Vieira, Alexandra [no prelo]. “Paisagens: Lugares de Memória”. II Encontro de Jovens Investigadores do CEAUCP. CEAUCP. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 9 e 10 de Abril de 2010.

June 8, 2017 | Autor: Alexandra Vieira | Categoria: Collective Memory, Paisagem Cultural
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Vieira, Alexandra [no prelo]. “Paisagens: Lugares de Memória”. II Encontro de Jovens Investigadores do CEAUCP. CEAUCP. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 9 e 10 de Abril de 2010. (Texto escrito em agosto de 2010).

PAISAGENS: LUGARES DE MEMÓRIA Alexandra Vieira

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Palavras-chave: Paisagem, Memória, Tradição Oral. Keywords: Landscape; Memory; Oral Tradition.

Resumo: Procuramos com este trabalho conceber as paisagens como lugares de memória. Para tal, optamos por, neste momento do nosso trabalho de investigação, explorar os conceitos de paisagem e memória social. Ao estudarmos este último conceito, apercebemo-nos do valioso contributo da tradição oral para o estudo das paisagens em Arqueologia.

Abstract: We seek with this work to conceive landscapes as places of memory. In order to accomplish that, we have decided, at the present moment of our research, to explore the concepts of landscape and social memory. By studying the concept of social memory, we realize the valuable contribution of oral tradition for the study of landscapes in Archaeology.

INTRODUÇÃO “Da paisagem como análise de tudo quanto é visível à observação, à paisagem como mecanismo complexo de múltiplas variáveis: é esta a evolução duma ciência que, tendo começado pela simples descrição do ambiente que envolve o homem, veio no nosso tempo debruçar-se com maior atenção sobre a rede de relações que ligam e ligaram os homens ao território desde que, com as primeiras formas de domesticação animal e vegetal, a sua acção transformou a natureza. Á noção da função estética da paisagem veio juntar-se depois a sintetização no mesmo termo de um conjunto de elementos que fizeram sentir o seu efeito não apenas no espaço mas também no tempo” (Blanc-Pamard e Raison, 1986, p.159). Quando iniciámos o nosso trabalho de investigação, há uns anos atrás, decidimos estudar a paisagem, mais concretamente a construção da paisagem durante a Préhistória Recente da Bacia Hidrográfica do Douro. Durante muito tempo focámos a

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Bolseira de Doutoramento da FCT; Investigadora júnior do CEAUCP. Docente do Instituto Politécnico de Bragança.

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nossa atenção no inventário de sítios arqueológicos que se inserissem nesta vasta região e neste período de tempo. Pensávamos que o nosso trabalho passaria por relacionar os sítios arqueológicos e as características geomorfológicas da região em estudo. A geomorfologia apresentava-se como elemento fundamental para a compreensão da paisagem. A paisagem seria o cenário onde decorreriam as actividades humanas.

Uma série de leituras permitiu-nos compreender que existem inúmeros pontos de vista de observação da paisagem, e apercebermo-nos das inúmeras disciplinas que “descobriram” a paisagem como elemento de análise (Blanc-Pamard e Raison, 1986, p.158). Se pedíssemos a um geógrafo, um historiador, um arqueólogo, um arquitecto ou ainda a um antropólogo para analisarem e estudarem uma mesma paisagem, muito provavelmente teriam métodos e ângulos de visão diferentes e obteriam resultados distintos, em consonância com as especificidades das áreas disciplinares a que pertencem.

Com o decorrer da nossa investigação fomo-nos apercebendo que a paisagem não se limitava a ser encarada como o tal cenário das acções dos nossos antepassados, como suporte de uma acção; ela era definida por alguns autores: - como um palimpsesto de memórias, um conjunto de inúmeras camadas sobrepostas, nem sempre visíveis a olho nu, que se iam acumulando ao longo do tempo; - como um documento, um arquivo vivo; - ou ainda, como “um sistema de signos cujo significado é descodificado e se reencontra na combinação sempre dinâmica das suas várias componentes. A complexa relação entre o homem e a natureza articula-se também ao nível da paisagem nas suas dimensões de passado/presente e futuro e na dupla actuação de forças que reciprocamente se exercem entre o homem e o ambiente” (Blanc-Pamard e Raison, 1986, p.160). Neste excerto, que aqui apresentamos, existem duas ideias fundamentais que gostaríamos de destacar. Em primeiro lugar, a ideia de dinâmica e transformação associada ao conceito de Paisagem (que muitas vezes é interpretada como algo estático); em segundo lugar, a ideia de movimento, de fluidez que muitas das vezes não conseguimos compreender nem articular no nosso discurso arqueológico. Ao analisarmos e dividirmos a paisagem em pequenos layers ou camadas, estudando apenas uma delas isoladamente, estamos a subtrair-lhe um elemento fundamental: a

