Vidas embargadas: a institucionalização temporária de estrangeiros \'ilegais\' em Portugal no contexto das actuais políticas de imigração

June 29, 2017 | Autor: Octávio Sacramento | Categoria: Migration Studies, Migration (Anthropology)
Share Embed


Descrição do Produto

Biblioteca Nacional de Portugal –– Catalogação na Publicação

ETNOGRAFIA E INTERVENÇÃO SOCIAL : POR UMA PRAXIS REFLEXIVA

Etnografia e intervenção social : por uma praxis reflexiva / coord. Pedro Gabriel Silva, Octávio Sacramento, José Portela. – (Extra-colecção) ISBN 978-989-689-118-3 I – SILVA, Pedro Gabriel, 1973II – SACRAMENTO, Octávio José Rio do, 1973III – PORTELA, José Francisco Gandra, 1950CDU 364

Título: Etnografia e Intervenção Social: Por Uma Praxis Reflexiva Coordenação: Pedro Gabriel Silva, Octávio Sacramento e José Portela Editor: Fernando Mão de Ferro Depósito legal n.º 329 909/11

Lisboa, Setembro de 2011

Vidas embargadas: a institucionalização temporária de estrangeiros ilegais em Portugal no contexto das actuais políticas de imigração _____________________________________________ Octávio Sacramento Manuela Ribeiro

Introdução A gestão da imigração, muito em particular a dita ilegal, constitui actualmente uma das grandes preocupações dos países mais desenvolvidos do hemisfério norte. A prová-lo está a crescente expansão do tecido institucional ao longo da “fileira”, desde as acções de intervenção a montante, visando o “controlo remoto” (Zolberg 2003) e a dissuasão nos países de origem e de trânsito migratório1 (Nieuwenhuys e Pécoud 2007), até à detenção e extradição daqueles que são detectados em situação jurídica irregular no país de destino. Na fase final do circuito de intervenção, começam a ganhar grande relevância, sobretudo na Europa, os centros de detenção temporária de imigrantes. Estes centros representam novas estratégias dos Estados para disciplinar o espaço e a mobilidade de imigrantes tidos como indesejados (Broeders e Engbersen 2007). Em Portugal, o primeiro centro desta natureza surge em 2006, no Porto, sob a designação de Unidade Habitacional de Santo António (UHSA). Com o intuito de proceder à avaliação do seu funcionamento, passado cerca de um ano desde a sua abertura, foi solicitado pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) um estudo de diagnóstico a uma equipa do Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento (CETRAD-UTAD), da qual fizemos parte2. Foi, então, realizada uma 1

Acções geralmente financiadas pela Organização Internacional das Migrações (OIM) e pelos países ocidentais. 2 Deve ressalvar-se que o presente texto é, em boa medida, tributário dos resultados apurados no referido estudo, cuja realização, para além dos autores deste artigo, contou também com a participação dos investigadores do CETRAD Alberto Baptista e Fernando Bessa Ribeiro. Algumas das reflexões desenvolvidas pelo primeiro autor do

142

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

avaliação de acompanhamento, que passou, no seu essencial, por examinar as condições materiais, os processos, as práticas e as sociabilidades que caracterizam o quotidiano da instituição, sempre com o objectivo de delinear sugestões tendentes a melhorar globalmente o seu funcionamento. É precisamente com base nos elementos empíricos proporcionados pelo estudo em causa3, já apresentado sob a forma de relatório (Ribeiro et al. 2007b), que procuraremos debater neste texto a experiência portuguesa de institucionalização e extradição dos imigrantes considerados ilegais, dando prioridade de análise quer ao modo como os próprios, na primeira pessoa, expressam a vivência do processo, quer às consequências que ele desencadeia nos seus respectivos projectos migratórios e biográficos. A finalizar, ensaia-se uma pequena reflexão em que se equacionam possíveis ajustamentos nas políticas e práticas institucionais que dão corpo à detenção e extradição de imigrantes no espaço Schengen, uma reflexão que decorre da constatação da progressiva transformação do “Espaço Europeu de Liberdade, Segurança e Justiça”, cuja génese remonta ao Tratado de Amesterdão, em 1997, num espaço meramente securitário. No debate ter-se-á sempre presente, como cenário de fundo, a existência de uma conjuntura internacional marcada pela crescente fortificação das fronteiras dos países mais ricos e pela sofisticação dos instrumentos de controlo/repressão dos fluxos migratórios, muito em especial quando o que

texto, nomeadamente as que constam da secção “A política de portões selectivos…”, inscrevem-se numa pesquisa para Doutoramento que beneficia do apoio da FCT através da bolsa SFRH/BD/60862/2009. Aproveitamos, ainda, para agradecer os comentários críticos e as sugestões do Prof. José Portela (UTAD_CETRAD), os quais, todavia, não lhe conferem qualquer responsabilidade no teor e na expressão dos conteúdos aqui desenvolvidos. 3 No processo de pesquisa empírica, que decorreu entre Novembro de 2006 e Junho de 2007, optou-se por uma abordagem que integrou diversos procedimentos metodológicos, assegurando-se, assim, uma compreensão mais aprofundada do contexto social em causa. O trabalho de recolha da informação começou pelas fontes documentais de diversas instituições, tendo em vista, sobretudo, aceder a elementos estatísticos e legais sobre a detenção e extradição de imigrantes no espaço europeu. De seguida, recorreu-se também ao inquérito por questionário, tendo sido inquiridos 42 utentes, o que representa cerca de 26% do total dos que passaram pela UHSA no primeiro semestre de 2007. Aos agentes institucionais (funcionários da UHSA, membros das organizações parceiras e prestadores externos de serviços) foram realizadas entrevistas semi-directivas. Para além destes procedimentos mais estandardizados de recolha de informação, procurou-se também assegurar a pesquisa empírica por via de exercícios mais ou menos pontuais de observação participante. Assim, em todas as visitas à instituição, os membros da equipa procuravam colectar elementos empíricos através da observação directa e dos diálogos informais com os mais diversos actores, registando posteriormente a informação sob a forma de notas de campo. De forma a explorar um pouco mais a abordagem etnográfica, dois dos elementos da equipa estiveram a residir na UHSA (cada qual pelo período de uma semana), acompanhando por dentro o quotidiano da instituição.

Vidas embargadas

143

está em causa são as migrações de cidadãos pobres e pouco qualificados dos países do Sul, como é o caso dos utentes que encontrámos na UHSA. Nesta conjuntura, os centros de detenção temporária de imigrantes constituem mais um elemento da complexa engrenagem de dispositivos que permite aos países ricos, em função dos seus interesses, gerir estrategicamente o ritmo, volume e composição dos diferentes fluxos que decorrem das suas conexões globais. No que diz respeito à União Europeia, como nota Godinho (2007: 73), “[…] ao mesmo tempo que se desterritorializam as relações entre os cidadãos dos Estados-membros, são reterritorializadas aquelas que respeitam a cidadãos de Estados terceiros”. O resultado desta (des)territorialização selectiva é um sistema que exclui uma significativa percentagem de indivíduos de aceder às (potenciais) oportunidades da globalização, podendo mesmo admitir-se a existência do que Martin et al. (2006: 513) designam por un-globalization. Além dos seus inúmeros efeitos perversos (Andreas 2001; Peixoto et al. 2005), esta situação é reveladora “[…] de uma hipocrisia política: os governos limitam o fluxo de pessoas que necessitam de ajuda humanitária, mas ao mesmo tempo a força de trabalho e a economia destes países só podem sobreviver à competição internacional tendo acesso ao custo do trabalho barato que os migrantes garantem” (Grassi 2006: 302). Parece mesmo fundamental para a actual economia de mercado a existência de um sistema que limita a livre circulação de pessoas e convida a fluxos migratórios irregulares, constituídos sobretudo por indivíduos profundamente vulneráveis à imposição de regimes laborais convenientes para as entidades empregadoras. A designação “grande muro do capital” (Davis 2008) ilustra na perfeição as ambiguidades estratégicas deste sistema. A institucionalização de ilegais: entre a preocupação humanista e a lógica carcerária Na Europa, a abordagem ao problema da imigração ilegal tem vindo a ser marcada pela intensificação do recurso à detenção administrativa de cidadãos de países terceiros em situação irregular, procurando-se, assim, acelerar o processo de extradição e, simultaneamente, dar um sinal de desencorajamento a potenciais imigrantes (Broeders e Engbersen 2007: 1602). Com efeito, os centros de detenção temporária para cidadãos não-nacionais em situação irregular, embora com formatos e designações diversas, têm vindo a ser criados e adoptados como instrumentos das políticas de imigração em todos os países de mais elevada procura por parte de estrangeiros, vindos sobretudo dos países com maiores problemas de estabilidade económica e política, em busca de melhores condições e

144

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

oportunidades de vida. Atendendo a que a pena de expulsão de imigrantes é, na esmagadora maioria dos casos, ditada por infracções de cariz administrativo, o seu internamento e consequente privação de liberdade aparecem, em termos formais, justificadas por intenções eminentemente cautelares e preventivas, ou seja, as de garantir a presença dos visados durante a instrução dos respectivos expedientes administrativos e a execução da medida sentenciada. Em 2009, o número deste tipo de estabelecimentos públicos na Europa já ultrapassava as duas centenas e meia (Migreurop 2009). Em Portugal, a criação de estruturas de instalação temporária de estrangeiros que não reúnam os requisitos fixados por lei está legalmente contemplada desde 19944 e foi sendo materializada nas chamadas “zonas de trânsito” dos complexos aeroportuários de Lisboa, Porto, Faro, Funchal e Ponta Delgada5, locais onde eram albergados, à espera do desfecho dos correspondentes processos, os solicitantes de asilo, os estrangeiros com entrada recusada e os imigrantes com ordem de expulsão do país. A UHSA foi criada pelo Decreto-Lei n.º 44/2006 de 24 de Fevereiro, tendo vindo a ser instalada numa zona residencial da cidade do Porto, em instalações que, no passado recente, tiveram como função acolher jovens sob tutela judicial. O seu funcionamento assenta numa estrutura organizativa em que, para além de uma estrutura de coordenação do SEF, participam outras entidades de natureza jurídica diversa e com vínculos de colaboração distintos, como é o caso do Serviço Jesuíta aos Refugiados (SJR) e da OIM. A entrada em funcionamento desta unidade permitiu libertar as instalações aeroportuárias existentes para o exclusivo acolhimento dos estrangeiros considerados como “inadmissíveis” e põe igualmente fim à detenção, em cadeias comuns, de imigrantes a aguardar o afastamento do país. Por comparação com a situação precedente, a UHSA consubstancia um projecto de evidente evolução organizativa que, entre outros, a configura como um “centro de 2.ª geração”. Pelos pressupostos que subjazem à sua criação, pela materialização que veio a assumir, pelos princípios e conteúdos inscritos no seu Regulamento Interno (SEF 2006), a UHSA apresenta-se, no contexto nacional, como uma unidade pioneira e experimental e, em última instância, com pretensões de organização modelar para uma futura geração de congéneres. Em linha com os pressupostos humanistas dos Direitos Humanos, assume como objectivo fundamental “proporcionar alojamento temporário aos utentes em situação de cumprimento de uma medida de afastamento do território português de

4 5

Lei n.º 34/94 de 14 de Setembro. Decreto-Lei n.º 85/2000 de 12 de Maio.

