação que possa ser eventualmente requerida durante o processo. É importante ressaltar que as demais empresas não disponibilizam nenhuma informação dessa maneira, sequer os custos do serviço são exibidos na página das empresas. Todas as cláusulas contidas no contrato com a Alcor submetem o paciente a uma condição análoga a "propriedade" da empresa após o decreto de morte legal. Literalmente é firmado um termo de “direito de controle e disposição de restos” (right to control disposition of remains) que confere total posse à Alcor. Essa interferência é curiosamente paradoxal, pois de acordo com os conceitos apresentados pela Alcor em sua apresentação, o paciente em estado de criopreservação NÃO está morto, porém, para fins jurídicos essa concepção é acatada, transformando o discurso geral da empresa em algo um tanto conturbado e esquizofrênico, impossível de ser levado ao pé da letra. Esse panorama de incongruência e contradição a respeito das funções biológicas nos remonta o conceito de pós-orgânico de Sibilia, que se desprende do antigo entendimento restrito de vida.

Figura 32 -- Conteúdo da Library Alcor (Fonte: Fonte: http://www.alcor.org/Library)

Members/Patients Stats Na área dedicada às estatísticas podemos observar o crescimento da adesão, tanto de membros como de pacientes. Informações atualizadas a respeito da quantidade de associados, membros e pacientes se encontram em lugar de extrema visibilidade para quem navegar.

Figura 33 - Estatísticas (Fonte: http://www.alcor.org/AboutAlcor/membershipstats.html)

O gráfico 1 ilustra o crescimento do número de membros enquanto o gráfico 2 ilustra os pacientes, ou seja, pessoas em estado de criopreservação.

Gráfico 1 - Gráfico de Membros

Gráfico 2 - Gráfico de Pacientes

(Fonte:http://www.alcor.org/AboutAlcor/membershipstats.html)

Fonte:http://www.alcor.org/AboutAlcor/membershipstats.html)

Garcia Laymert também pontuou em sua obra Politizando Novas Tecnologias que consumo de algum bem no futuro envolve cada vez mais outras esferas sociais e muitas incertezas. O autor faz uma analogia com jogos finitos e jogos infinitos, a fim comparar as compras virtuais a algo que não tem fim - ao contrário de outros insumos – e opera com uma velocidade de desatualização muito particular. O mesmo pode se aplicar à criônica, que é um "investimento" de resgate futuro e impreciso, assim como uma ação da bolsa ou um jogo interativo. Ele complementa que na esfera do intangível, há uma carência tão progressista quanto a real, esta se encontra no âmbito do desejo e opera com a miséria libidinal, habilmente manipulada pela sociedade que injeta cada vez mais inseguranças e medos, como por exemplo as obsessões relacionadas ao corpo, tão presentes ao longo deste estudo. O corpo que é congelado não só busca redenção da morte: mas

também do temido envelhecimento, que leva os indivíduos a gastarem, se privarem e se sacrificarem numa tentativa de retardar o processo de degradação e deterioração. Esse incremento na procura pela suspensão reflete ao mesmo tempo o acesso à informação e tecnologia por parte dos consumidores, como também o incitamento globalizado das questões relacionadas ao corpo. A suspensão é um nível transcendente do que se propõe os cremes antienvelhecimento e vitaminas antioxidantes.

Member Profiles A Alcor disponibiliza uma página com imagens e breves descritivos de seus membros, clicando no link é possível saber mais sobre a vida de cada um, como por exemplo como conheceu a criônica, o que faz hoje, o que espera do futuro e etc. Trata-se de uma abordagem emocional e aspiracional, uma vez que gera empatia, identificação e segurança, uma vez que o visitante nota não ser o único a ter angústias e medos em relação a morte. Essa amostragem é simbólica, porém, os membros/pacientes expostos são a evidência da domesticação/docilização de um corpo. Esse conceito foi introduzido anteriormente, por meio do pensamento de Foucault, e desde o momento que antecede a "morte" até tudo que é feito com o corpo posteriormente evidencia uma objetificação, de certa forma passiva, desse receptáculo inanimado, que é ambíguo, simultâneo, múltiplo, vivo e morto.

