Vila Viçosa - Os materiais e os sistemas contrutivos tradicionais na região dos mármores

August 13, 2017 | Autor: M. Lopes Aleixo F... | Categoria: Heritage Conservation, Sustainable Construction, History of Construction, Building Materials
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Os materiais e os sistemas construtivos tradicionais na região dos mármores MARIA FERNANDES

(…) Em primeiro lugar, Tales pensou que a água era o princípio de todas as coisas. Heraclito de Éfeso (…) julgou que era o fogo; Demócrito e, com ele, seguindo-o, Epicuro (...). Porém a ciência dos pitagóricos acrescentou à água e ao fogo o ar e a terra (…) Como, pois todas as coisas parecem formar uma totalidade e ser originadas a partir destes elementos concordantes, coisas essas divididas pela natureza numa imensidade de géneros, julguei ser oportuno tratar acerca das variedades e diferenças do seu uso e das qualidades que cada uma delas poderá ter nos edifícios, de modo que, sendo conhecidas, os que projectam construir não caiam em erro, mas preparem para as construções os materiais convenientes a utilizar (…). Vitrúvio1

Desde a Antiguidade, os materiais tradicionais têm sido utilizados na construção, muitas vezes sem grandes alterações no que se refere ao seu processo de manufactura. As civilizações, ao longo da História, reconhecem-se pelo nível tecnológico empregue na utilização destes materiais e pelo grau de composição, criatividade e originalidade da construção e da arquitectura, (…) as variedades e diferenças do seu uso (…) de que nos fala Vitrúvio no seu tratado de arquitectura Decem Libri. Entre a continuidade material e a variedade construtiva, na designada região dos mármores em Portugal são abundantes os materiais, os sistemas construtivos tradicionais e tipos arquitectónicos. As (…) coisas divididas pela natureza (…) a que, mais uma vez, se referia Vitrúvio e que formam um todo a partir dos quatro elementos — água, ar, fogo e terra — estão na génese da arquitectura e da construção desta região, da qual o Paço Ducal de Vila Viçosa é o edifício síntese, onde quase tudo pode ser encontrado.

O mármore, as alvenarias e os aparelhos A rocha metamórfica, que está na origem de todas as matérias-primas desta zona, tem o seu expoente máximo no mármore, material pétreo, extremamente utilizado na construção local, e que confere a todo este território uma particularidade única. Essa qualidade, ainda hoje reconhecível, fez com que a região fosse apresentada no Inquérito à Arquitectura Popular, realizado pelo Sindicato dos Arquitectos entre 1955-1961, como (…) um gigantesco anfiteatro de face voltada para o Atlântico, até onde desce em largos planos, num jogo subtil, de vastas e suaves ondulações, que lhe dá horizontes recuados2. A zona referida3 é muito mais vasta que a designada região dos mármores, mas, no que respeita a materiais e sistemas de construção, ela rapidamente se transforma num vasto território onde as técnicas construtivas são comuns e a arquitectura, apesar das altera-

Traditional building materials and systems in the marble region Different civilizations in history can be distinguished by the technological skills used in building materials, as well as the composition, creativity and originality applied to the building industry and to architecture in general. The area known as the marble region abounds in traditional building materials, systems and architectural typologies. Marble is mostly used for masonry and coating purposes while lime is made by calcinating marble. Hand made solid brick is used for different size vault ceilings. Bricks, tiles and tile fragments for pavements used to be made by artisans. Earthen architecture used mostly ramned earth in forts, public buildings and in vernacular architecture. Walls made from ramned earth were found on the ground floor of the Ducal Palace of Vila Viçosa in the 1990s. Vernacular architecture in the region comprises urban two-storey houses with a chimney on the façade, one-storey houses, the so called montes and the Juromenha houses, all in ramned earth.

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1 | Vila Viçosa, Paço Ducal, vista da empena lateral exterior. Observe-se a fachada em alvenaria de pedra mármore aparelhada adossada à parede, de suporte desconhecido.

ções recentes, identifica ainda o designado Alentejo interior. O corte, desbaste e arte do talhe da pedra, hoje reduzidos à extracção e transformação mecanizada e industrial, foram, durante décadas, ofícios da construção que, actualmente, só alguns mestres dominam e esporadicamente executam. O mármore que se encontra nos monumentos e na arquitectura local foi inicialmente retirado do material solto à superfície do solo — produto da meteorização dos maciços. Mais tarde, os blocos acabaram por ser extraídos de jazidas superficiais das quais, embora desligados, só se destacavam com o auxílio de cunhas em madeira e água4. A este processo seguiu-se outro, que durou praticamente até aos nossos dias: os blocos eram forçados a separarem-se dos maciços devido à aplicação de forças com instrumentos em ferro e bronze — o escopo, a marreta e as alavancas. No entanto, a necessidade de extrair blocos mais rapidamente e controlar a dimensão dos mesmos levou, com graves consequências futuras para o material pétreo, à utilização de explosivos e perfuradores de percussão5. Hoje o sistema mais usado é o fio helicoidal, um cabo de fios torcidos e ponta de diamante, que corta os blocos na pedreira em dimensões pretendidas para posterior transformação. A escolha do material na pedreira obedecia a determinados requisitos, independentemente de se desejarem blocos irregulares ou talhados. O leito era