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continuidade, o tal movimento, o “sendo”, o tempo. Devemos valorizar o gerúndio de que José Inácio Figueira nos fala. “Ao pensarmos o Tempo, tendemos a conjugá-lo no passado, no presente e no futuro. Pensamos no que foi, no que é e no que será. Esquecemos o gerúndio; o “sendo” que nos coloca diante da continuidade que revitaliza estes lugares estanques de tempo, e faz com que sejamos, a rigor, forjados nesta sucessão incontável de instantes, minutos, horas, dias, anos, séculos e milénios nos quais se teceu a história colectiva da humanidade e a da nossa existência individual. O que fomos está, pois, contido, conscientemente ou não, naquilo que somos agora” (Figueira, 2004). Se a espacialidade está sempre presente nos estudos de arqueologia da paisagem, como perceber a temporalidade da paisagem? “Under the heading of ‘cultural landscapes’ attention has particularly been focused on the question how archaeologists can study the immaterial dimensions of past landscapes and how material remains from the past are perceived in present-day landscapes” (Towards an archaeology of invented and imaginary landscapes, 1997, p. 2). Para o fazermos, temos de estar atentos a dois tipos de fenómenos: os elementos visíveis, materializáveis pelas evidências arqueológicas e os elementos invisíveis, a dimensão imaterial ou simbólica da paisagem, que para nós se plasma na Memória. Utilizando as palavras de Ingold no seu texto sobre The temporality of the landscape: “To perceive the landscape is therefore to carry out an act of remembrance, and remembering is not so much a matter of calling up an internal image, stored in the mind, as of engaging perceptually with an environment that is itself pregnant with the past” (Ingold, 1993, p.189). Pierre Nora (1989, p. 8) nota que: “A memória é a vida. (…); encontra-se permanentemente em evolução, aberta à dialéctica da lembrança e esquecimento, inconsciente das suas sucessivas deformações, vulnerável à manipulação e apropriação, susceptível a longos períodos de latência e súbitas revitalizações. (…) A memória é um fenómeno sempre actual, um laço que nos prende ao eterno presente”.

Quando avançamos para a ideia de que as Paisagens são lugares de Memória estamos a tentar salientar esta imaterialidade da Paisagem. Torna-se então pertinente examinar com algum pormenor os conceitos de Paisagem e Memória, para percebermos como se articulam e qual o seu contributo para a análise das Paisagens como lugares de Memória.