Mesmo os membros que não estão em estado de suspensão, estão aguardando proativamente o momento de serem criopreservados por tempo indeterminado. Que também é uma maneira de não sucumbir ao destino "natural" e demonstrar controle sobre assuntos que transgridem a própria existência ou consciência de si. É a capacidade de empreendimento/gestão abordada por Nikolas Rose para além da "vida", uma vez que se toma a decisão com antecedência.

Figura 34 - Perfil dos Membros (Fonte: http://www.alcor.org/profiles/index.html )

Membership Em se tratando de um serviço que pressupõe uma troca capital, um fator de extrema relevância é o preço. Dentro da Alcor existe a possibilidade de se tornar: Ø Associado – custo mensal de U$ 5,0053 e dá direito a receber publicações mensais a sobre a empresa, estudos e pesquisas; Ø Membro – a partir de U$ 80.000,0054 neuropreservação e U$ 200.000,0055 preservação total do corpo (estes custos estimados não incluem diversas variáveis como tratamentos e transportes que podem ser melhor consultadas no Termo Oficial disponível na página http://www.alcor.org/BecomeMember/scheduleA.html ).

Figura 35 - Tag utilizada por Membros (Fonte: http://www.alcor.org/BecomeMember/index.html)

53

Disponível em: http://www.alcor.org/BecomeMember/associate.html Acesso em Mai/2016 Disponível em: http://www.alcor.org/BecomeMember/scheduleA.html Acesso em Maio/2016 55 Idem 54

As tags utilizados pelos membros carregam forte carga simbólica. Sua função é orientar em caso de emergência os médicos ou equipe de resgate em relação aos procedimentos que podem ser realizados de maneira que não venham interferir na posterior vitrificação. Entretanto, mais que sua finalidade esses tags representam um ingresso, um passe ao mundo da Criônica, segregando entre quem terá e quem “não terá uma segunda chance”, "second chance at life", como o Cryonics Institute se refere em sua página56. Nesse bracelete/colar reside um valor simbólico imensurável. Está contido nele um passaporte para a eternidade Os métodos de pagamento são claramente descritos, existem 5 possíveis formas de adesão que variam desde pagar integralmente em vida, utilizar seguro de vida e até empregar algum imóvel como garantia. A empresa também disponibiliza o serviço para residentes de outros países com um acréscimo de aproximadamente U$ 10.000,0057.

Library

Figura 36 - Desdobramento do Menu Library (Fonte: http://www.alcor.org/library/index.html)

56 57

Disponível em: http://www.cryonics.org/ Acesso em Mai/2016 Disponível em: http://www.alcor.org/BecomeMember/tinternational.html Acesso em Mai/2016

A seção de Biblioteca compreende um compilado de matérias, livros, reportagens, vídeos, fotos, pesquisas e afins relacionados à Criônica. Diante da escassez de informação a respeito disponível, pode-se considerar esse depósito uma das melhores fontes de pesquisa disponível. O conteúdo, muito bem dividido em função de sua natureza e objetivo, está organizado para que os diferentes públicos (médicos, cientistas, pesquisadores ou pacientes em potencial) tenham acesso às informações de maneira descomplicada. Um caso interessante que desperta curiosidade e reflexão acerca da informação armazenada no cérebro é do paciente "Thomas Donaldson”58. Este caso é detalhadamente descrito no site como um exemplo de insucesso, porém o debate que recai sobre as questões éticas é muito pertinente. Thomas padecia de um tumor cerebral e era membro da Alcor. Em 1990 quando seu quadro piorou ele solicitou a um procurador Geral uma autorização de eutanásia, (que consiste no suicídio medicamente assistido). Para Donaldson era mais importante garantir uma eventual vida futura do que lutar, arriscar e tentar uma vida no presente. É a tangibilização do conceito de se fazer morrer para viver.

