Vinhos velhos em odres novos: a Lei no 12.990/2014 (Lei de Cotas Raciais) entre as justiças comutativa e distributiva

May 26, 2017 | Autor: M. Wile dos Santos | Categoria: Teorias Da Justiça, Cotas, Leis de cotas
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Vinhos velhos em odres novos: a Lei nº 12.990/2014 (Lei de Cotas Raciais) entre as justiças comutativa e distributiva1 Maike Wile dos Santos2 I Em janeiro de 2016, C. D. de Araújo Brandão candidatou-se a uma vaga de escriturário num concurso público para o Banco do Brasil e foi recusado, ainda que sua classificação nos exames aos quais se submeteu fosse suficiente para ser aprovado caso fosse negro ou portador de alguma necessidade especial. Brandão pediu ao Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região que fosse declarada inconstitucional a prática instituída pela Lei nº 12.990/2014 (Lei de Cotas Raciais)3 em razão, principalmente, da violação ao direito à igualdade.4 O concurso foi feito com o objetivo de preencher quinze vagas. Delas, uma era destinada a um portador de deficiência, três para negros, e onze de ampla concorrência. Brandão classificou-se em 15º lugar, mas foi preterido por candidatos negros classificados em 25º, 26º, e 27º lugar. Neste breve texto tratarei de duas questões e de suas ligações mútuas. A primeira é se a prática instituída pela Lei nº 12.990/2014 pode ser considerada inconstitucional ou injusta. A segunda é se é devida a Brandão uma das vagas do concurso. Acredito que este caso é ilustrativo da aplicação tanto filosófica quanto prática do conceito de justiça: trata-se de um problema real que precisa ser teoricamente equacionado. II A Lei nº 12.990/2014 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas em concursos públicos destinados a cargos efetivos e empregos públicos. Podemos dizer que as vagas 1 Trabalho apresentado como pré-requisito para a conclusão do curso “Direito e Justiça” ministrado na graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no segundo semestre de 2016 pelo professor José Reinaldo de Lima Lopes. 2 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]. 3 BRASIL, Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Reserva aos negros 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 109, p. 3, 10 de junho de 2014. Seção I, parte 1. 4 Cf. RTOrd 0131622-23.2015.5.13.0025 (8ª Vara do Trabalho de João Pessoa, Juiz Adriano Mesquita Dantas, 20/01/2016).

oferecidas nesses concursos são recursos escassos, pois (i) há pessoas que as desejam, e (ii) as vagas oferecidas não são suficientes para satisfazer todas essas pessoas. Diante disso, a questão que surge é: como distribuir essas vagas? Ou melhor: como distribuir essas vagas de maneira justa? É em razão da escassez desses recursos que podemos dizer que o problema aqui tratado é um problema de justiça.5 A tese pressuposta neste texto é a de que há uma relação lógica e necessária entre direito e justiça. Tentarei, nos próximos parágrafos, esclarecer brevemente alguns aspectos que considero pertinentes dessa relação, e a partir dela, tentarei endereçar algumas respostas para os problemas que o caso analisado apresenta. Uma regra é uma medida, pois permite comparações de diferentes ações em diferentes contextos. Se uma regra é justa, ela é adequada, e se agimos de acordo com esta regra, estaremos agindo com justiça. Quando dizemos que “o sapato ficou ‘justinho’”, por exemplo, queremos dizer que a medida do sapato está adequada. Acredito que o direito consiste num conjunto de regras sistematicamente interrelacionadas. Desse ponto de vista, a existência do direito se relaciona aos “fatos institucionais”, pois sua existência depende de condutas humanas orientadas a partir de critérios objetivamente inteligíveis (é institucional) e que existem concretamente nas comunidades políticas (é um fato).6 Fatos institucionais são diferentes de “fatos brutos” (como uma árvore ou um lago) porque são fatos que dependem de sentido. Certamente outros componentes fazem parte daquilo que chamamos “direito” (tais como princípios, políticas, e valores), e este é um conceito essencialmente disputável, mas para os fins deste trabalho, esta concepção é suficiente. O argumento essencial aqui é o de que o direito consiste num conjunto de regras, e essas regras são objetivas, pois qualquer pessoa é capaz de entendê-las e tomá-las como orientadoras da sua ação. Se o direito é um conjunto de regras, quem dá sentido e unidade a elas é a justiça. Afinal, essas regras são constitutivas da própria sociedade, na medida em que distribuem ônus, benefícios e riscos da cooperação social.7 Se encararmos a sociedade como um 5 Cf. David Hume, An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 3, 1, Michigan: University of Michigan Library, 2007, p. 1-3 relações de justiça existem porque os recursos são escassos: “Let us suppose, that Nature has bestow'd on human race such profuse abundance of all external conveniencies, that, without any uncertainty in the event, without any care or industry on our part, every individual finds himself fully provided of whatever his most voracious appetites can want, or luxurious Imagination wish or desire. (…) In such a happy state (…) the cautious, jealous Virtue of Justice would never once have been dreamt of.”. 6 Cf. Neil MacCormick, “A Moralistic Case for A-Moralistic Law”, Valparaiso University Law Review 20 (1985), p. 8. 7 Daí a afirmação de John Rawls de que a sociedade é um empreendimento cooperativo. Cf. John Rawls, A Theory of Justice, Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 4.