Vidas embargadas

145

uma forma condizente à dignidade humana” (idem: art.º 3.º, cap.º I do Regulamento Interno). À data da realização do estudo acima mencionado, os utentes da UHSA correspondiam aos seguintes elementos de caracterização sócioeconómica: 69% são homens e 31% mulheres; a grande maioria situa-se na faixa etária dos 20 aos 40 anos (71%) e é solteira (78%); predominam, como seria de esperar, cidadãos com baixos índices de escolaridade (somente 10% declara ter formação superior); e são provenientes de países com problemas de desenvolvimento, sendo de destacar os de nacionalidade brasileira (36%), os da Europa de Leste (19%) e os de diversos países africanos (33%), com destaque para os subsarianos. Cerca de metade (47%) dos inquiridos declararam ter entrado em Portugal nos últimos três anos prévios ao da inquirição levada a cabo, havendo, porém, seis indivíduos que reportaram ter chegado há mais de sete anos. A institucionalização na UHSA para posterior extradição decorre de uma medida de coacção imposta pelo tribunal da área onde se procedeu à detenção policial. Esta medida implica uma reclusão do imigrante que pode estender-se até um máximo de 60 dias. Da totalidade dos utentes, 35% já tinham sido instados judicialmente a sair do país de forma voluntária. Não o tendo feito e sendo detectados pelas forças de segurança, foram novamente presentes a tribunal e sujeitos a ordem de extradição. Após a deliberação judicial, o encaminhamento para a UHSA é assegurado por uma força policial, culminando assim um processo que se rege pela Lei 23/2007 de 4 de Julho. A região de Lisboa e o Algarve encontram-se entre as principais áreas de proveniência dos utentes da UHSA. Depois de instalados, quase todos reconhecem que a UHSA apresenta padrões funcionais, de higiene e de conforto minimamente satisfatórios e adequados. Nesta apreciação tendem a recorrer a comparações nas quais utilizam referências que remetem para as condições materiais e as experiências de vida que viveram até à data da detenção, destacando – quase todos – as melhorias significativas proporcionadas pela UHSA: í Aqui é tudo melhor do que no sítio aonde eu vivia.6 í Estava a viver numa casa, sem água, sem luz…… í Ao que eu já passei e vivi nestes últimos anos, isto aqui é, para mim, um hotel de cinco estrelas!!

6

Atendendo a que o contexto em causa é bastante circunscrito, facilitando a identificação dos vários actores sociais que o integram, optamos por não facultar aqui qualquer elemento (nem mesmo o sexo e a idade) que, eventualmente, possa contribuir para a quebra do anonimato dos nossos informantes.

146

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Em termos gerais, e apesar das limitações decorrentes do facto de se tratar de um edifício não construído de raiz para o fim em vista, a que se juntam obras de adaptação relativamente modestas, a instituição possui as condições mínimas de habitabilidade e conforto para acolher por períodos relativamente curtos (até um máximo de 60 dias) homens e mulheres sujeitos a privação da liberdade e com trajectos de vida difíceis. A qualidade das instalações físicas da UHSA colocam-na na esteira da exigência que a lei lhe fixa, ou seja, a de ser “um espaço a funcionar em condições dignas” (Decreto-Lei n.º 44/2006, de 22 de Fevereiro). É também de destacar o excelente padrão de relacionamento humano que os responSáveis da unidade vêm sendo capazes de estabelecer, envolvendo inspectores do SEF, seguranças, outros funcionários, membros das ONG presentes, voluntários e utentes. As observações directas e as inquirições efectuadas permitem afirmar que, desde que a unidade começou a funcionar, não há registo ou sequer indícios de práticas de maus-tratos, de uso de violência contra os utentes, nem de hostilidade aberta e continuada entre estes e o pessoal de serviço na unidade. Pelo contrário, constata-se a existência de um empenho efectivo por parte da generalidade dos funcionários da UHSA no sentido da resolução dos problemas com que os utentes se debatem. Este acompanhamento próximo, quase empático, é largamente facilitado pela dimensão da unidade, mormente em termos físicos e sobretudo da capacidade máxima de alojamento que ela comporta, a qual pouco excede as três dezenas de pessoas internadas em simultâneo. Trata-se, com efeito, de uma escala institucional compatível e facilitadora do desenvolvimento de uma interacção relativamente intensa e sistemática entre todos os elementos do grupo social alargado que compõe o universo da UHSA e, por consequência, de um controlo atento das ocorrências que nele se vão registando. Tomando eventuais castigos e maus-tratos de vária ordem (seja por palavras ou por actos), como indicadores mais imediatamente expressivos de negação do direito ao “respeito e tratamento digno” que é reconhecido aos detidos (SEF 2006: art.º 6.º e alínea a) do art.º 9.º, cap.º III, Regulamento Interno), os resultados que apurámos apontam para a inexistência de falhas dignas de registo por parte dos agentes institucionais intervenientes no dia-a-dia da UHSA. Com efeito, a pergunta “já alguma vez se sentiu maltratado/a dentro desta casa?” recebeu 95% de respostas negativas, não sendo raras as expressões de estranheza e de surpresa dos respondentes face ao conteúdo desta questão. As duas únicas alegações de maus-tratos que foram mencionadas são reportadas a ocorrências muito pontuais e podem ser consideradas de reduzida gravidade, tendo mesmo uma das “ofendidas” reconhecido que devolveu a ofensa no acto: Fiz uma pergunta e ela [uma agente da segurança] me respondeu com malcriação;

Vidas embargadas

147

Recebi uma má resposta [de uma agente da segurança]. Mas também dei logo o troco e respondi à letra! Igualmente pouco expressivos são os dados apurados no que diz respeito à imposição de castigos aos detidos, pois somente três dos inquiridos declararam já ter sido objecto de procedimentos que interpretam como tal: í Já me aconteceu não ter sido autorizada a sair para o exterior, por ter feito alguma coisa. í [Os seguranças] Mandam-me subir e ficar no quarto, porque eu gosto muito de brincar com os rapazes. Eu vou, mas não fico lá muito tempo. Desço logo de seguida. í Foi-me dito [por uma agente da segurança]: ““se não comes não vais subir”” [para o quarto]. Fui praticamente obrigada a comer e proibida de fazer greve de fome como pretendia.

A existência pontual deste tipo de atritos não nos impede, todavia, de constatar que o tratamento dos utentes, a par do funcionamento geral da unidade e das suas condições materiais, colocam a UHSA em linha com os padrões internacionais de Direitos Humanos e da generalidade dos critérios definidores de estabelecimentos de detenção sadios (healthy custodial establishments7), na esteira da definição de uma prisão “saudável” proposta pela Organização Mundial de Saúde. Embora a este nível institucional os utentes tenham os seus direitos básicos minimamente salvaguardados, importa não esquecer que o quadro estrutural das políticas de imigração, de que resultam este tipo de centros, e a lógica securitária que lhes é subjacente constituem uma afronta desses mesmos direitos. A UHSA, tal como a generalidade das chamadas “instituições totais” (Goffman 1999; Foucault 1999), caracteriza-se por um modelo de funcionamento fortemente burocratizado, em que, por um lado, quase tudo é alvo de uma regulamentação detalhada e de rigoroso cumprimento em praticamente todas as circunstâncias e, por outro, se evidencia uma preocupação securitária, alicerçada numa vigilância panóptica, a que apenas escapam os poucos espaços e situações de mais estrita privacidade pessoal8. “The four criteria of a healthy custodial establishment, modified to fit the inspection of the removal centres, are: safety –– all detainees are held in safety and with due regard to the insecurity of their position; respect –– detainees are treated with respect for their human dignity; purposeful activity –– detainees are able, and expected, to engage in activity that is likely to benefit them; preparation for release –– all detainees are able to keep in contact with the outside world and are prepared for their release, transfer or removal” (HM Chief Inspector of Prisons 2007: 9). 8 Um exemplo paradigmático desta preocupação securitária: à entrada, e durante a estadia na instituição, tal como acontece num estabelecimento prisional comum, são retirados aos utentes todos os seus objectos de valor, assim como aqueles que possam ser usados 7

148

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Do regresso imposto ao desejo de voltar Para a imensa maioria das pessoas a quem ele é imposto, o internamento num centro de detenção temporária significa a suspensão dos modos de vida e das rotinas que preenchiam o seu quotidiano habitual e a passagem súbita e não planeada a um tempo quase exclusivamente preenchido pela espera, isto é, vazio de ocupações e actividades. A detecção por parte das autoridades policiais, embora frequentemente equacionada como probabilidade é, por regra, recebida com surpresa, mesmo por aqueles que são reincidentes, ou seja, pelos que registam já processos anteriores de identificação como ilegais e não deram sequência à notificação para abandono voluntário do país que, por então, lhes foi decretada. Esta é, aliás, uma situação relativamente comum entre os imigrantes que são encaminhados para a UHSA. Com efeito, cerca de 35% do total dos inquiridos no âmbito deste estudo reportaram a existência de ordens anteriores de afastamento que não acataram, o que indica que a reclusão tende a ser, em grande medida, accionada como meio para evitar a repetição dos incumprimentos. Mas mais do que surpresa, a reacção inicial à detecção e subsequentes desenvolvimentos processuais conducentes à expulsão são muitas vezes descritos como de choque. Assim se lhe referem os que contam já vários anos de estadia em Portugal e que, mesmo na condição de clandestinos, por cá foram engendrando soluções de vida, necessariamente precárias, tanto no plano pessoal como laboral, que agora vêem brusca e radicalmente suspensas: Já estava estabelecido em Portugal [aonde chegou há quatro anos]. Estava a trabalhar. Sinto-me injustiçado; Fiquei sentido por ver que tudo o que consegui até aqui fica para trás. Assim se lhe referem também muitos dos que chegaram há menos tempo e que vêem desfeita, quando ainda mal se começava a esboçar, a possibilidade de realização de expectativas próprias e dos respectivos núcleos familiares. São relativamente poucos (cerca de 30%) os que dizem ter transposto os portões da UHSA com tranquilidade e encarado com normalidade a situação em que se acharam. O grupo dos que declaram este tipo de sentimentos é integrado sobretudo por indivíduos protagonistas de experiências migratórias mais extensamente marcadas pelo fracasso e que

como artefactos de agressão. São também, logo nesta fase inicial, retidos os bens de que são portadores e que, pelo seu valor material, possam constituir objecto de cobiça e levar ao roubo por parte de terceiros ou ser usados para qualquer tipo de comércio no interior do estabelecimento – jóias, relógios, dinheiro e telemóveis – ou que, de algum modo, possam ser utilizados/utilizáveis como meios de (auto)agressão – telemóveis, objectos inflamáveis, latas, fios, sprays, agulhas, atacadores, entre outros.

