Villa-Lobos: umas pistas para uma escuta historicamente informada

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Villa-Lobos: umas pistas para uma escuta historicamente informada. Didier Guigue UFPB/CNPq/[email protected]

Resumo: Tomo o Choros n. 6 e a Introdução ao Choros como exemplos sonoros para ouvir e discutir alguns aspectos da concepção estética de Villa-Lobos. Mais especificamente, convoco os conceitos de "paisagem hi-fi" de Murray-Schafer, e "musique concrète" de Pierre Schaeffer, para mostrar como, não só nos trechos escolhidos mas de modo geral no ciclo completo dos Choros, se colocam diversos binômios tradicionalmente discutidos acerca deste compositor: cultura/natura, ordem/caos, e brasilidade/modernidade. Neste último ponto, faço também referência ao conceito de "visão edênica" do Brasil, nos moldes que apontou Leonardo Martinelli. Palavras-chave: Choros; escuta; modernismo; brasilidade; II Simpósio Villa-Lobos.

Villa-Lobos: some insights for a historically informed listening. Abstract: I take the Choros n. 6 and the Introdução ao Choros as examples for listening and discuting some aspcets of Villa-Lobos' aesthetics. More precisely, I make use of the concepts of Murray-Schaffer's "hi-fi landscape" and Pierre Schaeffer's "musique concrète" to show how, not only in the selected samples but, in a more general way, in the complete cycle of Choros, are put some binomials which are traditionally discuted when dealing with this composer: culture vs nature, order vs chaos, e nationalism vs modernism. At this point, I refer also to the concept of the "edennist" vision of the Brazil, in the sense Leonardo Martinelli argued. Keywords: Choros; listening; modernism; nationalism; II Simpósio Villa-Lobos.

1. Villa-Lobos e a idéia edênica de «Brasil» A música de Villa-Lobos poderia ser caracterizada por uma curiosa e desnorteadora convivência entre a aparência do caos e a aparência da ordem. Digo "aparência" porque na realidade, sabemos que, tanto um, quanto outra, são intrínsecas de um sistema de composição que utiliza leis que escapam à modelos adquiridos (SALLES, 2009). Donde, porvezes, o caos ou a ordem não estarem onde se espera. Esta dicotomia é que gerou, na musicologia tradicional, a pecha de "informalidade" da sua música, e, por consequência, criou a preguiçosa justificativa de que não se precisava, ou podia, abordá-la de modo sistemático. Em compensação, um outro aspecto singular da sua estética, que, desde Mario de Andrade, suscitou bastante discussão e estudos, é como "modernismo" e "brasilidade" se interpenetram na sua música. Nessas alturas, a respeito desta tal "brasilidade", achei oportuno lembrar uma colocação de Leonardo Martinelli:





«A escolha de Villa-Lobos – carioca da gema nascido e criado em meio à efervescência urbana do Rio de Janeiro […] – em ainda […]representar o país quase que exclusivamente como um lugar de matas, bichos e índios deveu-se à constatação (já em sua primeira viagem à Paris) de que os velhos “motivos edênicos” 1 […] estavam ainda vivos e atuantes na imaginação dos europeus. […] Além disto, esta visão – misto de pitoresca com paradisíaca – era-lhe também muito conveniente aqui no Brasil, mostrando-se perfeitamente alinhada aos anseios das estruturas do poder que sustentavam a carreira do compositor. » (Martinelli, 2009: 76-80).

No entanto, é preciso guardar em mente que aspectos "nacionalistas" já se encontram presentes na sua música desde seus anos de formação – antes da sua viagem a Paris, portanto – o que não sinaliza outra coisa senão um interesse pessoal, genuíno, em pesquisar formas de inserir tópicas brasileiras na sua linguagem 2. Dentro desta contextualização, o que queria trazer aqui nesta mesa redonda, são algumas observações de um musicólogo na sua prática da escuta da música, e de como esta pode constituir o ponto de partida da atividade de análise. Pretendo chamar essencialmente a atenção sobre a sofisticação e complexidade do seu trabalho com a sonoridade, especificamente no campo da orquestração3.

