VIGIAR E MEDICAR: O DSM-5 E OS TRANSTORNOS UBUESCOS NA INFÂNCIA

May 30, 2017 | Autor: Sandra Caponi | Categoria: Medicalization, Diagnosis, Medical Sociology, Medicalization, DSM problems
Share Embed


Descrição do Produto

SANDRA CAPONI

VIGIAR E MEDICAR: O DSM-5 E OS TRANSTORNOS UBUESCOS NA INFÂNCIA [pp.29-54]

IN SANDRA CAPONI MARÍA FERNANDA VÁSQUEZ VALENCIA MARTA VERDI (ORGANIZADORAS)

VIGIAR E MEDICAR: ESTRATÉGIAS DE MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA

EDITORA LIBERARS SÃO PAULO 2016 ISBN 978-85-9459-005-3

VIGIAR E MEDICAR O DSM-5 E OS TRANSTORNOS UBUESCOS NA INFÂNCIA SANDRA CAPONI

Nos dias que seguiram à publicação da quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística de Doenças Mentais conhecido como DSM-5 (APA, 2013), foram realizadas diversas críticas a essa nova classificação diagnóstica. Para eles o DSM-5 aumentava a sensação, deixada pelas anteriores edições, de ser um agrupamento de patologias sem consistência epistemológica, com uma tendência forte a multiplicar diagnósticos psiquiátricos10. Essas críticas se multiplicaram nos últimos anos desde âmbitos diversos tais como, a psicanálise, a saúde coletiva, as ciências sociais e a própria psiquiatria. Porém, poucos se detiveram a analisar o lugar peculiar que os Transtornos mentais da infância ocupam nesse Manual. Proponho aqui analisar as transformações que ocorreram no DSM-5, especificamente no campo dos transtornos mentais da infância. Pretendo explicitar de que modo esse Manual define e enumera esses diagnósticos psiquiátricos e explicitar a estratégia classificatória utilizada para agrupar conjuntos de comportamentos, considerados como sintomas na extensa lista de Transtornos inespecíficos que compõem o DSM-5. Em relação aos transtornos mentais na infância, algumas alterações significativas ocorreram ao longo dos 33 anos que separam a edição do DSM-III (APA,1980) do DSM-5, publicado no dia 18 de maio de 2013. A transformação, aparentemente banal, que pretendo abordar aqui, não se restringe à criação de novos diagnósticos. Pelo contrário, pretendo analisar a emergência de uma nova estratégia classificatória que parece ter ocupado um lugar privilegiado na elaboração do DSM-5.

Análises críticas sobre essa classificação foram realizadas por autores como Pignarre(2006), Elisabeth Roudinesco (2013), Paris e Phillips (2013), Sadler (2010, 2013), Hacking (2013), Horwitz (2007, 2002, 2013), Conrad (2007), Braunstein (2013), Coliman (2009), Camargo (2006), Dunker e Neto (2013), e instituições como Pas zero de conduit (2013) ou Stop DSM (2013), dentre outros.

10

29

A estratégia que parece operar como eixo articulador da última edição do Manual, não foi claramente explicitada ou definida pelos organizadores. Do mesmo modo, não constituiu um alvo de problematização para os críticos mais severos da última edição do Manual, como Allen Frances (FRANCES, 2013a; 2013b; 2013c. ;2010;2012), Elisabeth Roudinesco (ROUDINESCO,2013) ou Thomas Insel (INSEL, 2013). Gostaria de me deter aqui a analisar de que modo, a nova versão do Manual se vincula com esse dispositivo de saber-poder próprio das sociedades liberais e neoliberais, denominado por Michel Foucault “dispositivo de segurança” (FOUCAULT,1978;1997;2004;2005): um dispositivo eminentemente centrado na lógica da prevenção e da antecipação de riscos. Certamente esse dispositivo não aparece por primeira vez em 2013, porém, ele foi ganhando força graças à consolidação de uma linha de pesquisa, cada vez mais consolidada no campo da psiquiatria, denominada “psiquiatria do desenvolvimento da infância e da adolescência”. Para essa psiquiatria, os transtornos são entendidos como comportamentos disfuncionais que se sucedem e agravam ao longo da vida de um indivíduo, desde sua infância até a idade adulta (CAPONI, 2014), exigindo que seja reforçada a atenção nos primeiros anos de vida dos indivíduos. OS TRANSTORNOS DA INFÂNCIA SEGUNDO O DSM Fazendo um pouco de história recente, vale a pena lembrar que existe uma continuidade bastante significativa entre o DSM-III e o DSM-IV (APA,1994), no que se refere aos transtornos mentais da infância. Ainda que existam algumas diferencias, particularmente no que se refere à presença de novos transtornos no DSM-IV, em ambos os casos existe uma mesma categoria classificatória, um mesmo agrupamento no interior do qual se reúnem as chamadas patologias mentais da infância, com uma sutil diferença de denominação: em 1980 esse agrupamento denominava-se “Transtornos geralmente evidentes por primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência”. Em 1994, no DSM-IV-TR, esse mesmo agrupamento se denomina “Transtornos Geralmente diagnosticados por primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência". Esta pequena diferença nos permite entender o curso da posterior transformação que ocorrerá em 2013 com o DSM-5. Esse grupamento de diagnósticos, localizado no Capítulo 1 do DSM-III, se apresenta do seguinte modo: Os transtornos descritos em este capítulo são aqueles que usualmente aparecem e se evidenciam inicialmente na infância ou adolescência. (...) Quando se trata de diagnosticar uma criança o adolescente o médico deve considerar primeiro os diagnósticos incluídos em esta seção. Caso não se ache um diagnóstico apropriado, transtornos descritos em outras seções deste Manual devem ser considerado (APA,1980, p. 28)

30

Catorze anos mais tarde, provavelmente como consequência da pouca eficácia dos tratamentos e da persistência dos ditos transtornos na infância na idade adulta, ainda que esse capitulo permanece com nome similar, haverá uma transformação no modo como se apresentam os diagnósticos aqui agrupados. Assim, no DSM-IV podemos ler: A apresentação de uma seção separada para doenças que são geralmente diagnosticados pela primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência é apenas para conveniência e não se destina a sugerir que há uma distinção clara entre distúrbios da "infância" e de "adultos"”. Acrescentando que: “Além disso, muitos transtornos incluídos em outras seções do manual, muitas vezes têm um início durante a infância ou adolescência.” (APA,1994, p. 37).