Vidas embargadas

149

(sobre)vivem da mendicidade, da arrumação de carros, da caridade alheia e similares, alguns dos quais, uma minoria, não hesitam mesmo em afirmar que se sentiram aliviados por serem aqui acolhidos: Senti tranquilidade por ver que era melhor do que a rua [aonde vivia desde que chegou a Portugal, há poucas semanas]. Quando fui apanhado, estava há três dias sem comer e, de repente, encontro uma casa aonde há de tudo! E houve até um que confessou ter-se entregue voluntariamente para ser deportado, porque estava interessado em regressar ao seu país e não dispunha, de todo, de meios para custear a despesa da viagem. A tranquilidade de estado de espírito que muitos destes respondentes proclamam tem muito a ver quer com a indiferença que alguns deles abertamente opõem ao que lhes está a acontecer, quer com a presunção de outros de, pelo facto de estarem indocumentados, preverem como improvável a conclusão com eficácia do pedido de reconhecimento e de emissão do necessário salvo-conduto para o seu repatriamento por parte das representações diplomáticas dos seus países. Daí, a sua forte convicção de que, esgotado o prazo legal de 60 dias de detenção, serão devolvidos à liberdade: Não sabe o que estar aqui a fazer. Não sabe o que se passa. Mas eu feliz, muito brinca, optimista! Estar só à espera que tempo passa. Dois dos inquiridos fizeram questão de justificar o “nada” que dizem ter sentido aquando da sua transferência para a UHSA, por uma espécie de incapacidade de sentir o que quer que fosse, tal era o tamanho do choque provocado pela detenção: Estava tão ““anestesiada”” que não deu para sentir nada. E há também quem consiga encarar com uma ponta de humor a entrada (e a estadia) na UHSA: Imaginei que estava voltando ao colégio interno. É o mesmo formato! Porém, a grande maioria (67%) dos respondentes assume como fortemente impactantes a detecção e, mais em especial, a detenção, e aponta a ansiedade, o medo, a angústia, a apreensão, a tristeza como sentimentos dominantes a par da frustração, do desânimo e da revolta. Vários referem expressamente ter-se sentido confusos e “perdidos”: í Quando aqui cheguei senti-me como um peixinho de rio atirado ao mar! í Senti-me completamente confuso! A primeira coisa é a incerteza, o que vai acontecer e quanto tempo vou ficar aqui fechado? A segunda coisa é mesmo estar fechado!

Esta mistura de sentimentos, sendo primordialmente suscitada pela perspectiva de expulsão, é grandemente reforçada pelo internamento compulsivo e pela privação de liberdade que ele implica: Eu já vinha arrasada no caminho todo. Aqui ainda fiquei mais arrasada. Estou trancada. As

150

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

primeiras horas, os primeiros dias e, sobretudo, as primeiras noites são reportadas como dramáticas, como muito difíceis de viver. A insónia, o nervosismo, os distúrbios emocionais, a perda de apetite, são as expressões mais comuns do trauma que a situação representa para quase todos os que aqui chegam, com uma incidência especialmente elevada entre as mulheres, que constituem, neste campo, um grupo particularmente vulnerável: í Chorei dia e noite. Chorei dois dias. Não comia, nem bebia! í Chorei até dizer chega! í Nos primeiros dias para quem chega é difícil. As pessoas chegam aqui cheias de stress. í Sentia permanentemente um nó no estômago!

Com a continuação da estadia na unidade e a constatação do seu modo de funcionamento e do tipo de vivências que nela se desenvolvem, alguns dos sentimentos iniciais tendem a atenuar-se e alguns mesmo até a dissipar-se, embora os efeitos da privação de liberdade continuem a ser apontados como muito extensos e penalizadores e, como tais, geradores de afloramentos de revolta e de mal-estar: í Sinto-me mal... Não suporto esta falta de liberdade. í Ao fim dos cinquenta e quatro dias que já levo nesta casa, continuo a sentir-me um pássaro dentro de uma jaula. í Estou aqui há dez dias e estou saturado desta clausura! í A gente nunca roubou, nunca matou... para estar aqui presa!

Mas, para muitos, outros sentimentos igualmente negativos começam, entretanto, a nascer, sendo decorrentes, sobretudo, das expectativas sobre o andamento dos processos e seu desfecho. O medo do futuro; a frustração e a perda de auto-estima perante o fracasso inscrito na deportação; a solidão e o desamparo perante a completa ausência de referências afectivas próximas e significativas em Portugal – familiares, amigos, companheiros – e/ou a distância a que se encontram das que possam ter; a impotência e o desconhecimento perante a burocracia e as leis são, entre outros, factores que induzem e alimentam a formação de estados depressivos ou ansiosos revelados por muitos dos utentes que foram observados neste estudo: í Nem sei como vou me vou habituar outra vez ao meu país. Saí de lá já vai para dezasseis anos e nunca mais lá voltei. í Nossa Senhora! Levarem-me assim de volta para a minha terra! Aparecer à minha mãe assim, com estas roupitas [fornecidas pela UHSA]!

Vidas embargadas

151

í Não era assim que eu queria apresentar-me perante a minha filha e o resto da minha família.

Para a maioria, porém, o que se vai tornando mais penoso é o “arrastar” do tempo de internamento e sair dali “o mais depressa possível” acaba por se converter numa preocupação maior. Saber “quando vão sair”, “quando se vão embora” passa a ser, depois de percebida como irreversível a ordem de expulsão, a questão que mais os inquieta e a que mais repetidamente colocam aos responsáveis do centro. A situação que estão a viver e as questões que a mesma lhes suscita, passam, como muitos afiançam, a dominar-lhes por inteiro o pensamento, a absorver e a consumir o que lhes vai restando de ânimo, retirando-lhes concentração e interesse relativamente a outros assuntos: Fico o dia todo só a pensar na situação de uma pessoa. Não tem futuro. Penso sempre na família e na vida. E um ou outro dos que já contam mais tempo de reclusão vai mesmo mais longe e admite que o seu comportamento e o seu relacionamento com os demais têm vindo progressivamente a ficar contaminados pelo seu estado de espírito inquieto e em permanente e estéril cogitação: Maior vontade de ““xingar””, de bater, de tratar com arrogância. Enfim, de implicar e descarregar sobre os outros! Mesmo no rescaldo do trauma da detenção e da ordem de expulsão, muitos são os detidos que, de forma convicta e peremptória, fazem referência aos seus planos de “voltar a tentar a sorte” por via da emigração para algum dos países que compõem o lado mais rico do mundo. A disposição vigorosamente expressa de não desistirem do sonho que, por agora, se está a tornar um pesadelo, a resistência a declararem-se derrotados pelas múltiplas adversidades que tiveram de enfrentar para cá chegarem e enquanto por cá permaneceram, são, no conjunto, um eloquente indicador de quão má há-de ser a vida que os espera nos sítios para onde estão a ser mandados de volta. Com efeito, a esmagadora maioria dos utentes da UHSA, quando interpelados sobre os seus projectos de vida para o futuro, (re)afirma a sua intenção de regressar à Europa, sendo Portugal um entre vários destinos possíveis: A X. tenciona voltar para Portugal. No entanto, só voltará com um contrato de trabalho, de forma a evitar a situação em que agora se encontra. Não suportaria voltar a fracassar. Gosta muito de Portugal e ainda não perdeu a esperança de comprar casa e de montar um negócio no nosso país. (Notas de campo, UHSA, 20/02/2007)

No cômputo total da amostra de detidos inquiridos, 91% responderam que vão voltar a tentar emigrar. Destes, 51% dizem que pretendem,

152

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

especificamente, voltar para Portugal. Para os que continuam a inscrever a emigração nos seus planos de futuro, a expulsão de que agora estão à espera ganha um peso e um significado ainda maiores, por ter associada uma pena adicional de inibição por alguns anos de reentrada em território português, o que agrava consideravelmente a mágoa e a ansiedade em que muitos vivem desde que foram detectados e detidos. A Europa, sem concretizar qualquer país, aparece mencionada em 21% das respostas ao inquérito como destino eleito para novos projectos migratórios. Olhando para o futuro com mais reservas, os restantes 19%, certamente condicionados de forma negativa pela situação actual em que se encontram, não colocam assim de modo tão explícito a intenção de regresso ao continente europeu, ainda que não fechem por completo a porta a essa possibilidade ou apenas o façam em relação a Portugal: Voltar a emigrar para qualquer país, menos Portugal. Somente numa percentagem residual (9%) as respostas vão no sentido da recusa da hipótese de uma nova aventura no estrangeiro, expressando, ao contrário, a intenção de ficar no país de origem: Ao que eu tenho vivido de experiências, a porrada de mais que apanhei, aqui e na França…… descobri que no Brasil, afinal, eu estou no céu. Só que não sabia dar valor…… É de relevar que a grande maioria daqueles que tem no seu horizonte de expectativas a concretização de um novo projecto migratório refere que procurará fazê-lo em moldes diferentes, de modo a evitar uma nova extradição: Se eu pensar em voltar, eu volto ““normal””, mas na altura legalizada. Só voltarei se vier para Portugal legalizada e com a minha filha! Resta saber se esta é uma simples preocupação circunstancial, um discurso que pretende ser “politicamente correcto”, em função da experiência de detenção pela qual estão a passar, ou se, pelo contrário, se trata de uma efectiva preocupação em não correr riscos e não ver novamente goradas as expectativas de vida associadas e/ou projectadas em tais planos. Independentemente do quadro subjectivo que enforma esta preocupação, ela deveria ser aproveitada para promover o esclarecimento dos utentes e para consciencializá-los sobre os procedimentos correctos e sustentados a adoptar e a seguir sempre que voltem a ponderar a realização de um novo projecto migratório. Este trabalho pedagógico estratégico e sistemático, a pensar no longo prazo, está explicitamente definido e atribuído nos termos do Regulamento Interno e do protocolo de colaboração entre o SEF e as organizações que com ele colaboram na UHSA (OIM e JRS Portugal) e tem ganho forma, sobretudo, através da elaboração de folhetos informativos, em diversas línguas, para distribuição aos utentes. Tal informação, porém, praticamente não transparece, não tem visibilidade no discurso dos utentes, sendo que nenhum

Vidas embargadas

153

dos que foram inquiridos se lhe referiu enquanto tal. Foram apenas captadas algumas referências vagas e soltas ao assunto, das quais se deduz que só muito pontual e informalmente os inspectores dão alguns conselhos aos utentes, informando-os acerca das vias mais adequadas para eventuais tentativas de regresso. Quotidianos de rotina e espera O modelo organizacional/funcional da UHSA acaba por condicionar decisivamente os ritmos e a ocupação do quotidiano dos utentes do centro, instaurando formatos mais ou menos rígidos e muito padronizados de estar e de viver o dia-a-dia, com escassas ou mesmo nulas alternativas e escolhas fora dos esquemas instituídos e impostos. Os horários são um bom exemplo da formatação estrutural que caracteriza o dia-a-dia do centro. Praticamente todas as acções e actividades que preenchem a agenda diária dos utentes são enquadradas por horários previamente estipulados e incontornáveis: horários para levantar, para tomar o pequeno-almoço, para descer dos quartos, almoçar, receber visitas, usar o telemóvel, lanchar, jantar, deitar e apagar as luzes do quarto. O dia começa cedo no centro. Às 8h00 soa uma campainha que assinala a hora para despertar. Logo de seguida, os seguranças, um em cada piso, batem de forma vigorosa na porta de cada quarto, abrem-na ligeiramente e anunciam em voz alta que é tempo de acordar e de sair da cama. A intervenção pessoal dos seguranças no despertar dos utentes decorre do facto de estes não disporem de relógios, que são, salvo raras e específicas excepções, retidos a quem os tem, aquando da entrada no centro. Com efeito, apenas aos muçulmanos é permitido conservar a posse dos relógios, para que possam cumprir os horários de oração prescritos pelo seu credo religioso. Esta excepção vale sobretudo como reflexo da intenção dos responsáveis da UHSA de atenderem às especificidades de ordem cultural significativas em termos da identidade e da dignidade dos utentes9. Aliás, a atenção à diversidade cultural dos utentes e a preocupação de, no que é considerado essencial, a atender, aparece formalmente assumida em alguns dispositivos e práticas institucionais, desde a disponibilidade dos designados mediadores culturais até à viabilização do jejum do mês do Ramadão.

9

Mas vale também como efeito demonstrativo de que, afinal, o potencial dos relógios de pulso para destabilizar ou ameaçar o ambiente e a segurança interna da UHSA, a existir, é muito baixo, pois não há notícia de que até hoje tenha havido qualquer incidente decorrente do seu uso pelos utentes.

154

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Retomando a análise da rotina diária da vida na UHSA, há a salientar que, por vezes, quando os utentes se atrasam, ou porque não querem levantar-se, ou porque entretanto voltaram a adormecer, os seguranças retornam aos respectivos quartos e insistem com a necessidade de se aprontarem, sob pena de perderem o pequeno-almoço, que apenas pode ser tomado entre as 8h00 e as 9h0010. Mesmo assim, há sempre alguém que escolhe ficar sem a refeição da manhã e continuar na cama. Quase todos os que se levantam para o pequeno-almoço, antes de descerem para o rés-do-chão, onde as refeições são servidas, fazem a sua higiene pessoal no quarto de banho comum existente em cada uma das duas alas dos dois pisos em que se situam os quartos. Alguns optam por tomar banho à noite, antes de deitar. Outros ainda, provavelmente por questões que remetem para os estilos de vida, só tomam banho a cada dois ou três dias, o que tende a suscitar alguns comentários de crítica e de desconforto por parte dos colegas e de funcionários do centro, sobre a sua alegada falta de higiene e consequente mau odor. As questões de natureza higieno-sanitária constituem, amiúde, um dos principais focos de tensão nos quadros de sociabilidades entre utentes e, acima de tudo, entre estes e os seguranças que, no dia-a-dia, são os funcionários mais directamente responsáveis por zelar pelo cumprimento das regras que compõem o regulamento da UHSA. À higiene matinal segue-se a descida para a sala do pequeno-almoço, situada no rés-do-chão. Trata-se de uma refeição rápida, depois da qual alguns utentes recolhem aos respectivos quartos, para dormir mais um pouco, para ler ou até para a reza/meditação matinal; outros ficam-se pela sala de convívio, a ver televisão, a ler o jornal ou simplesmente a conversar; outros ainda deambulam entre a sala de convívio e o pequeno pátio interior. Os que por hábito regressam aos quartos depois do pequeno-almoço, às 10h00 têm de voltar a abandoná-los e obrigatoriamente deixá-los livres até às 12h00, para a revista de segurança e para a limpeza, tal como está estipulado no Regulamento Interno. A revista dos quartos destina-se, nas palavras de um dos vigilantes, a ver se realmente lá em cima não está nada que possa pôr em risco a segurança. Se é que as janelas não foram mexidas, ou que as cortinas estão no sítio e não falta nada. Todos os dias das 10 às 11, uma hora mais ou menos, para fazermos a revista aos quartos todos. Esta rotina de fiscalização é difícil de entender e mais ainda de aceitar por parte de alguns utentes que a consideram um exagero de zelo, que os vai deixando cada vez mais exasperados: Tudo é revistado. Todos os dias. Tenho

10

Só são admitidas excepções para as crianças e os adolescentes, que podem levantar-se mais tarde, sendo-lhes permitido tomar o pequeno-almoço depois do período estabelecido.

Vidas embargadas

155

horror disso. Deixam tudo desarrumado. Todos os dias. Nem a caixa dos óculos escapa……! Implícita ou explicitamente, muitos dos utentes mostram-se desagradados com a interdição de acesso aos quartos durante o período atrás referido, tanto mais quanto é certo que, para muitos deles, o quarto é uma espécie de porto de abrigo, um refúgio para soltar o espírito e a mente e enganar o tempo com sonos dormidos fora de horas. A parte final da manhã é, para quase todos, gasta numa mais ou menos entediante espera pelo almoço, entre mais um cigarro, um jogo de ténis-de-mesa, uma pequena conversa de circunstância, uma breve e geralmente pouco interessada leitura do jornal, um jogo de cartas, quase sempre com a televisão ligada como pano de fundo. Muitos limitam-se a permanecer sentados nos sofás, imersos nos seus pensamentos e angústias, simplesmente aguardando o próximo toque de rotina, que se faz ouvir às 12h30. É o sinal para a hora do almoço, que se prolonga até às 13h30. A seguir ao almoço e até ao próximo toque de campainha, o tempo reparte-se entre regressos aos quartos (para descansar, rezar e ler), à sala de convívio (ver televisão e filmes em DVD, jogar às cartas, algumas leituras e conversas esporádicas), deambular pelos corredores, em conversas breves com os colegas e os seguranças, e pelo pátio interior, onde os fumadores saciam o seu vício, enquanto outros jogam ténis-de-mesa e outros ainda assistem ao jogo, ou simplesmente estão por lá, numa atitude desinteressada e passiva, em aparente desinteresse perceptivo. Durante a semana, a partir das 14h00 e até às 16h00, os utentes podem aceder aos seus telemóveis, pelo que aqueles que dispõem deste meio de comunicação aproveitam a oportunidade para telefonar e enviar mensagens, ou tão-só para dele usufruir, como se de um brinquedo se tratasse. Segundo a coordenadora do centro, a regra relativa ao período de uso do telemóvel visa, acima de tudo, evitar que a sua utilização concorra com a participação nas actividades propostas como forma de ocupação dos tempos livres, se bem que as iniciativas lúdicas oferecidas pelo centro sejam manifestamente escassas. Ainda segundo a coordenadora, ao fim-de-semana, e alegadamente para os compensar do facto de não haver actividades recreativas e de lazer, os utentes podem usar o telemóvel de manhã e à tarde. Às 16h00 volta a fazer-se ouvir um anúncio de campainha, desta vez para anunciar o lanche, cujo horário se prolonga até às 16h30. Após esta rápida refeição, retomam-se as possíveis (e escassas) formas de ocupação do tempo, que são as mencionadas até aqui e pouco mais. Estas rotinas só mudam ligeiramente quando há iniciativas/actividades promovidas pelos voluntários, visitas e/ou consultas médicas. Além disto, poderão ainda acrescentar-se dois pequenos e, aparentemente, banais exemplos que representam uma ténue fuga às rotinas: a lavagem da roupa pessoal na

156

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

lavandaria e a realização ocasional de pequenos trabalhos de jardinagem nos espaços verdes junto à entrada do bloco residencial, que um ou outro utente pede para realizar. Chegadas as 19h00, ecoa novamente a campainha, avisando que são horas de jantar. O período fixado para esta refeição prolonga-se até às 20h00. Trata-se de um horário que desagrada à generalidade das muitas brasileiras que têm passado pela UHSA, pois coincide com um pico televisivo rico em telenovelas, que elas tanto apreciam, não só pelos conteúdos dramáticos que abordam, mas sobretudo pelo fugaz e virtual regresso às origens que lhes proporcionam. Por isso, quase sempre, elas procuram comer o mais rapidamente possível para poderem retomar os episódios interrompidos. Tal como elas, a esmagadora maioria dos restantes utentes, não porque tenha um motivo óbvio e verdadeiramente forte para tal, também não se demora muito na refeição. No entanto, à excepção dos utentes de nacionalidade brasileira, os demais não se mostram muito interessados nas telenovelas, preferindo disputar mais uma partida de ténis-de-mesa ou um jogo de cartas, findos os quais, poderão então, numa atitude de quase resignação, deixar-se ficar em frente ao ecrã, para seguir os noticiários, algum jogo de futebol, ou apenas por não terem mais nada para fazer. Por volta das 21h50, momento que coincide novamente com um período reservado pela maioria dos canais para a difusão de telenovelas – o que causa, mais uma vez, um notório desagrado a alguns utentes, em especial às mulheres brasileiras – os seguranças chamam toda a gente para um chá acompanhado de biscoitos, na sala de refeições. Terminada a toma do chá, por volta das 22h00, os utentes recolhem aos quartos para dormir. Praticamente todos consideram que o horário de deitar poderia ser prolongado, no mínimo, até às 23h00. Após a subida para os quartos, o segurança que se encontra em cada um dos pisos fecha a luz, passados cerca de 15 minutos. Só no caso de o utente pedir, é que ele a poderá deixar ficar acesa mais algum tempo, sensivelmente entre meia hora a uma hora, no máximo. Nos quartos, alguns utentes, nomeadamente os que detêm níveis de escolaridade mais elevados, aproveitam para ler, se bem que as condições de iluminação não sejam as mais propícias para a leitura. São bastantes os detidos que dizem sentir dificuldades em adormecer, muito em particular nos primeiros dias após a entrada no centro, havendo mesmo alguns que necessitam de calmantes e ansiolíticos para os ajudar a dormir. A hora de levantar, 8h00, e a de ir dormir, 22h00, suscitam uma oposição e uma resistência muito fortes e muito generalizadas da parte dos utentes, por serem ambas, alegadamente, muito cedo. A primeira, pela desocupação que espera as pessoas, que não vêem, por isso, necessidade de sair tão cedo da cama, até porque são muitos os que dizem ter problemas para conciliar o sono, permanecendo acordados durante boa

Vidas embargadas

157

parte da noite, só conseguindo adormecer de madrugada. A segunda, por ser completamente estranha aos hábitos de vida diária de muitos deles, em especial das mulheres brasileiras que trabalhavam em actividades “da noite”: Pelo facto de eu estar acostumada a trabalhar à noite e aí, de repente, ter de acordar de dia e dormir à noite, não está sendo nada fácil. Mas também por impedi-los de assistir ao que consideram ser a melhor parte da programação televisiva ou por prolongar em demasia o número de horas para dormir, quando o sono mais lhes falta e nem sequer podem recorrer a mais um cigarro para ajudar a queimar tempo. Estes horários, em especial o nocturno, são, por isso, identificados por cerca de 60% dos utentes inquiridos como a regra de funcionamento do centro a que tem sido mais difícil adaptarem-se, pelo que, com insistência, propõem a sua alteração, a sua flexibilização. Os dados recolhidos mostram que, quer pelas formas, quer pelos conteúdos que lhe dão corpo, o quotidiano-padrão dos detidos na UHSA é manifestamente monocórdico, “arrastado”, entediante e acinzentado, numa rotina que apenas se suspende em datas que, por serem especiais, se hão-de assinalar com a realização de alguma iniciativa extraordinária, como por exemplo, o Natal, o Carnaval, ou a festa do Santo António. Estas celebrações especiais são, recorrentemente, invocadas e recriadas nos discursos dos utentes, como um intervalo, mesmo breve, de diferenciação e de cor no viver dos dias na UHSA. A análise dos conteúdos ocupacionais que preenchem os dias prolongados dos detidos na UHSA põe, desde logo, em destaque a manifesta pobreza dos mesmos, uma pobreza que tem sobretudo a ver com a escassez de possibilidades em aberto e com a passividade física e intelectual a que induzem as que estão efectivamente disponíveis. Daí que a generalidade dos detidos considere que o seu dia-a-dia se faz justamente de “não fazer nada”, numa desocupação que todos identificam como nefasta para o corpo, mas mais ainda para o espírito: Trinta e três dias aqui sem fazer nada, sem me ocupar de nada! Sinto-me cada vez mais fatigado, mais cansado. O quotidiano-padrão dos detidos na UHSA transcorre, assim, num quadro de solicitações/possibilidades ocupacionais manifestamente limitadas, largamente confinadas aos espaços interiores e em que predominam as práticas individuais e passivas: Não faço nada, de todo! Vejo televisão, vou para o quarto, rezo e algumas vezes leio um bocado. Tal situação de inércia física e mental concorre, inevitavelmente, para o aumento da tensão psicológica dos detidos e das dificuldades em viverem de forma positiva a sua estadia na unidade, como, com insistência, os próprios fazem questão de sublinhar: As pessoas que são fracas de cabeça acabam ainda por ficar pior, por não terem nada para fazer!

158

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

Não surpreende, por isso, que à pergunta “em termos gerais e se pudesse, o que é que mudaria para tornar melhor o funcionamento deste centro?” tantos se tivessem referido expressamente à necessidade de criar e disponibilizar mais actividades ocupacionais, sobretudo de natureza física: “Um ginásio a sério”, “actividades desportivas, incluindo aos sábados”, “fazer mais exercício físico, para tirar o stress das pessoas”, “colocar mais actividades de ocupação e de trabalho”. Mas também actividades diferentes e, de preferência, com mais forte componente de ar livre: “pequenos trabalhos de jardinagem e agrícolas, pequenas reparações, para ocupar o tempo”, “tirar ervas e cuidar do jardim”, “regar e cuidar das plantas”, “fazer hortas e cuidar delas”. Nas (muitas) sugestões de outras actividades, destacam-se igualmente as de conteúdo educativo: “Mais actividades para as pessoas, cursos de pintura, de língua portuguesa, sei lá!”, uma proposta que reflecte o total vazio de oportunidades educacionais que, em contracorrente ao que é comum neste tipo de estabelecimentos, se regista na UHSA. Com efeito, esta não inclui a provisão de qualquer iniciativa dentro deste âmbito, mormente as concebidas e dirigidas a jovens e crianças que por lá também passam, situação que vem sendo justificada pela relativamente curta duração das estadias médias e a elevada rotatividade dos residentes. A escassa ocupação do tempo livre dos detidos revela-se como uma das principais debilidades do funcionamento da UHSA, sendo tal debilidade, em grande medida, imputável à dependência do voluntariado. Também nesta área parece dominar um entendimento do voluntariado como uma prestação sem outras obrigações, regras ou compromissos, senão os que encaixem e se ajustem à disponibilidade e à “vontade” de quem o pratica, e que, como tal, acaba sempre a secundar outras prioridades. Do que fica exposto, poder-se-á mesmo concluir que a pouca oferta de alternativas ocupacionais é um domínio em que o funcionamento da UHSA mais explicitamente vem falhando, quer por relação ao que o seu próprio Regulamento Interno fixa, quer por relação ao que sobre esta matéria é recomendado por instâncias internacionais de referência, já anteriormente indicadas. A política de portões selectivos e os seus efeitos perversos: constatações para abordagens alternativas ao problema da imigração Num mundo globalizado, marcado por um complexo sistema de fluxos, conexões e hibridismos (Hannerz 1996, 1997; Papastergiadis 2000; Gilroy 2001; Appadurai 1990), temos vindo a assistir, sobretudo na última década, à implementação de políticas migratórias cada vez mais restritivas e repressoras por parte dos países mais ricos, associada a uma

Vidas embargadas

159

cada vez maior preocupação em vigiar e controlar os fluxos transcontinentais de pessoas11. No entender de Nieuwenhuys e Pécoud (2007: 1676), os Estados são agora mais capazes de controlar as migrações que no passado, sendo que a aparente ineficácia de regulação dos fluxos migratórios reside no mito de uma soberania perfeita que nunca existiu. Consciente deste crescente poder dos Estados para superintender de forma selectiva os fluxos internacionais de pessoas, Werbner (1999: 18) destaca que “[…] the celebration of hybridity, in-betweenness or double consciousness by diasporic poets, artists and intellectuals proves to be a self-interested strategy, divorced from working class migrants’’ (or indigenous people’’s) predicaments and concerns”. As metáforas do hibridismo, da crioulização e da fluidez tendem a negligenciar e até a despolitizar as diversas formas pelas quais as assimetrias sociais são sistematicamente produzidas e reproduzidas num espaço global de fluxos, contribuindo para a constituição de um sistema marcado por profundas assimetrias materiais e simbólicas (Cunningham e Heyman 2004: 298). Estas contradições de um mundo hierarquicamente conectado são explicitadas por Alvarez (1995), ao afirmar que as fronteiras são obliteradas quando estão em causa interesses económicos que amiúde se sobrepõem à própria autodeterminação dos Estados e, em sentido inverso, erguidas como obstáculos intransponíveis quando se depararam com cidadãos pobres, mestiços e/ou pertencentes a minorias étnicas. É forçoso não esquecer que o capital é mais flexível e móvel que os direitos residenciais12 (Heyman 1994: 54), pelo que, em alternativa à imagem do “mundo líquido” de Bauman (2000), parece-nos mais pertinente a ideia de gated globe proposta por Cunningham (2004)13. Esta última impede a evacuação da dimensão política da reflexão sobre as mobilidades globais, mostrando-nos a fronteira como um elemento com uma permeabilidade selectiva, utilizado para “[…] gerar diferentes intensidades de vulnerabilidade, num círculo vicioso de inseguridade jurídica e precaridade laboral” (Romero 2008: 167). A criação do Espaço Schengen na Europa é um exemplo paradigmático da cada vez maior capacidade de controlo, selectividade e triagem dos

11

12 13

Subjacente a esta preocupação está um quadro ideológico dominante no qual os imigrantes pobres dos países do Sul tendem a ser vistos como “inimigos públicos” (Broeders, 2007: 72). Esta é mesmo uma das principais marcas do “nexo neoliberal” entre formas securitárias de nacionalismo e amplas manifestações transnacionais de mercado livre (Sparke 2006). O reconhecimento da insuficiência conceptual da metáfora da liquidez de Bauman representa uma evolução teórica face a alguns argumentos desenvolvidos em texto anterior (Sacramento e Bessa Ribeiro, 2009).

160

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

cidadãos de países terceiros que procuram aceder aos países que integram o espaço comum de circulação. Para tal, tem vindo a ser implementado um processo integrado de vigilância das fronteiras externas da Europa, com o objectivo de blindar a entrada a amplas categorias de imigrantes tidos como indesejados14. Os principais instrumentos deste processo são três grandes sistemas de vigilância – o Sistema de Informação Schengen (SIS1 e SIS2), o sistema de impressões digitais European Dactyloscopie (Eurodac) e o Sistema de Informação sobre Vistos (VIS) – que configuram uma estrutura panóptica digital produtora de uma vasta base de dados electrónica, por via da qual é assegurado o controlo das fronteiras exteriores e, simultaneamente, a detecção dos imigrantes que as logram transpor e se encontram em situação irregular (Broeders 2007)15. No que diz mais especificamente respeito ao controlo interno da imigração, as informações proporcionadas por estes sistemas facilitam a aquisição dos vários elementos biográficos dos imigrantes irregulares, indispensáveis à identificação formal dos respectivos países de origem e posterior concretização da sua repatriação. Deste modo, poderá ser gradualmente ultrapassada aquela que (ainda) é uma das grandes vulnerabilidades nos centros de detenção (a inexistência de documentos de identificação ou a morosidade na sua aquisição, como pudemos testemunhar no decurso do trabalho de campo na UHSA), responsável por taxas de extradição de imigrantes irregulares bastante aquém das taxas de detenção (Broeders e Engbersen 2007). Numa primeira análise, poderemos considerar esta situação intrigante, atendendo sobretudo aos elevados custos operacionais envolvidos no processo de identificação e detenção que precede a repatriação. Na UHSA, cada utente detido implica uma despesa média diária de €73,25 para os cofres do Estado.

14

15

Esta pode ser considerada a finalidade mais ou menos declarada. Uma outra finalidade real destas políticas migratórias repressivas, ainda que encoberta e difusa, é criar condições para a constituição de uma classe trabalhadora transnacional estratificada não apenas pelas competências técnicas e pela etnicidade, mas também pelo seu estatuto legal (Castles 2004: 223), o que poderá, certamente, servir as pretensões dos Estados e dos grandes grupos económicos, directa ou indirectamente interessados numa força de trabalho desorganizada, flexível e vulnerável (Nieuwenhuys e Pécoud 2007: 1676). O controlo dos fluxos migratórios está a transformar-se numa autêntica “guerra sem quartel”, caracterizando-se por uma extraordinária flexibilidade e abrangência, o que permite a vigilância das fronteiras propriamente ditas, a monitorização interna de cidadãos estrangeiros e o “controlo remoto” (Zolberg 2003) dos potenciais imigrantes fora do espaço europeu. Assim, torna-se bastante redutor assumir que a instauração da UE tem por base um processo de eliminação das fronteiras. Na realidade, o que tem vindo a acontecer são mudanças na localização e configuração das fronteiras e, por outro lado, a sua intensificação no perímetro exterior do espaço europeu (Balibar, apud Jones 2009: 182).