News Na área dedicada às novidades pode-se perceber que não ocorrem muitas atualizações. Não por falha da empresa, mas por ausência (ou talvez alguma política de não divulgação) de conteúdo para ser acrescentado. Quanto aos releases da imprensa observa-se uma frequência grande, provando que não só o tema, Criônica, vem sendo explorado pela mídia, quanto a posição de evidência que a empresa se encontra.

More e Contact Nas demais seções do menu, estão informações como contatos (Facebook, telefones, email, endereços, formulários para perguntas, inscrições para tour guiado nas instalações e até contato para vagas de emprego) devidamente segmentados por público (áreas para pessoas da mídia que desejam contato, pacientes, voluntários e candidatos em potencial). 58

Disponível em: www.alcor.org/Library/html/ProspectsOfACureForDeath.html Acesso em Mar/2016

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

NÃO: NÃO quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. (Álvaro de Campos/Fernando Pessoa, 1990, p.184)

Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais. Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. (Epicuro, em A Conduta na Vida)

A imersão nesse universo das baixas temperaturas foi iniciada com questionamentos muito pontuais acerca do discurso publicitário de um curioso mercado em ascensão a nível global. Entretanto, desde a pesquisa bibliográfica inicial percebemos que o assunto revelava em diversas questões que não poderiam ser negligenciadas ou omitidas. Neste estudo exploramos acerca de uma técnica muito inovadora e incipiente de um lado e proposições muito cristalizadas, quase dogmáticas, de outro. Ao passo que temos muitos anos de literaturas que abordam o Corpo e a Morte (ainda que de maneira muito heterogênea ao longo do tempo), temos também uma tecnologia que data menos de 50 anos e confronta diversos paradigmas que acompanham a humanidade desde seus primórdios. Posto isso, coube a nós traçar eventuais simetrias e sobreposições das teorias, largamente difundidas, e relações com a oferta deste serviço tão neófito. As questões pontuadas a respeito do corpo evidenciaram, traçando um paralelo evolutivo como vêm ocorrendo uma “domesticação” do indivíduo. Tanto física quanto psicologicamente, notou-se um movimento muito grande em relação à assunção de controle do corpo (como um todo). “Contemporâneo” e “habitual”, pois estão presentes no cotidiano das nossas sociedades, apontamos diversas manifestações que vão em sua forma básica desde dietas, exercícios, implantes, extrações, modelagens e modificações. Essas evidências são partículas de algo que tem mais força, mais impacto e mais relevância do ponto de vista sociocultural: o empreendedorismo humano. Algo que no decorrer do estudo foi por vezes intitulado de self empreendedor, e traduz uma filosofia de vida para além da gestão e regência do indivíduo: ela busca otimizar, potencializar, calcular meticulosamente cada investimento (mesmo que biológico) em função de um retorno (mesmo que também biológico). O termo empreendedor de Rose se deve à semelhança da maneira como empresas são geridas em função de minimizar riscos, reduzir gastos, otimizar de ganhos, maximizar a produção, analisar retornos, projetar a valorização. Literalmente uma aplicação do conceito de capitalização à vida. Portanto, ao conceber essa ânsia pós-moderna, começamos a compreender algumas das circunstâncias e fatores que tangenciam e impulsionam um ser humano na direção de eventualmente interromper sua existência em determinado momento planejando retoma-la posteriormente (eventualmente).

