VILÉM FLUSSER E O CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO

May 28, 2017 | Autor: Fabiana Tomé | Categoria: Constructivism, Conhecimento, Verdade, constructivismo lógico-semântico
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VILÉM FLUSSER E O CONSTRUCTIVISMO LÓGICO-SEMÂNTICO Fabiana Del Padre Tomé Mestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora no Curso de Pós-graduação stricto sensu da PUC/SP. Professora nos Cursos de Especialização em Direito Tributário da PUC/SP e do IBET. Advogada.

“O caos irreal do poder-ser, do vir-a-ser, do potencial que tende a realizar-se, o qual estamos acostumados a chamar de realidade, surge à tona, aparece ao intelecto, organiza-se em cosmos, em breve: realiza-se nas formas das diversas línguas.” (Vilém Flusser)

1. Algumas palavras sobre o constructivismo lógico-semântico Muito se tem enaltecido a presença do método na composição do trabalho científico. Isso ocorre porque não existe conhecimento sem sistema de referência: este é condição sem a qual aquele não subsiste. É por se colocarem em um tipo de sistema de referência que os objetos adquirem significado, pois algo só se apresenta inteligível na medida em que conhecida sua posição em relação a outros elementos, tornando-se clara sua postura relativamente a um ou mais sistemas de referência. Sistema de referência, segundo Goffredo Telles Júnior1, consiste no universo cognitivo do sujeito. Cada ser humano “possui um conjunto ordenado de conhecimentos, uma estrutura cultural, que é seu próprio sistema de referência, em razão do qual atribui a sua significação às realidades do mundo”. Desse modo, nenhum conhecimento é absoluto, mas dependente do sistema de referência. Nesse contexto, o método seria, em princípio, o meio escolhido pelo sujeito do conhecimento para aproximar-se do objeto por ele mesmo delimitado e, portanto, constituído no próprio processo de cognição. A eleição e aplicação de um específico método, entretanto, encerram imensa gama de dificuldades, que se acentuam, incisivamente, quando se pretende o estudo de um objeto cultural, como é o caso do direito positivo.

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O direito quântico, 6ª ed., São Paulo: Max Limonad, 1985, p. 289.

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O direito positivo, como genuína construção cultural que é, comporta muitas posições cognoscentes, podendo ser observado por ângulos diferentes, como se dá com a História do Direito, com a Sociologia do Direito, com a Dogmática Jurídica ou Ciência do Direito em sentido estrito, com a Antropologia Jurídica, com a Filosofia do Direito, apenas para salientar alguns saberes igualmente dotados da mesma dignidade científica. Diante de tanta variedade, eventual descaso pelo método, decorrente da ânsia de oferecer farta cópia de informações, acaba por impedir o conhecimento. Não se pode dissociar a prática da teoria, pois tal pretensão acarreta notícias desordenadamente justapostas ou sobrepostas, bem como dados da experiência jogados ao léu. Para que isso não ocorra, faz-se necessária uma organização do campo empírico, realizada por três vieses: (i) no âmbito filosófico, mediante análise epistemológica; (ii) no âmbito conceitual, tendo como ponto de partida a Teoria Geral do Direito; e (iii) no âmbito factual, por cortes metodológicos das multiplicidades dos fenômenos concretos. Somente por meio desse aperfeiçoamento teórico que se alcançará o aprofundamento do conhecimento do direito positivo. Essas breves anotações sobre a importância do método e do sistema de referência, bem como das dificuldades inerentes ao estudo dos objetos culturais, como é caso do direito, já permitem entrever a relevância do constructivismo lógico-semântico. O estudo da teoria da linguagem tem finalidade específica de identificar instrumentos teóricos que permitam melhor compreensão e operacionalização da experiência jurídica. Dessa forma, busca atender-se à sempre recomendável intersecção entre teoria e prática, entre ciência e experiência, ampliando, assim, o universo das formas jurídicas. O constructivismo lógico-semântico configura método de trabalho hermenêutico orientado a cercar os termos do discurso do direito positivo e da Ciência do Direito para outorgar-lhes firmeza, reduzindo as ambiguidades e vaguidades, tendo em vista a coerência e o rigor da mensagem comunicativa. No Brasil, esse método foi desenvolvido e aplicado, pioneiramente, por Lourival Vilanova, que se dedicou ao aprofundado estudo do discurso normativo. Foi por meio do constructivismo lógicosemântico que o direito retomou suas discussões filosóficas, permitindo, inclusive, o reencontro de diversos ramos do direito com suas origens na Teoria Geral do Direito. O próprio nome constructivismo lógico-semântico foi atribuído por Lourival Vilanova. Parte de uma postura constructivista, agregando-lhe o adjetivo composto lógicosemântico, pois dirige sua atenção aos elementos do discurso.

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O termo constructivismo é empregado para denominar teorias que defendem a idéia de que há sempre intervenção do sujeito na formação do objeto. É palavra ligada ao contexto epistemológico. Contrapõe-se à corrente descritivista, que concebe o conhecimento ao modo aristotélico, como um processo de assimilação das formas. Para o constructivismo, o mundo é uma entidade cuja morfologia não aparece independe dos sujeitos que formam parte dele. A evolução das ciências, mesmo as chamadas ciências naturais, demonstra isso. É com frequência que ouvimos falar em criação de grandezas, como força e aceleração; na identificação de novos elementos, como quando se desmembrou os átomos (até então indivisíveis), em prótons, nêutrons e elétrons; nas modificações no modo de enxergar as realidades, como a passagem da teoria geocêntrica para a heliocêntrica; e, até mesmo, na descaracterização de uma realidade até então existente, a exemplo do que ocorreu com Plutão, que deixou de ser um planeta. Essa concepção implica abandonar a idéia de uma Ciência do Direito meramente descritiva de um objeto dado, em visão ingenuamente imparcial e não valorativa. As normas não são dadas, de antemão, no ordenamento, mas dependem de uma atividade construtiva, em que se atribui sentido ao texto de lei. Como enaltece Gregório Robles2, é impossível descrever qualquer fenômeno de cultura: a apreciação humana implica, sempre, uma construção de sentido. E o direito positivo, sendo produzido pelo ser humano, caracteriza-se como objeto cultural. A norma jurídica, unidade irredutível de manifestação do deôntico, é, nos dizeres de Lourival Vilanova, “uma estrutura lógico-sintática de significação”3. É a significação construída na mente do intérprete, resultado da leitura dos textos do direito positivo, apresentando a forma de um juízo hipotético. Não se confunde a norma jurídica, portanto, com o texto bruto, na forma como posto pelo legislador. A norma jurídica e, por conseguinte, o sistema do direito positivo, é construído a partir do texto bruto, mas com ele não se confunde. Eis o primeiro ponto distintivo do constructivismo lógico-semântico. Adotado esse método, o cientista do direito não se limita a contemplar o texto de lei, mas efetivamente constrói os sentidos normativos. A construção de sentido, porém, não é feita de modo indiscriminado. Nessa linha metodológica, procura-se amarrar as idéias, definir os termos importantes, para 2

Teoria del derecho (fundamentos de teoria comunicacional del derecho), Madrid: Civitas, 1998, p. 129. “Norma jurídica – proposição jurídica (significação semiótica)”, Revista de Direito Público nº 61, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 16. 3

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conferir firmeza ao discurso. E tal amarração opera-se no plano lógico e no plano semântico. Daí falar-se em constructivismo lógico-semântico. Com isso, busca-se formar um discurso responsável, isto é, comprometido com as premissas, com o sentido que se firmou para os termos. Isso não significa, contudo, desprezo pelo plano pragmático. Como é sabido, toda linguagem tem um plano pragmático, sendo impossível dissociá-lo dos planos sintático e semântico. Todavia, por meio da abstração, podemos dar ênfase a um ou alguns desses aspectos. E, na proposta metodológica de que estamos tratando, o esforço é acentuado nos planos lógico e semântico. Para atingir tal desiderato, emprega-se técnica analítica. Análise equivale a um processo de resolução ou decomposição do complexo em algo mais simples. Nesse contexto, analisar equivale a decompor o objeto de estudo em uma série de elementos que facilitam a compreensão do fenômeno que se observa. No constructivismo lógicosemântico, o objeto de análise é a linguagem, a qual se pretende reduzir ou traduzir a uma linguagem formal e cuja lógica e procedimentos sejam claros, rigorosos e controláveis. É o que Paulo de Barros Carvalho fez em relação às normas jurídicas tributárias, edificando a teoria da regra-matriz de incidência tributária. O constructivismo lógico-semântico tem por procedimento reduzir os complexos linguísticos a elementos básicos, com o fim de facilitar a compreensão de seu significado. Não se confunde, porém, com a filosofia analítica, pois sofre forte influência do culturalismo. Daí porque recebe o nome, também, de postura hermenêutico-analítica. Segundo Paulo de Barros Carvalho4 no constructivismo lógico-semântico “a postura analítica faz concessões à corrente hermenêutica, abrindo espaço a uma visão cultural do fenômeno jurídico”. Essa é a concepção filosófica adotada por Lourival Vilanova, verificando-se (i) forte pendor analítico, aliado à (ii) formação culturalista, da Escola de Baden. No que diz respeito ao culturalismo, este tem em Miguel Reale seu maior representante brasileiro. Essa corrente filosófica consiste em uma concepção do Direito integrada pelo historicismo e pelos princípios fundamentais da Axiologia, considerando a teoria dos valores em função dos graus de evolução social. É exatamente o toque da

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Direito tributário, linguagem e método, 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2008, p. XXIV.

