Vigilância à Saúde como modelo assistencial, no contexto da Saúde Indígena

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Vigilância da Saúde como Modelo Assistencial Clayton C. Coelho História É comum ouvirmos a expressão “vigilância da saúde”, porém nem sempre temos claro o real significado da mesma. A expressão nos leva, em princípio, à palavra vigiar – do latim vigilare – que significa observar atentamente, estar atento a, atentar em, estar de sentinela, procurar, campear, cuidar, precaver-se, acautelar-se (MONKEN & BATISTELLA, 2015). Historicamente, quando é trazida ao campo da saúde, a ‘vigilância’ está relacionada aos conceitos de saúde e doença, que podem variar com a época, o lugar e a cultura de cada momento, e às práticas de cuidado aos doentes e aos métodos utilizados para tentar impedir a propagação das doenças. A partir do século XVIII, na Europa, ocorrem as primeiras experiências que irão compor os elementos das atuais práticas da “vigilância da saúde”: a medicina de estado, na Alemanha; a medicina urbana, na França; e a medicina social, na Inglaterra (FOUCAULT, 1982). No século XIX, as pesquisas no campo das doenças infecciosas e a mibrobiologia, produziram novas medidas de controle, incluindo a vacinação, reformulando o controle de doenças e levando a uma reorganização dos serviços de saúde pública (BRASIL, 2005). Surge, conceito de “vigilância”, definido, inicialmente, como o papel de observar contatos de pacientes acometidos pelas, ditas ‘doenças pestilenciais’ (WALDMAN, 1998). A partir da década de 1960, o conceito de “vigilância da saúde” surge como a “observação contínua da distribuição e tendências da incidência de doenças mediante a coleta sistemática, consolidação e avaliação de informes de morbidade e mortalidade, assim como de outros dados relevantes, e a regular disseminação dessas informações a todos os que necessitam conhecê-la” (BRASIL, 2005). Este conceito de ‘vigilância’, ainda é muito utilizado, com base no registro, na análise e na disseminação de informações em saúde, deixando a decisão e a operacionalização de medidas apropriadas a cargo das autoridades sanitárias (WALDMAN, 1998). Em meados da mesma década, surge a proposta de se chamar este tipo de ‘vigilância’ de “vigilância epidemiológica” (RASKA, 1964). Ao final da década, em 1968, durante a 21ª Assembleia Mundial da Saúde, organizada pela Organização Mundial de Saúde - OMS, após ampla discussão sobre o conceito de ‘vigilância’ no campo da saúde pública, este toma uma compreensão mais ampla, sendo recomendada sua utilização não só em doenças infectocontagiosas, mas também para outros agravos à saúde (WALDMAN, 1998). Nas décadas de 1960 e 1970, no contexto da campanha para erradicação da varíola a ‘vigilância’ se espalha pelo mundo como um instrumento de organização dos serviços No Brasil, em 1975 foi organizado o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, com a implantação do Sistema de Notificação Compulsória de Doenças. Em 1976 foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária. Na década de 1990, tem início a utilização do conceito de vigilância ambiental, impulsionada pelo Projeto de Estruturação do Sistema Nacional de Vigilância em Saúde VIGISUS (BRASIL, 1998; EPSJV, 2002).