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1. PAISAGEM “Até ao século XVIII, a paisagem era sinónimo de pintura. Assim, foi na mediação com a arte que o sítio (o lugar) adquiriu estatuto de paisagem” (Rosendahl e Corrêa, 2001: 15 citado em Salgueiro, 2001, p.38). A relação entre paisagem e cultura, ou da paisagem e da memória, tem sido uma ideia em desenvolvimento nos últimos anos. O próprio termo “paisagem" tem sido bastante debatido nos últimos tempos por muitos autores, que têm proposto diferentes significados (Muller; 2008, p. 120). No seu sentido mais vulgar o “termo ‘paisagem’ designa a parte de um território que a natureza apresenta ao observador; mas esta acepção banal é hoje considerada insuficiente.” (Blanc-Pamard e Raison, 1986, p.138) (…) Para uns, a paisagem é um ponto de partida, se a encararmos como testemunho da actividade humana, cujas características nos reenviam para uma realidade social; para outros, é um objecto em si enquanto “esfera de interacção entre os vários factores de transformação” (idem, p.142). O próprio termo ‘paisagem’ é constantemente empregue na geografia, onde varia, tal como noutras disciplinas, de acordo com a escala de observação e os critérios de classificação, tanto é, que não se fala de paisagem se lhe juntar um qualitativo: paisagem mediterrânica, natural, rural, cultural (Blanc-Pamard e Raison, 1986, p.141). “As paisagens reconhecidas como património cultural são o resultado e o reflexo da interacção prolongada nas diferentes sociedades entre o homem, a natureza e o meio ambiente físico. São testemunhos da relação evolutiva das comunidades e dos indivíduos com o seu meio ambiente. Neste contexto, a sua conservação, preservação e desenvolvimento centram-se nos aspectos humanos e naturais, integrando valores materiais e intangíveis” (Carta de Cracóvia, 2000). Na percepção da paisagem encontramos uma dicotomia. Dentro de uma sociedade tipicamente ocidental há uma percepção predominantemente visual e uma experiência da paisagem. É, portanto, uma paisagem predominantemente individualista e pictórica. Alguns autores argumentam que esta "visão" ocidental, originária da chamada “arte da paisagem” desde a Renascença, trata a paisagem como uma superfície de inscrição, como um auxiliar de memória do conhecimento cultural e compreensão do seu passado e futuro. No entanto, noutras sociedades, as paisagens são vivenciadas através de múltiplos sentidos: tacto, olfacto e experiência social. Neste caso, o aspecto visual pode não ser o aspecto mais significativo. Para estas sociedades, a paisagem

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não é a inscrição da memória ou a codificação de memórias, mas o "processo de recordar/evocar" (Muller, 2008, pp. 121-122).

Os historiadores colocaram em primeiro plano a influência das sociedades e das civilizações na construção das paisagens, noutras palavras, pensaram as paisagens como construções sociais. “(…) Partindo do que é visível, tentam analisar-se estas paisagens como espaços construídos, partes de território em que se verificam combinações de factos visíveis resultantes da intervenção dos grupos sociais em ambientes naturais diferentes” (Blanc-Pamard e Raison, 1986, p.144). “(…) a paisagem entendida como uma rede de significados e de significantes é compreendida de maneira diferente por cada um, quer seja um individuo quer um grupo, e é por cada um diversamente utilizada. O estudo do espaço vivido dá lugar à análise das situações e mecanismos da percepção do espaço e da paisagem” (idem, p.156). Segundo Muller, as características físicas e as relações da paisagem são socialmente representadas através de factores culturais e cognitivos e significados ou valores a eles atribuídos. Portanto, na maioria dos casos, a paisagem pode ter diferentes significados e interpretações para diferentes grupos culturais e indivíduos. A representação de uma paisagem, que é determinada pelo contexto cultural ou social do observador, determina a forma como ela é percepcionada, observada e tratada (Muller, 2008, p. 121). “Au reste si la mémoire collective tire sa force et sa durée de ce que’elle a pour support un ensembled d’hommes, ce sont cependant dês individus qui se souviennent, en tant que membres du groupe. De cette masse de souvenirs communs, et qui s’appuient l’un sur láutre, ce ne sont pás les memes qui apparaitront avex le plus d’intensité à chacun d’eux. Nous dirions volontiers que chaque mémoire individuelle est un point de vue sur la mémoire collective, que ce point de vue change suivant la place que j’y occupe, et que cette place ellemême change suivant les relations que j’entretiens avec d’autres milieux” (Halbwachs, 1950, p. 33). Também a arqueologia, actualmente, se interessa pelo estudo das paisagens culturais, nomeadamente a análise da evolução da paisagem no tempo. A noção de tempo é uma coordenada essencial no estudo das comunidades humanas e das suas paisagens.

First, human life is a process that involves the passage of time. Secondly, this life-process is also the process of formation of the landscapes in which people have lived. (…)” In a ‘dwelling perspective’, the landscape is constituted as an enduring record of – and testimony to – the lives and works of past generations 5

who have dwelt within it, and in so doing, have left there something of themselves” (Ingold, 1993, p.189). É evidente que as paisagens compreendem elementos materiais, bem como imateriais. Todas as paisagens são interpretações, entidades semióticas, signos. A leitura ou a interpretação da paisagem como uma expressão de significados e memórias da cultura do passado ou do presente, isto é, na sua dimensão intangível ou imaterial, dependerá da identificação das referências de uma comunidade que também nós, como investigadores, conseguimos ou não apreender (Muller, 2008, p. 121).