5 cultura que, na lição de Paulo de Barros Carvalho5, evita que se pretenda entrever o mundo pelo prisma reducionista do mero racionalismo descritivo. Pendor analítico pode ser tomado como dinâmica mental do espírito de quem pacientemente decompõe, desarticula, analisa, para avançar em direção ao objeto e explorá-lo com a máxima potencialidade. Sempre, é, claro, no interior do universo do discurso, pois a palavra tomada como referência postula outras palavras que sobre ela discorram, de tal modo que se torna impossível romper esse domínio inesgotável de unidades linguísticas. Há que se fazer, porém, advertência acerca dos eventuais excessos no trato com o formal. A visão lógica é necessariamente parcial e o discurso linguístico há de ser visto na sua inteireza constitutiva, vale dizer, na sua integridade comunicacional, suscetível sempre de análise nas três dimensões semióticas: sintática, semântica e pragmática. Em suma, o denominado constructivismo lógico-semântico propõe-se a, respeitando a todos os modelos epistemológicos existentes, servir de método para ingresso na intimidade do fenômeno jurídico, mediante trabalho analítico, porém com influência culturalista, considerando ser o direito um objeto cultural, produto da ação humana. Tratase de estratégia de movimentação do intelecto para apreender e devassar o objeto do conhecimento, e que persiste em toda a dimensão de seu trabalho. Método analítico, mas com acentuado aspecto culturalista, em que, a cada instante, se recupera a circunstância do homem, contextualizando-o. O constructivismo lógico-semântico pode ser visto como rigorosa elaboração da metodologia sintática e semântica do direito. Essa concepção filosófica possibilita edificar uma teoria das normas bem estruturada em termos lógicos, discutida e esquematizada no nível semântico e com boas indicações para um desdobramento pragmático. Tudo isso, considerando que a positivação do direito se opera mediante a presença indispensável da linguagem, num contexto de crenças, idéias e convicções, decorrentes dos valores dos sujeitos que integram a sociedade. Trata-se, portanto, de um estudo hermenêutico-analítico do direito, em que se dirige a atenção aos dados linguísticos (linguagem jurídico-normativa), fazendo uso das categorias lógico-semânticas do texto prescritivo e analisando a norma jurídica na sua inteireza conceptual, mas que, por outro lado, também considera a necessidade premente de o discurso teórico propiciar a compreensão da concretude empírica do direito posto.

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Idem, p. 3-4.

6 Paulo de Barros Carvalho6 vê nessa concepção expediente que potencializa a investigação: “de primeiro, por sair amarrando e costurando os conceitos fundamentais, estipulando o conteúdo semântico dos termos e expressões de que se servem os especialistas; de segundo, porque projeta os elementos especulativos, preparando-os para outra sorte de indagações, agora de cunho culturalista; e, por fim, munidos desse poderoso instrumental, aplicá-lo ao direito tributário dos nossos dias”. Suas obras vêm cumprindo importante função de difundir o constructivismo lógico-semântico aplicado ao Direito, sempre procurando aplicar a lição de Lourival Vilanova, no sentido de que o jurista é o ponto de intersecção entre a teoria e a prática; entre a ciência e a experiência. Seu trabalho mais recente, intitulado Direito tributário, linguagem e método, deixa isso bem evidente, demonstrando a importância e utilidade desse método. Fazendo uso do instrumental fornecido pelo constructivismo lógicosemântico, o exegeta está em condições de proceder ao exame da estrutura interna normativa, bem como das relações lógicas existentes na integração das normas com outras unidades do sistema, podendo fazê-lo tanto da perspectiva estática, isolando as proposições normativas, como da perspectiva dinâmica, abrangendo o processo de positivação do direito.

2. A teoria do conhecimento segundo o constructivismo lógico-semântico Na trajetória da teoria do conhecimento observamos certa evolução em que, de início, tomava-se o objeto ou o sujeito como determinantes para o conhecimento: eis a ontologia e a gnoseologia, respectivamente. Desse modo, Husserl ocupou-se do objeto do conhecimento. Para esse autor, nada se poderia conhecer se na realidade bruta não houvesse algo dotado da possibilidade de ser captado pelas sensações e pelo intelecto. Passou-se, depois, a considerar a necessária relação entre sujeito e objeto (ontognoseologia), seguindo em direção à fenomenologia, nos termos da qual não conhecemos as coisas como são em si, mas como se nos apresentam. Nessa esteira, Kant se preocupou em elaborar estudos sobre as formas e categorias do conhecimento em função do sujeito transcendental. Na visão kantiana o sujeito, no contexto espaço-temporal, cria o objeto, a ele aplicando categorias do conhecimento. Com base na filosofia da consciência, via-se a linguagem como instrumento que ligava o sujeito ao objeto do conhecimento, sendo a verdade resultado da

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Idem, p. XXV.