analisado e só posteriormente se procedia ao desbaste dos blocos, ou seja, à remoção da casca ou de partes alteradas que pudessem inviabilizar a sua aderência às argamassas. As bancadas na jazida eram separadas consoante a espessura em (…) pedras de alto (superior a 35 cm), médio (entre os 0 e 35 cm) ou baixo aparelho (menor de 0 cm) (…)6. As primeiras destinavam-se a arquitraves, tambores de colunas e embasamento; as segundas e terceiras a arcos, abóbadas, degraus e cantaria em geral; e, finalmente, as de menor dimensão eram reservadas para fundações e para a elevação de alvenaria ordinária7. Os blocos irregulares e de menores dimensões usados na alvenaria ordinária quase não eram trabalhados, enquanto os restantes eram sujeitos, genericamente, a três acções: desbaste e regularização da superfície; traço; corte e acabamento8. O talhe da pedra era, na sua maioria, executado na pedreira, enquanto o talhe fino, ou acabamento, era realizado em estaleiro, na obra. Resumidamente, começava-se pela preparação das superfícies de trabalho, ou seja, pela definição de uma das faces do bloco, a que se seguia o desempeno dos paramentos e a abertura de golpes de aresta com martelo, escopro e cinzel. Definidos os limites, e com o auxílio de duas réguas, passavase ao desbaste do material excedentário, sempre guiado pela marcação. Chamava-se a esta operação o bornear do bloco. Terminado o desbaste de uma das superfícies, ou de todas, era finalmente desenhado o esboço da peça à escala natural, geralmente traçado sobre uma parede regular. A partir deste desenho construíam-se os moldes, cérceas e escantilhões em madeira, chapa de zinco e, por vezes, cartão. Os moldes à escala natural eram aplicados sobre o bloco e passava-se ao lavrar da pedra com ponteiro, pico e picola, consoante o grau de precisão. Obtido o volume, o bloco era sujeito ao acabamento, que incluía a eventual abertura de entalhes de ligação, cavidades ou saliências, destinadas a acessórios, regularização da superfície das juntas e textura dos paramentos visíveis9. Os instrumentos para esta última operação variavam consoante a dureza das pedras. Para

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2 | Estremoz, corte de bloco em mármore com fio helicoidal.

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3 | Estremoz, mestre Primo a executar trabalho de cantaria em mármore, hoje quase um exclusivo da arte funerária.

acabamentos considerados rústicos eram utilizados a escoda e a bujarda, para um grau mais elevado a picola, depois a escoda e, finalmente, o rebote. Esta última operação era muitas vezes executada já em construção e, se tal não sucedesse, era sempre aperfeiçoada após a elevação da alvenaria. O amaciado era o último grau de acabamento, efectuado à custa de um sistema abrasivo de superfície que a deixava lisa, sem as marcas dos cinzéis. O mais vulgar dos acabamentos era o brunido, que se obtinha passando a superfície com um pedaço de grés silicioso em forma de boneca, a pedra de brunir10. Para além da escolha e do corte do bloco, a peça era analisada do ponto de vista da estrutura dos minerais da rocha, para que o seu desempenho na construção fosse o mais eficaz e, sobretudo, para que não contrariasse a natureza da rocha. A maioria destes volumes trabalhava à compressão e o efeito de uma força sobre uma rocha de facto varia em função da natureza da mesma, da intensidade da pressão aplicada e da orientação das fissuras em relação à direcção das tensões. (…) Numa situação de compressão simples, há a considerar dois tipos de reacção (…) assim as tensões aplicadas de compressão simples aplicadas perpendicularmente ao alongamento das fissuras conduzem ao seu fecho (…) em contrapartida, quando a rocha é submetida a tensões de tracção, os lábios das fissuras afastam-se11 (…). As alvenarias existentes na região são na sua maioria argamassadas, sendo extremamente raros os casos de alvenaria seca. Os aparelhos mais vulgares são: o regular, à face ou em perpianhos, por vezes designados apenas de alvenaria aparelhada, comum apenas nos edifícios excepcionais, como palácios ou igrejas e, mesmo assim, em pormenores ou numa fachada apenas, caso do Paço Ducal; e o aparelho rústico, ou alvenaria ordinária, este sim mais vulgar e quase sempre rebocado. Para a execução de uma alvenaria aparelhada os planos de assentamento eram previamente regularizados com pó de pedra ou areia e, nalguns casos, para conseguir o contacto perfeito entre os blocos, a superfície de contacto era esfregada com ervas, pó de tijolo ou carvão. O bloco superior era então colocado a seco sobre o inferior (…) e verificada a verticalidade do paramento com um fio-de-prumo e a horizontalidade das juntas com um nível (…) dispor uma camada de argamassa no sobreleito do bloco subjacente bater o bloco a assentar com o cabo da colher, de modo a que se apoie em

todo o seu leito na argamassa uniformemente distribuída sobre os blocos inferiores e arrasar os sobreleitos com golpes de ponteiro (…)12. Só então se procedia à selagem das juntas verticais com argamassa e, nos casos em que calços ou cordas fossem utilizados para auxílio da colocação de blocos, procedia-se à fichagem e/ou colagem das juntas verticais e horizontais13. Como anteriormente foi referido, ao concluírem-se estas operações de construção, propriamente ditas, seguiam-se as de execução dos detalhes decorativos. As alvenarias ordinárias — ou, como se designam no Alentejo, em pedra argamassada, e, no Norte e Centro, em pedra bugalhada — eram construídas com pedras irregulares e obedeciam cumulativamente às regras construtivas da alvenaria seca (sem argamassa) e da alvenaria aparelhada. Inicialmente, os blocos eram molhados, de forma a não absorverem a água da argamassa de assentamento, em seguida estes eram escolhidos de acordo com a melhor disposição para travarem a alvenaria: na perpendicular e em toda a espessura da parede, o perpianho; na horizontal e à face, a soga; e, finalmente, o tição, no enchimento. Considerava-se que uma alvenaria argamassada era bem executada quando respeitava as regras de arrumação e travamento da alvenaria seca, atrás descritas. A parede inicia-se com a fundação: neste tipo ela é construída na mesma alvenaria, só que ligeiramente mais larga do que a espessura da restante parede. Ao enchimento dos caboucos seguia-se o elegimento, que consistia no assentamento de pedras, espaçadas, de largura inferior à grossura da parede e dispostas de modo a sobre elas se marcar o alinhamento das fachadas. Estas mestras constituiam a base para assentar a primeira fiada que servia de soco à construção e soleiras. Fixado o elegimento marcavam-se os vãos, com riscador sobre as pedras ou espalhando uma porção de argamassa sobre a qual, com uma régua, o pedreiro riscava com uma colher. Começava-se então a elevar a parede. Se esta tivesse dois paramentos eram necessários dois pedreiros em lados opostos, afim de conservarem desempenadas as duas superfícies verticais. O assentamento era feito sobre camada de argamassa, em fiadas grosseiramente niveladas, seguindo planos inclinados e o preenchimento dos vazios com os blocos mais pequenos e escacilhos. Os pedreiros dispunham de umas (…) fasquias verticais, marcando o destorcimento da parede, sobre as quais pregavam 4 | Borba, Fonte Soeiro, muro de vedação em alvenaria ordinária em mármore.