1.1. PAISAGENS: LUGARES DE MEMÓRIA

«O triplo problema do tempo, do espaço e do homem constitui a matéria memorável» (Leroi-Gourhan, 1964-1965, p. 67-68 citado em Le Goff, 1984, p. 18). Segundo Rui Mataloto (2007, p. 123) “a paisagem surge-nos hoje como um verdadeiro repositório de existências e vivências que se desenrolaram ao longo de milhares de anos. É esta paisagem construída, trabalhada, conceptualizada, que ainda hoje nos acompanha pejada de simbolismos, códigos e significações, que procuramos decifrar com a actividade arqueológica, numa ânsia de criação e preservação da memória colectiva. (…) Deste modo, olhamos para estes lugares como lugares de Memória, enquanto marcas de apropriação e vivência do território, elementos que transmitem a uma determinada comunidade, uma paisagem produzida e trabalhada pelos seus antepassados.” Este autor considera que paisagem e memória constituem um binómio inseparável e que a sua “construção” ocorre em paralelo.

Por outro lado, Teresa Salgueiro, geógrafa, acentua que as paisagens são construídas pela experiência, transformando-se em sítios de segurança e de ligação afectiva, reflectindo crenças e valores da sociedade, traduzindo sentimentos e fantasias face ao ambiente, sendo uma herança intelectual e espiritual. É neste processo que surge a noção de identidade, enquanto sentimento de inclusão, de pertença; isto é, a identidade resulta da partilha de uma memória colectiva. Segundo a autora, começam a surgir textos onde se procuram as relações entre o inconsciente da memória colectiva e o imaginário na escolha das localizações, ou na identificação de territórios “sagrados”. Mas se a paisagem for entendida como “uma maneira de ver o mundo”, isso requer um processo de aprendizagem; e de facto “algumas correntes 6

defendem que as paisagens têm um sentido cultural e que se podem ler como se lê um livro, mas é preciso saber ler e dispor dos instrumentos adequados” (Salgueiro, 2001, pp. 46-47).

A Carta de Conservação e Restauro do Património Cultural (Carta de Cracóvia, 2000) reconhece que a consciência de evidências passadas, num sentido físico e/ou simbólico, é importante para a construção da memória colectiva de uma população, é uma das fontes da sua identidade, importante para a preservação da especificidade cultural e natural. Os lugares já não são entendidos como simples espaços, ou como habitats naturais, no sentido ecológico-ambiental, mas são vistos como documentos (Scazzosi, 2004, p.342).

Scazzosi explica a paisagem como um documento ou palimpsesto, ou seja, as paisagens aparecem como grandes e complexos artefactos, resultando do trabalho do homem e da natureza, num “entrelaçamento indissolúvel”, num processo secular de construção

e

transformação.

Os

seres

humanos

intervêm,

acrescentando,

abandonando, anulando e sobrepondo os elementos, mas sempre transformando-os, tanto fisicamente como através da mera atribuição de novos significados, ou seja, é uma “obra” aberta em constante renovação (Scazzosi, 2004, p. 338). Nesse sentido, as paisagens são um grande arquivo vivo, já que se alteram constantemente, e estão cheias de vestígios materiais e imateriais resultantes duma relação simbiótica entre indivíduos, comunidades e natureza. Muller também considera que as Paisagens devem ser entendidas como arquivos ou documentos vivos, onde a história do lugar e vestígios de eras passadas são combinados com as actividades do presente. É um documento de múltiplas camadas, onde os elementos do passado se fundem com o presente tangível (Muller, 2008, p. 122).

A paisagem já não é apenas a expressão das relações entre a sociedade e o ambiente natural, mas também dos laços que ligam o presente à herança do passado. Este conceito é indispensável para se poder definir a paisagem como a soma das paisagens fósseis ou herdadas. Assim, “numa paisagem-palimpsesto, às escalas espaciais devem associar-se as escalas temporais e a profundidade histórica” (BlancPamard e Raison, 1986, p.157).