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correspondência entre a proposição linguística e o objeto referido. Na linha do constructivismo lógico-semântico, de modo diverso, entendemos haver inevitável interdependência entre sujeito e objeto: o sujeito só é sujeito perante um objeto e o objeto só é objeto em face de um sujeito. E tal relação ocorre em um contexto específico, sendo o conhecimento determinado pela cultura. Assim, a linguagem deixou de ser um meio entre ser cognoscente e realidade, convertendo-se em um léxico capaz de criar tanto o ser cognoscente como a realidade. O conhecimento não aparece como relação entre sujeito e objeto, mas como relação entre linguagens, entre significações, inserindo-se na concepção da filosofia da linguagem, e, mais especificamente, do giro linguístico. Esse modo de pensar não significa um abandono das construções de Husserl e Kant, mas uma evolução em que passa a considerar-se, com ênfase, o contexto cultural. Assim é que Miguel Reale7 pontua que “a questão do conhecimento não pode se reduzir a uma relação puramente lógica entre ser cognoscente e realidade cognoscível, porquanto um e outra se situam ab initio em um contexto cultural”. Afasta-se, com isso, qualquer dogmatismo em relação ao conhecimento. O dogmatismo advém do vocábulo “dogma”, cujo significado refere-se a algo que não precisa de explicação. Para essa posição epistemológica, não existe o problema do conhecimento: não vê o conhecimento como uma relação entre sujeito e objeto, acreditando que os objetos do conhecimento são dados absolutos e que o sujeito simplesmente apreende o objeto. As coisas existem, pura e simplesmente: a verdade está no objeto. Segundo tal concepção, o conhecimento é possível em sua plenitude: o sujeito pode conhecer o objeto em sua totalidade. As verdades são, assim, certas e indiscutíveis, não havendo função mediadora do intelecto humano na construção do conhecimento. Para o dogmático, também os objetos e os valores existem, pura e simplesmente, independente do sujeito cognoscente. É, segundo Johannes Hessen8, atitude do homem ingênuo, sendo a primeira e mais antiga posição. Por outro lado, o fato de o conhecimento ser construído pelo ser humano e, portanto, inexistir uma verdade objetiva e absoluta, não implicar a adoção do ceticismo. O ceticismo, corrente oposta ao dogmatismo, nega a possibilidade do conhecimento. Prega o ceticismo pirrônico (ou pirronismo) que, como o sujeito não pode

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Cinco temas do culturalismo, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 28. Teoria do conhecimento, trad. João Vergílio Gallerani Cuter, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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apreender o objeto, o conhecimento é impossível. Em consequência, não se pode formular qualquer juízo, restando ao sujeito abster-se de julgar. Esse ceticismo, de caráter radical e absoluto, porém, representa uma contradição em termos, pois afirmar que o conhecimento é impossível implica dizer que se conhece algo: a impossibilidade do conhecimento. Com ele não se confunde o ceticismo acadêmico, postura acadêmica que reconhece nunca termos certeza de algo, de modo que não podemos dizer que uma proposição é verdadeira, mas que parece verdadeira. Na esteira do constructivismo lógico-semântico, o conhecimento é possível: realiza-se com suporte na linguagem. Firmada essa premissa, consideramos que o fenômeno do conhecimento não se opera entre um sujeito cognoscente e um objeto da experiência, pois qualquer coisa do mundo lá fora só passa a ser suscetível de se conhecer quando apreendida pelo ser humano, que a constitui linguisticamente. Conhecer não significa a simples apreensão mental de um objeto da existência concreta. Ao contrário, é o intelecto que produz os objetos que conhecemos. Em consequência, sendo produzido pelo homem, o conhecimento apresentase condicionado ao contexto em que se opera, dependendo do meio social, do tempo histórico e até mesmo da vivência do sujeito cognoscente. Esse contexto é composto pelo conjunto de elementos que, de algum modo, condicionam a significação de um enunciado. Tomados o conhecimento e seu objeto como construções intelectuais, sua existência dá-se pela linguagem: metalinguagem o primeiro; linguagem-objeto o segundo. Só há realidade onde atua a linguagem, assim como somente é possível conhecer o real mediante enunciados linguísticos. Quaisquer porções do nosso meio-envolvente que não sejam formadas especificamente pela linguagem permanecerão no campo das meras sensações, e, se não forem objetivadas no âmbito das interações sociais, acabarão por dissolver-se no fluxo temporal da consciência, não caracterizando o conhecimento, na sua forma plena. Nesse sentido, anota Miguel Reale9 que “enquanto este não se torna objetivo e comunicável, não há como se falar em conhecimento propriamente dito. (...) enquanto o ‘conhecido’ não se exterioriza, revelando-se ‘objeto cultural’, como tal, não há ainda plenitude de conhecimento e comunicação”. Há, entre conhecimento e comunicação, um vínculo incindível. Só existe conhecimento, propriamente dito, quando este se torna objetivo e comunicável. E esse ato de objetivação, convém registrar, é de ordem cultural.

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Idem, p. 42.

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Com isso, tem-se a superação da dualidade sujeito cognoscente/realidade conhecida: o que se percebe é a realidade vista pelo sujeito, sendo dependente de condições subjetivas e intersubjetivas. O conhecimento é uma relação entre linguagens: a do sujeito cognoscente e a do objeto (aquilo que do objeto se fala). Podemos dizer, então, que o conhecimento é sempre meta-conhecimento, já que para conhecer algo é preciso uma pré-compreensão daquilo que se pretende conhecer. Eis do dado da cultura, atuando como condição a priori do conhecimento.