Vidas embargadas

161

Independentemente do possível ganho de eficácia proporcionado pelos sistemas de vigilância e produção de informação que têm vindo a dar forma a uma “Europa panóptica” (Engbersen 2001), os centros de detenção de imigrantes parecem cumprir, desde logo, uma das suas funções fundamentais, que é mais de ordem simbólica. Como nota Perrouty (2003), o que se pretende é enviar um duplo sinal: (i) o principal e mais forte é para ser enviado para fora, para os candidatos-migrantes, aos quais se procura mostrar o que os espera; (ii) um sinal simultâneo é dirigido para dentro, para a opinião pública interna, com o intento de demonstrar que os “problemas” são levados a sério e, assim, serenar os fantasmas da imigração, por vezes exacerbados pelos mesmos que depois se preocupam em atenuá-los. A estas duas “funcionalidades” simbólicas, Gorski e Beiras (2007) acrescentam uma outra: a construção de fronteiras e demarcações internas, através de mecanismos biopolíticos que determinam diferentes graus de cidadania e de pertença social. As estratégias de encarceramento e, de um modo geral, as políticas migratórias fortemente repressivas nas quais se inscrevem suscitam inúmeros efeitos perversos e, muitas vezes, contrários aos supostos objectivos que com elas se pretendem alcançar. São alguns destes efeitos que, de forma breve, debatemos de seguida, procurando implicitamente mostrar a necessidade de repensar a actuação institucional dominante na abordagem da imigração europeia. Mais securitarismo, menos justiça e liberdade O pânico generalizado provocado pelos ataques terroristas em Nova Iorque, Madrid e Londres, muitas vezes fomentado e explorado politicamente pelas forças mais conservadoras, criou condições decisivas para a construção social dos imigrantes como folk devils (Saux 2007)16, associando-se a luta contra o terrorismo e a segurança interna à repressão da imigração irregular, apresentada como inevitável e legítima: ““irregular immigration’’ is being subsumed into a European legal setting that treats it as a crime and a risk against which administrative practices

16

Recentemente, no Verão de 2010, a atitude do Governo Sarkozy face aos ciganos em França, responsabilizando-os de modo infundado por muitos dos problemas do país, nomeadamente os mais directamente relacionados com a criminalidade e insegurança, constitui um bom exemplo deste fenómeno. A eleição desta comunidade como bode expiatório dos males do país e a sua posterior expulsão não é inocente. É que os ciganos, um pouco à semelhança dos judeus por altura da II Guerra Mundial, não têm propriamente um Estado-Nação para os defender, o que os torna particularmente vulneráveis às arbitrariedades e exageros de políticas migratórias de inspiração ultranacionalista.

162

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

of surveillance, detention, control and penalisation are necessary and legitimised”” (Guild, Carrera e Balzacq 2008: 4).

Com efeito, o medo do terrorismo e, por outro lado, a existência de amplas possibilidades tecnológicas para fazer face a este medo foram as principais forças impulsionadoras de políticas visando uma Europa mais segura (Broeders 2007; Bessa 2008). Uma das primeiras evidências desta vertigem securitária surge com as alterações agendadas pelo Programa de Haia para o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça na Europa comunitária17, promovendo-se a segurança a prioridade absoluta, acima e à margem da liberdade e da justiça, apresentadas como valores inferiores e independentes (Bigo 2006). Sob o enigmático título Strengthening Freedom, o programa prevê práticas coercivas de vigilância através de vários sistemas de informação (destacando-se os sistemas biométricos), a articulação das diversas bases de dados e a intensificação do controlo/repressão dos fluxos migratórios (política de vistos mais restritiva, reforço das fronteiras, combate à imigração irregular e agilização dos processos de extradição), negligenciando os profundos impactos negativos que estas medidas têm ou podem vir a ter na justiça, liberdade e demais direitos fundamentais dos indivíduos (Guild, Carrera e Balzacq 2008). Estamos mesmo em crer que, em função da obsessão face à imigração e à segurança, o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça ficará seriamente comprometido, muito em particular os valores da liberdade e da justiça, fundamentais para a construção da cidadania europeia. Simultaneamente, e por mais paradoxal que possa parecer, nada garante que se esteja a caminhar de forma sustentada para um espaço europeu mais seguro (Saux 2007). O primado da lógica securitária-carcerária está bem patente no recurso excessivo à detenção dos imigrantes em situação irregular, depois de presentes a tribunal. A maioria (59%) dos que inquirimos na UHSA declarou que, antes da detenção, não tinha sido sujeita a nenhum outro tipo de medidas de coação, um dado que pode ser tomado como indício do modo como os juízes exercem o poder de que estão investidos, privilegiando a mais grave das medidas de coacção prevista na lei, simultaneamente aquela que comporta mais custos financeiros para o Estado18 e,

17

18

A sua génese remonta ao Tratado de Amesterdão (1997). Mais tarde, a iniciativa é impulsionada nas conclusões dos Conselhos Europeus de Tampere (1999), Laeken (2001) e Sevilha (2002), nos quais se trabalha sucessivamente para a criação de um Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, assente sobretudo numa política comum de imigração e asilo. A instalação temporária e todos os custos associados à extradição, nomeadamente a viagem, são suportados por inteiro pelo erário público.

Vidas embargadas

163

acima de tudo, a mais violenta para o cidadão. A sua aplicação é, além do mais, profundamente desproporcional face à gravidade da infracção, que é de simples âmbito administrativo. Atendendo a esta desproporcionalidade e à violência com que a reclusão é vivida pelos detidos, deverá primar o princípio favor libertatis, adoptando-se a detenção como excepção e a saída em liberdade como regra (Rocha e Regidor, www.mugak.eu). É forçoso não esquecer que os princípios da Liberdade, do Direito e da Democracia e o respeito pelos direitos e liberdades fundamentais dos seres humanos constituem-se como primeiras referências da fundação da UE e como requisitos imprescindíveis daquilo que ela própria define como “a comprehensive community immigration and asylum policy”, de que são parte integrante os processos de extradição e readmissão dos imigrantes em situação irregular (COM 2002). Neste sentido, a Rede Europeia Contra o Racismo (ENAR 2002) estabelece um conjunto de sugestões de reforço de direitos, garantias e liberdades, a implementar pela UE no âmbito das suas políticas de extradição, nomeadamente: (i) a criação de uma entidade independente para a monitorização dos procedimentos de repatriação, (ii) o desenvolvimento de um código de conduta a seguir por todos os intervenientes no processo de extradição, desde a detenção até à readmissão no país de origem, (iii) a avaliação e concretização de alternativas à detenção, (iv) a ponderação das circunstâncias e trajectos biográficos dos imigrantes em situação irregular. Mais do que tratar a mobilidade migratória como um desafio de segurança, ela deverá ser tratada, acima de tudo, no âmbito da esfera do trabalho e dos direitos sociais básicos, enquadrada por uma política comum que garanta equidade no tratamento, independentemente da nacionalidade (Carrera 2007). Só deste modo será possível a constituição daquilo que Sassen (2003) designa por “cidadania desnacionalizada”. Estigmatização e exclusão social Os discursos e práticas dominantes dos países mais desenvolvidos face à imigração têm subjacentes processos mais ou menos declarados de estigmatização e exclusão social, por via dos quais as comunidades de imigrantes são amiúde transformadas em bode expiatório de múltiplos problemas sociais e económicos (Welch 2003: 322). Estes processos podem, desde logo, vislumbrar-se em muitos dos rótulos utilizados para fazer referência à imigração, não só no campo mediático e no domínio do senso comum – que frequentemente empregam terminologias geradoras de receios, tais como “invasão” e “avalanche” de imigrantes –, como também no contexto da actuação institucional. Expressões como

164

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

“imigrantes ilegais”, ou tão-só “ilegais”, “a luta contra”, “o combate”, utilizadas por exemplo pela UE, geram a constituição de um status identitário associado ao perigo e à criminalidade (Balzacq e Carrera 2006), o que acaba por suscitar suspeição generalizada e fomentar tensões e clivagens sociais19. Não é de estranhar que as mesmas instituições que contribuem para este clima de medo e instabilidade social proponham depois, como suposta solução para tal, o reforço de uma estratégia (repressão da imigração, detenção dos imigrantes em situação irregular) que é ela própria a causa maior do problema que se quer enfrentar. A reclusão em centros de detenção, por exemplo, é mais um contexto de reforço de estigmas e pânicos morais. Reproduz-se, assim, um ciclo vicioso cuja quebra implicará uma significativa mudança de paradigma na abordagem do fenómeno da imigração. O actual paradigma assenta claramente na vigilância e exclusão dos imigrantes20, como nota Broeders (2007: 71): “Surveillance of this group is aimed at their exclusion from key societal institutions, discouraging their stay and ultimately, the deportation of apprehended irregular migrants”. Parece-nos legítimo admitir-se que esta estratégia de exclusão social é, ideologicamente, movida por políticas de identidade e alteridade que visam manter as inúmeras fronteiras da desigualdade (político-administrativas, étnicas, culturais, de pobreza, entre outras), de um mundo organizado de forma hierárquica. Ao (tentarem) transgredir estas fronteiras, os imigrantes em geral e, de forma mais intensa, os que se encontram em situação jurídica irregular são, desde logo, alvo de processos de rotulagem e de exclusão social. A Europa panóptica constitui-se, deste modo, como uma “fábrica de exclusão” (Engbersen 2001). Os centros de detenção de imigrantes para posterior extradição, como destaca Perrouty (2003), são mesmo o exemplo

19

20

Consciente do impacto negativo decorrente da utilização institucional deste tipo de rótulos, a ENAR (2002) recomenda, por exemplo, a utilização do termo “indocumentado”, em alternativa a “ilegal”, pois os seres humanos, qualquer que seja o seu estatuto jurídico, nunca poderão ser considerados ilegais. Embora isto possa parecer um mero pormenor, não podemos esquecer que este tipo de categorizações utilizadas por instâncias públicas desempenham um papel significativo, como nota Foucault (2004) através do conceito de governamentalidade, na construção da identidade pessoal dos indivíduos, na definição da sua situação social e na conformação às imposições normativas do aparelho estatal. Em Maio de 2009, por exemplo, o governo italiano de Silvio Berlusconi, sob forte pressão da extrema-direita, aprovou um decreto-lei que agrava a penalização da imigração irregular, potenciando, assim, as múltiplas exclusões que convergem no fenómeno. Agora, os imigrantes em situação considerada ilegal, além de detidos para extradição, têm de pagar uma coima entre €5000 a €10 000. Além do mais, qualquer tipo de ajuda e/ou “facilidade” (v.g. arrendamento de habitação) que lhes seja prestada por cidadãos nacionais sujeita estes últimos a pena de prisão.