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umas cruzetas em que marcavam a espessura do muro, por meio de uns entalhes ou pequenos pregos; seguindo estas marcas e ao longo da parede estendem-se cordéis (…)14. Os pedreiros iam construindo a parede, deixando na face um ou dois centímetros de folga no cordel para contar com a espessura do reboco. Vulgar nesta região era o uso de travar estas alvenarias nos cunhais com pedra aparelhada (às vezes aparelhada apenas à face) e construir os vãos recorrendo ao uso de peças ortogonais em mármore maciço, como ombreiras, soleiras, peitoris e padieiras (vergas no Sul). Na verdade, e se quisermos em síntese caracterizar em termos construtivos as alvenarias desta região, diríamos que são em pedra argamassada e rebocada, travadas nos cunhais e frisos com alvenaria aparelhada em mármore e pequenos apontamentos no mesmo material em vãos e outros elementos. O facto das paredes serem, como já se disse, rebocadas, levou à descoberta de outras alvenarias, não em pedra, mas sim em taipa e, por vezes, parcialmente em tijolo maciço, mas sempre com fundações e socos em alvenaria de pedra.

A cal de mármore e os rebocos A cal nesta região é obtida através da calcinação da pedra mármore, a cerca de 900ºC. Fornos de cal a lenha, do tipo semi-escavados no solo com a câmara de fogo em baixo e no centro, proliferavam em Elvas, Estremoz, Vila Viçosa, Borba, Alandroal e em quase todas as freguesias dos concelhos. Hoje resistem 5 | Borba, Barro Branco, cal viva branca.

6 | Barro Branco, cal parda ou preta viva.

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apenas dois em Barro Branco (Montes Claros, Borba). As designações cal branca e cal preta, ou parda, denominam dois tipos de cal diferentes e que sempre se produziram na região. A primeira é produzida a partir do mármore a cerca de 900ºC, para uso em caiação e em estuques; a segunda, a partir de calcário e a cerca de 400º a 500ºC, para utilização em argamassas e rebocos. O forno produz estes dois tipos de cal em simultâneo, tirando partido das diferentes temperaturas que se atingem no seu interior. Os mestres de Barro Branco procedem inicialmente ao trabalho de acatar a pedra, ou seja, comprar os desperdícios de mármore nas pedreiras da Vigária, em Bencatel (Vila Viçosa), (…) porque nem toda a pedra serve para cal (…), e apará-la ou cortá-la para enfornar. Esta operação consiste em construir, no interior do forno, uma cúpula parabólica em pedra de mármore, utilizando para o seu carrego pedras calcárias de menor dimensão, que dão origem à cal parda, ou preta. O calcário é praticamente removido à superfície do solo, na zona dos fornos, e não carece de transporte ou escolha particular, como o mármore. O arranque da cúpula processa-se, então, a partir das paredes do forno em apoio ligeiramente saliente e junto à sua base. Sob este arranque situa-se a câmara de fogo, que será alimentada com lenha e material vegetal seco durante, pelo menos, uma noite. A cúpula é elevada à fiada, em alvenaria seca de pedra mármore, onde a perícia e o conhecimento do mestre na disposição e travamento das pedras são decisivos para o seu funcionamento. O enchimento do seu interior em lenha e pasto seco, que irá funcionar durante 7 | Barro Branco, forno de cal do mestre Festas, vista inferior da câmara de fogo.

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8 | Barro Branco, colocação de pedra mármore e calcária no interior do forno de cal (enfornar).

9 | Barro Branco, disposição no interior do forno, antes da queima, da pedra mármore branca e da pedra calcária escura.

o período de cozedura do combustível, é realizado em simultâneo. A câmara de fogo funciona na base do forno e tem a sua boca, ou abertura, na parede exterior, também construída em mármore. O posicionamento das pequenas pedras calcárias junto às paredes do forno faz com que a temperatura que aí chega seja inferior à do núcleo, onde se localizam as pedras em mármore, permitindo a calcinação do calcário e a respectiva produção de cal parda, a menor temperatura. Segundo o mestre Festas, da aldeia de Barro Branco, (…) eram necessários um dia e uma noite para atiçar o lume no forno e dois dias e uma noite para o manter quente (…), findo este período, bastaria uma noite no Inverno e um dia e uma noite no Verão para que o forno arrefecesse e pudesse ser desenfornado. A cal viva, ou óxido de cálcio, que é removido do forno após a calcinação, é um material extremamente carente de água, que necessita de imediata hidratação, caso contrário começa a hidratar ou reagir apenas com o vapor de água existente na atmosfera. Este segundo processo de transformação da cal (a hidratação, ou, como é popularmente designado, o apagar da cal), ocorre em local distinto dos fornos mencionados. A cal viva de Barro Branco é assim ensacada e posteriormente vendida a produtores de cal apagada, ou simplesmente a construtores, que preferem extingui-la directamente. A passagem do óxido de cálcio a hidróxido de cálcio, ou seja de cal viva a cal apagada, é feita tradicionalmente na região por rega, ou imersão em água da cal viva em pedra. Ao processo de extinção, que po-

dia variar entre dois a três meses para a cal branca e menos para a cal parda, seguia-se a sua aplicação, o que, segundo o mestre Ferrão, não deveria ser muito tempo depois. Estas cais com percentagens consideráveis de impurezas como ferro, aluminia e sílica foram largamente utilizadas na região; conhecidas como caes dolomíticas e com características de alguma hidraulicidade, foram praticamente o único ligante utilizado em argamassas e revestimentos15. A cal branca era usualmente guardada em recipientes sob a forma de cal em pasta, pronta a usar. A cal parda era apagada, reduzida a pó, ensacada e usada o mais rápido possível. A maior parte das vezes era transportada em pedra para a obra, aí apagada e posteriormente aplicada. Segundo os mestres de Barro Branco, a cal branca em pasta era usada por estucadores em trabalhos, sobretudo, de interiores, por pedreiros em acabamentos de rebocos exteriores (barramentos) e por caiadores, misturada com maiores percentagens de água em leite, ou água de cal. A cal parda era utilizada em rebocos e argamassas exteriores. A aplicação final da cal, independentemente da técnica, e a sua reacção química com o ar, completavam o ciclo — o hidróxido de cal transforma-se em carbonato de cálcio, sendo este um dos poucos, senão mesmo o único, material que regressa, aproximadamente, à composição química inicial. De entre os rebocos mais vulgares, destacaria o acabamento afagado, ou simplesmente liso, queimado à costa da colher, como é conhecido na região. Omitindo os procedimentos prévios de qualquer reboco exterior e das camadas bases antecedentes, em geral duas ou três, referia apenas que estes rebocos necessitam de menos água que as vulgares argamassas de cimento. O excesso de água levaria no período de secagem a graves problemas de retracção16. Por esse motivo, a água contida na cal em pasta era suficiente e bastava adicionar a percentagem de areia à mistura, ou nenhuma, como no caso dos barramentos, para a sua aplicação. O reboco liso, queimado à costa da colher, é uma camada de acabamento, executado ao traço 1:3 ou 1:4 (em cal e areia fina), puxado e apertado com a colher de pedreiro várias vezes até à presa da massa. Este acabamento conferia ao paramento uma superfície lisa que era posteriormente caiada. O acabamento afagado consistia num barramento de cal em pasta, aplicado sobre a última camada de reboco ou directamente sobre o suporte em taipa, apertado várias vezes com a colher de pedreiro e polvilhado com cal hidratada em pó, conferindo o mesmo acabamento liso à superfície sem necessitar de caiação posterior. Estes dois acabamentos são aliás comuns noutras regiões do Mediterrâneo17, diferenciando-se o caso português pela originalidade e diversidade decorativa. À função protectora destes rebocos junta-se a decorativa, extremamente exuberante na região, como em todo o Alentejo. Sem menosprezar os inúmeros acabamentos e superfícies arquitectónicas em cal, que vão de esgrafitos a estucos e terminam em pinturas murais, os rebocos simulavam muitas vezes outros materiais que não os existentes nos paramentos, caso dos fin-

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10 | Borba, caiação de muro.

gidos, ou escondiam as fracas, ou tidas por menos nobres, alvenarias subjacentes. A caiação na região é ainda hoje uma tarefa extremamente feminina. Os caiadores só existem quando organizados em trabalho profissional ou em firma específica para esse efeito. Como tarefa preliminar à caiação, executada todos os anos por volta de Março, os paramentos são escovados a seco e, nalguns casos, lavados à escova com água e lixívia. Segundo informação local esta última operação para além de acabar com a sujidade à superfície melhorava substancialmente a adesão da caiação ao suporte. A caiação, ou (…) pintura dita a cal é constituída por um veículo à base de água e ligante mineral (a cal), por colorantes (os pigmentos) incluindo por vezes diversos tipos de cargas e adjuvantes (…)18. A execução consiste em três demãos cruzadas, ou somente duas, consoante o estado em que se encontra o paramento a caiar — (…) às vezes não precisa de tanto (…). A forma de preparar a cal para a caiação na região parece ser bastante básica. Segundo informação recolhida em Borba, bastava misturar cal em pasta com água pura, dispersar a mistura até obter uma pasta fluida que não deixasse traços ao passar a brocha pela parede, o designado leite de cal, e com maior quantidade de água, água de cal19. Nos suportes em terra, sobretudo em taipa, a maioria das vezes não rebocados, a pintura a cal e o barramento em cal eram os acabamentos mais utilizados e os que melhor se adequavam e aderiam a estes paramentos.

A terra crua e a outra A terra universal e abundante é a matéria-prima mais disponível e acessível para a construção. O solo, (…) termo aplicado a todo o material da crosta terrestre proveniente da decomposição de rochas, constituído por elementos minerais e/ou orgânicos que dependem da composição química e mineralógica da rocha de origem (…)20, é a base de onde se extraem diferentes terras que, depois de escolhidas e/ou transformadas, estão na origem de materiais construtivos, com larga aplicação na arquitectura. Os solos apropriados para a construção geralmente situam-se no subsolo, também

designado de horizonte B, livres de matéria orgânica21, como sucede na região dos mármores entre os 0,15 e os 0,20 metros de profundidade. A descoberta, nos inícios dos anos noventa do século XX, de paredes em taipa no piso térreo do Paço Ducal de Vila Viçosa foi, na ocasião, uma agradável surpresa. Jamais se imaginava que aquele monumento tivesse pés de barro, ou melhor que, por trás de espessos rebocos em cal e uma fachada em alvenaria de pedra aparelhada e adossada a um suporte desconhecido, existissem paredes em terra crua. De entre as técnicas de construção em terra que até aos anos cinquenta do século XX estavam perfeitamente activas, hoje extintas, a mais frequente nesta região é a taipa. Esta técnica construtiva, (…) que consiste basicamente na execução de grandes blocos de terra moldada in situ, compactada com pisões, dentro de cofragens amovíveis (…)22, encontra-se no Alentejo interior de todos os tipos: militar, urbana, rural, do século XX e histórica, com séculos de existência. Hoje os edifícios em taipa são património construído e, enquanto não surgem exemplos de construção em moldes contemporâneo nesse material, é uma técnica morta, reservada, por enquanto, ao restauro e à conservação. De entre os monumentos mais expressivos da região construídos nesta técnica destaca-se a Fortaleza de Juromenha, Alandroal, junto ao rio Guadiana. Os blocos em taipa militar, de dimensões consideráveis (1,55 a 1,80x0,80 a 0,90x1,80 metros)23, elevados em terra pobre em argila, estabilizada com cal, misturada com inertes grossos de xisto, quartzos, seixos rolados, calcários e constituída por areia grossa com fragmen-

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11 | Juromenha, fortaleza. 12 | Juromenha, reboco em cal sobre parede em taipa.