Paisagem é, portanto, um elemento fundamental da forma como as pessoas concebem, memorizam e representam a sua história. Isso leva à construção da memória colectiva de um grupo social ou de uma comunidade, que é uma das 7

principais fontes da sua identidade. Podemos dizer que a paisagem se torna numa manifestação física do conhecimento e da compreensão de uma cultura do seu passado e futuro. A perspectiva segundo a qual devemos ver as paisagens é, portanto, como um fenómeno social. Paisagem implica o ser humano como elementochave; as ideias e conceitos sobre certas paisagens diferenciam-nas de um ambiente e anunciam um sistema cultural (Muller, 2008, p. 120).

Compreender o fenómeno da Paisagem permite-nos fazer uma leitura do mundo na sua complexidade. Ou seja, diferentes tipos e diferentes tempos coexistem e interrelacionam-se nas características presentes dos lugares. Os estudos arqueológicos são muitas vezes limitados à leitura de paisagens por época e por grandes classificações geográficas, fornecendo um esquema geral das principais alterações temporais. As paisagens que herdamos não são simplesmente compostas da adição de arquitecturas e/ou objectos, mas sim de vários sistemas de paisagem. Elas não são apenas um conjunto de pontos, linhas e áreas, mas sim um sistema de interligação que relaciona elementos visuais, espaciais e simbólicos, bem como funcionais e ambientais. Os sistemas podem interconectar-se e sobreporem-se uns aos outros na mesma região, no todo ou em parte, sendo também necessário fazer uma leitura das relações entre as partes e de cada delas em particular. Desta forma, massas e vazios, paredes, elementos característicos, contextos, relações visuais e simbólicas, transportam significado ou significados, ao determinar os sistemas históricos da paisagem que, desde a antiguidade até hoje, têm estruturado os espaços (Scazzosi, 2004, p. 339-342).

2.

MEMÓRIA

Se entendemos as Paisagens como lugares de Memória, como definir Memória? A memória é um conceito relativo à capacidade humana de retenção de informação. Neste sentido, recordarmos quando é necessário e esquecermos quando já não precisamos dessa informação. Segundo diversos estudiosos, é a base do conhecimento. É através dela que damos significado ao quotidiano e acumulamos experiências para utilizar durante a vida. A memória é a capacidade de adquirir (aquisição), armazenar (consolidação) e recuperar (evocar) informações disponíveis, seja internamente, no cérebro (memória biológica), seja externamente, em dispositivos artificiais (memória artificial). “É um processo de reestruturação activa” em que os elementos podem ser guardados, reorganizados ou eliminados” (Fentress e Wickham, 1992, p. 58). 8

“A memória, como propriedade de conservar certas informações, reenvia-nos em primeiro lugar para um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode actualizar impressões ou informações passadas, que ele representa como passadas. (…)” (Le Goff, 1984, p.11). Começamos por salientar o que Jacques Le Goff denomina de «divinização da memória». Os antigos gregos consideravam a memória como uma entidade sobrenatural ou divina: era a deusa Mnemósine, mãe das nove Musas, que protegem as Artes e a História. A deusa concedia aos poetas e adivinhos o poder de voltar ao passado e de lembrá-lo para a comunidade. O “poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do passado, como o adivinho o é do futuro” (Le Goff, 1984, p. 20-21). Ainda na mitologia grega, Lete deu o seu nome a uma fonte, a fonte do esquecimento, situado nos infernos, de que os mortos bebiam para esquecer a sua vida terrena. De igual modo, na concepção dos filósofos, nomeadamente de Platão, as almas bebiam desse líquido, que lhes tirava a memória do que tinham visto no mundo subterrâneo. Perto do Oráculo de Trofónio, em Levadeia, na Beócia, existiam duas nascentes, donde deveriam beber os que o consultavam: a fonte do esquecimento (Lete) e a fonte da memória (Mnemósine) (Grimal, 1992, p. 275). Mnemosyne é a palavra da mesma família etimológica de anamnesis (recordação), mnême (memória) e memonêuein (recordar) (Le Goff, 1984, p. 21).