3. Concepção de Vilém Flusser: a linguagem cria a realidade Vilém Flusser10 afirma que universo, conhecimento, verdade e realidade são aspectos linguísticos. Aquilo que nos vem por meio dos sentidos e que chamamos realidade é dado bruto, que se torna real apenas no contexto da língua, única criadora da realidade. Algo se realiza (se torna real) apenas dentro do processo linguístico, quando esse algo é compreendido pelos intelectos em conversação autêntica. Tais axiomas não implicam negação do conhecimento, da realidade ou da verdade. Nega-se, apenas, o caráter absoluto e objetivo de tais conceitos. Por essa perspectiva, conhecimento, realidade e verdade ocorrem no contexto da língua. A famosa correspondência entre frases e realidade não passa de correspondência entre duas frases. Vilém Flusser abandona o conceito de realidade como conjunto de dados brutos, optando por entender que os dados brutos se realizam quando articulados em palavras. Utilizando a alegoria de uma árvore, as raízes (os sentidos) entram em contato com os dados brutos e os sugam, levando-os ao tronco (intelecto). O que chega ao tronco, porém, não são dados brutos, mas palavras. Há um abismo intransponível ao intelecto entre o dado bruto e a palavra. O intelecto sabe dos sentidos e dos dados brutos que vier a colher, mas sabe deles em forma de palavras. E essa seiva dirige-se até a copa (o espírito), onde produz folhas, flores e frutos, ou seja, produz objetos culturais. Para o ser humano, portanto, inexiste o dado. Qualquer elemento pressupõe um sujeito intencional e uma linguagem. O conhecimento pode ser visto, assim, como processo de fabricação de mundos, em que a recepção e a interpretação são atividades indistintas.

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Língua e realidade, São Paulo: Annablume, 2004, passim.

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Com efeito, o pensamento de Vilém Flusser, objetivado na obra Língua e realidade, editado pela primeira vez no ano de 1963, apresenta uma proposta inovadora e atual, que vai ao encontro do modelo edificado por Lourival Vilanova: o constructivismo lógico-semântico. A questão que se coloca como pano de fundo diz respeito ao modo pelo qual as coisas constituem-se, isto é, o modo pelo qual as coisas são. E, segundo Vilém Flusser, as coisas são quando se realizam pela linguagem. Sobre o assunto, convém remeter o leitor à obra Pensamento e movimento, do filólogo Pinharanda Gomes. Anota o autor que “O ser só devém real pelo pensar e, por isso, o motivo de, na ordem lógica, o ser vir colocado depois do pensar”. O ser só se torna real pelo pensar. E, como o pensar é constituído pela linguagem, podemos inferir que o ser só se torna real pela linguagem. É a linguagem (o pensar) constituindo a realidade (o ser). A essência das coisas, tomadas como dados brutos, não têm existência para o ser cognoscente. É real apenas aquilo se insere nos limites da linguagem humana. Recorramos, novamente, às lições de Pinharanda Gomes11: “O ser, que é, emerge de si mesmo para fora (ex-istir), originando a existência que está, mas não é. A existência revela o ser, mas o ser, ou essência, esconde-se e continua oculto, sob a existência”. A existência prescinde da essência, mas não prescinde da linguagem. E o que conhecemos, o que nos é real, reside na existência: a forma pelo qual algo nos é apresentado, em dado instante, mediante linguagem. Isso vai ao encontro de nossa proposição12, segundo a qual o sentido de um significante não se confunde com o referente, considerado a coisa em si mesma: seu significado nada mais é que outro significante. Pensamos não existir correspondência entre as palavras e os objetos. A linguagem não reflete as coisas tais como são (filosofia do ser) ou tais como desinteressadamente percebe uma consciência, sem qualquer influência cultural (filosofia da consciência). A significação de um vocábulo não depende da relação com a coisa, mas do vínculo que estabelece com outras palavras. Nessa linha de raciocínio, a palavra precede os objetos, criando-os, constituindo-os para o ser cognoscente. Como anota Dardo Scavino13, “não existem fatos, só interpretações, e toda interpretação interpreta outra interpretação”. Daí a conclusão de que se a coisa não precede a interpretação, só aparecendo como tal 11

Pensamento e movimento, Porto: Lello & Irmãos Editores, 1974, p. 13. A prova no direito tributário, 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2008, p. 3-4. 13 La filosofía actual: pensar sin certezas, Buenos Aires: Paidós, 1999, p. 36 (tradução nossa). 12