Vemos que a especificidade desse agrupamento destinado às doenças mentais na infância começa apagar-se nos 14 anos que separam ao DSM-III do DSM-IV-TR. Então, pela primeira vez, e de modo insistente, o DSM-IV postulará que as patologias da infância podem ser diagnosticadas em adultos e, contrariamente, que os Transtornos considerados de adultos podem ser diagnosticados em crianças. Assim, esse conjunto ambíguo de sintomas presentes ao longo de um número definido de semanas, a partir do qual se definia uma patologia inicialmente pensada para adultos, a partir de 1994, também poderá ser utilizado para diagnosticar crianças maiores de dois anos, crianças em idade escolar ou adolescentes. Sintomas tais como irritabilidade, dificuldade de concentração, “comer repetidamente alimentos não nutritivos por pelo menos um mês”, considerado um sintoma do diagnóstico Pica- eating disorder (DSM-III- 307.52), ou outros como a “preocupação excessiva com a aparência”, sintoma do Transtorno dismórfico corporal (DSM-IV-300.7), antes reservados para identificar transtornos mentais em adultos, agora permitirão diagnosticar crianças e adolescentes. Mas, a dissolução das fronteiras entre adultos e crianças se consolidará, finalmente, com o DSM-5. Ali o controvertido capítulo denominado "Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência” desaparece, e com sua desaparição fica legitimada a indistinção entre diagnósticos da infância e aqueles antes reservados para a vida adulta. A partir de esse momento, poder-se-á falar sem problemas de TDAH em adultos ou de Depressão maior na infância. Reafirma-se desse modo, a lógica presente nos manuais anteriores, segundo a qual a identificação precoce, cada vez mais precoce, passa a ser considerada uma exigência para garantir a eficácia terapêutica de transtornos mentais na primeira infância, priorizando-se a idade pré-escolar. Podemos observar, por exemplo, que no item do DSM-5 dedicado a Desenvolvimento e curso, denominado Curso no DSM-IV, para cada diagnóstico definido aparecem referências ao início da patologia na infância ou adolescência. 31

Aparecem também indicações referidas à importância de identificar precocemente as doenças para garantir um bom tratamento. Assim, para o “Transtorno de interação social desinibida” (313.89), o item Desenvolvimento e curso afirma, “O transtorno foi descrito a partir do segundo ano de vida até a adolescência” (APA, 2013, p. 270). No “Transtorno de estresse pós-traumático”, esse mesmo item diz: “O TEPT pode ocorrer em qualquer idade a partir do primeiro ano de vida” (APA, 2013, p. 276), e o mesmo se repete na maior parte dos diagnósticos. Vale lembrar que o “Transtorno de interação social desinibida” não existia no DSM-IV-TR, e que o “Transtorno de estresse pós-traumático” tinha seu início na vida adulta. Os exemplos se multiplicam também no campo das chamadas patologias sexuais. Vemos aparecer uma nova categoria denominada: “Disforia de género em crianças” (p. 451). Afirma-se que o início dos comportamentos transgênero já pode ter início na idade pré-escolar, com dois ou quatro anos de vida (APA, 2013, p. 455). Tudo parece indicar que a passagem do item “Curso” ao Item “Desenvolvimento e curso”, não ocorreu por acaso, trata-se de uma tomada de posição em relação à validade concedida pelo DSM-5 a essa ambígua e duvidosa linha de pesquisa denominada, justamente, psiquiatria do desenvolvimento da infância e da adolescência. No DSM-5 o primeiro capítulo, antes destinado aos transtornos diagnosticados na infância, foi substituí do pelos “Transtornos do Neurodesenvolvimento”. Aparecem ali alguns transtornos que parecem ser considerados comuns na infância, eles são: Deficiências intelectuais, Transtornos de comunicação (de linguagem, de fala, gagueira, etc), Transtornos do espectro autista, Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, Transtornos de aprendizagem, Transtorno de tique (Tourette), dentre outros que podem ser agora diagnosticados em adultos. Afirma-se que esses Transtornos do neurodesenvolvimento, se referem a doenças cuja causa é uma deficiência neurológica específica, ainda que essas supostas causas neurológicas permanecem misteriosas e desconhecidas. O DSM-5 E OS TRANSTORNOS DISRUPTIVOS, DE CONTROLE DE IMPULSOS E DE CONDUTA.

Outros transtornos que antes faziam parte do agrupamento “Diagnosticados na infância” passaram, a fazer parte do capítulo “Transtornos Disruptivos, de Controle de Impulsos e de Conduta”. E é aqui que aparece de modo evidente a estratégia securitária de detecção e antecipação de riscos (CASTIEL, 2007) já mencionada. Se os impulsos agressivos antes tolerados, se as condutas indesejadas que faziam parte do universo infantil, ingressaram ao campo da psiquiatria, isso correu porque esses comportamentos se descreveram como indicadores de risco para doenças mentais graves na vida adulta. De fato, o que possibilita a aceitação social do crescente processo de psiquiatrização da infância, não é outra coisa além da esperança, certamente infundada, de antecipar riscos 32

futuros. Tais riscos são apresentados como verdadeira ameaça social: desde a esquizofrenia até o homicídio ou o suicídio, passando pelo fracasso laboral ou sentimental na vida adulta. Dir-se-á que o grupo denominado Transtornos de Conduta e impulso, permite diferenciar os transtornos intelectuais e do desenvolvimento, dos transtornos de comportamento. Porém, ainda que no DSM-5, os transtornos intelectuais e os transtornos de comportamento com início na infância, se apresentem em Capítulos diferentes, ambos agrupamentos coexistem quando observamos a multiplicação de comorbidades relatadas. Se dirá, por exemplo, que o Déficit de Atenção e Hiperatividade- TDAH es frequente comorbido com o Transtorno de Oposição Desafiante – TOD (313.81). De modo que com a desaparição dos chamados “Transtornos Geralmente diagnosticados por primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência” o DSM-5 permitiu criar uma linha de continuidade entre comportamentos comuns na infância, mas que a psiquiatria considera patológicos, e condutas antissociais ou até criminosas, que segundo se afirma, poderão vir a ocorrer na vida adulta daqueles diagnosticados com TOD (Transtorno de Oposição Desafiante). A existência de fronteiras instáveis, difusas e ambíguas entre o normal e o patológico no campo da saúde mental, possibilitou esse processo crescente pelo qual, condutas próprias da infância passaram a ser classificadas como anormais. Consolidou-se assim, esse espaço de saber e de intervenção que Michel Foucault (1999) denominou medicina do não patológico. Pois agora um conjunto de condutas próprias da infância ingressaram na lógica psiquiátrica do risco. De acordo a essa lógica, para evitar a ocorrência de delinquência, comportamento psicótico e personalidades antissocial será necessário diagnosticar os pequenos desvios já na idade pré-escolar. Assim, a obsessão por detectar precocemente os transtornos mentais na infância, parece ser o eixo central em torno ao qual se articula o DSM-5. Essa estratégia que está presente em praticamente todos os transtornos mentais definidos nesse Manual, habilitaria à psiquiatria para identificar e antecipar riscos, tanto médicos quanto jurídicos. Essa centralidade do dispositivo securitário tem duas faces. Por um lado a detecção precoce se apresenta, ainda que sem sucesso, como resposta para evitar a cronificação de patologias que se supõem irreversíveis na vida adulta. Por outra parte, e é aqui onde encontra sua legitimidade, cumpre uma função de proteção social. A tarefa de detectar os Transtornos Disruptivos na primeira infância, se apresenta como solução para antecipar os problemas mais temidos nas sociedades liberais e neoliberais: a delinquência, a criminalidade, os homicídios, o suicídio. O DSM-5 situa-se, assim, a meio caminho entre o médico e o jurídico. É possível afirmar que uma das estratégias indispensáveis para garantir a indefinida ampliação de diagnósticos e categorias psiquiátricas é a obsessão por identificar pequenas anomalias, sofrimentos cotidianos, pequenos desvios de conduta como indicadores de uma patologia psiquiátrica grave por vir. O risco, na medida em que aparece como um modo de antecipar um perigo possível (real ou imaginado) sobre a vida e a saúde, constitui a estratégia que permite garantir a legitimidade e aceitabilidade da multiplicação de diagnósti33

cos. Um dos maiores críticos do DSM-5, o chefe do grupo de tarefas do DSM-IV, Allen Frances afirma: Os psiquiatras esperam identificar pacientes mais cedo e criar tratamentos efetivos para reduzir a cronicidade das patologias. Desafortunadamente, os membros do Grupo de Tarefas usualmente cometem o erro de esquecer que qualquer esforço por reduzir as taxas de falsos negativos deve inevitavelmente elevar as taxas de falsos positivos (frequentemente de modo dramático e com fatais consequências). Se alguma vez será possível lograr a esperada vantagem da detecção precoce de casos, deveremos ter provas diagnósticas específicas e tratamentos seguros. Em contraste as propostas do DSM V leva à particularmente perigosa combinação de diagnósticos não específicos e inadequados, e a tratamentos não provados e danosos (FRANCES, 2010, p. 6).

A problemática do risco é a estratégia mais utilizada para legitimar a expansão de doenças mentais. Em esse marco podemos situar a afirmação de Frances pela qual a Síndrome de risco de psicose (posteriormente chamado Attenuated Psychosis Syndrome), provocaria uma alarmante taxa de falsos positivos, entre 70 a 75%, levando a centenas de milhares de adolescentes e jovens a receber, sem necessidade, a prescrição de antipsicóticos atípicos que causam efeitos colaterais sérios tais como: aumento de peso, impotência sexual e redução da expectativa de vida. De modo que, A prevenção da psicose seria uma ótima ideia, se realmente fosse possível fazê-lo, mas não há nenhuma razão para pensar que podemos. Ir além de nossa compreensão provavelmente afetará aqueles que esperávamos ajudar. O Risco de Psicose não deve ser usado como um diagnóstico clínico, pois será quase sempre errado. A estrada para o inferno está pavimentada de boas intenções e de más consequências não intencionais. Primeiro, n ão causar dano. (FRANCES, 2013c., p. 1)

De nada serve a resposta de que a Sindrome de Risco de Psicose foi, finalmente, excluído do DSM-5. Pois, além de ter sido ampliado o número de Transtornos considerados como Fator de Risco para patologias graves e irreversíveis como a Psicoses, a nova reestruturação do DSM-5 destaca, já na introdução, a importância da detecção precoce de um amplo conjunto de doenças psiquiátricas, que inclui a psicose (GREVET, 2007). Assim, no início do Manual podemos ler: Para melhorar a utilidade clínica, o DSM-5 foi organizado a partir de considerações sobre o desenvolvimento e o ciclo vital. Inicia-se com diagnósticos que, acredita-se refletem processos de desenvolvimento que se manifestam no início da vida (por exemplo, neurodesenvolvimento, espectro de esquizofrenia e outros transtornos psicóticos), seguido por diagnósticos que se manifestam na vida adulta. Uma abordagem semelhante foi seguida dentro de cada capítulo. Essa estrutura organizacional facilita as informações sobre o ciclo da vida como auxilio na tomada de decisão diagnóstica. (APA, 2013, p. 13).

34

Como podemos observar, não são somente os primeiros capítulos os que teriam início na infância e adolescência, vemos também que cada um dos capítulos que aparecem no Manual, começam fazendo referência aos transtornos que podem vir a ter seu início na infância. O Capitulo Transtornos Depresivos, por exemplo, inicia com “Transtorno disruptivo da desregulação de Humor”, que de acordo ao item Desenvolvimento e curso, deverá ter início antes dos 10 anos de idade. E o mesmo ocorre, como veremos, com os chamados Transtornos disruptivos da conduta. UM DIAGNÓSTICO UBUESCO: O TRANSTORNO DE OPOSIÇÃO DESAFIANTE. Se observarmos o capítulo denominado “Transtornos Disruptivos, de Controle de Impulsos e de Conduta”, veremos que o DSM-5 agrupa os seguintes transtornos apresentados em ordem de gravidade crescente: Transtorno de Oposição Desafiante (313.81 e F91.3); Transtorno explosivo intermitente (312.34); Transtorno de Conduta; Transtorno de Personalidade antissocial; Piromania e Cleptomania, além da onipresente categoria: “não especificado”. Afirma também que, devido à sua estreita associação com esse grupo, o Transtorno de Personalidade Anti-social (301.7) tem dupla listagem, neste capítulo e no capítulo “Transtornos de Personalidade”. Em relação ao TDAH, antes listado junto ao Transtorno Opositor e ao Transtorno de Conduta, o DSM-5 dirá que frequentemente é comôrbido com os transtornos disruptivos. A trajetória que articula esses transtornos, se apresenta da seguinte forma:

GATHRIGHT e TYLER, 2012

Como podemos observar a desaparição do agrupamento "Transtornos Geralmente diagnosticados pela primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência", está longe de ser uma boa notícia para aqueles que desejamos o 35

fim dos rótulos psiquiátricos na infância. O DSM-5 inaugura, a partir dos postulados defendidos pela psiquiatria do desenvolvimento, um processo pelo qual todo e qualquer transtorno mental deverá ser diagnosticado nos primeiros anos de vida. Trata-se de intervir nos Transtornos disruptivos, antes que alguma suposta patologia mental se cronifique, mas também antes que se consolide esse quadro tão temido chamado Transtorno de Personalidade Antissocial (301.7). Esse é o rótulo psiquiátrico mais utilizado para designar àqueles que “fracassam em ajustar-se a normas sociais relativas a comportamentos legais” (APA, 2013, p. 659). Isto é, sujeitos que apresentam comportamentos agressivos, violentos ou criminosos. É nesse campo intermediário entre o médico e o jurídico que devemos situar à sucessão de diagnósticos que compõem o grupo dos “Transtornos Disruptivos, do Controle de Impulsos e da Conduta”. Psiquiatria e direito se articulam nesse agrupamento de Transtornos, dando lugar ao que podemos caracterizar como o processo de configuração de uma infância perigosa. Em Os Anormais, Foucault analisa os discursos jurídicos com pretensão de verdade como sendo discursos “ubuescos” (FOUCAULT, 1999, p. 125). Isto é, discursos com pretensão de verdade, que podem parecer grotescos, que podem fazer rir, mas que de fato tem consequências trágicas. Pois é a partir desses discursos que se legitimam estratégias de poder que podem determinar, direta ou indiretamente, decisões sobre normalidade e patologia, sobre terapêuticas farmacológicas, enfim, decisões sobre a vida e o futuro das crianças classificadas nessa categoria. Um desses discursos Ubuescos, um desses discursos que fazem rir, mas que são, não entanto, trágicos, é o Transtorno de Oposição Desafiante- TOD, seu código no DSM-5 é 313.81, e no CID-9 F91.3, e integra o Capitulo dos Transtornos Disruptivos de Comportamento. O TOD se define por um tipo de “humor raivoso/irritável, de comportamento questionador/desafiante ou de índole vingativa com duração de pelo menos seis meses, evidenciado por pelo menos quatro sintomas de qualquer das categorias seguintes e exibido na interação com pelo menos um indivíduo que não seja o irmão”. 11 Para diagnosticar este Transtorno é necessário que exista pelo menos quatro dentre os oito sintomas que o Manual apresenta divididos em três grupos: Humor raivoso/irritável: (1) Com frequência perde a calma. (2) Com frequência é sensível ou facilmente incomodado. (3) Com frequência é raivoso e ressentido. Comportamento Questionador/ Desafiante (4) Frequentemente questiona figuras de autoridade ou, no caso de crianças e adolescentes, adultos. No DSM-IV: “Padrão recorrente de comportamento desafiante, desobediente e hostil, iniciado na infância e adolescência e de intensidade suficiente para causar prejuízo no funcionamento global da criança e adolescente”. (APA, 1994) 11

36

(5) Frequentemente desafia acintosamente ou se recusa a obedecer a regras ou pedidos de figuras de autoridade. (6) Frequentemente incomoda deliberadamente outras pessoas. (7) Frequentemente culpa a outros por seus erros ou mau comportamento. Índole vingativa: (8) Foi malvado ou vingativo pelo menos duas vezes nos últimos seis meses. (APA, 2013, p. 462) Além da fragilidade e ambiguidade desses sintomas ubuescos, o DSM-5 acrescenta uma nota, particularmente significativa, onde explica que para realizar o diagnóstico, os comportamentos não precisam estar exclusivamente associados ao sofrimento dos indivíduos diagnosticados. A nota introduz um novo elemento. Dirá que, para fazer o diagnóstico deve considerar-se o sofrimento que esses comportamentos produzem “para os outros em seu contexto social imediato (família, pares, escola, colegas)”, e também se esses comportamentos produzem algum tipo de “impacto negativo no funcionamento social, educacional ou profissional do indivíduo” (APA, 2013, p. 463). De modo que o sofrimento da criança pode deixar de ser a referência central, passando a ter relevância para o diagnóstico, os efeitos que provoca essa criança no funcionamento da escola ou a família. Abre-se assim a porta à medicalização de comportamentos comuns na infância. O DSM-5 apresenta outras especificações para o diagnóstico TOD. No item Desenvolvimento e curso podemos ler que os primeiros sintomas surgem na idade pré-escolar, antes dos 5 anos. Em relação ao item Curso, afirma que geralmente este transtorno aparece como indicador de risco para um transtorno mais grave, o Transtorno de conduta (TC), que inclui agressões a pessoas e animais. Afirma também que “crianças e adolescentes com TOD, estão sob risco aumentado para uma série de problemas de adaptação na idade adulta, incluindo comportamento antissocial, problemas de controle de impulsos, abuso de substancias, ansiedade e depressão”. (APA, 2013, p. 464). Surge, então, uma pergunta inevitável sobre esse diagnóstico ambíguo associado a um prognóstico dramático na vida adulta. A pergunta é se existe algum marcador neurobiológico, alguma alteração cerebral que permita indicar que esse conjunto de comportamentos próprios da infância pode passar a ser visto como indicador de uma patologia psiquiátrica. O DSM-5 dará a resposta quando sustenta no Item Fatores de risco que: “uma série de marcadores neurobiológicos, como, menor reactividade da frequência cardíaca e da condutância da pele, reatividade do cortisol basal reduzida, anormalidades no córtex pré-frontal e na amigdala foram associadas ao TOD”. Porem imediatamente deverá afirmar que: “não está claro se existem marcadores específicos para o Transtorno de oposição desafiante” (APA, 2013, p. 465). Se, por um momento, saimos do DSM-5 e analisamos a produção brasileira dedicada a esta questão podemos tomar como referencia um texto publicado 37