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13 | Elvas, Estremoz, Vila Viçosa e Borba, casa urbana de dois pisos com chaminé na fachada.

tos cerâmicos24, são exemplares da resistência e eficácia construtiva deste sistema monolítico em terra. Para além dos grandes monumentos em terra, a região caracteriza-se pela diversidade de tipos arquitectónicos habitacionais em taipa. Nestas habitações, de um e dois pisos no máximo, os blocos em taipa são de menor dimensão, sensivelmente entre os 1,70

a 1,45x0,55x0,65 a 0,45 metros25. A casa de dois pisos e chaminé na fachada é um tipo comum nas cidades desta região. Podemos encontrá-las em Elvas, Estremoz, Vila Viçosa e Borba, sempre em banda. A tipologia consiste num lote estreito, de desenvolvimento em profundidade, ao fundo do qual se localiza o quintal, de dimensões generosas. As paredes

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14 | Casa urbana de dois pisos com chaminé na fachada, plantas dos pisos.

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15 | Vista interior de uma cobertura em estrutura de madeira com tijoleira de revestimento.

elevadas em taipa de diferentes espessuras, no piso térreo e superior, suportam pisos em vigas e barrotes de madeira, revestidos por duas camadas em juntas desencontradas de tijoleira. A cobertura, também assente sobre as paredes em taipa, é de duas pendentes em estrutura de vigas, barrotes e ripas de madeira, revestidos em telha de canudo, assentes em tijoleira ou outro revestimento26. A casa de um piso em banda é menos comum nas cidades e mais frequente nas vilas e aldeias. O desenvolvimento é paralelo à rua que lhe dá acesso e basicamente é constituída por dois ou três compartimentos que comunicam entre si e nem sempre terminam em quintal nas traseiras. É uma habitação mais modesta que a anterior, por vezes sem chaminé predominante. As paredes são igualmente em taipa, com pequenas aberturas, e a cobertura em telha vã, sem qualquer revestimento no interior (guarda-pó ou outro), deixa antever pequenos apontamentos de luz perceptíveis na escuridão interior através de um ou outro elemento transparente, em geral telha de vidro27. Também nestes casos a taipa nem sempre é a de melhor qualidade. O recurso à terra local com excesso de matéria orgânica teve consequências desastrosas no que se refere à coesão dos componentes da terra. A taipa preta, como é designada, desagrega-se muito facilmente provocando graves anomalias estruturais e materiais de difícil conservação física. Esta realidade, a que se soma a exiguidade de espaço, tem levantado graves problemas na reabilitação destes tipos arquitectónicos nos centros históricos da região. Quando se avança para o mundo rural, esse enorme campo de (…) largos plainos, num jogo subtil, de

vastas e suaves ondulações (…), como se referiam os arquitectos, dá lugar a outra realidade e a qualidade arquitectónica também se altera. Os montes, nas suas variantes — isolado, conjunto e aglomerado — são o tipo mais corrente que se funde com o território, numa continuidade da habitação, ainda hoje agrícola28. Este modo de habitar no Sul, actualmente convertido em segunda habitação, turismo ou simplesmente devoluto, é, na generalidade, de exímia construção em taipa. Por vezes, sistemas sofisticados de tectos em abóbada e abobadilha cobrem enormes espaços, e coberturas complexas, em asnas de madeira, cobrem outros que não habitacionais. A taipa rural como também é designada, cuja escolha selectiva da terra e qualidade de execução só são superadas pela taipa militar, foi a técnica escolhida para a elevação de paredes quer nas habitações dos operários agrícolas, quer nas dos proprietários e, ainda, nas dos armazéns agrícolas, das casas comunitárias e dos muros de vedação. Todas estas construções eram frequentes no designado monte aglomerado, que funcionava como uma pequena aldeia auto-suficiente. Pormenorizando um pouco a habitação da região, encontramos em Juromenha um tipo particular de casa urbano/rural mais complexo. Trata-se de casas em planta quase quadrada, mais compartimentada, em que os (…) planos sucessivos de acesso à habitação colocado em posição sobrelevada, contrasta com os maciços de alvenaria dos contrafortes (…) da movimentação dos vários volumes que constituem o acesso (…) resulta um saboroso jogo de valores arquitectónicos, conseguidos com uma impressionante exiguidade de meios (…)29. Enquanto as linhas horizontais pre-

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16 | Juromenha, casa-tipo.

17 | Borba, Bencatel, casa em banda de um piso.

Para o seu funcionamento era necessária a existência próxima de barreiras — depósitos naturais de terra argilosa, que eram exploradas por concessão municipal a empresas do tipo familiar. A terra era extraída a enxada e colocada em carrinhos-de-mão para transporte até ao barreiro — local onde se amassava a terra com água e que consistia numa área rectangular escavada com cerca de 2,00x3,00x1,00 metros. No barreiro a terra era previamente demolhada em água e só então amassada 18 | Construção de uma abobadilha de quatro arcos.