Se para os Gregos e Romanos a Memória era representada como uma divindade, já em plena Baixa Idade Média, Boncompagno da Signa, em 1235 define-a da seguinte forma: “A memória é um glorioso e admirável dom da natureza, através do qual reevocamos as coisas passadas, abraçamos as presentes e contemplamos as futuras, graças à sua semelhança com as passadas» (Le Goff, 1984, p. 30). Interessante é ainda este texto de 1710 que refere que «Os Latinos designam a memória por memoria quando ela reúne as percepções dos sentidos, e por reminiscentia quando os restitui. Mas designavam da mesma forma a faculdade pela qual formamos imagens, a que os Gregos chamavam phantasia, e nós imaginativa, e os latinos memorare….Os Gregos contam também na sua mitologia que as Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da memória» (idem, p. 37).

A memória colectiva sofreu grandes transformações com

o surgimento e

desenvolvimento das ciências sociais e desempenha um papel importante na interdisciplinaridade que tende a estabelecer-se entre elas. Alguns autores destacam o papel da “Nova História” que se esforça por criar uma história científica a partir da memória colectiva, primeiro porque a considera como uma problemática nitidamente 9

contemporânea e porque renuncia «a uma temporalidade linear» em proveito dos tempos vividos múltiplos «nos níveis em que o individual se enraíza no social e no colectivo nas suas diferentes componentes linguística, demografia, económica, biológica, cultural, etc. (Le Goff, 1984, p. 44). A sua investigação a par da Arqueologia tem, muitas vezes, como ponto de partida o estudo dos “lugares” da memória colectiva. “Lugares topográficos como os arquivos, as bibliotecas e os museus; lugares monumentais como os cemitérios ou as arquitecturas; lugares simbólicos como as comemorações, as peregrinações, os aniversários ou os emblemas.” Interessa-nos destacar igualmente o papel da antropologia, na medida em que o termo ‘memória’ lhe oferece um conceito que se adapta melhor às realidades dos grupos humanos que estuda (ibidem).

Nos tempos actuais Leroi-Gourhan considera a memória não como uma propriedade da inteligência, mas a base sobre “a qual se inscrevem as concatenações de actos”. Este autor distingue três tipos de memória: memória específica (a que define a fixação dos comportamentos das espécies animais), memória étnica (que assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas) e memória artificial (electrónica na sua forma mais recente, que assegura, sem recurso ao instinto ou à reflexão, a reprodução de actos mecânicos encadeados) (1964-65, p. 269 citado em Le Goff, 1984, p. 13). Neste caso, a memória étnica é aquela que mais no interessa para este estudo em particular, já que ao assegurar a reprodução de comportamentos das sociedades humanas, desempenha um imenso papel social. Neste sentido, diznos quem somos, integrando o nosso presente no nosso passado. Para Leroi-Gourhan a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou colectiva, cuja busca é uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje (idem, p.46). Fentress e Wickham (1992, p. 20) salientam que a “ (…) a memória é estruturada pela linguagem, pelo ensino e observação, pelas ideias colectivamente assumidas e por experiências partilhadas com os outros” construindo uma memória social. Realçam a ideia de que há memória social porque há significado para o grupo que recorda. Para muitos grupos,” isso significa inventar um passado adequado ao presente ou um presente adequado ao passado” (idem, p. 243). E esta subjectividade da memória é uma questão que não deve colocar em causa o estudo da memória social. Deve, no entanto alertar-nos para a sua complexidade.