na Revista Brasileira de Psiquiatria em 2004. O artigo “Transtorno desafiador de oposição: uma revisão de correlatos neurobiológicos e ambientais” (Pinheiros e Mattos, 2004) fazem uma revisão da produção dedicada ao TOD. O estudo propõe analisar as evidências existentes no que se refere aos correlatos neurobiológicos, de funcionamento familiar e escolar, comorbidades, prognóstico e tratamento, diferenciando o TOD do TDHA (Transtorno De Hiperatividade e Desatenção) e TC (transtorno do Comportamento). Referindo-se especificamente aos estudos revisados que se ocuparam de estabelecer marcadores ou correlatos neurobiológicos, dirá que nenhum apresenta resultados conclusivos. Analisam-se estudos dedicados a definir a causa do TOD por diferentes vias: por identificação de Hormônios e neurotransmissores, o uso de eletroencefalografia, estudos para identificar marcadores genéticos, dentre outros. Porém, se conclui que nenhum desses estudos é conclusivo. Em relação a estudos cognitivos realizados com crianças com TOD e Controles Normais, dirá que ainda que se evidenciou maior dificuldade de aprendizagem em crianças com TOD, essa diferença não pode ser considerada significativa. No entanto, nenhum desses fracassos foram considerados pelos pesquisadores como indicação de que se trata de um diagnóstico mal definido ou de uma patologia inexistente. Afirma-se, pelo contrário, que tais estudos darão resultados positivos em algum remoto e imaginário futuro. Assim, e dada a inexistência de fatores genéticos, fisiológicos ou neurobiológicos, isto é, perante a impossibilidade de contar com estudos de imagem cerebral, análises de sangue ou qualquer tipo de marcador neurobiológico, será necessário integrar outros elementos. Seria desejável tentar entender se essas reações de raiva ou desafio, não são mais que um simples modo encontrado pela criança para expressar seu sofrimento, utilizando estratégias lúdicas para escutar o que ele tem a dizer. No entanto, para definir esse diagnóstico ambíguo e pouco consistente que é o TOD, o DSM-5 desconsidera explicitamente os relatos das crianças quando afirma: “Geralmente os indivíduos com esse transtorno não se consideram raivosos, opositores os desafiadores. Em vez disso, costumam justificar seus comportamentos como uma resposta a exigências ou circunstancias despropositadas” (APA, 2013, p. 463). Acrescenta que são poucas as contribuições que a criança pode dar para definir o diagnóstico, de modo que, uma vez mais, encontramos a máxima kraepelininana que leva a silenciar a narrativa dos pacientes. Nenhuma dessas alternativas é considerada quando se trata de definir o diagnóstico de acordo ao DSM-5. O Manual apresenta só uma estratégia que se limita a contar a frequência e persistência de quatro dos sintomas acima assinalados, por um período de seis meses. Essa é a única estratégia para “fazer a distinção entre um comportamento dentro dos limites normais e um comportamento sintomático”. O DSM-5 acrescenta que “outros fatores devem ser considerados, tais como se a frequência e a intensidade dos comportamentos estão fora de uma faixa normativa para o nível de desenvolvimento, o género e 38

a cultura do indivíduo” (APA, 2013, p. 463). Trata-se de contar a frequência de aparição dos sintomas, de calcular o desvio que a criança apresenta em relação à média ou padrão da mesma idade. Essas informações quantitativas ambíguas complementam-se com a referência a outros Fatores de risco e prognóstico que o Manual denomina ambientais. Dentre eles aponta: Práticas agressivas, inconsistentes ou negligentes de criação dos filhos, pois, “essa história parental ocupa um papel importante nas teorias causais do diagnóstico” (APA, 2013, p. 463). De modo que para estabelecer o diagnóstico psiquiátrico para uma patologia cuja causa biológica se dará como suposta, sem ter sido identificada, o DSM recorre a duas estratégias: contar sintomas, e avaliar o histórico parental da criança, isto é identificar fatores ambientais. Esses fatores ambientais são: (GOODMAN e SCOTT, 2012) x x x x

Nível socioeconômico baixo. História parental de psicopatologia: Criminalidade parental Características de cuidado parental: Hostilidade, pouco carinho, pouca supervisão, regras e disciplina inconsistentes.

Observando esses fatores, parece inevitável destacar o lugar que ocupam a pobreza e a criminalidade parental. A psiquiatria abre as portas, assim, para avaliações carregadas de um forte e indesejável determinismo social. Este, repetindo a lógica das profecias auto realizadas, acabará por diagnosticar com maior frequência os transtornos de comportamento em famílias pobres, ou em crianças com familiares em conflito com a lei. Esse discurso se repete em diversos artigos académicos, assim no artigo já mencionado (PINHEIROS e MATTOS, 2004), onde, em relação aos Aspectos Familiares achamos uma explicitação mais detalhada, que reproduz os mesmos preconceitos de classe e as mesmas marcas de determinismo social. Os autores afirmam: Em um estudo comparando pacientes com TDAH com e sem TOD, (Kadesjo et al) encontraram que ter pais divorciados e mãe com baixo nível socioeconômico era mais comum no grupo comórbido. Outro estudo (Frick et al) demonstra que as crianças com TOD distinguiram-se dos controles clínicos por seus pais terem uma maior prevalência de transtorno de personalidade antissocial e de transtorno por abuso de substâncias” (PINHEIROS e MATTOS, 2004)

Nenhuma novidade até aqui, só a repetição dos clássicos preconceitos de classe apresentados sob a forma de estudos científicos. Pois, como determinar cientificamente a importância da escolaridade da mãe, ou do nível socioeconómico da família, se de fato não temos mais que uma definição ambígua, uma lista de comportamentos que provocam incomodo nos locais de convívio da