dominam nos montes, estes jogos volumétricos, que individualizam e particularizam cada uma das habitações, predominam nos aglomerados urbanos e rurais. A uniformidade conferida pela cal acentuada, pelo contraste de luz e sombra decorrente deste jogo volumétrico, imprime-lhe um valor que os sistemas construtivos em terra não rebocados jamais transmitiriam. Pelos motivos já apontados e que se prendem com a protecção e decoração de paramentos, as superfícies arquitectónicas em cal que também retiram partido da luz, levam-nos, inevitavelmente, à conclusão que a arquitectura em terra nesta região está definitivamente ligada à cal. A terra pode ainda sofrer outras transformações que não a mera compactação e secagem ao sol. Quando crivada, misturada com água e posteriormente seca e cozida em forno dá origem a uma série de materiais construtivos — os cerâmicos, cuja produção foi e ainda é artesanal. Os telheiros eram unidades de produção de tijolo, tijoleira e telha, que funcionavam de Março a Outubro, em geral nas zonas limítrofes dos aglomerados urbanos e rurais. Hoje, para encontrarmos estes locais temos que alargar a dita região dos mármores aos concelhos vizinhos de Aviz, em Galveias; de Évora, junto à antiga fábrica dos Leões; de Reguengos de Monsaraz, em São Pedro do Corval; e, finalmente, de Montemor-o-Novo, o telheiro do Castelo. Em nenhum deles se produz telha e tão-só diversos modelos de tijolo maciço e tijoleiras de revestimento. Estes telheiros, que ainda hoje funcionam, são em tudo similares aos que existiram em Estremoz, Elvas, Vila Viçosa, Borba e Alandroal.

19 | Monsaraz, abobadilha de quatro arcos, argamassada com gesso.

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com os pés. A acção de virar o barro, que consistia em colocar sucessivas camadas de barro de baixo para cima, era repetida o número de vezes suficiente até que a massa ficasse homogénea, pronta para ser moldada na eira. Neste local, uma extensão de terreno plano sobre o qual era disposta uma camada de areia compactada, o barro já amassado era atirado em troços para o interior de moldes em madeira, previamente molhados, e, com o auxílio das mãos, espalhado, regularizado, a que se seguia a remoção do molde, deixando-se o adobe a secar ao Sol. O processo de secagem devia ser lento e uniforme, pelo que muitos destes telheiros já estavam munidos de ensecadeiras e eiras protegidas da acção directa do Sol. Os adobes eram primeiro deixados a secar na posição horizontal, conforme eram desenformados, seguindo-se a sua colocação na vertical, permitindo a ventilação do ar entre as fiadas. Quando secos, os tijolos são empilhados em adagues e colocados no forno para cozer. Esta arrumação consiste na sobreposição de fiadas, em desencontros simétricos, de modo que a chama suba entre os espaços. Primeiro eram colocados os tijolos, a que se seguiam as tijoleiras e, finalmente, as telhas no topo. Uma cozedura 20 | Montemor-o-Novo, interior de forno à portuguesa em fase de remoção de tijolos.

21 | Montemor-o-Novo, forno à inglesa.

chegava a durar, em média, 18 a 20 horas e, apesar da destreza (que alternava de mestre para mestre), era possível produzir em média cerca de 3000 tijolos por dia30. Os fornos à portuguesa eram muito semelhantes aos da cal, com câmara inferior de fogo, mas elevados em tijolo. Vulgar nestes telheiros era a utilização dos próprios adobes para elevação de um forno, à inglesa. Este tipo de forno acabava por desaparecer após a cozedura, dado que os materiais da sua construção eram os tijolos manufacturados. De entre as dimensões mais frequentes de material produzido, destacavam-se: o tijolo maciço de 0,32x0,16x0,18 metros, para alvenaria, e de 0,32x0,16x0,04 metros para arcos, abóbadas e abobadilhas; o tijolo curto de 0,22x0,16x0,08 metros para chaminés e muros; e as tijoleiras de pavimento de 0,32x0,32x0,04 ou 0,50x0,50x0,04 metros31. As alvenarias construídas com este tijolo variavam entre os aparelhos a meia vez e a uma vez na arquitectura vernácula. Aparelhos mais sofisticados, a vez e meia e outros, só se encontram em edifícios públicos ou excepcionais. A construção em alvenaria de tijolo maciço sempre se interligou com outros sistemas construtivos na região, no caso de paredes com as alvenarias em pedra e técnicas de construção em terra, no caso dos tectos e pisos com as estruturas em madeira. De entre os pavimentos em tijoleiras na região destacam-se os que recebem a designação de à meia esquadria. Construídos com peças quadradas, em geral com a junta larga, cerca de 0,01 metros, para acautelar as dilatações, este pavimento, vulgar em todos os edifícios, iniciava-se do centro para os cantos, colocando a tijoleira a 45º graus e rematando no perímetro, conforme desse a disposição, com tijoleira à esquadria, já colocada a 90º graus.

Abóbadas, abobadilhas e outros tectos De entre os sistemas mais engenhosos de traçado e construção com tijolo, sobressaem as abóbadas e abobadilhas, vulgares em todo o Alentejo. Este sistema de tectos e coberturas diferencia-se apenas pela posição do tijolo em construção — ao baixo na abobadilha, ao cutelo na abóbada. O tijolo, inicialmente argamassado com gesso e posteriormente com cal, era, como já foi referido, menor em espessura do que o utilizado para alvenaria (0,04 metros, metade do anterior). O traçado de uma abóbada e abobadilha, independentemente do arco utilizado, podia ser feito a partir de dois arcos ou da intersecção de quatro. Regionalmente designam-se as primeiras de canhão e as outras de arestas, ou barrete de clérigo. No Alentejo a sua elevação faz-se sem a utilização de cimbres (moldes em madeira com a forma do arco para apoio dos tijolos), utilizando-se apenas uns fios reguladores colocados de arco a arco. As abobadilhas são, em geral, mais difíceis de executar, pois os arcos são mais abatidos, nalgumas situações, quase planos e, essencialmente, porque a