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“Sabemos que as recordações do passado também podem mudar com o tempo mas, mesmo quando não mudam, decerto serão seleccionadas, a partir de um conjunto de memórias possíveis, pela sua importância para os indivíduos que recordam, pelo seu contributo para a construção da identidade e das relações pessoais” (Fentress e Wickham, 1992, p. 112). Parece haver um repositório de um saber popular intemporal, cuidadosamente preservado e fielmente transmitido ao longo de incontáveis gerações. Mas esta imagem de continuidade ininterrupta apresenta-se como ilusória já que a transmissão da memória social é um processo de evolução e mudança (Fentress e Wickham, 1992, p. 241). Por exemplo, vários estudos sobre Memória individual apontam para o facto de que, com a continuação da experiência, as memórias se sobrepõem. Estas sucessivas sobreposições ocultam a própria ocorrência do processo de “esborratar” da Memória, ou seja, tudo o que nos fica é o último grupo de imagens. Por outro lado, se não dispomos de meios para fixar a memória do passado, a tendência natural da memória é eliminar o que não é significativo ou satisfatório nas memórias colectivas do passado e interpolar ou introduzir o que parece mais apropriado (idem, p. 78). “O processo da memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios” (Changeaux 1972, p. 356 citado em Le Goff, 1984, p.11). Numa outra perspectiva, há autores que defendem que muitas vezes a memória precisa de dispositivos mnemónicos para ser eficientemente activada. Estes dispositivos podem ser objectos, paisagens, ou formas de música (Muller; 2008, p. 122). A ideia de que as lembranças das coisas passadas só sobrevivem se ficarem fixadas ao meio material de que são originários, tem sido útil na procura de elementos “mnemónicos” da paisagem, que sobreviveram através da tradição oral. Assim sendo, se um determinado facto se tornou parte da memória colectiva de um determinado grupo, acabará por ser apresentado sob a forma definitiva de um evento, uma personalidade ou um lugar. Outros autores afirmam que, ao invés da linguagem ou de um evento, é o símbolo material que serve como um meio de acesso a uma memorização inconsciente; desta forma podemos assumir que a paisagem actua como um "banco de memória, tanto armazenando como perdendo características ao longo do tempo” (Hrobat, 2007, p. 32). Muitas memórias das diferentes comunidades são essencialmente geográficas: um caminho, uma gruta, um penedo, um monte, uma casa, um ponto de reunião (Fentress e Wickham, 1992, p. 112).

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A memória social é uma fonte de conhecimento. Isto indica que não só fornece um conjunto de categorias através do qual, de um modo inconsciente, um grupo habita o seu meio, bem como lhes dá também matéria de reflexão consciente. Isso significa que devemos situar os grupos em relação às suas próprias tradições, descobrindo como interpretam as suas próprias “estórias” e como as utilizam para fonte de conhecimento (Fentress e Wickham, 1992, p. 42), o que nos remete para o estudo da tradição oral, como instrumento essencial para o estudo da Memória Social.

2.1. TRADIÇÃO ORAL Uma das formas possíveis de investigação da Memória Colectiva pode ser realizada a partir do estudo da tradição oral. Segundo Fentress e Wickham (1992, p. 9) nos anos 70 deu-se a expansão do estudo da história oral assim como da análise etno-histórica da tradição oral, isto é, “das comemorações de eventos, de um passado demasiado distante para a experiência imediata”. Uma das principiais finalidades da história oral e do estudo da tradição oral passa pela “reconstrução (ou construção)” do passado através de fontes orais. De acordo com Alexandre Parafita (2010) a tradição oral é a transmissão de saberes feita oralmente, pela comunidade, de geração em geração, isto é, de pais para filhos ou de avós para netos. Estes saberes tanto podem ser os usos e costumes das comunidades, como podem ser os contos populares, as lendas, os mitos e muitos outros textos que ficam guardados na memória (provérbios, orações, lengalengas, adivinhas, cancioneiros, romanceiros, etc.). Alguns autores afirmam que as pessoas precisam da tradição oral a fim de conectar-se ao espaço que habitam e para explicar a sua existência "desde tempos imemoriais” (Hrobat, 2007, p. 37).

As práticas que perpetuam a memória estão inscritas na paisagem, e inscrevem respectivamente a própria paisagem na memória. A dimensão imaterial é constantemente recriada, pois, em contraste com a história escrita, a “tradição oral” é mais abrangente e envolve a história em que cada geração acrescenta o seu conhecimento e transmissão das gerações passadas (Muller, 2008, p. 123). Podemos considerar que o processo de transmissão da tradição oral é acompanhado por um processo de reinterpretação, que está muitas vezes por trás das transformações no seio da própria tradição oral (Fentress e Wickham, 1992, p. 109).

Normalmente, a tradição oral é usada meramente como um «instrumento de topografia arqueológica», em que contributo do folclore é reduzido a uma lista indicativa das tradições e topónimos relativos a castelos, tesouros, gigantes, estradas abandonadas 12

e assim por diante, que indicam os sítios com possível interesse arqueológico. Mas qual será o papel da tradição oral ligada à paisagem, na persistência da memória colectiva sobre as circunstâncias históricas? Ou então, qual o seu papel para a sobrevivência e/ou transformação de antigo cultos e crenças? É possível argumentar que as narrativas folclóricas, elementos valiosíssimos da tradição oral, que dão significados aos lugares, podem e devem ser aceites como uma fonte válida para a interpretação arqueológica e para a interpretação da paisagem (Hrobat, 2007, pp. 3132). Se conseguirmos compreender a percepção e a "tradução” que uma determinada comunidade local tem/faz sobre a sua paisagem, este pode ser um meio profícuo para detectar algumas memórias colectivas fragmentadas, em relação aos processos históricos, crenças religiosas e locais de culto, entre outros (idem, p. 47).