Ainda na década de 1990, com os avanços na discussão em torno da reorganização do sistema de ‘vigilância epidemiológica’, surge a proposta de ações em torno da ‘vigilância da saúde’, baseadas em três elementos que devem ser integrados (FREITAS & FREITAS, 2005; EPSJV, 2002): 1) a ‘vigilância’ de eventos sobre a saúde, como agravos e doenças, atribuído tradicionalmente à ‘vigilância epidemiológica’; 2) a ‘vigilância’ de perigos, como agentes químicos, físicos e biológicos que possam ocasionar doenças e agravos, papel comumente atribuído à ‘vigilância sanitária’; 3) a ‘vigilância’ de exposições, através do monitoramento da exposição de indivíduos ou grupos populacionais a um agente ambiental ou seus efeitos clinicamente ainda não aparentes (subclínicos ou pré-clínicos), este estruturando os elementos da ‘vigilância ambiental’. Esta divisão conceitual presente na institucionalização das ações de ‘vigilância’ (epidemiológica, sanitária e ambiental) vai além da prática diária, aparecendo também nas discussões teóricas sobre o assunto (MONKEN & BATISTELLA, 2015). Atualmente no Brasil ainda persistem diferentes conceitos para a noção de Vigilância da Saúde: 1) Como sinônimo de análise de situações de saúde: amplia o objeto da vigilância epidemiológica, englobando as doenças transmissíveis e não transmissíveis, porém não inclui ações de enfrentamento desses problemas. 2) Como uma integração institucional entre a ‘vigilância epidemiológica’ e a ‘vigilância sanitária’, de maneira administrativa e, em alguns casos, no fortalecimento das ações de ‘vigilância sanitária’ e na articulação com os centros de saúde. 3) Como uma forma de reorganização das práticas sanitárias, servindo de referência para a organização dos processos de trabalho em saúde a partir de ações para enfrentamento dos problemas que requerem atenção e acompanhamento contínuos. Tomando por base este terceiro conceito, as ações de saúde devem se dar em territórios delimitados, ao longo do processo saúde-doença, utilizando diferentes tecnologias (TEIXEIRA, PAIM & VILASBOAS, 1998). Nesta última concepção são revistos os sujeitos, os objetos, meios de trabalho e as formas de organização dos processos de trabalho envolvidos. Vigilância da Saúde atualmente Desde a Constituição de 1988, o sistema de saúde brasileiro vem buscando um modelo assistencial de responda de maneira eficaz aos problemas de saúde das diferentes populações, visto que, os dois modelos hegemônicos atuais – o médico-assistencial, centrado na assistência médica e no hospital, e o modelo sanitarista, baseado em campanhas, programas e em ações de ‘vigilância epidemiológica’ e ‘sanitária’ – não tem conseguido atender à complexidade e diversidade dos problemas de saúde que a população brasileira (TEIXEIRA, PAIM & VILASBOAS, 1998). Por conta disto, surge a ‘vigilância da saúde’, entendida como uma reorganização dos conhecimentos e práticas sanitárias, como um caminho para a integralidade, enquanto

diretriz do SUS. Tendo por base o conceito positivo do processo saúde-doença, o foco do objeto da saúde pública é mudado da doença para os estilos de vida das pessoas. A Vigilância em Saúde entendida como uma proposta de ação e uma área de práticas, propõe:      

Intervenções baseadas em problemas de saúde, requerendo atenção e acompanhamento contínuos; Utilização do conceito de risco; Articulação entre as ações de promoção, prevenção, assistência e de reabilitação; Atuação intersetorial Ação sobre o território Intervenção sob a forma de ações (PAIM & ALMEIDA FILHO, 2000)

Desta visão surge o Modelo Assistencial de Vigilância à Saúde ou Vigilância da Saúde – aqui considerados como sinônimos e que é o modelo a ser desenvolvido pelo Subsistema de saúde indígena (FUNASA, 2002). O Modelo de Vigilância da Saúde surge, portanto, como uma alternativa aos modelos hegemônicos (médico-assistencial e sanitarista campanhista), tendo como base, em um primeiro momento, as questões práticas do processo de trabalho (objetos, meios e atividades), valorizando os aspectos técnicos e sociais deste trabalho e, assim, levando em conta o simbolismo envolvido nas interações entre os profissionais (EMSI), entre estes e a população atendida, e dos profissionais e população com as instituições envolvidas. Do ponto de vista prático, muitas vezes é difícil “pensar a vigilância” enquanto ação, porém é fundamental para que consigamos, no cotidiano, executar este modelo assistencial desenvolver um “olhar de vigilância”. Para isto é importante compreendermos o conceito de “risco”, em geral e em situações específicas. Por exemplo, quando estamos pensando em assistência pré-natal, ouvirmos a palavra risco – “gestante de risco”, “gestação de alto risco”, “risco gestacional” – nestas situações, o conceito de risco empregado é o conceito básico da epidemiologia, entendido como a probabilidade de um indivíduo de uma população específica (as gestantes) desenvolver um problema/doença em um período de tempo (a gestação) (GUILAM, 1996). Neste caso vemos um exemplo tipo do “risco clínico”, que se relaciona com a causalidade entre a gestação e adoecimentos específicos, que é aplicado tanto a indivíduos, quanto a populações. O risco pode ainda ser entendido como contingência, quando o mesmo não se enquadra na relação causa efeito, em situações em que vários fatores estão envolvidos e não é possível determinar relação de causa/efeito (ALMEIDA FILHO & COUTINHO, 2007). Outro conceito fundamental, mais amplo que o conceito de risco, é o conceito de vulnerabilidade, que pode ser entendido como um grupo de fatores, que vão além do individual, incluindo situações coletivas, de contexto, que podem levar a uma suscetibilidade a doenças ou agravos, levando em conta, ainda, aspectos relacionados à presença ou a insuficiência de recursos destinados à proteção dos indivíduos (SÁNCHEZ & BERTOLOZZI, 2007). No cotidiano do trabalho de campo, especialmente quando trabalhamos com uma população dispersa geograficamente, para podermos concretizar o modelo de atenção à saúde proposto

