Vinicius Rodrigues Serafim A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: O CASO DE \" CONCERTO CAMPESTRE \" , DE LUIS ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

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Vinicius Rodrigues Serafim

A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: O CASO DE “CONCERTO CAMPESTRE”, DE LUIS ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Santa Maria, RS 2012

Vinicius Rodrigues Serafim

A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: O CASO DE “CONCERTO CAMPESTRE”, DE LUIS ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Trabalho final de graduação apresentado ao Curso de Letras Habilitação Línguas Portuguesa e Inglesa e respectivas Literaturas – Área da Comunicação, Artes e Letras, do Centro Universitário Franciscano, como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Letras.

Orientadora: Prof. Drª. Vera Elizabeth Prola Farias

Santa Maria, RS 2012

Vinicius Rodrigues Serafim

A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: O CASO DE “CONCERTO CAMPESTRE”, DE LUIS ANTÔNIO DE ASSIS BRASIL

Trabalho final de graduação apresentado ao Curso de Letras Habilitação Línguas Portuguesa e Inglesa e respectivas Literaturas – Área da Comunicação, Artes e Letras, do Centro Universitário Franciscano, como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciado em Letras.

_____________________________________________ Vera Elizabeth Prola Farias – Orientadora (Unifra)

_____________________________________________ Adriana Macedo (Unifra)

_____________________________________________ Edinara Leão (Unifra)

Aprovado em ....... de .................................... de ..............

AGRADECIMENTOS

Preciso agradecer a meus pais que em tudo me apoiaram até o presente momento. A finalização do presente trabalho representa a maior vitória conquistada nessa etapa de minha jornada. Às professoras Sílvia Helena Niederauer e Vera Prola Farias, pela atenção, presteza e cuidado com meu trabalho e pelos “puxões de orelha” sem os quais ele jamais teria sido concluído. À Louise, Anderson, Francis, Gabriel, Jobson e demais amigos que em muito auxiliaram; seja com a construção das ideias apresentadas no corpo deste trabalho, seja na companhia inestimável ao longo desses anos.

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar a representação do personagem negro na narrativa Concerto Campestre. Por meio da análise da presença do negro na literatura brasileira, busca-se identificar as formas como ele está representado e, também, como sua identidade está definida na sociedade representada na obra. Este trabalho se origina a partir de uma pesquisa bibliográfica que buscou identificar os momentos e espaços em que o negro esteve presente na sociedade brasileira e na literatura produzida em vários momento da nossa história. Após identificar o negro na literatura brasileira e gaúcha, buscou-se encontrar o personagem na narrativa analisada através de personagens que pudessem ser caracterizados como negros ou a ele relacionados. A análise do personagem foi feita considerando sua representação, os processos identitários que o atingem e o ponto de vista histórico sobre o negro no estado do Rio Grande do Sul. Foi possível perceber que sua identidade se constrói, basicamente, através da interação como o “outro” e a visão da sociedade em muito irá definir de que forma sua identidade se estabelece e como ela é representada. Palavras-chave: Negro. