Videovigilância e políticas securitárias

July 13, 2017 | Autor: Luis Ramalho | Categoria: Security
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Luís Pedro Sá Ramalho

Ensaio sobre o seminário do curso de verão de antropologia do crime Este ensaio, análise critica ou recensão, conforme lhe queiram chamar (se é que corresponde a algum dos critérios), aparece no seguimento do curso de verão em antropologia do crime (em boa verdade aparece como forma de avaliação do mesmo). É simultaneamente o relatório dos seminários (mais especificamente o da Dra. Catarina Frois, sobre vídeo vigilância) e a recensão do livro “Vigilância e poder”, também de Catarina Frois. No entanto, muitos dos tópicos aqui abordados são transversais aos vários seminários do curso. Devo dizer que embora esteja habituado a uma maneira “leviana” com que se tomam decisões importantes e à “ligeireza” com que se tentam implementar medidas com grande impacto social e económico, não me deixo de surpreender cada vez que aparece um novo caso destes. No caso da vídeo vigilância chega a raiar o ridículo o ponto a que se chega, devido à falta de planeamento, estudo prévio, consulta de informação, etc. Senão veja-se por exemplo em relação à implementação da vídeo vigilância na zona da ribeira no porto, o que diz o livro acima mencionado: “…as câmaras estavam colocadas mas não a operar, ao contrário do que se supunha com base nas notícias entretanto divulgadas… a Câmara Municipal do Porto apoiava o pedido, mas não colaborava financeiramente. Porém, a Associação de Bares não tinha, ao contrário do que se supunha, fundos que costeassem a ligação…”. As perguntas que se impõem são: Não constava do manual de utilização das câmaras a necessidade dessa ligação? Antes de serem compradas não houve um cálculo de custos de instalação e manutenção? E sobretudo é a vídeo vigilância mais uma parceria público-privada (pondo nas mãos de privados os custos de instalação, não lhes dará também poder sobre o processo?). Este é apenas um dos casos que demonstram o que classifiquei como “maneira leviana” dos processos de decisão e implementação dessas decisões - muitos mais há no livro. Passemos assim ao que realmente importa. Em segundo lugar, irei descrever a minha opinião (uma vez que em muitas partes carece de fundamentação com dados mais objectivos - mas não pretende este trabalho ser mais do que isso) em relação à temática dos seminários (e livro) de uma forma que permita uma abordagem pragmática ao assunto. Assim inverto a sequência em relação as questões dos sentimentos (individuais e colectivos) de medo e segurança, pois eles de facto antecedem a medida (são causa, ou justificação daquela) e estabelecem premissas e critérios para um juízo ou construção da decisão. E neste ponto talvez fosse bom acrescentar no painel de seminaristas algum trabalho da área de psicologia criminal. Julgo que é consensual e dado adquirido que o medo é de facto um sentimento (emoção) característico (inerente) ao ser humano, é uma forma de preservação. Relaciona-se com variadíssimas situações tanto a nível individual como colectivo. A nível individual (e também colectivo) está ligado (não necessariamente de forma directa) a experiências anteriores. A um nível colectivo pode-se dizer que funciona por contágio, pode e é usado muitas vezes como forma de condicionamento e manipulação de indivíduos (pessoal ou colectivo) dai a sua eficácia no terrorismo (referida no seminário do professor José Vegar). É portanto um critério subjectivo, como bem frisa a autora e professora Catarina Frois. E apesar de ser uma percepção sentida da realidade, isto é, um dado real a ter em conta, não deve de todo ser exclusivamente, nem sequer o principal dado, para uma decisão. O mesmo se aplica ao sentimento de segurança.