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posição correcta do tijolo e a secagem, ou presa, da argamassa de assentamento requerem mais tempo e habilidade por parte do executor. A elevação, quer das abóbadas, quer das abobadilhas, faz-se dos cantos para o centro, do arranque em direcção ao fecho32. O carrego, ou seja a zona junto ao arranque, é preenchido com argamassa e pedaços de tijolo após as primeiras fiadas construídas, garantindo, assim, a sua estabilidade até ao fecho. Sobre a abobadilha poderiam, posteriormente, ser construídos pavimentos em madeira ou em madeira e tijoleira, garantindo sempre uma pequena caixa-de-ar, entre extradorso da abobadilha e o pavimento propriamente dito. As abóbadas e abobadilhas recebiam como acabamento final reboco, caiação e, nalguns casos, estuque. Esta finalização não só ampliava o espaço interior, como criava jogos de claro-escuro, uniformizando a parede e o tecto como um todo. Hoje, nos recentes trabalhos de conservação, verifica-se incorrectamente a remoção destes revestimentos e a colocação do sistema construtivo à vista. Esta atitude, explicável apenas pelo fascínio desta construção, não só acarreta graves consequências para o material poroso, que se desagrega facilmente, como se perde a autenticidade do espaço e a leitura e iluminação do mesmo. Outros sistemas mistos de tectos e pisos, em madeira e tijoleira, são também construídos na região. Estruturas de vigas e barrotes, muitas vezes de secção circular (toros), eram colocados em plano horizontal sobre as paredes, ou em pendente, a partir da viga de cumeeira. As tijoleiras, em duas camadas argamassadas e desencontradas, eram aplicadas sobre o plano horizontal em estrutura de madeira, ou apenas sobre uma camada nos planos em pendente da cobertura. No primeiro caso, a última camada de tijoleiras funcionava já como pavimento do piso superior, no segundo, a mesma servia de apoio, ou base, ao assentamento de telhas. O sucesso aliado à riqueza plástica dos pavimentos em tijoleira fez com que a produção destes materiais seja, ainda hoje, uma realidade que garante o funcionamento destes telheiros. O tijolo maciço para a alvenaria é esporadicamente produzido e o seu uso encontra-se praticamente extinto. A conservação e o restauro de alvenarias antigas são o garante da sua produção, na maioria das vezes por encomenda especial e com as dimensões requeridas.

Os mosaicos hidráulicos Os mosaicos coloridos e manufacturados a partir da prensagem de argamassa forte em ligante são ainda hoje produzidos, semi-artesanalmente, em Estremoz. Esta produção é, no entanto, um exemplo de como um material evoluiu sem perder as suas qualidades. Apesar de manter todo o processo de manufactura artesanal, o ligante, anteriormente em cal hidráulica natural, passou, a partir dos anos quarenta do século XX, a cimento. O processo de manufactura, que obedece ao tipo de mosaico a elaborar, se colorido, se branco e negro,

em cimento portland ou cimento branco, consiste na colocação de diversas camadas, numa forma metálica, previamente betumada com óleo e posteriormente prensada. As camadas referidas, devidamente doseadas e espalhadas na forma com uma espátula, são colocadas com a seguinte ordem: a primeira, uma aguada com pigmento natural, pó de pedra e cimento numa proporção, em volume, de 1 de cimento para 2 de mármore completamente reduzido a pó; a segunda, com cimento e areia seca de rio (traço 1:2); e, finalmente, a terceira, com cimento e areia de rio húmida. Ao enchimento e respectiva regularização segue-se a prensagem e imediata remoção do mosaico para caixa, onde deverá secar em vinte e quatro horas. A caixa é posteriormente mergulhada em água com pó, para cozer, pelo menos durante doze horas no Inverno e vinte e quatro no Verão. A esta fase segue-se a segunda secagem do material, ainda nas caixas, durante quinze dias, findos os quais, os mosaicos podem ser empilhados, transportados e finalmente aplicados. As suas dimensões mais vulgares são: 0,20x0,20 metros; 0,10x0,20 metros; 0,13x0,26 metros e 0,14x0,28 metros.

22 | Estremoz, mestre Lúcio Zagalo junto a catálogo exterior de mosaicos hidráulicos. 23 | Estremoz, manufactura de mosaicos hidráulicos.

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Estes mosaicos eram frequentes nas casas de habitação e noutros edifícios por todo o país, sobretudo a partir dos anos vinte do século XX. Hoje são produzidos por encomenda, usando-se ainda os pigmentos naturais, pois, segundo o mestre Lúcio Zagalo, (…) não perdem nunca a cor (…). O nome de mosaico hidráulico surgiu em virtude das prensas hidráulicas e não por via do ligante que estava na sua origem. A aplicação destes pavimentos não obedece a regras distintas da de outros materiais, muito embora, como os padrões quase todos tinham remates laterais, a sua aplicação deveria ser efectuada segundo tapetes, em esquadria ou meia esquadria, que, por vezes, nem sempre preenchiam a área total do pavimento. De todos os materiais mencionados apenas estes não constam no Paço Ducal de Vila Viçosa. Mas nem por isso são menos importantes. A manufactura e a produção de materiais tradicionais na região parece ainda manter-se devido a necessidades que se prendem com a conservação dos edifícios existentes. Esta realidade, hoje em perda para os materiais específicos de conservação que vão aparecendo aos poucos no mercado, leva-nos a reflectir sobre a dimensão e a pertinência do seu fabrico no futuro. Será que não existe lugar para os materiais e os sistemas construtivos tradicionais na arquitectura e construção actual?

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Maria Fernandes Arquitecta Centro de Estudos Arqueológicos das Universidades de Coimbra e Porto Imagens: 1 a 12; 17 a 23: autora; 13 a 16: Maria João Lopes Fernandes. 2007.