Vidas embargadas

165

mais evidente da produção de formas de exclusão social e territorial – produção de atopos, segundo Bourdieu (1998) – que recaem sobre os indivíduos que personificam as contradições do sistema e a negação do seu ordenamento ideológico. Subjacente está a ideia de que o mundo só será mais seguro se essas contradições e incertezas forem eliminadas ou, pelo menos, controladas (Amoore 2006). O ambiente de estigmatização e exclusão social decorrente da maioria das políticas migratórias e estratégias de actuação institucional, além da enorme violência simbólica (e, não raro, física) a que sujeita os imigrantes, sobretudo os ditos ilegais, contribui para que um fenómeno já de si bastante opaco se torne ainda mais “subterrâneo”, fomentando criminalidades que se querem reduzir, agravando a vulnerabilidade de pessoas em situação precária e reduzindo as possibilidades de apoio social. No limite, com estas manifestações sociais de sectarismo, a própria democracia poderá estar em perigo, pois, como adverte Soroa (apud Guerrero 2007: 95), “a essência da democracia moderna radica na constante inclusão de mais pessoas no âmbito da cidadania. O seu ideal utópico é a universalidade… Não reconhecer a cidadania ao imigrante que trabalha connosco lembra em demasia o modelo social da família vitoriana, de senhores em cima e serviçais em baixo”. Produção e intensificação de ilegalidades A criação de quadros legais mais severos como procedimento para a prevenção de crimes e infracções produz, com bastante frequência, efeitos contrários aos esperados. Como é destacado por muitos dos teóricos da rotulagem social (Becker 1966; Lemert 1972), o reforço do controlo social não implica a atenuação do problema que se quer enfrentar, podendo mesmo ocasionar a sua intensificação e a emergência de problemas colaterais inesperados. Deste modo, Welch (2003) afirma que o controlo social tende a ser irónico, gerando uma escalada de efeitos perversos decorrentes do comportamento ou situação que se propõe suprimir, como é claramente perceptível no contexto da imigração: “[……] strict new laws have compounded the problem as well as created others (e.g., a massive increase in detained immigrants, racial discrimination, denials of due process, and various human and civil rights violations)” (idem: 327). Pode mesmo admitir-se que o endurecimento das políticas migratórias irá incrementar o tráfico de pessoas21 e demais ilegalidades que aquelas próprias políticas visam

21

O conceito de tráfico de pessoas tende a ser utilizado de forma exagerada e indiscriminada nos discursos antitráfico produzidos sobretudo por instâncias internacionais (caso da

166

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

combater. No que diz mais especificamente respeito ao reforço do controlo interno dos imigrantes, através da vigilância policial e da detenção para extradição, as consequências poderão ser, de igual modo, bastante negativas, destacando-se o alastramento daquilo que Broeders e Engbersen (2007) designam, grosso modo, por “estruturas sociais nebulosas” (foggy social structures), como as que a seguir se referem. As severas restrições promovidas pelas leis de imigração no espaço europeu e os procedimentos de fortificação das fronteiras mais elaborados e musculados têm, desde logo, um efeito perverso: “cada vez mais migrantes têm que recorrer a agentes especializados na migração e maior número de organizações começam a dedicar-se a esta actividade […]” (Peixoto et al. 2005: 59). De igual modo, Andreas (2001) e Guerette e Clarke (2005) constatam um significativo aumento e sofisticação de organizações criminosas que se dedicam ao tráfico na América do Norte (México–EUA), recorrendo a percursos e a estratégias que, por vezes, estão na origem da morte das pessoas traficadas. Deste modo, aquilo que era um problema de imigração ilegal tem vindo a transformar-se num problema de tráfico de pessoas, ao qual estão conectadas, directa ou indirectamente, várias outras manifestações de criminalidade decorrentes da necessidade de se camuflar a permanência irregular no país de destino ou de se proceder à sua regularização. Surgem, deste modo, autênticos mercados informais e ilegais nas esferas laboral, do arrendamento imobiliário, relacional/matrimonial e da documentação (Broeders e Engbersen 2007). São bastante comuns, por exemplo, os mercados de documentos através do casamento com cidadãos nacionais (Grassi 2006), em que as partes aceitam contrair matrimónio

ONU), representantes governamentais, académicos e ONG, negligenciando-se as várias dimensões e nuances do fenómeno, bem como as diferenças face ao que se considera imigração ilegal e smuggling (Peixoto et al. 2005; Nieuwenhuys e Pécoud 2007; Bordonaro e Alvim 2008). Não raro, ignora-se mesmo a existência de inúmeras situações em que, por exemplo, a mobilidade migratória é assegurada por via do recurso a redes sociais (não criminosas e, por vezes, sem intuito económico estrito) de parentesco, afecto/intimidade, amizade ou vizinhança (Ribeiro et al. 2007a). O resultado desta utilização pouco criteriosa do conceito de tráfico é a emergência de “pânicos morais” e a construção de um problema social (Grupo Davida 2005; Bordonaro e Alvim 2008), no qual se identificam traficantes e traficados de forma abstracta e desfocada e, por consequência, se instaura o imperativo ético e político de salvar as alegadas vítimas, mesmo que estas assim não se considerem e não queiram, de todo, ser “salvas”. Todavia, o que está verdadeiramente em causa é uma instrumentalização massiva e até mesmo intimidatória da noção de tráfico, cujo principal objectivo é inibir, de preferência logo nos países de origem, a mobilidade de potenciais migrantes: “the ‘‘trafficking’’ discourse relies on the assumption that it is better for women to stay at home rather than leave and ‘‘get in trouble’’ ” (Agustín 2004: 87). Por outro lado, procura assegurar-se legitimidade para dar continuidade ao projecto de construção da fortaleza europeia.

Vidas embargadas

167

de forma instrumental, por conveniência mútua: uma por razões financeiras, outra para assegurar a concessão de autorização de residência. Este é apenas um exemplo das muitas “instituições paralelas” (Mahler 1995), sem qualquer cabimento jurídico, que operam no âmbito dos fluxos migratórios internacionais, em resposta a uma conjuntura persecutória que impõe cada vez mais restrições a esses mesmos fluxos. Muitas destas instituições estão, de algum modo, articuladas e/ou integradas em redes migratórias informais, que proporcionam capital social aos candidatos a imigrantes, tanto para iniciarem o seu projecto migratório, como para, já depois de entrados no país de acolhimento, permanecerem na sombra protectora das suas respectivas comunidades étnicas (Engbersen 2001), beneficiando do auxílio de compatriotas e de familiares. Esta ajuda mais informal e os serviços prestados por “instituições paralelas” configuram “estruturas sociais nebulosas” (Broeders e Engbersen 2007) que, ao promoverem a invisibilidade social dos indivíduos, dificultam largamente as acções de vigilância, detecção e detenção levadas a cabo pelas forças policiais e pelo aparelho judicial do Estado. Contudo, os novos instrumentos de produção de informação a que atrás nos referimos (SIS1 e SIS2, Eurodac e VIS), ao gerarem elementos de identificação não só sobre os imigrantes como também sobre o seu entorno (amigos, familiares), poderão, em muitos casos, inviabilizar a camuflagem que lhes é assegurada pelas respectivas redes sociais. Apesar de tudo, o ciclo vicioso de efeitos perversos continua. Com a intensificação dos sistemas de controlo, aumenta a dependência face a organizações cada vez mais subterrâneas/criminosas e acentuam-se as situações de vulnerabilidade e exclusão social, impossibilitando o acesso dos imigrantes aos serviços básicos e remetendo-os para lá dos limiares mínimos de dignidade humana. Conclusão Os centros de detenção temporária de imigrantes constituem, como ficou dito, parte integrante das designadas “hard-line immigration policies” (Russel 2006) que as lideranças da generalidade dos países, sobretudo os mais desenvolvidos, têm vindo a adoptar como meios de contenção e de regulação do progressivo crescimento da presença de migrantes internacionais, mais em particular dos que chegam em busca de trabalho e de melhores condições de vida. Criados como instrumento de “combate” à imigração irregular, estes centros operam no âmbito das medidas de expulsão e retenção de “imigrantes sem papéis” e, como tais, considerados ilegais. Recentemente convertido em país de destino de imigrantes, Portugal institui, com a criação da UHSA, o primeiro centro especificamente

168

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

vocacionado para efectivar o repatriamento coercivo de estrangeiros detectados sem documentos de autorização de permanência no país. À semelhança dos já existentes um pouco por todo o mundo, a UHSA foi estabelecida tendo subjacente uma forte intenção de controlo e de dissuasão da imigração irregular. De controlo, pela imposição, entre outros, de uma pena adicional de interdição, por largos anos, de retorno ao país por parte dos que são objecto de expulsão. De dissuasão, pelo pressuposto de que a existência destes centros e a experiência dos que por lá passam acabem constituindo referência para os que ponderam a possibilidade de emigrar de forma ilícita e os faça pensar duas vezes sobre o recurso a tal procedimento. Todavia, e tal como os resultados do estudo realizado na UHSA também confirmam, nem a detenção nem a subsequente expulsão têm surtido os efeitos previstos, ou seja, os de fazer as pessoas desistirem de tentar melhor sorte fora dos seus países de origem. Tal constatação indicia, como ficou dito, a gravidade e a extensão das causas que originam a decisão de emigrar e das circunstâncias que obrigam as pessoas a fazê-lo. Apesar de decisivos e incontornáveis, estes aspectos continuam, todavia, a ser largamente subsumidos pelas preocupações de segurança que dominam as estratégias e as medidas que os governos dos países mais desenvolvidos têm vindo a implementar para lidarem com a crescente procura por parte de imigrantes que, por sua vez, os vêem como objectos supremos de desejo, mas onde são, cada vez mais, vistos como indesejáveis. Embora a legislação nacional, e bem assim a que vigora noutros países da União Europeia e fora dela, considerem a imigração irregular apenas como um delito de tipo administrativo, os centros de detenção temporária que todas instituem para enquadrar a execução da sua punição segue, de muito perto, um modelo prisional. Desde logo, pela privação de liberdade dos indivíduos por períodos de tempo que, no mínimo, se podem estender por vários meses e, no máximo, nem sequer ter limite, quer ainda, no que concerne às condições de funcionamento dos centros, em grande medida similares, e não raro mesmo piores, às que se registam nas prisões. Com efeito, e como tem sido abundantemente denunciado por agências internacionais, grupos de activistas de direitos civis, ONG e jornalistas, entre outros, são muitos os países em que tais condições desrespeitam, de forma expressa e por omissão, os direitos e liberdades fundamentais das pessoas migrantes. Neste aspecto, cabe reconhecer que, apesar da iniludível matriz securitária que a enforma e que informa todas as vertentes do seu funcionamento, a UHSA apresenta um padrão de condições materiais e, sobretudo, de práticas relacionais que a distingue substancialmente da maioria das suas congéneres estrangeiras e a converte mesmo em exemplo de boas práticas.