Embora não seja de pertinência directa, surge também, quase sempre, uma relação que julgo falsa entre situação económica (de uma população), medo e crime. Nenhum dos três factores se relaciona sempre directamente com os outros. Pode haver casos em que populações mais pobres tenham menos crime, ou menos medo e o inverso. (Devo até frisar que, na minha observação, as pessoas mais pobres por não terem nada para roubar não têm tanto medo do crime, e não são necessariamente transformados em ladrões ou delinquentes, por essa pobreza). O medo é também tão amplo que pode incluir desde o medo de doenças até a mais irracional das fobias, e como foi dito no livro, varia com idade, experiências, situação económica entre outras. Para concluir em relação ao medo julgo importante frisar que cada vez mais se verifica uma apologia do medo (um incutir do medo) primeiramente como forma política para “vender” a “protecção do estado” governado por A ou B, em segundo lugar para impor efectivamente mais e maiores medidas de controlo sobre os cidadãos, e em terceiro lugar para “vender” guerras. Tornou-se mesmo uma ferramenta do marketing com que nos deparamos diariamente para nos venderem desde planos de saúde, seguros, carros e até alarmes. Para um aprofundamento da questão, há vários estudos, ensaios e dissertações sobre o assunto. Passemos então à vídeo vigilância. Em relação a esta julgo que a abordagem mais pertinente e pragmática será sobre o seu valor. Passo a explicar. Tomando a vídeo vigilância como um processo, ferramenta e até como conjunto de objectos ou meios, ela tem um valor intrínseco. Serve (permite) para registar “ad eternum” o que se passa numa dada área numa continuidade de tempo que pode ser manipulada (parada e passada para trás), as imagens servem como prova das acções passadas num momento e espaço determinados, ou seja têm valor objectivo como identificadores de pessoas que cometeram um delito (registo de imagem como meio de prova). Este é o seu valor intrínseco. Tem ainda valores relacionais, isto é, que apenas podem ser equacionados em conjunto com outros factores (objectivos ou subjectivos, circunstanciais ou não), sendo os maiores deles todos o valor para a investigação de um crime (por exemplo a redução do universo de suspeitos de um crime cometido em determinado sitio e hora cuja passagem obrigatória seria registada pela câmera), ou o da possibilidade de reacção para impedimento do crime (por exemplo o visionamento da tentativo de furto de uma habitação perto da qual haja agentes policiais que a impeçam). Outro valor que poderá ser considerado relacional é o valor dissuasivo, embora pessoalmente o considere mais como um valor interpretativo devido às suas características “voláteis”, isto é, muito circunstancial, sujeito à determinação do criminoso, ao seu engenho, etc. (é preciso perceber que em abstracto o valor da dissuasão é igual ao valor da motivação, o que serve para dissuadir serve muitas vezes como estimulo para ser ultrapassado). Como valores interpretativos temos todos aqueles que surgem apenas como forma de “pressionar” uma apreciação do objecto, isto é são exteriores ao mesmo, muitas vezes subjectivos em si próprios e até criados (ou forjados), a sua relação não é implícita ou “natural”, tem que ser “forçada” como por exemplo estatísticas demonstrativas, etc. Penso que para a tomada de uma decisão apenas devem ser considerados as duas primeiras formas de valorização. No entanto, reconhecer o valor de algo não é o mesmo que aceitá-lo ou concordar com a sua adopção, Para tal torna-se ainda necessário fazer uma relação entre os benefícios (o seu valor) e os custos ou impactos negativos, por isso passemos à dissecação dos argumentos contra a vídeo vigilância. Em primeiro lugar, por ser o mais simples é de facto preciso fazer uma relação de custos que inclua