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depois de ter sido interpretada, ou seja, depois de constituída em linguagem, no bojo de certo contexto cultural. Algo só tem existência no mundo social quando a palavra o nomeia, permitindo que apareça para a realidade cognoscente. Lenio Luiz Streck14 é preciso ao discorrer sobre o assunto, asseverando não ser possível falar sobre algo que não se consegue verter em linguagem: “Isto porque é pela linguagem que, simbolizando, compreendo; logo, aquele real, que estava fora do meu mundo, compreendido através da linguagem, passa a ser real-idade. Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. (...) A construção social da realidade implica um mundo que pode ser designado e falado com as palavras fornecidas pela linguagem de um grupo social (ou subgrupo). O que não puder ser dito na sua linguagem não é parte da realidade desse grupo; não existe, a rigor”. As coisas não precedem o discurso, mas nascem com ele, pois é exatamente o discurso que lhes dá significado. Consoante sublinha Manfredo Araújo de Oliveira15, “não existe mundo totalmente independente da linguagem (...). A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade”. E é em busca dessa inteligibilidade e seu aprimoramento que deixamos de associar palavras a coisas, passando a relacioná-las com outras palavras, mediante aquilo que se intitula definições. Como se vê, o significado não consiste na relação entre suporte físico e objeto representado, mas na relação entre significações16. As assertivas não denotam os acontecimentos em si, mas outras palavras. A verdade não corresponde à identidade entre determinada proposição e o mundo da experiência, mas à compatibilidade entre enunciados17. Seguimos a linha das teorias retóricas, baseadas no princípio da autoreferência do discurso, contrapondo-nos às teorias ontológicas, que consideram a linguagem humana simples meio de expressão da realidade. Noticia Paulo de Barros

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Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 178 (grifado no original). 15 Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, São Paulo: Loyola, 1996, p. 13. 16 Signo é a unidade do sistema comunicacional, apresentando o status lógico de relação, mais especificamente, uma relação triádica, onde um suporte físico (palavra falada, consistente nas ondas sonoras, ou palavra escrita, como o depósito de tinta no papel ou de giz na lousa) se associa a um significado (objeto conceitual a que o suporte físico se refere) e a uma significação (idéia do objeto referido). 17 Sobre a definição do conceito de verdade, cf. Fabiana Del Padre Tomé, A prova no direito tributário, 2ª ed., São Paulo: Noeses, 2008.

12 Carvalho18 que “a adoção desse princípio filosófico implica ver a linguagem como não tendo outro fundamento além de si própria, não havendo elementos externos à linguagem (fatos, objetos, coisas, relações) que possam garantir sua consciência e legitimá-la”. É a linguagem que cria a realidade. Só se conhece algo porque o homem o constrói por meio de sua linguagem.

4. Os horizontes da cultura como limites à interpretação do direito Toda linguagem, na qualidade de conjunto sígnico, é composta por suporte físico, significado e significação. Com efeito, sendo o direito positivo constituído pela linguagem, nele podemos identificar essa relação triádica inerente aos signos, apresentando-se a norma jurídica como significação construída a partir do texto, que é o suporte físico. A norma jurídica, portanto, não se confunde com o texto do direito positivo, isto é, com as expressões linguísticas que a veiculam. Estas figuram apenas como ponto de partida para a construção daquela. Como sabemos, não há texto sem contexto: só podemos falar em texto quando verificada a união do plano de conteúdo ao plano de expressão. Todavia, esclarece José Luiz Fiorin19, a diferenciação entre a imanência (plano de conteúdo) e a manifestação (união do conteúdo com a expressão) mostra-se metodologicamente necessária, já que um mesmo conteúdo pode ser expresso por diferentes planos de expressão e vice-versa. Ter consciência dessa distinção e, ao mesmo tempo, da relação intrínseca entre os planos da linguagem, é imprescindível para a construção de sentido normativo. Os enunciados linguísticos, tomados em sua dimensão material20, não são portadores de significações. São, nas palavras de Paulo de Barros Carvalho, “estímulos que desencadeiam em nós produções de sentido”21. Não é correta, por conseguinte, a afirmação segundo a qual extraímos a norma jurídica dos enunciados prescritivos. Pelo processo interpretativo, o jurista não reproduz ou descobre o verdadeiro sentido da lei, mas constrói o sentido, edificando o conteúdo normativo. Eis a manifestação do constructivismo lógicosemântico aplicado ao direito. No processo de construção normativa, a literalidade textual é utilizada pelo intérprete apenas como ponto de partida do percurso gerativo de sentido. Tal percurso 18

Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 5. Elementos de análise do discurso, São Paulo: Contexto/EDUSP, 1989, p. 32. 20 “Enunciado” é uma frase bem composta, em que o suporte físico está relacionado a um sentido. Diante da dualidade de componentes, o termo “enunciado” pode ser utilizado para fazer referência tanto à forma expressional, como ao sentido a ele atribuído. 19