“empreendimento cooperativo” - um conjunto de indivíduos em interação contínua – ela não é diferente das próprias regras que a constituem. 8 É inconcebível uma língua que exista fora, antes ou além de suas regras de gramática; da mesma maneira, é inconcebível uma sociedade que exista fora, antes ou além de sua forma de direito. 9 E como a justiça é a virtude que trata da relação entre os indivíduos numa comunidade, é ela quem dá a medida adequada das regras de direito.10 Há uma justiça que se manifesta na distribuição de honras, dinheiro, ou outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição de um todo. A essa justiça damos o nome de distributiva, e na tradição aristotélica, ela segue uma “proporção geométrica”, pois cada cidadão recebe o que lhe é devido na proporção de seu mérito. 11 Há uma justiça que exerce um papel corretivo nas transações entre os indivíduos. A essa justiça chamamos corretiva ou comutativa, e na tradição aristotélica, ela segue uma “proporção aritmética”, pois a partir dela, a igualdade deve ser mantida, para que ninguém tenha muito ou muito pouco.12 De acordo com Lima Lopes, por razões históricas, os modernos tendem a interpretar que a justiça distributiva não pode ser objeto de adjudicação. Isso porque o processo pelo qual se delibera e se dá a cada um o que lhe é devido nos conflitos distributivos não se resume a um jogo de soma zero – diferentemente dos conflitos mais paradigmáticos com os quais os modernos lidavam, como, por exemplo, as relações clássicas de compra e venda. Nos conflitos distributivos, embora haja o “seu” de cada um que constitui um todo, esse “seu” não é determinado a partir de uma simples troca. 13 Essas situações não podem ser resolvidas simplesmente tirando algo de alguém e transferindo para outro. A distinção entre justiça distributiva e justiça comutativa ajuda a raciocinar de maneira mais clara no disputado terreno do direito, e a confusão entre esses dois conceitos pode levar a decisões injustas. Essa confusão foi feita na decisão aqui analisada, e ela é em parte causa e 8 Pensemos no jogo de xadrez: as regras do jogo (o cavalo anda em “L”, o peão anda apenas uma casa, o jogo termina quando o rei adversário é eliminado) constituem o próprio jogo. Da mesma forma, o argumento que faço é o de que as regras de direito constituem a própria sociedade da qual ele faz parte. 9 Cf. José Reinaldo de Lima Lopes, “Aula inaugural”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (110) 2015, p. 910-911 10 Cf. Herbert L. A. Hart, O Conceito de Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 217: “A justiça é um segmento da moral primordialmente afeto não à conduta individual, mas às formas de tratar classes de indivíduos.”. 11 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, 4ª ed., Brasília, Universidade de Brasília, 2001, p. 95. 12 Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, p. 95. 13 Cf. José Reinaldo de Lima Lopes, As palavras e a lei, São Paulo: Editora 34, 2004, p. 230.