cálculos como por exemplo o da formação dos agentes: qual o rácio óptimo entre número de horas de visionamento por agente, quantas câmaras por agente, sem esquecer todo o calculo com aquisição e manutenção do material e acessórios, só assim se poderia “pesar” custos versus eficácia e comparar esse resultado com a relação custo eficácia de outras opções, por exemplo aumento de agentes, ou requalificações urbanísticas, como é também mencionado no livro. A outra ordem de custos é mais difícil de quantificar ou mesmo qualificar. Para uma maior objectividade proponho uma abordagem do tipo da usada para os valores. É fácil prescindir daquilo que não sabemos que possuímos, ou quando sabemos que possuímos mas não sabemos o que é. Quando muitas vezes as pessoas percepcionam os seus direitos como empréstimos concedidos pelo estado, que este pode retirar quando bem lhe apetecer, ou quando se confunde (ou se é levado a confundir) regalias com direitos (discurso deturpador dos conceitos, que leva à interiorizarão de como se pensam essas questões), é normal que a opinião pública não seja de facto pública mas sim de outros interesses. É inegável que há sacrifícios no direito à imagem e na privacidade, no entanto também é inegável, como é bem frisado no livro, que a percepção destes direitos não é uniforme (e às vezes não é percepcionada de todo, como é o caso da confusão entre intimidade e privacidade). Por isso, antes de mais julgo que seria bom esclarecer da forma mais objectiva possível (talvez até simples) o que é a privacidade. O que é que realmente estamos a perder? Atribuo grande importância ao meu direito à imagem e à minha privacidade, mas tenho noção de que nem todos percepcionam o assunto da mesma maneira. Talvez se passarmos a captação da nossa imagem de um mecanismo incógnito para a mão de um desconhecido a percepção do direito à imagem mude. Ninguém gosta ou aceita ser filmado ou fotografado por desconhecidos na rua, muito menos gosta que sem o seu conhecimento ou consentimento a sua imagem seja usada, por exemplo, num anúncio de telemóveis, de uma marca de calças ou num livro sobre antropologia - e devo dizer que este último caso aconteceu comigo, fotografado quando era miúdo para o livro “Raças Humanas”, e lá estou eu no recreio da escola primária, um branco no meio de negros em Angola. No entanto, muita gente se submeteria a ser “hóspede” do programa Big Brother. O mundo voyeur que vamos criando pode ser muito divertido no YouTube, onde vão parar vários vídeos de cctv de lojas, estradas e até de locais públicos, mas se imaginarmos que alguém anda constantemente a ver como nos vestimos, com quem falamos na rua, se damos ou não esmola a um pedinte etc, deixamos de achar tanta graça. Apesar de poder existir a percepção de uma ambiguidade entre privacidade e espaço público é constante o uso de expressões como: “perdermo-nos na multidão”, “sentirmo-nos incógnitos no meio de tanta gente” - e é disto que se fala quando falamos no direito a sermos incógnitos, é o espaço onde deixa-mos de ser o contribuinte número X, o funcionario Y, o marido W, o pai Z ou o telespectador ou morador V, provavelmente é o espaço onde ainda podemos ser só nós. Mas não façamos confusão entre privacidade e intimidade, pois esta última é o que nos impõe quando nos filmam constantemente ao ponto de nos identificarem - quando violam a nossa privacidade, estão de facto a impor-nos uma intimidade que não pedimos ou desejámos. É a standarizaçao de maneiras de comportamento social levadas ao limite, e facilmente alguém que estuda antropologia percepciona aqui a tentativa de uma destruição da identidade individual, talvez para que as estaísticas e estudos de mercado possam funcionar melhor, ou porque é também nessa identidade individual que nascem iniciativas não desejadas pelo “status quo”.

É este que pode ser o custo de uma vídeo vigilância indiscriminada, o custo de vermos os nossos actos aparecerem no YouTube para divertimento e voyerismo, que atrai publicidade, o sermos alvo de estudos de mercado e de consumo, ou muito pior o sermos controlados para que nunca possamos constituir ameaça… sabe-se lá ao quê. Intimidade pode, pois, desligar-se da privacidade. Intimidade é aquilo que nós permitimos, é o estreitamento de uma relação consentida. A privacidade é o meu direito individual de existência. Quando alguém me impõe uma intimidade que não tem, está a violar a minha privacidade. E é a isso que os outros devem obedecer, sendo os outros os que estão no nosso espaço próximo ou na esfera pública, e aqui entra o Estado. Façamos uma pequena viagem no tempo. A vídeo vigilância não é uma invenção recente, nem sequer no seu nome. Nasceu no espaço privado e com um objectivo preciso: controlar e punir. Nas empresas (nas actividades de maior secretismo aos meros armazéns), controlar os funcionários; nas lojas, vigiar o público; nos bancos, vigiá-los a todos. A video vigilância começou a entrar na privacidade subtilmente, não se dando por ela, e só recentemente começámos a vê-la (com letreiros explícitos ou com sinais mas subtis e de mais difícil decifração). Antes de se tornar um instrumento do espaço público (policial), ela foi um instrumento do espaço privado com o propósito de apanhar o gatuno, de identificar o destruidor, de controlar os movimentos. A questão da privacidade desapareceu, portanto, em nome do usufruto pelos indivíduos de um lugar que pertencia a alguém. E, nesta lógica, todos nos tornámos suspeitos. O salto foi rápido. Nos aeroportos, por exemplo, onde se encontrou um mecanismo de vigilância de lugares muito movimentados e por todo o género de pessoas. Aceitámos essa invasão com um pensamento simplista, do nosso lado: quem é dono, quer saber que estamos a trabalhar, quer saber que não roubamos informação, quer saber que não roubamos roupa, por exemplo. Como conseguir, então, transpor a vídeo vigilância para o espaço urbano, que é de todos, talvez o único espaço privado que temos fora da nossa casa, sem violar essa privacidade? Com argumentos de segurança. No entanto, e por todos os motivos já expostos, percebemos que esta rede tecnológica apenas se alargou - somos vigiados em todos os momentos das nossas vidas, quando usamos uma caixa automática de dinheiro (somos filmados e deixamos o registo dos nossos movimentos pelas cidades), quando usamos um computador (somos rasteados e detectados), quando falamos ao telemóvel, quando compramos um bilhete de combóio com o multibanco ou o cartão de crédito. E em todos estes rastos que vamos deixando, vamos sendo identificados, como o somos quando subimos uma rua vigiada por vídeo, cruzamos uma praça, atravessamos uma portagem. A vídeo vigilância pública e urbana, é apenas mais um passo num processo já longo e cada vez mais abundante. O que nos faz voltar à “ligeireza” da tomada de decisões inicial: para que serve? Para controlar, mais do que para proteger (como nos espaços públicos)? Para ajudar a punir à posteriori, ou para dissuadir? Para seguirmos uma tendência que outra cidade, grande e fazedora de “modas” e sermos modernos, ou por convicção do seu benefício? Creio que as respostas não são lineares e, sobretudo, não estão devidamente equacionadas. As cidades não são todas iguais e a resposta da vídeo vigilância poderá ter que ser distinta em cada uma delas. Nova Iorque, por exemplo, concentra apenas na sua ilha de Manhattan dez milhões de pessoas entre os que lá