na Política Nacional de Saúde Indígena (FUNASA, 2002) devemos tomar por base estes conceitos de risco e vulnerabilidade para, cotidianamente, estabelecermos quais comunidades devem ser visitadas, prioritariamente, em um período de escala de trabalho em área, assim como, em cada comunidade, quais indivíduos devem ser avaliados, de maneira sistemática em cada visita. Como exemplo de operacionalização da Vigilância da Saúde, podemos citar as “viagens de vigilância”, realizadas pela EMSI no Parque Indígena do Xingu. Estas viagens fazem parte das atividades de rotina sendo programadas com antecedência, antes de cada entrada dos profissionais em campo, com envolvimento de toda a EMSI, utilizando-se dados do sistema local de informação, levando-se em conta as situações individuais e coletivas de risco à saúde, assim como vulnerabilidades de contexto (mesmo que temporárias). Estes riscos e vulnerabilidades são fundamentais para definir quais indivíduos devem ser avaliados, quem deve avaliar e a periodicidade com o que isto deve ser feito. Assim, ao chegar em cada aldeia, a equipe já dispõe de uma programação de todos aqueles indivíduos que devem ser buscados ativamente e avaliados pela equipe, independente de possíveis queixas. Além disto, dedica-se parte do tempo para o atendimento à demanda espontânea, que sempre surge quando a equipe se encontra em uma aldeia. Os riscos já bem estabelecidos incluem as gestantes, os portadores de doenças crônicas não transmissíveis, as crianças pequenas, em especial as desnutridas. Podemos ainda trabalhar situações de contexto, que representam vulnerabilidades, ligadas à carência de alimentos (sazonal ou não), monetarização de relações de trabalho, consumo de álcool e drogas e a perda de cuidados tradicionais, que podem atuar como agravantes às situações referidas anteriormente, compondo uma grande área para atuação na promoção ã saúde. Para a efetivação de ações semelhantes, visando a concretização do modelo de vigilância da saúde preconizado na PNASPI, a informação em saúde e a epidemiologia são ferramentas fundamentais a serem incorporadas no cotidiano das EMSI.

Bibliografia

ALMEIDA-FILHO N, COUTINHO D. Causalidade, Contingência, Complexidade: o Futuro do Conceito de Risco. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):95-137, 2007 BRASIL. PROJETO VIGISUS – ESTRUTURAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE VIGILÂNCIA EM SAÚDE. Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 1998. 203P. BRASIL. Fundação Nacional de Saúde. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. - 2ª edição - Brasília: Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde, 2002. EPSJV. Laboratório de Educação Profissional em Vigilância em Saúde: projeto político pedagógico. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2002. (Termo de Referência para a Educação Profissional em Vigilância em Saúde) FOUCAULT, M. O nascimento da medicina social. In: FOUCAULT, M. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1982. FREITAS, M. B. & FREITAS, C. M. A vigilância da qualidade da água para consumo humano – desafios e perspectivas para o Sistema Único de Saúde. Ciência e Saúde Coletiva, 10(4): 9931004, out./dez., 2005. GUILAM MCR. O Conceito de Risco Sua utilização pela Epidemiologia, Engenharia e Ciências Sociais. Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/projetos/esterisco/ MONKEN M, BATISTELLA C, Vigilância em Saúde disponível in http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/vigsau.html consultado em 12/04/2015 PAIM, J. S. & ALMEIDA FILHO, N. de. A Crise da Saúde Pública e a Utopia da Saúde Coletiva. Salvador: Casa da Qualidade, 2000. SÁNCHEZ AIM, BERTOLOZZI MR. Pode o conceito de vulnerabilidade apoiar a construção do conhecimento em Saúde Coletiva? Ciência & Saúde Coletiva, 12(2):319-324, 2007 WALDMAN, E. A. Vigilância em Saúde Pública. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, 1998. v.7 (Série Saúde & Cidadania)

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