39

criança? Desconsiderando que esse pode ser o único recurso simbólico disponíveis para que a criança manifeste sua insatisfação, medo ou sofrimento. É preciso analisar cuidadosamente o papel que ocupa a pobreza nesse discurso. Certamente a pobreza não ocupa aqui um lugar análogo àquele ocupado pelos fatores ambientais nas doenças transmissíveis como cólera, lepra ou tuberculoses. Conhecemos a história natural dessas doenças e sabemos o impacto que a pobreza pode ter na proliferação das mesmas. Certamente não é desse modelo que fala o DSM-5 quando afirma que pobreza ou criminalidade parental podem ser fatores causais ambientais de comportamentos desafiadores ou opositores. Neste último caso a incorporação do fator pobreza como causa de uma suposta patologia só pode vir a reforçar os estigmas de classe e a exclusão social de crianças cujos comportamentos, como bem soube mostrar Pierre Bourdieu, não se ajustam aos padrões desejados. Pelo simples fato de que essas crianças não contam com o capital social ou cultural que as instituições escolares esperam e desejam encontrar em seus alunos. O TOD E A TERAPÊUTICA FARMACOLÓGICA Resta analisar a terapêutica proposta para o TOD. Para isso devemos lembrar que, de acordo ao DSM-5: não é possível identificar nenhum mecanismo neurobiológico específico; não é possível definir causas sociais ou ambientais determinantes; que o TOD não se refere exclusivamente ao sofrimento da criança, mas também aos problemas que elas causam para a família, escola, colegas; que sua identificação ocorre pela estratégia de contar a frequência e intensidade de aparição dos sintomas. Sabemos também que não existe nenhum espaço para uma escuta atenta que permita entender as razões que levam à criança a: manifestar descontento; se opor aos mandados externos; perder a calma; a questionar as figuras de autoridade. Todos esses comportamentos considerados sintomas do TOD. Perante tantas incógnitas existe uma única certeza definida no item Desenvolvimento e curso: “TOD é um dos maiores precursores de Psicopatologia na vida adulta. Indivíduos com história de TOD e TC têm maior probabilidade de apresentar prejuízo social quando adultos, ter menos qualificação profissional, menos estabilidade laboral e divórcio” (APA, 2013:464). Isto é, de acordo ao DSM-5, existe uma trajetória para os Transtornos Disruptivos que leva até a Personalidade Antissocial. Essa trajetória se apresenta como sendo uma marcha inexorável:

40

Behavior Disorders

*Progression from Conduct Disorder to Anti-Social Personality Disorder is more likely when Symptoms are Severe and with Childhood Onset

Behavior Disorders. GATHRIGHT e TYLER, 2014

Como já foi dito os Transtornos Disruptivos de Comportamento, não se explicam por causas neurobiológicas, nem socioambientais, nem psicológicas, mas sim por uma suposta trajetória futura que inclui fracasso laboral e pessoal, patologias mentais irreversíveis, assim com supostos atos de delinquência ou criminalidade na vida adulta. E será em função desse duvidoso prognóstico, apresentado sob a forma de uma verdade cientificamente estabelecida, que se defende uma intervenção terapêutica unificada. Existem dois tipos de proposta terapêutica para os transtornos disruptivos de comportamento, elas podem ou não estar associadas. Por um lado, propõese a intervenção comportamental, isto é, abordagem familiar denominada manejo parental associada à Terapia Cognitivo Comportamental (TCC). Por outra parte, propõe-se o tratamento farmacológico, dando prioridade aos Antipsicóticos atípicos, como a Risperidona. Dependendo do padrão de comorbidades serão acrescentas as seguintes medicações: com ansiedade e depressão, A Risperidona se associará com os ISRS e para comorbidade com TDAH, psicoestimulantes como a Ritalina (RIGAU-RATERA, 2006). São bem conhecidos os efeitos adversos dos antipsicóticos. Como afirma Pignarre, todo o esforço que a indústria farmacêutica dedicou, nos últimos 50 anos, aos psicofármacos em geral e aos antipsicoticos em particular, parece reduzir-se a achar um medicamento com menos efeitos colaterais que o existente no mercado. No caso da medicação a ser prescrita para uma criança com TOD, a terapêutica considerada mais eficaz será um psicofármaco controvertido, potente e com diversos efeitos adversos muito bem conhecidos como a Risperidona (MOYNIHAN e CASSELS, 2006). Lembremos que os antipsicóticos atípicos podem causar aumento de peso e alterar o metabolismo, aumentando o risco de 41

diabetes. Podem causar efeitos secundários relacionados com a motricidade como: rigidez, espasmos musculares persistentes, tremores e inquietação. Por fim que, vale lembrar que o uso prolongado de medicamentos antipsicóticos pode levar a uma condição chamada de discinesia tardia (DT), que impede que o indivíduo possa controlar os movimentos musculares, levando comumente à rigidez na boca. Em certos casos pode dar lugar também a uma síndrome chamada “Síndrome dos neurolépticos” que é uma reação adversa grave, associada a alterações do estado mental, rigidez muscular, hipertermia, alterações psicomotoras, sinais de instabilidade autonômica. Efeitos graves de uma terapêutica preconizada ainda que não exista nenhuma causa neurobiológica definida. PARA CONCLUIR Em seu livro “Saving Normal”, Allen Frances afirma que o incremento das taxas de transtornos mentais na população ocorre de dois modos: (1) pela criação de novos diagnósticos que transformam em patológicos comportamentos comuns na sociedade, que a indústria farmacêutica se encarregará de popularizar (em nosso caso perder a clama, ficar com raiva, sentir-se incomodado, resistir aos mandados das autoridades ou adultos); e (2) estabelecendo um limiar de diagnóstico mais baixo para muitas patologias já existentes, como ocorre quando comportamentos comuns passam a ser vistos como fator de risco para uma doença mental irreversível, (FRANCES, 2010; 2013). Em esse marco devemos inscrivir a alteração aparentemente pouco significativa que se estabelece entre o DSM-IV e o DSM-5 em relação ao Transtorno de oposição e Desafio. Até 1994, no DSM-IV-TR, o TOD fazia parte dos “Transtornos Geralmente diagnosticados por primeira vez na primeira infância, infância ou adolescência", conjuntamente com outros muitos Transtornos. No DSM-IV, TOD e Transtorno de Conduta se excluíam, não pudendo existir concomitantemente. Pelo contrario, no DSM-5, o TOD e TC podem coexistir, e o TOD passa a ter um lugar privilegiado de marcador de risco para um conjunto de comportamentos considerados socialmente ameaçadores, comportamentos que ocupam um lugar intermediário entre o médico e o jurídico, associados aos Transtornos de Conduta e de Personalidade antissocial, tais como: violar os direitos dos outros, provocar danos físicos, ou danos na propriedade, delinquir, enganar e provocar graves violações às normas sociais. É verdade que essa dimenção supostamente performativa do TOD, que leva a supor que a criança com TOD será um adulto em conflito com a lei ou com comprometimento psiquiatrico grave, já estava presente em estudos sobre psiquiatria do desenvolvimento. Mas essa ambigua suposição foi integrada de maneira explicita ao DSM-5, no ano 2013, como tentamos mostar aqui.