vivem e os que entram e saem todos os dias. Foi num tempo sem vídeo vigilância no grau em que existe hoje que a ilha foi “pacificada”, com um programa de combate ao crime organizado, de “limpeza” de actividades indesejadas (o que foi polémico) e de brutal policiamento nas ruas. Sendo uma cidade muito liberal num país onde os direitos do indivíduo são exacerbados (ao ponto de não ser sequer admissível que, como em Portugal, cada indivíduo deva ter, por lei, a sua impressão digital registada), foram circunstâncias muito especiais (o medo) que abriu as portas a este controlo dos indivíduos nas ruas e em todos os espaços públicos. A adopção da vídeo vigilância, que seria altamente polémica, diluiu-se ao ser proposta por um presidente de câmara pós-11 de Setembro. Em Portugal, em que os dez milhões de habitantes estão espalhados por um país inteiro, como vamos defendê-la? Vamos escolher bairros e ruas com critérios discriminatórios - porque são mais ricos e exigem mais segurança, ou porque são mais pobres e há ali um maior índice de criminalidade? E o que vamos vigiar? Indivíduos, movimentos de grupo, padrões de trânsito? Talvez gente a ter comportamentos pouco adequados ao espaço público - é Catarina Frois que diz que as pessoas se inibem de fazer no espaço público o que deve ser da esfera do privado, mas o que quer isto dizer exactamente? Em Nova Iorque, hoje, isso significa fumar um cigarro num parque público. É também para isso que serve a vídeo vigilância? São muitas as perguntas sendo que a primeira resposta já está dada: já somos vigiados de mil maneiras, o que queremos saber é que benefícios nos dá mais esta que talvez por ser mais visível é tão polémica ao nível das leis da privacidade. “É imprescindível reflectir”, diz o parecer da Comissão de Protecção de Dados Pessoais citado no livro. E há muitos itens de reflexão. É só puxar o fio que o novelo se revela gordo. Conclusão: Como tudo na vida a vídeo vigilância tem que ser usada Q.B. numa relação de peso entre o seu valor como ferramenta securitária (que me parece extrapolado em relação ao seu valor real, e isto só pode mesmo ser entendido como se diz no livro: é um cuidado paliativo que reduz o sofrimento ou um placebo contra sentimentos de insegurança), e os riscos ou perdas que ocorrem na sua utilização. Não me parece aceitável um argumento de cedência de liberdade em favor da segurança, ninguém é seguro sem liberdade, e espero com esta afirmação demonstrar o carácter de escalada em que se entra com essa afirmação, com o pormenor agravante de que, no extremo, segurança total não existe (e se for à custa da perda total da liberdade, então para que a queremos?). A liberdade pressupõe um certo assumir de riscos. Sobretudo penso que qualquer ferramenta usada para nossa segurança é também uma ferramenta que nos pode retirá-la, ameaçar-nos; por isso é bom que existam contrapontos à mesma, como por exemplo ser acompanhada por legislação que criminalize o uso indevido das imagens, pareceres vinculativos de órgãos, independentes (pelo menos teoricamente) como comissões de protecção de dados, ou colectivos de juízes.

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