2. Uma escuta dos Choros Como obra de referência, escolhi a Introdução aos Choros, datada de 19294 e composta após o compositor ter completado o seu ambicioso cíclo, a guisa de abertura. Adhemar Nóbrega enumera os Choros n. 3, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 13 e 14 – esses dois últimos sendo perdidos, como se sabe – como fontes para o material desta Introdução (NÓBREGA, 1973:137). A mesma começa com uma citação do Choros nº 6. Por isto, vamos ouvir o inicio deste. [audição] 1

Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) publicou em 1959 “Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil”. Nesta obra, Holanda « se debruça sobre os motivos edênicos presentes em diferentes fontes históricas compreendidas entre os séculos XV e XVIII. Neste contexto, o descobrimento das Américas e o seu processo de colonização foram o ponto de partida para a idéia do Novo Mundo enquanto materialização terrena do Jardim do Éden bíblico » (Martinelli, op. cit.: 76). Holanda analisa de que forma o país desempenhou papel central na consolidação desta idéia. 2 Vários autores contestem esta "ideologia da dependência". Cf. WOLFF, 2012. 3 Neste mesmo simpósio, vários conferencistas apontaram para a singularidade desta mesma dimensão na sua obra para piano, sobremaneira em Rudepoema. 4 Alguns musicólogos situem a composição desta obra em época ulterior, no final dos anos trinta ou inicio dos anos quaranta (cf. http://www.villalobos.ca/choros-intro).





A melodia de primeiro plano, na flauta, possui feições que aludem ao Lundú (NÓBREGA, op. cit.:55), facilitando assim uma identificação geo-cultural5. Ela é enquadrada por uma ambientação sonora que enfatiza o ruído, o "caos" sonoro pelo qual o compositor almeja simular uma paisagem sonora idealizada – essencialmente, por meio de superposições defasadas de padrões rítmicos. Reproduzo aqui a análise de Paulo de Tarso Salles: « As partes de tambi e tambu ajustam-se simetricamente […] ao compasso de quatro tempos; cuíca e roncador formam outro padrão simétrico com um ciclo de dois compassos completos; o ciclo do xilofone pode ser considerado a cada três tempos [...]; as cordas não estabelecem propriamente um ciclo, devido à assimetria de sua figuração rítmica. Ao mesmo tempo, essa quebra de simetria estabelece um equilibrio com a linha melódica da flauta, que também é assimétrica. » (Salles, op. cit.: 89-90).

O que constatamos, é que o compositor cria um espaço sonoro que MurraySchafer poderia qualificar de hi-fi – por "alta-fidelidade", em alusão àquela técnologia do tratamento do sinal sonoro –, isto é, um sistema que possui uma razão sinal/ruído favorável ao primeiro (MURRAY-SCHAFER, 1997 [1977]: 71)6. No caso, o elemento que identifica a "brasilidade" no seu aspecto cultural – a melodia que se apresenta como "indígena"7 – se destaca singularmente acima daquele que sinaliza seu aspecto natural – os "ruídos" que se organizam pseudo-caoticamente no segundo plano, supostas estilizações de algo como uma floresta tropical. Podemos desta forma inferir uma visão do mundo onde a cultura interviria para organizar, civilizar a natureza. O ouvinte, em todo caso, não tem nenhuma dificuldade em separar a "figura" do "fundo". O que vou pedir para vocês, não obstante, é de se esforçar em inverter a situação: abstrair a "figura" de primeiro plano para concentrar sua audição na qualidade sonora do "fundo", pois alí é que se aninha toda a inventividade e originalidade composicional de Villa-Lobos, a qual se expressa sobremaneira pelas estruturas verticais, as polifonias rítmicas, e as sonoridades. 5

Nóbrega sustenta que « se a partitura fosse executada sem anúncio do título, a saborosa melodia que a flauta faz ouvir [...] levaria o ouvinte medianamente arguto a identificar a fonte de inspiração do tema. » (op. cit.:55-56). 6 Para este autor, este tipo de situação é típica da paisagem sonora dos meios rurais. Nas cidades, a situação tende a ser lo-fi, haja vista que os sinas acústicos individuais se encontram « obscurecidos » por uma superpopulação de sons (Ibid., Ibidem). 7 Utiliso este termo em sentido amplo – e não no sentido restrito em que ele costuma apontar para os indios – haja vista que aquele melodia não refere a nenhuma etnia em particular.