em parte consequência de outros equívocos cometidos pelo juiz. Um dos equívocos cometidos pelo juiz em sua decisão diz respeito à natureza do bem envolvido. Apesar de as vagas serem para o exercício de uma função pública, elas não são bens públicos, no sentido mais usual do termo. Bens públicos, por definição, são não-rivais e não-excluíveis. Isso significa que o uso desse bem não deve reduzir a quantidade disponível para outras pessoas (não-rival) e que o mesmo bem pode ser utilizado por mais de uma pessoa (não-excluível). Ora, uma vaga para um emprego só pode ser ocupada, ao mesmo tempo, por uma pessoa, e apenas por ela. Bens públicos também não são necessariamente providos pelo Estado. Pensemos, por exemplo, nas transmissões de rádio e televisão. No Brasil, por exemplo, esses bens são providos por entes privados, e são não-rivais e não-excludentes (além de indivisíveis). Vagas para um emprego público não se parecem com transmissões de rádio e televisão. Destacar as semelhanças e diferenças das diferentes situações é importante pois elas são fundamentais na determinação dos critérios de distribuição dos bens envolvidos. Afinal, a ideia de uma regra é justamente tratar igualmente os casos iguais, na medida de sua igualdade. O critério de distribuição das vagas adotado pelo juiz tem dois fundamentos principais. Em primeiro lugar, se fundamenta na natureza do cargo, que por ser técnico, deveria ser ocupado apenas pelos mais bem capacitados, independente de origem, raça, sexo, cor, idade, religião, orientação sexual ou outras características pessoais.14 Em segundo lugar, também teria fundamento no princípio da eficiência, nos termos do art. 37 da Constituição Federal. Para o juiz, como “cargos e empregos públicos são, em regra, de natureza técnica”, 15 esses cargos deveriam ser ocupados apenas por aqueles com maior aptidão técnica para o seu exercício. Estou disposto a concordar com esse argumento – ainda que eu não concorde com a comparação entre o cargo de escriturário e o cargo de médico, feita pelo juiz. O problema é que o juiz traça uma relação de causalidade entre a aptidão técnica para o exercício do cargo e a respectiva melhor classificação no concurso público. Essa relação não é necessária, muito menos intuitiva, e como serve de pressuposto para embasar o critério de distribuição de vagas que adota, deveria ter sido melhor analisada. Voltarei a este ponto mais à frente. O segundo fundamento que justificaria o critério de distribuição de vagas traçado pelo juiz estaria no princípio da eficiência (art. 37 da Constituição Federal 16). O primeiro ponto a 14 Cf. RTOrd 0131622-23.2015.5.13.0025 (8ª Vara do Trabalho de João Pessoa, Juiz Adriano Mesquita Dantas, 20/01/2016), p. 3. 15 Cf. RTOrd 0131622-23.2015.5.13.0025 (8ª Vara do Trabalho de João Pessoa, Juiz Adriano Mesquita Dantas, 20/01/2016), p. 4. 16 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito

ser questionado, quanto à constitucionalidade, é o da violação do art. 37 da CF. É difícil, acredito, dizer que a Lei de Cotas Raciais viola esse dispositivo, pois ainda que seu segundo inciso17 exija “aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego”, na sequência o mesmo dispositivo determina que esse concurso deverá ser feito na forma prevista em lei. A Lei de Cotas Raciais não dispensou a aprovação em concurso público, apenas colocou novos critérios para a determinação da aprovação no concurso – que não apenas a melhor classificação –, e isso mediante uma lei. Não é qualquer negro que pode ocupar as vagas, mas apenas aquele aprovado no concurso, seja nas vagas de ampla concorrência, seja nas vagas reservadas aos negros. O segundo ponto a ser questionado, quanto à justiça, é o do próprio critério: a eficiência como critério da distribuição. Em outras palavras: distribuo as vagas a partir da eficiência. Ora, nem tudo o que é eficiente é também justo. Uma sociedade justa é mais eficiente, e uma distribuição justa da riqueza promove menos obstáculos à cooperação. 18 Isso nos coloca diante da questão: qual critério deve ser primeiramente considerado, o da justiça ou o da eficiência? Para Robert Cooter,19 parece ser a eficiência. Por outro lado, para Elinor Ostrom,20 parece ser a justiça – para ficarmos em apenas dois exemplos. Acredito que é possível nos beneficiarmos da discussão de prós e contras, custos e benefícios, a partir das limitações que a justiça impõe. Como disse, a justiça é condição de inteligibilidade do direito. Isso significa que é só a partir dela, e limitada por ela, que a discussão sobre consequências (e deste modo, sobre eficiência) pode acontecer. Ainda que tal critério pudesse ser utilizado no caso em questão (uma questão empírica), isso não significa que isso seria o mais justo a se Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, (…). 17 II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; 18 Cf. Elinor Ostrom, Governing the Commons: the evolution of institutions for collective actions, New York: Cambridge University Press, 1990. Em especial, ver o primeiro capítulo, “Reflections on the commons”. 19 Cf. Robert Cooter, “Justice at the Confluence of Law and Economics”, Social Justice Research 1 (1987). Tanto o direito quanto a economia partem de uma teoria da ação humana. Tanto uma disciplina quanto a outra partem de um paradigma de racionalidade – diferentemente da psicologia que, segundo o autor, parte de um paradigma de irracionalidade. O que as diferencia são seus respectivos sentidos. Na economia, o que dá sentido à disciplina é o conceito normativo de eficiência. No direito, o que dá sentido à disciplina é o conceito normativo de justiça. É exatamente essa diferença que Cooter parece apontar em seu texto. Para José Reinaldo de Lima Lopes, o sentido da economia é dado pela eficiência, e envolve custos e benefícios. O sentido do direito é o de se dizer se algo é proibido, permitido ou obrigatório, e faz isso a partir de uma regra. Ambas as disciplinas são derivadas da aplicação do raciocínio prático, e envolvem, portanto, juízos. Cf. José Reinaldo de Lima Lopes, “Raciocínio jurídico e economia”, Revista de Direito Público da Economia 8 (2004). 20 Cf. Elinor Ostrom, Governing the Commons.