Hrobat refere-nos que quando a dimensão simbólica da memória colectiva se incorpora na paisagem, torna-se possível a sua sobrevivência. Isto é particularmente visível em locais onde a destruição de certos elementos da paisagem é improvável, como por exemplo, fenómenos naturais, como grutas, penedos, nascentes de água, onde podemos esperar que ocorra a preservação de alguns “sentidos” ou significados desses lugares. A memória dos antigos sítios pode ser preservado pela continuidade de práticas rituais, quer com o mesmo conteúdo e /ou forma, - como é o caso de algumas práticas rituais e simbólicas da associação de penedos com a fertilidade, - ou através de sua mudança, como é o caso da cristianização de alguns cultos e locais. Por outro lado, como consequência de uma ruptura cultural, por exemplo através da mistificação de certos elementos ou da criação de lendas ou superstições; ou uma mudança de significados através da interpretação de documentos históricos e evidências arqueológicas (Hrobat, 2007, p. 48).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitos dos sítios arqueológicos que estudámos transformaram-se em autênticos “marcadores da paisagem” ou “lugares de memória”, sendo restabelecidos ao longo dos tempos, passando para as gerações seguintes, reforçando as funções mnemónicas da paisagem. Alguns autores argumentam até que as “relações humanas são criadas pelo intermédio da paisagem” (Whyte, 2007, p. 167). Podemos, desta forma, conceber a paisagem como um "lugar de memória/memórias" – um repositório de conhecimentos que podem ser transmitidos sucessivamente às gerações seguintes, atendendo a que a paisagem fornece um recurso vital de dispositivos mnemónicos que estruturaram as memórias locais, costumes e práticas. As evidências 13

materiais do passado são apropriadas, manipuladas e, por vezes, reinventadas, sendo-lhes dado novos significados, como parte integrante das estratégias de criação e manutenção da identidade local de uma comunidade. Em suma, a construção de uma paisagem ocorre paralelamente à construção da memória ou das memórias de um grupo ou comunidade e da sua identidade.

Para concluir, devemo-nos questionar sobre qual o contributo desta concepção das Paisagens como lugares de Memória para a nossa investigação em arqueologia. Isto fez-nos repensar a paisagem em termos de diferentes coordenadas espaciais e temporais. As Paisagens têm sido interpretadas e conceptualizadas pelos arqueólogos como Espacialidade mas falta-lhes a profundidade da sua Temporalidade. De facto, e segundo as palavras de Lesley McFadyen, podemos ver essa temporalidade através das evidências arqueológicas, quando as pessoas lidam fisicamente com as ruínas ou com as materialidades de acções dos seus antepassados. O tempo aqui não é um conceito abstracto e linear da sequência após sequência que existe na academia e em livros, ele está na paisagem e materializa-se através da forma como as coisas se encaixam" (Lesley McFadyen, 2009 informação pessoal). O nosso ponto de partida e elemento fundamental, onde se plasma este “entrelaçado de relações temporais e espaciais”, são as evidências arqueológicas. Há como que uma combinação de vários elementos que, ao longo do tempo, interagem, colidem, absorvem, neutralizam, acrescentam, integram, se sobrepõem, se agrupam, se acumulam, se materializaram e que são visíveis, de diferentes formas, nos vários sítios que estudamos (Vieira, no prelo).

Para fazer o que nos propomos, ou seja, o estudo das paisagens enquanto lugares de memória, torna-se fundamental um estudo da toponímia, das narrativas orais, das lendas, dos mitos, da tradição oral, entre outros. Porque não repensar os sítios arqueológicos à luz destas ideias, utilizando estes instrumentos de análise, de modo a procurar compreender um pouco melhor as nossas paisagens como lugares de Memória?

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