42

Para concluir, gostaria de retomar o estudo antes referenciado (PINHEIROS e MATTOS, 2004). Vemos que, ainda que o artigo apresente uma sucessão de estudos inconclusivos, conclui com a definição do Tratamento preconizado. Repete, mais uma vez, a importância de articular tratamento farmacológico com Terapia comportamental e afirma que: O enfoque terapêutico deverá variar de acordo com a presença de comorbidades. Estimulantes e clonidina parecem ser efetivos nos sintomas de TDO comórbido com TDAH e o metilfenidato é capaz de induzir a remissão de TDO em uma grande proporção de pacientes de TDAH com TDO comórbido. Ácido valpróico, haloperidol, risperidona e lítio são provavelmente mais efetivos quando há instabilidade de humor observável. (PINHEIROS e MATTOS, 2004)

Vale destacar que no fim do artigo se explicitam os conflitos de interesse, indicando que o autor principal “participa do conselho consultivo de/ é portavoz de/ ou recebeu financiamento da Pfizer, Janssen-Cilag, Eli Lilly, Wyeth, Novartis, e GlaxoSmithKline” (PINHEIROS e MATTOS, 2004). Temos assim, mais um exemplo do modo como opera a indústria farmacêutica no incremento das taxas de transtornos mentais na população, neste caso transformando em patológicos comportamentos comuns na sociedade como perder a clama, ficar com raiva, sentir-se incomodado, resistir os mandados das autoridades ou aos adultos, que o DSM transformou em sintomas psiquiátricos, e que a indústria farmacêutica se encarregará de difundir e popularizar pela mediação do auxílio a pesquisadores, financiamentos de pesquisas, divulgação em congressos médicos, etc. Do dito até aqui vale ressaltar que a indústria farmacêutica ocupa só uma parte neste complexo tecido da psiquiatrização da infância. Pois, para que possa tornar-se aceitável e legitimo o recurso a fármacos com efeitos adversos graves, como ocorre com os antipsicoticos atípicos, foi preciso que inicialmente, as categorias propostas pelo DSM cheguem a conquistar respeitabilidade, aceitação e reconhecimento como discurso cientifico. Um discurso que, no entanto, e como tentamos mostrar, está perpassado por uma severa fragilidade epistemológica. Sua validação não ocorre como na medicina geral (FOUCAULT, 1987; 2003), por marcadores biológicos ou neurobiológicos, mas sim por referencias vagas a contextos familiares e sociais, ou por referência a duvidosos estudos de risco. Estatísticas pouco consistentes que falam de uma suposta trajetória patológica, pela qual às crianças com TOD estariam destinadas a ter uma vida de fracassos, delinquência ou loucura na vida adulta, caso não seja aceita a terapêutica preconizada.

43

REFERÊNCIAS APA- AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Fifth Edition (DSM-V). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013. APA- AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition (DSM-III). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 1980. APA- AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, Third Edition (DSM-IV-TR). Arlington, VA: American Psychiatric Association, 1994. BRAUNSTEIN, A. Classificar em Psiquiatria. México: Siglo XXI, 2013. CALIMAN, L.V. A constituição sócio-médica do “fato TDAH”. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, vol. 21, n. 1, 2009, p. 135-144. CAMARGO Jr, K. et al. A subjetividade como anomalia: contribuições epistemológicas para a crítica do modelo biomédico. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, vol. 16, n. 4, 2006, p. 1093-1103, CASTIEL, L. A Saúde Persecutória e os limites da responsabilidade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. CAPONI, S. Loucos e degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada. Rio de Janeiro: Fiocruz, Rio de Janeiro, 2014. CONRAD, P. The Medicalization of Society. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2007. DUNKER, C.; NETO, F. A crítica psicanalítica do DSM-IV – breve história do casamento psicopatológico entre psicanálise e psiquiatria. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, vol. 14, n. 4, dez. 2011, p. 611-626 FRANCES, A. Opening Pandoras Box: The 19 Worst Suggestions For DSM5. Rev.Psychiatric Times, vol. 1, n. 1, February 11, 2010. FRANCES, A. Saving Normal: an insider's revolt against out-of-control psychiatric diagnosis, DSM-V, bg pharma, and the medicalization of ordinary life. New-York: Harper Collins Publisher, 2013a. FRANCES, A. DSM-5 continues to ignore criticism from petitioners. 2012. Disponível em: FRANCES, A. Psychosis risk syndrome is back to haunt us. Post Science. 2013b. Disponível em: FRANCES, A. DSM-V writing mistakes will cause great confusion. Post Science. 2013c. Disponível em: . FRANCES, A. DSM in philosophyland: curiouser and curiouser. In: PARIS, J.; PHILLIPS, J. (Eds.). Making the DSM-V concepts and controversies. New York: Springer, 2013d. p. 95104. FOUCAULT, M. História de la Sexualidad I: la voluntad de saber. México: Siglo XXI, 1978. FOUCAULT, M. El nacimiento de la clínica. México: Siglo XXI, 1987. FOUCAULT, M. Il faut defendre la societe. Paris: Gallimard, 1997.