fazer (uma questão de princípio), nem que Brandão tivesse direito constitucional a exigir que fosse esse o critério a ser utilizado. Outro argumento apontado pelo juiz como indicativo da injustiça que a prática instituída pela Lei de Cotas Raciais criou é o “duplo favorecimento” dos negros. Isso porque, para ele, os negros já seriam beneficiados pela política afirmativa instituída pela Lei nº 12.711/201221 (declarada constitucional pela ADPF nº 186), que institui um sistema de cotas raciais e sociais para ingresso em universidades federais. Há dois equívocos nesse argumento. O primeiro deles diz respeito às circunstâncias fáticas do caso analisado. A vaga para a qual Brandão se candidatou era de escriturário do Banco do Brasil. De acordo com o edital do concurso (indicado na própria decisão)22, não se exige diploma universitário como requisito para ocupar a vaga – apenas diploma de curso de nível médio. Desta forma, à luz do argumento elaborado pelo juiz, a reserva de cotas para negros não os estaria “favorecendo duplamente”. Ainda que o cargo em questão exigisse diploma universitário, e que a respectiva instituição de ensino tivesse um sistema de cotas, a prática instituída pela Lei de Cotas Raciais não seria injusta. Se fôssemos distribuir recursos que consideramos valiosos (como vagas num concurso público) sem saber qual posição assumiríamos numa dada comunidade (sem saber qual a renda, o gênero, ou a raça que teríamos), a partir de quais critérios faríamos isso? Esse experimento mental é uma aplicação mais concreta da ideia de justiça como equidade, de John Rawls. A tese de Rawls é complexa, mas o experimento mental a partir de um “véu de ignorância” nos ajuda a entender certas intuições que temos, e como elas se relacionam a princípios mais gerais em que também acreditamos.23 Diante dessa situação, a primeira orientação (ou o primeiro princípio) com a qual concordaríamos seria a de que todos teriam direito ao mesmo esquema de direitos e liberdades básicas. A segunda orientação seria a de que as desigualdades sociais e econômicas deveriam

21 BRASIL, Lei nº 12.711/2012, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, n. 169, p. 1, 30 de agosto de 2012. Seção 1, parte 1. 22 Cf. RTOrd 0131622-23.2015.5.13.0025 (8ª Vara do Trabalho de João Pessoa, Juiz Adriano Mesquita Dantas, 20/01/2016), p. 7. O edital pode ser acessado em: . Acesso em 13 nov. 2016. Na página 1 consta o requisito básico para se inscrever no concurso: “2.3 - Requisito Básico: certificado de conclusão ou diploma de curso de nível médio expedido por instituição de ensino reconhecida pelo Ministério da Educação, Secretarias ou Conselhos Estaduais de Educação.”. 23 Cf. John Rawls, “Justice as Fairness: Political not Metaphysical”, Philosophy & Public Affairs 14 (1985). Nesse texto, o autor faz alguns apontamentos sobre o conceito de justiça entendido como equidade, apresentado no livro “Uma Teoria da Justiça”, do mesmo autor.