13 consiste, segundo José Luiz Fiorin22, em “uma sucessão de patamares, cada um dos quais suscetível de receber uma descrição adequada, que mostra como se produz e se interpreta o sentido, num processo que vai do mais simples ao mais complexo”. Para fins de construção normativa, deve o intérprete percorrer os quatro planos em que se manifesta o direito positivo, quais sejam: (i) o das formulações literais, (ii) o de suas significações enquanto enunciados prescritivos, (iii) o das normas jurídicas e (iv) o das relações de subordinação e de coordenação normativa, que compõe a forma superior do sistema de normas jurídicas. Apenas perfazendo essa trajetória interpretativa será possível “conhecer o direito”. As formulações literais consistem no conjunto de enunciados, tomados no plano da expressão. Base empírica do conhecimento do direito posto, são suportes físicos das significações jurídicas e primeiro contato do intérprete com a mensagem legislada. A partir do contato com essa literalidade textual, ingressa o intérprete no plano do conteúdo, formado pelo conjunto das significações dos enunciados prescritivos. Nessa etapa, isolam-se os enunciados, atribuindo-lhes significações. Passa o intérprete, então, ao plano das significações normativas, em que agrupa as significações dos enunciados prescritivos, produzindo unidades irredutíveis de manifestação do deôntico, as quais, articuladas em relações de coordenação e subordinação, compõem o sistema normativo23. Convém ressaltar, ainda, que a norma jurídica não é redutível à soma das significações dos enunciados prescritivos. É preciso que essas significações sejam articuladas entre si, compondo uma estrutura lógica que transmita uma mensagem deôntica portadora de sentido completo. E, na maior parte das vezes, é necessário manipular dezenas de dispositivos para alcançarmos compostura de uma única regra jurídica, na plenitude de sua configuração lógica. Nesse percurso, o intérprete constrói o sentido normativo. Essa atribuição de sentido, porém, não pode ser feita de modo arbitrário ou ilimitado. Hão de observarem-se, sempre, os horizontes da cultura.

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Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p. 16-17. Elementos de análise do discurso, p. 17. 23 Paulo de Barros Carvalho, analisando o trajeto de elaboração do sentido normativo, denominou o conjunto dos enunciados prescritivos no plano da literalidade de S1, o conjunto dos conteúdos de significação dos enunciados prescritivos de S2, o conjunto articulado das significações normativas de S3 e a forma superior do sistema normativo de S4. Salienta ainda esse autor que, efetuado esse percurso, o intérprete terá que exarar em linguagem própria a norma jurídica construída, regressando ao subdomínio S1 (Curso de direito tributário, 21ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 111-133.). 22

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Pela visão hermenêutico-analítica, a interpretação só é possível se efetuada com suporte em uma pré-compreensão. Essa pré-compreensão, que antecede a interpretação e, portanto, o próprio conhecimento, decorre da cultura. O constructivismo lógico-semântico não autoriza concluir que o intérprete tenha liberdade para atribuir a um determinado vocábulo o sentido que bem lhe aprouver. É claro que há uma liberdade estipulativa, porém limitada pelos horizontes da cultura. Caso contrário, não poderíamos nem sequer falar na existência de ambiguidade e vaguidade dos vocábulos, dificuldades semânticas presentes onde houver linguagem. A ambiguidade é um caso de incerteza designativa, ocorrendo quando coexistirem dois ou mais significados relativamente a uma única palavra. Pode ser do tipo homonímia, como é o caso do termo manga, que designa uma fruta ou uma parte do vestuário; apresentar-se sob a forma de polissemia, quando um mesmo termo designa significados conectados metaforicamente (é possível que a palavra pesado refira-se a um livro, a uma tonelada de ferro ou a uma pessoa cansativa); ou, ainda, ser do tipo processoproduto, quando a palavra fizer alusão tanto a uma atividade como ao seu resultado (o termo contrato pode designar o ato de contratar ou os documentos resultantes dessa atividade). A vaguidade, por sua vez, ocorre quando não há certeza acerca da aplicabilidade e extensão de um termo, em virtude da inexistência de limites precisos para sua denotação. Trata-se de imprecisão no significado de uma palavra, conforme elucida Luis Alberto Warat24: “Metaforicamente, pode-se dizer, com referência a qualquer denotação dos termos da linguagem natural, que ela apresenta três zonas: a) de luminosidade positiva – composta pelos objetos ou situações onde não existe nenhuma dúvida em relação a sua inclusão na denotação; b) de luminosidade negativa – composta pelos objetos ou situações que com certeza não entram na denotação; c) de incerteza – onde existem legítimas dúvidas quanto ao fato do objeto ou situação entrar ou não na denotação. Nesta zona de incerteza é onde se apresenta o problema da vagueza”. Os dois problemas semânticos acima referidos só existem porque os sujeitos cognoscentes, em relações de intersubjetividade, atribuíram conteúdos de significação, de caráter conotativo, aos termos de determinada língua. Mas, que determina os limites do conteúdo semântico de uma palavra? Entendemos ser exatamente a cultura.

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O direito e sua linguagem, 2ª ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1995, p. 76-77.