44

FOUCAULT, M. Le pouvoir psiquiatrique. Paris. Gallimard.2003. FOUCAULT, M. Les anormaux. Paris: Gallimard, 1999. FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2005. FOUCAULT, M. Securité, territoire, population. Paris: Gallimard, 2004. GATHRIGHT, M. &TYLER.D. Disruptive Behaviors in Children and Adolescents. Psiquiatric Research institute: University of Arkansas. 2012. GREVET, E., SALGADO, C et al. Transtorno de oposição e desafio e Transtorno de conduta: os desfechos no TDAH em adultos. J. Bras. Psiquiatr, vol. 56, supl 1, 2007, p. 34-38. GOODMAN & SCOTT. Child and Adolescent Psychiatry: Wiley-Blackwell. 2012 HACKING, I. Making up people. London Review of Books. London, vol. 28, n. 16, 2006, p. 23-26. HACKING, I. Lost in the forest. London Review of Books. London, vol. 35, n. 15, 2013, p. 79. HORWITZ, A. Creating mental illness. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. HORWITZ, A.; WAKEFIELD, J. The loss of sadness. Oxford: Oxford University Press, 2007. HORWITZ, A.; WHOOLEY, O. The paradox of professional success: grand ambition, furious resistance, and the derailment of the DSM-V revision process. In: PARIS, J.; PHILLIPS, J. (Eds.). Making the DSM-V concepts and controversies. New York: Springer, 2013. p. 75-94. INSEL, T. Transforming diagnosis. 2013. Disponível em: . MOYNIHAN, R.; CASSELS, A. Medicamentos que nos enferman: la industria farmacéutica que nos convierte en pacientes. Barcelona: Contrapunto, 2006. PARIS, J.; PHILLIPS, J. (Eds.). Making the DSM-V concepts and controversies. New York: Springer, 2013. PAS ZERO DE CONDUIT. Disponível em: http://www.pasde0deconduite.org/. Acessado em: 12 dezs 2013. PINHEIRO, M.; MATTOS, P. et al. Transtorno desafiador de oposição: uma revisão de correlatos neurobiológicos e ambientais, comorbidades, tratamento e prognóstico. Rev. Bras. Psiquiatr. vol.26, n.4, São Paulo Dec. 2004, p.273-277. Acessado em 7/4/2016. Em: http://dx.doi.org/10.1590/ S1516-44462004000400013. PIGNARRE, P. Les malheurs des psys: psychotropes et médicalisation du social. Paris: La Découverte, 2006. RIGAU-RATERA, E; GARCÍA-NONELL, C; ARTIGAS-PALLARÉS, J. Tratamiento del trastorno de oposición desafiante. Rev Neurologia, vol. 42 (Supl 2), 2006, p.83-88. ROUDINESCO, E. Por qué el psicoanálisis? Buenos Aires: Paidós, 2013. SADLER, J. Waiting for the miracle. In: PHILLIPS, J. (Ed.). Bulletin of the Association for the Advancement of Philosophy and Psychiatry, vol. 17, n. 1, 2010. SADLER, J. Considering the economy of DSM alternatives. In: PARIS, J.; PHILLIPS, J. (Eds.). Making the DSM-V concepts and controversies. New York: Springer, 2013. p. 2138. STOP DSM. To oppose the DSM-V is not to oppose psychiatry. Disponível em: . Acesso em: 10 dez 2013.

45

Vigiar e medicar. Estratégias de medicalização da infância ̹ʹͲͳ͸ǡ†‹–‘”ƒ‹„‡””•–†ƒǤ 

‹”‡‹–‘•†‡‡†‹­ ‘”‡•‡”˜ƒ†‘• †‹–‘”ƒ‹„‡””•–†ƒ  ͻ͹ͺǦͺͷǦͻͶͷͻǦͲͲͷǦ͵  Editores ”ƒ•ƒ”‘•–ƒ‹ƒ ƒ—”‘ ƒ„‹ƒ‘†‡‘—œƒƒ”˜ƒŽŠ‘  Revisão Ortográfica •‘”‰ƒ‹œƒ†‘”ƒ• †‹–‘”ƒ‹„‡””•  Revisão técnica ‡•ƒ”‹ƒ  Editoração e capa ‹‘‡Žƒ—  Imagem da capa –‡”˜‡­ ‘•‘„”‡‡•–—†‘•†‡‡‘ƒ”†‘ƒ‹…‹  Impressão e acabamento

”žˆ‹…ƒ‘–‡”—†   ƒ†‘• –‡”ƒ…‹‘ƒ‹•†‡ƒ–ƒŽ‘‰ƒ­ ‘ƒ—„Ž‹…ƒ­ ‘Ȃ      ƒ’‘‹ǡƒ†”ƒȋ‘”‰ǡȌ  ʹͶͷ˜‹‰‹ƒ”‡‡†‹…ƒ”ǣ‡•–”ƒ–±‰‹ƒ•†‡‡†‹…ƒŽ‹œƒ­ ‘ƒ‹ˆŸ…‹ƒȀ  ƒ†”ƒƒ’‘‹ǡƒ”Àƒ ‡”ƒ†ƒž•“—‡œǡƒ”–ƒ‡”†‹ȋ‘”‰ƒ‹Ǧ  œƒ†‘”‡•ȌǦ ‘ƒ—Ž‘ǣ‹„‡””•ǡʹͲͳ͸Ǥ    ͻ͹ͺǦͺͷǦͻͶͷͻǦͲͲͷǦ͵    ͳǤ•‹“—‹ƒ–”‹ƒʹǤƒ–‘Ž‘‰‹ƒ‡–ƒŽȂ”‹ƒ­ƒ•͵Ǥ‡†‹…ƒ‡–‘• Ǥ À–—Ž‘     ͸ͳ͸Ǥͺͻ  ͸ͳ

 

‹„Ž‹‘–‡…ž”‹ƒ”‡•’‘•ž˜‡Ž‡—œƒƒ”…‡Ž‹‘†ƒ‹Ž˜ƒȂͺȀͺ͹ʹʹ  

‘†‘•‘•†‹”‡‹–‘•”‡•‡”˜ƒ†‘•Ǥ”‡’”‘†—­ ‘ǡƒ‹†ƒ“—‡’ƒ”…‹ƒŽǡ’‘”“—ƒŽ“—‡”‡‹‘ǡ †ƒ•’ž‰‹ƒ•“—‡…‘’Ù‡‡•–‡Ž‹˜”‘ǡ’ƒ”ƒ—•‘ ‘‹†‹˜‹†—ƒŽǡ‡•‘’ƒ”ƒˆ‹•†‹†ž–‹…‘•ǡ •‡ƒ—–‘”‹œƒ­ ‘‡•…”‹–ƒ†‘‡†‹–‘”ǡ±‹ŽÀ…‹–ƒ‡…‘•–‹–—‹—ƒ…‘–”ƒˆƒ­ ‘†ƒ‘•ƒ…—Ž–—”ƒǤ ‘‹ˆ‡‹–‘‘†‡’ו‹–‘Ž‡‰ƒŽǤ 

Editora LiberArs Ltda ™™™ǤŽ‹„‡”ƒ”•Ǥ…‘Ǥ„” …‘–ƒ–‘̷Ž‹„‡”ƒ”•Ǥ…‘Ǥ„”

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.