beneficiar à sociedade como um todo, de maneira geral, e aos menos favorecidos, de maneira especial. Se encararmos a sociedade como um “empreendimento cooperativo”, esse empreendimento só tem sentido se se der entre pessoas livres e iguais. A prática instituída pela Lei de Cotas Raciais estabelece uma desigualdade que beneficia (i) à sociedade como um todo, e (ii) aos menos favorecidos? A resposta certamente é positiva. Quanto a (i), o aumento no bem-estar geral é nítido pois engaja pessoas excluídas do esquema de cooperação social de uma sociedade desigual (afinal, uma sociedade justa tem menos obstáculos à cooperação). Quanto a (ii), negros foram historicamente excluídos de diversos espaços na comunidade brasileira. No que diz respeito à dificuldade no estabelecimento de critérios de análise sobre quem pode ser ou não ser considerado negro no dito concurso, 24 essa é uma questão mais empírica do que propriamente normativa. A dificuldade tanto no estabelecimento desses critérios quanto na sua aplicação nos casos particulares não implica que não deva haver políticas de inclusão para negros, de maneira geral, ou que a Lei de Cotas Raciais deva ser considerada inconstitucional, nesse caso em especial. A instituição de cotas, mesmo para a vaga de escriturário, pode ser encarada como medida de justiça, e a prática instituída pela Lei de Cotas Raciais não pode ser considerada inconstitucional ou injusta. III Se a prática instituída pela Lei de Cotas Raciais não pode ser considerada inconstitucional ou injusta, é devida a Brandão uma das vagas de escriturário no Banco do Brasil? A resposta, claramente, é não. Brandão não tem direito constitucional de que o Estado lhe garanta a respectiva vaga apenas porque foi classificado em 15º lugar no concurso. Seus direitos não teriam sido violados caso o Estado não criasse essas vagas, ou não abrisse um concurso público para preenchê-las, ou, ainda, caso seus méritos intelectuais não fossem suficientes para que pudesse ocupar tal vaga.25 O equívoco de Brandão está em tomar o critério de classificação como o único critério possível de distribuição das vagas do respectivo concurso. Em parte, isso se deve à confusão entre as lógicas distributiva e comutativa: as vagas deste concurso público se inserem num “todo” mais abrangente que a mera relação entre o Estado-contratante e o aprovado24 Cf. RTOrd 0131622-23.2015.5.13.0025 (8ª Vara do Trabalho de João Pessoa, Juiz Adriano Mesquita Dantas, 20/01/2016), p. 5. 25 Desta forma, eu ainda que eu concorde com o argumento do juiz de que “não existe direito humano ou fundamental garantindo cargo ou emprego público aos cidadãos” (p. 2), o faço por razões bastante distintas. O juiz acertou na disposição, mas errou na fundamentação.

contratado. Acredito que os padrões intelectuais se justificam e são levados em conta em concursos públicos não porque premiam, de certa forma, os mais inteligentes, mas porque parecem servir a uma política pública útil – é bom para a comunidade como um todo que escriturários do Banco do Brasil (e funcionários públicos em geral) sejam inteligentes. Isso não significa, no entanto, que Brandão (ou qualquer pessoa) tenha o direito de exigir que a inteligência seja o único critério de admissão a ser levado em conta. Além disso, a desigualdade que a Lei de Cotas Raciais institui é uma desigualdade justificada, pois ela beneficia à sociedade como um todo – na medida em que engaja pessoas excluídas do esquema de cooperação social, dada a injustiça estrutural da sociedade brasileira –, e também beneficia aos menos favorecidos – afinal, negros foram historicamente excluídos de diversos espaços na comunidade brasileira. No caso analisado, o juiz fundamentou sua decisão no princípio da igualdade, mas se equivocou na justificação – e decidiu de maneira contrária ao que acredito ser o mais correto. Bibliografia Aristóteles. Ética a Nicômaco. 4ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2001. Cooter, Robert. “Justice at the Confluence of Law and Economics”. Social Justice Research 1 (1987). Hart, Herbert L. A.. O Conceito de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Hume, David. An Enquiry Concerning the Principles of Morals, 3, 1. Michigan: University of Michigan Library, 2007. Lima Lopes, José Reinaldo. “Aula inaugural”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (110) 2015. _________. “Raciocínio jurídico e economia”. Revista de Direito Público da Economia 8 (2004). MacCormick, Neil. “A Moralistic Case for A-Moralistic Law”. Valparaiso University Law Review 20 (1985), p. 8. Ostrom, Elinor. Governing the Commons: the evolution of institutions for collective actions. New York: Cambridge University Press, 1990. Rawls, John. A Theory of Justice, Oxford: Oxford University Press. 1992. _________. “Justice as Fairness: Political not Metaphysical”. Philosophy & Public Affairs 14 (1985).

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