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João Mascarenhas MATEUS — Técnicas Tradicionais de Construção de Alvenarias, pp. 159-160. Idem, pp. 159-160. Idem, p. 161. Idem, p. 164. Idem, pp. 44-45. Luís Aires de BARROS — Alteração e Alterabilidade de Rochas, pp. 66-67. João Mascarenhas MATEUS — Ob. cit, p. 30. A colagem, aplicável na situação em que eram usados calços, resumia-se em preencher previamente as juntas horizontais e verticais, seguindo-se a introdução de água por gravidade e, finalmente, a argamassa liquefeita. A fichagem, por sua vez, consistia na introdução de argamassa à pressão com o auxílio de colheres dentadas, na face oposta à superfície da junta previamente colmatada com argamassa em gesso e cordas. João SEGURADO — Alvenaria e Cantaria, pp. 64-68. Maria Goreti MARGALHA — The use of air lime in region of Alentejo, pp. 2-3. José AGUIAR — A Cor e Cidade Histórica, pp. 215-217. AA.VV. — Architecture Traditionnelle Méditerranéenne, pp. 78-79. José AGUIAR — Ob. cit., p. 292. Ibidem. Obede Borges FARIA — “Caracterização de solos para uso na arquitectura e construção com terra”. Arquitectura de Terra em Portugal, p. 179. Ibidem. Miguel ROCHA — “Taipa na arquitectura tradicional: técnica construtiva”. Arquitectura de Terra em Portugal, p. 22. Patrícia BRUNO — “Taipa militar, fortificações do período muçulmano”. Arquitectura de Terra em Portugal, p. 41. Patrícia BRUNO — “Patologias e conservação das muralhas de Juromenha”. Arquitectura de Terra em Portugal, p. 227. Maria FERNANDES; Victor MESTRE — Mur en terre banchée. Disponível em: http// www.meda-corpus.net/frn/portails/PDF/f2/A08_POR.pdf, acesso em 2007/08/15. Maria FERNANDES; Victor MESTRE — Maison em bande sur deux niveaux. Disponível em: http//www.meda-corpus.net/frn/index.asp?op=40201265.pdf, acesso em 2007/08/15. Maria FERNANDES; Victor MESTRE — Maison em bande sur en niveau. Disponível em: http//www.meda-corpus.net/frn/index.asp?op=40201265.pdf, acesso em 2007/08/15. Maria FERNANDES; Victor MESTRE — Monte. Disponível em: http//www. meda-corpus.net/frn/index.asp?op=40201265.pdf, acesso em 2007/08/15. AA.VV. — Arquitectura Popular em Portugal, p. 84. Vasco FERNANDO — “Telheiros: os barros e os homens”. Revista Almansor, 1991, pp. 312-317. Idem, pp. 315-321. Maria FERNANDES; Victor MESTRE — Vôute en brique. Disponível em: http//www.meda-corpus.net/frn/portails/PDF/f2/C06_POR.pdf, acesso em 2007/08/15.

N OTA S B I B L I O G R A F I A Este texto foi desenvolvido com o apoio do Instituto de Investigação Interdisciplinar (III) da Universidade de Coimbra. A autora agradece à engenheira Maria Goreti Margalha e ao arquitecto Sérgio Cóias o auxílio no trabalho de campo e documentação, aos mestres Festas e Ferrão por perpetuarem a produção de cal na região, ao senhor Lúcio Zagalo o entusiasmo com que ainda manufactura os mosaicos hidráulicos, ao mestre Primo por continuar a arte da cantaria, mesmo que exclusiva da arte funerária, e às firmas Gramarserra, Mármores Batanete e Virgílio Ramalho e Filhos de Estremoz a ajuda e disponibilização de informação no que ao mármore respeita. O texto não teria, ainda, sido possível sem a leitura atenta da Professora Doutora Maria Conceição Lopes, do arquitecto Vítor Mestre e as ilustrações de Maria João Lopes Fernandes. 1 2 3

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VITRÚVIO — Tratado de Arquitectura, livro II, capítulo II, pp. 74-75. AA.VV. — Arquitectura Popular em Portugal, vol. 1, p. 3. A responsabilidade do levantamento desta zona número 5, que decorreu em meados dos anos cinquenta do século XX, coube aos arquitectos Frederico George, António Azevedo Gomes e Alfredo Mata Antunes. Os fragmentos de madeira eram colocados nas fracturas do maciço rochoso, pontos cruciais onde os blocos se destacavam. Essas zonas eram, em seguida, preenchidas com água e a posterior dilatação da madeira húmida forçada com alavancas, completava, assim, o processo de destacamento do bloco. Noutros

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locais o preenchimento com água e o arrefecimento nocturno eram suficientes para destacar o bloco do maciço rochoso. J. Paz BRANCO — Manual do Pedreiro, pp. 17-18. Estes métodos fragilizam o material e provocam fendas e microfissuração nos blocos, responsáveis, mais tarde, por graves patologias no material pétreo.

AA.VV. — Architecture Traditionnelle Méditerranéenne. Avignon: École d’Avignon, Comission Europénne, Meda-Euromed Heritage, 2000. AA.VV. — Arquitectura de Terra em Portugal. Lisboa: Argumentum, 2005. AA.VV. — Arquitectura Popular em Portugal. 3.ª ed. Lisboa: Associação dos Arquitectos Portugueses, 1988, 3 vols. AA.VV. — Manual da Pedra Natural para a Arquitectura. Lisboa: Direcção-Geral de Geologia e Energia, 2006. AGUIAR, José — Cor e Cidade Histórica. Estudos Cromáticos e Conservação do Património. Porto: Edições FAUP, 2000. BARBOSA, Gabriela; BELÉM, Margarida — Diálogos de Edificação. Porto: Centro Regional de Artes Tradicionais, 1998. BARROS, Luís Aires de — Alteração e Alterabilidade de Rochas. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1991. BRANCO, J. Paz — Manual do Pedreiro. Lisboa: Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 1981. FERNANDO, Vasco — “Telheiros: o barro e os homens”. Revista Almansor. Montemor-o-Novo: Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, 1991, pp. 307-325. MATEUS, João Mascarenhas — Técnicas Tradicionais de Construção de Alvenarias. Lisboa: Livros Horizonte, 2000. MARGALHA, Maria Goreti — “The use of air lime in region of Alentejo”. Repair mortars for Historic Masonary- Rilem Workshop. Delft: University of Technology; Faculty of Civil Enginearing and Geociences, 2005. SEGURADO, João — Alvenaria e Cantaria. Lisboa: Liv. Aillaud e Bertrand, 1908 (Biblioteca de Instrução Profissional). VITRÚVIO; MACIEL, M. Justino (trad. do latim, introd. e notas) — Tratado de Arquitectura. Lisboa: IST Press, 2006.

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