15 Ensina Lourival Vilanova25 que a cultura é um fato que apresenta três dimensões: “aos objetos físicos se conferem significações, que partem de sujeitos (seus criadores ou receptores), que entre si, por causa ou em consequência dessas significações, estendem uma teia de inter-relações sociais”. Desse modo, a cultura ultrapassa a subjetividade individual, passando o vocábulo e o sistema articulado de palavras (frase) a serem transubjetivos: é a “forma destacada que a vida individual e coletiva vai construindo como firmes pontos de apoio para ir prosseguindo em sua trajetória histórica”. Empregando a terminologia de Vilém Flusser, podemos dizer que a cultura decorre da conversação, em que os intelectos se realizam pelo contato com outros intelectos. Sendo o direito um objeto cultural, criado pelo homem e integrado na cultura, a qual lhe dá sentido, não há como falar em uma solução única, quando se está diante da aplicação do direito. O adágio segundo o qual, “na clareza da lei cessa a interpretação”, não se sustenta. Até mesmo para dizer que uma lei é clara, demanda-se interpretação, a qual pretende dar, ingenuamente, aquele sentido unívoco. E isso ocorre exatamente porque quando o legislador elabora o texto, tomado como suporte físico, não constitui a norma jurídica, mas apenas um ponto de partida para sua construção. A norma jurídica será construída pelo aplicador do direito. Mas isso não significa desprezo pelo suporte físico. O texto de lei é de suma importância, pois o aplicador do direito a ele está adstrito. Sua liberdade interpretativa decorre do fato de que o texto não contém, em si, a significação: esta precisa ser construída pelo próprio intérprete. Por outro lado, há limites a essa liberdade de interpretação, posta pelos horizontes da cultura. Não há como se atribuir ao vocábulo um sentido que não se coaduna ao contexto comunicacional no qual é expedido. Tomada a cultura como “conjunto de bens que a espécie humana vem historicamente acumulando para realização de seus fins específicos”26, e colocando-se a cultura como limite à atribuição de sentido, supera-se a subjetividade particular, evitandose a institucionalização do caos. Por isso, Lourival Vilanova27 insiste a respeito da necessidade de um mínimo de consenso: “Ingressando no domínio das formas sociais, o sujeito, de certo modo, objetiva-se (sem prejuízo de sua subjetividade, que cresce em profundidade e extensão, com a multiplicação dos círculos sociais em que participa): adota

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“Notas para um ensaio sobre a cultura”, in Escritos jurídicos e filosóficos, São Paulo: Axis Mvndi/Ibet, 2003, v. 2, p. 284. 26 Miguel Reale, Cinco temas do culturalismo, p. 8. 27 “Notas para um ensaio sobre a cultura”, in Escritos jurídicos e filosóficos, p. 310.

16 ‘maneiras de pensar, sentir e querer’ que preexistem e sobrevivem à sua existência individual posta e imposta pelo contorno social, utiliza um aceno de experiências que já encontra, concebe e manipula os objetos por intermédio dos quadros de conhecimento e valoração de que não foi autor, insere-se dentro de formações coletivas sem decisão própria (família, classe, nação) e social inteiro como que se condensa e lhe penetra gradual e impositivamente por meio da linguagem, o fator de objetivação social por excelência”. O limite está, portanto, no universo das interações humanas. E como tais interações, além de serem compostas por linguagem, também produzem linguagem, podemos dizer que os limites estão na própria linguagem.

5. Conclusões Efetuada essa breve digressão a respeito do constructivismo lógicosemântico e de sua relação com a obra de Vilém Flusser, concluímos que a linguagem é a base da verdade, do conhecimento e da própria realidade. O constructivismo lógico-semântico, unindo o emprego do método analítico à tendência culturalista, apresenta-se como importante instrumento para o estudo do direito positivo. Com suporte nele, edifica-se uma teoria das normas bem estruturada em termos lógicos, que apresenta firmeza de conteúdo no nível semântico, de grande utilidade na aplicação do direito. Por esse caminho, o exegeta terá condições de proceder ao exame da estrutura interna normativa, bem como das relações lógicas existentes na integração das normas com outras unidades do sistema. Tomamos o direito positivo como texto, produto da atividade humana e suscetível de interpretação. Seu estudo demanda, de modo impreterível, a presença do contexto. Esse contexto decorre de relações intersubjetivas, formando pré-compreensões em determinadas condições de espaço e de tempo. Eis a cultura, realizada no âmbito do historicismo social. Firmadas essas premissas, a construção normativa há de ater-se aos horizontes da cultura. Norma jurídica é a significação que, apresentando-se na forma de um juízo hipotético, transmite mensagem deôntica portadora de sentido completo, tendo por finalidade a regulação das condutas humanas intersubjetivas. Essa significação é edificada a partir de um suporte físico, o qual, a despeito de não ser detentor, ele próprio, de sentido,

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figura como importante limite à interpretação, já que suas possíveis significações estão estabelecidas pelo sistema linguístico em que se insere. O intérprete, ao construir o sentido jurídico, precisa considerar o contexto. Esse contexto é formado pelos elementos da cultura de determinada comunidade, cultura esta que só assume tal qualificação porque constituída em linguagem, no âmbito da conversação entre intelectos.

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