A respeito desta dimensão, observo que a componente "ruidista" da orquestração vilalobiana não recebeu ainda quase nenhuma atenção no campo da análise musical. O essencial das fontes da sua escrita no plano do timbre reside sem dúvida na sua escuta pessoal da música e do mundo, sendo o fruto das suas experimentações no dominio do som. Por outro lado, seus contatos com compositores, obras e artistas a partir da sua primeira estada em Paris terão proporcionado subsidios. Em particular, o convívio com a música e a pessoa de Varèse rendeu manifestamente, para ambos, idéias sobre combinações de timbres, estratégias de orquestração, modelos de articulação e estruturação, e provavelmente ainda outros aspectos ligados a suas práticas respectivas8. [audição do Choros n.6] Porém, é preciso atentar à seguinte declaração de Villa-Lobos: « O clima, a cor, a temperatura, a luz, os pios dos pássaros, o perfume do capim melado entre as capoeiras, e todos os elementos do sertão serviram de motivos de inspiração para esta obra que, no entanto, não representa nenhum aspecto objetivo nem tem sabor descritivo.» (Villa-lobos, apud. Nóbrega, op. cit.:55, grifo meu).

Aí reside um ponto essencial: Villa-Lobos não se descreve como pintor paisagista. Ele capta e estiliza elementos sonoros daquela natureza que ele deseja que ela simbolize o Brasil, para intregrá-los em uma composição abstrata, onde se tornam objetos sonoros isolados da sua causa. Se aproxima então, de muito perto, do conceito de musique concrète que será elaborado a partir do final dos anos quarenta por Pierre Schaeffer, segundo o qual, como sabem, todos os sons disponiveis ao nosso redor, uma vez gravados, deveriam ser decontextualizados, para que, separados da sua carga referencial, possam se tornar os elementos primários de um novo "solfejo sonoro" (SCHAEFFER, 1952, passim). Ao afirmar, então, que os objetos sonoros que ele disse ter trouvés na natureza brasileira, uma vez inseridos numa composição, não devem mais remeter ao contexto original, Villa-Lobos coloca sua música dentro de um dos mais importantes movimentos estéticos do seu tempo, sinal da sua plena inserção no debate modernista. 8

SALLES, 2009 (op. cit.) dá várias pistas sobre esta frutificação recíproca (p. 11, 82-83, 103 et sq.). Insisto na reciprocidade no intuito de me afastar do equivocado discurso acerca da influência unilateral que os compositores latinos teriam sistematicamente sofrido por parte dos seus homônimos europeus, sem retorno, uma pecha muito frequente na literatura. Está mais do que em tempo de se abordar Varèse, Messiaen e outros, à luz dos possíveis subsídios que esses poderiam ter encontrado na música do compositor brasileiro.





Precisamos fazer o mesmo ao ouvir sua música: não procurar mais a floresta nem os indios; justo escutar. Pois a música de Villa-Lobos integra resolutamente e definitivamente esta civilização do som (SOLOMOS, 2011) que singulariza o Séc. XX. [O restante da intervenção consiste na audição comentada de trechos da Introdução, a partir dos insights sugeridos aqui].

3.

Referências Bibliográficas

MARTINELLI, Leonardo. Visão do Paraíso? Villa-Lobos e a idéia de Brasil. S. Paulo: USP, Anais do Simpósio Internacional Villa-Lobos, p. 76-80, 2009. MURRAY-SCHAFER, R. A afinação do mundo. S. Paulo: Editora UNESP, 1997. NOBREGA, Adhemar. Os Choros de Villa-Lobos. Rio de Janeiro: Fundação Nacional Pró-Memória/Museu Villa-Lobos, 1973. SALLES, Paulo de Tarso. Villa-Lobos: Processos composicionais. Campinas: Editora UNICAMP, 2009. SCHAEFFER, Pierre. A la recherche d’une musique concrète. Paris: Éditions du Seuil, 1952. SOLOMOS, Makis. Do Tom ao Som. Prefácio a GUIGUE, Didier. Estética da Sonoridade. Brasília: CNPq / João Pessoa: Editora Universitária / São Paulo: Pespectiva, 2011, p. 19. WOLFF, Marcus. Villa-Lobos nos anos vinte: do modernismo universalista à busca da brasilidade. S. Paulo: USP, Anais do II Simpósio Villa-Lobos, neste, 2012.

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