Assim como o conceito de vida, a morte, em sua opulência e onipresença, tem sua carga semântica transformada ao longo do tempo. Observamos que o sujeito contemporâneo vem percebendo o corpo, a morte e a passagem do tempo de uma maneira distinta. Essa nova relação e percepção transpassa desde os rituais mortuários até as terminologias que demandaram neologismos, passando pelas definições mais basilares, que vêm sendo sobrescritas a cada descoberta da ciência. Apesar da nossa “familiaridade” com a asserção e constância da morte, a criônica se apropria desse local inexplorado (ao menos pela ciência) que trata do regresso. Ainda que não possamos fazer uso do termo “pós-morte”, uma vez que as empresas do segmento enfatizam que seus pacientes estão apenas “suspensos” e passíveis de ressuscitação, trata-se de uma passagem para o desconhecido. Desconhecido este que é potencializado pela incipiência da prática, que até o momento presente jamais conseguiu trazer à vida novamente uma pessoa. Ademais das questões cientificas, que são nitidamente ousadas e excitantes, a criônica é revolucionário ao propor novas concepções nos campos políticos e sociais. Afinal, quando uma empresa se propõe a manter suspensos em baixas temperaturas corpos que estão legalmente mortos (porém não clinicamente extintos) por tempo indeterminado tratando-os como pacientes há uma ressignificação e redefinição de vários pontos ancestrais. Algumas questões permanecem incômodas, como: O que são corpos? O que é morte? O que é humano? O que é estar vivo? Os pacientes congelados assinam termos que dão total e irrestrito direito sobre seus corpos a partir do momento que entram em suspensão. Mas se eles estão vivos, isso não seria uma violação e privação? A partir do momento que se dá início ao processo de vitrificação o corpo/paciente, que para as empresas não representa um morto, mas para a lei também não é um vivo passa a ser manipulado e manuseado como um objeto. Não só ocorre uma abstenção da vida, como do conceito humanal. Do ponto de vista corpóreo (e legal) são pessoas mortas, porém para os crionicistas esses pacientes são passíveis de ressuscitar, logo são vivos em potencial. As empresas se pautam na afirmação de que a morte não é um evento, e sim um processo, logo pode ser cessado, ou desacelerado.

Assim como um paciente de UTI que possui uma grave doença ou quadro hospitalar delicado, e é prognosticado com um quadro reversível, mas se encontra em situação limítrofe entre a vida e a morte, está (segundo as empresas de criônica) um paciente em suspensão. “A UTI surge como um lugar de possibilidade de vida, embora o risco da morte seja constante”. Corpo suspenso é um corpo múltiplo, inexato, equívoco, indefinido, ambíguo, simultâneo: vivo e morto. Em função da não comprovação dessa técnica é impossível inferir sequer se a suspensão representaria uma anulação ou uma postergação da “passagem”. Não só a as “dualidades” Vida e Morte tiveram suas definições ressignificadas e suas barreiras derrubadas pela criônica, Corpo e Mente também se encontram submetidos à novas lógicas, que permitem questionar até o que se está congelando: o Corpo ou a Mente? As possíbilidades de fragmentação do corpo para o procedimento se assemelham aos sentidos esboçados por Rose (2011) ao discorrer sobre o corpo molar: que é decomposto, subdividido e repartido ao extremo da partícula, como se estivesse nesse elemento invisível “aquilo que somos”. Nesse novíssimo modelo de pensamentos que se originam no Transumanismo, a única coisa que se pode inferir é que o corpo criônico, assim como o mercado financeiro, é um investimento no Futuro. E sua possibilidade de sucesso é tão incerta quanto de qualquer ação na Bolsa de Valores. Apesar das incertezas, ambiguidades e paradoxos relativos à prática, deve-se assumir a relevância econômica desse serviço que se nutre de alguns dos principais temores da humanidade: a morte e o envelhecimento. Não somente a existência de tal serviço é digna de atenção como fenômeno mercadológico, mas a própria sofisticação que vem ocorrendo, como o aumento de ofertantes e de ofertas (a exemplo da neurovitrificação) reflete uma incursão assertiva que explora e ressignifica grandes temas universais, como a morte, de maneira cada vez mais hábil e articulada.

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