Vidas embargadas

169

Referências bibliográficas AGUSTÍN, Laura, 2004, “Daring border-crossers: a different vision of migrant women”, em WARD, Helen, e Sophie Day (orgs.), Sex Work in a

Changing Europe. Londres, Kegan Paul, 85-94. AMOORE, Louise, 2006, “Biometric borders: governing mobilities in the war on

terror”, Political Geography, 25: 336-351. ALVAREZ, Robert, 1995, “The Mexican-US border: the making of an

anthropology of borderlands”, Annual Review of Anthropology, 24: 447-470. ANDREAS, P., 2001, “The transformation of migrant smuggling across the US-Mexican border”, em KYLE, D., e R. Koslowski (orgs.), Global Human

Smuggling: Comparative Perspectives. Londres, John Hopkins University Press, 107-125. APPADURAI, Arjun, 1990, “Disjuncture and difference in the global cultural economy”, em FEATHERSTONE, Mike (org.), Global Culture: Nationalism, Globalization, and Modernity. Londres, Sage, 295-310. BAUMAN, Zygmunt, 2000, Liquid Modernity. Cambridge, Polity Press. BALZACQ, Thierry, e Sergio Carrera (orgs.), 2006, Security Versus Freedom? A Challenge for Europe’’s Future. Aldershot, Ashgate Pub. BECKER, Howard, 1966, Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. Toronto, Free Press. BESSA, Cristina, 2008, “El Estado español como punta de lanza del control y exclusión de la migración en Europa, em AA.VV., Frontera Sur: Nuevas Políticas de Gestión y Externalización del Control de la Inmigración en Europa. Barcelona, Virus Editorial, 135-158. BIGO, Didier, 2006, “Liberty, whose Liberty? The Hague Programme and the conception of Freedom”, em BALZACQ, Thierry, e Sergio Carrera (orgs.), Security Versus Freedom? A Challenge for Europe’’s Future. Aldershot, Ashgate Pub., 35-44. BORDONARO, Lorenzo, e Filipa Alvim, 2008, Tráfico de mulheres em Portugal: análise da construção de um problema social. Lisboa, ACIDI. BROEDERS, Dennis, 2007, “The new digital borders of Europe: EU databases and the surveillance of irregular migrants”, International Sociology, 22 (1): 71-92. BROEDERS, Dennis, e Godfried Engbersen, 2007, “The fight against illegal migration: identification policies and immigrants’ counterstrategies”, American Behavioral Scientist, 50 (12): 1592-1609. BOURDIEU, Pierre, 1998, “Um analista do inconsciente”, em SAYAD, Abdelmalek, A Imigração ou os Paradoxos da Alteridade. São Paulo, EDUSP, 9-12. CARDINAL, Paulo, 2002, “Direitos desamparados?”, Boletim da Ordem dos Advogados [online], 21 (Jul./ Ago.). Disponível em (acesso em 12/05/2007). CARRERA, Sergio, 2007, “Building a common policy on labour immigration: towards a comprehensive and global approach in the EU?”, CEPS Working Document nº. 256. Bruxelas, CEPS.

170

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

CASTLES, Stephen, 2004, “Why migration policies fail”, Ethnic and Racial

Studies, 27 (2): 205-227. COM (Commission of the European Communities), 2002, Communication from the

Commission to the Council and the European Parliament on a Community Return Policy on Illegal Residents. Bruxelas, COM 564 Final. CUNNINGHAM, Hilary, 2004, “Nations rebound?: crossing borders in a gated globe”, Identities: Global Studies in Culture and Power, 11: 329-350. CUNNINGHAM, Hilary, e Josiah Heyman, 2004, “Introduction: mobilities and enclosures at borders”, Identities: Global Studies in Culture and Power, 11: 289-302. DAVIS, Mike, 2008, “El gran muro del capital”, em AA.VV., Frontera Sur: Nuevas Políticas de Gestión y Externalización del Control de la Inmigración en Europa. Barcelona, Virus Editorial, 251-259. ENAR, 2002, “ENAR communication on the Green Paper on a community return policy on illegal residents” [online]. Disponível em (acesso em 20/06/2009). ENGBERSEN, Godfried, 2001, “The unanticipated consequences of panopticon Europe. Residence strategies of illegal immigrants, em GUIRAUDON, Virginie, e Christian Joppke (orgs.), Controlling a New Migration World. Londres, Routledge, 222-246. EUROPEAN COMMITTEE FOR THE PREVENTION OF TORTURE AND INHUMAN OR DEGRADING TREATMENT OR PUNISHMENT (CPT),

1997, Foreign Nationals Detained under Aliens Legislation. Extract from the 7th General Report [CPT/Inf (97) 10]. FOUCAULT, Michel, 2004, “A governamentalidade”, em A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 277-293. FOUCAULT, Michel, 1999, Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis, Vozes. GILROY, Paul, 2001, O Atlântico Negro: Modernidade e Dupla Consciência. São Paulo, Editora 34. GODINHO, Paula, 2007, “Antropologia e questões de escala: os lugares no mundo”, Arquivos da Memória, 2: 66-83. GOFFMAN, Erving, 1999, Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo, Perspectiva. GORSKI, Héctor, 2002, “Los Centros de Extranjeros y el Futuro del Estado de Derecho”, Mientras Tanto, 83: 93-102. GORSKI, Héctor, e Iñaki Beiras, 2007, “Contemporary biopolitics in front of migration flows and prison universe: a reflection on the return of ‘camps’ in Europe”, em HOLGAN, Colman, e Marta Marin-Domine (orgs.), The Camp: Narratives of Internment and Exclusion. Newcastle, Cambridge Scholars Publishing. GRASSI, Miriam, 2006, “Formas migratórias: casar com o passaporte no Espaço Schengen. Uma introdução ao caso de Portugal”, Etnográfica, 10 (2): 283-306.

Vidas embargadas

171

GRUPO DAVIDA, 2005, “Prostitutas, ‘traficadas’ e pânicos morais: uma análise

da produção de fatos em pesquisas sobre o ‘tráfico de seres humanos’”, Cadernos Pagu, 25: 153-184. GUERRA, Isabel Carvalho, 2002, Fundamentos e Processos de Uma Sociologia de Acção: O Planeamento em Ciências Sociais. Cascais, Principia. GUERETTE, Rob, e Ronald Clarke, 2005, “Border enforcement, organized crime, and deaths of smuggled migrants on the United States–Mexico Border”, European Journal on Criminal Policy and Research, 11 (2): 159-174. GUERRERO, Andrés, 2007, “Inmigrantes africanos y indios ecuatorianos: dos casos en reverberación de la administración privada de poblaciones”, em BRÉTON, Victor, et al. (orgs.), Ciudadanía y Exclusión: Ecuador y España frente al Espejo. Madrid, Catarata, 77-110. GUILD, Elspeth, 2006, “A Typology of Different Types of Centres in Europe” [online]. Disponível em (acesso em 15/05/2007). GUILD, Elspeth, S. Carrera e T. Balzacq, 2008, “The changing dynamics of security in an enlarged European Union”, CEPS Research Paper nº. 12. Bruxelas, CEPS. HANNERZ, Ulf, 1997, “Fluxos, fronteiras, híbridos: palavras-chave da antropologia transnacional”, Mana, 3 (1): 7-39. HANNERZ, Ulf, 1996, Transnational Connections. Londres, Routledge. HEYMAN, Josiah, 1994, “The Mexico-United States border in anthropology: a critique and reformulation”, Journal of Political Ecology, 1: 43-65. HM CHIEF INSPECTOR OF PRISONS, 2007, Report on an Unannounced Short Follow-up Inspection of Tinsley House Immigration Removal Centre. Londres, Her Majesty’s Inspectorate of Prisons. JONES, Reece, 2009, “Categories, borders and boundaries”, Progress in Human Geography, 33 (2): 174-179. LEMERT, Edwin, 1972, Human Deviance, Social Problems, and Social Control. Nova Jérsia, Prentice Hall. MAHLER, Sarah, 1995, American Dreaming: Immigrant Life on the Margins. Princeton, Princeton University Press. MARTIN, Dominique, et al., 2006, “The sociology of globalization: theoretical and methodological reflections”, International Sociology, 21: 499-521. MIGREUROP, 2009, “‘The encampment’ in Europe and around the Mediterranean Sea” [online]. Disponível em (acesso em 16/09/2010). NIEUWENHUYS, Céline, e Antoine Pécoud, 2007, “Human trafficking, information campaigns, and strategies of migration control”, American Behavioral Scientist, 50 (12): 1674-1695. PAPASTERGIADIS, Nikos, 2000, The Turbulence of Migration: Globalization, Deterritorialization and Hybridity. Cambridge, Polity Press. PEIXOTO, João, et al., 2005, O Tráfico de Migrantes em Portugal: Perspectivas Sociológicas, Jurídicas e Políticas. Lisboa, ACIME.

172

Etnografia e Intervenção Social: por uma praxis reflexiva

PERROUTY, Pierre-Arnaud, 2003, “L’Enfermement d’Étrangers en Europe”

[online]. Disponível em (acesso em 15/04/2007). RIBEIRO, Manuela, et al., 2007b, UHSA: A Experiência Portuguesa da Instalação Temporária de Imigrantes. Lisboa, SEF (relatório de avaliação de funcionamento). RIBEIRO, Manuela, et al., 2007a, Vidas na Raia. Prostituição Feminina em Regiões de Fronteira. Porto, Afrontamento. ROCHA, Servando, e Virginia Regidor, (s/d), “Las Cárceles Encubiertas” [online]. Disponível em (acesso em 20/06/2009). RODIER, Claire, e Catherine Teule, 2005, “Enfermement des étrangers: l’Europe sous la menace du syndrome Maltais”, Cultures & Conflits, 57: 119-155. ROMERO, Eduardo, 2008, “El plan África, la política migratoria española de ‘nueva generación’ y la guerra contra los pobres”, em AA.VV., Frontera Sur: Nuevas Políticas de Gestión y Externalización del Control de la Inmigración en Europa. Barcelona, Virus Editorial, 159-179. RUSSEL, Ben, 2006, “Tories to abandon hardline immigration policy”, The Independent, 8 Jul. 2006. SACRAMENTO, Octávio, e Fernando Bessa Ribeiro, 2009, “Procurando entrar na fortaleza da terra prometida: translocalização da intimidade e mobilidade migratória feminina do Nordeste brasileiro para a Europa”, em Actas do X Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais –– Sociedades Desiguais e Paradigmas em Confronto, Braga, 4 a 7 de Fevereiro. SASSEN, Saskia, 2003, Contrageografías de la Globalización: Género y Ciudadanía en los Circuitos Transfronterizos. Madrid, Traficantes de Sueños. SAUX, María Soledad, 2007, “Immigration and terrorism: a constructed connection”, European Journal on Criminal Policy and Research, 13 (1-2): 57-72. SEF, 2006, Regulamento Interno da UHSA. SPARKE, Matthew, 2006, “A neoliberal nexus: economy, security and the biopolitics of citizenship on the border”, Political Geography, 25: 151-180. WELCH, Michael, 2003, “Ironies of social control and the criminalization of immigrants”, Crime, Law & Social Change, 39: 319-337. WERBNER, Pnina, 1999, “Global pathways. Working class cosmopolitans and the creation of transnational ethnic worlds”, Social Anthropology, 7 (1): 17-35. ZOLBERG, Aristide, 2003, “The archaeology of remote control”, em FAHRMEIR, Andreas, Olivier Faron, e Patrick Weil (orgs.), Migration Control in the North Atlantic World: The Evolution of State Practices in Europe and the United States from the French Revolution to the Inter-War Period. Nova Iorque, Berghan Books, 195-222.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.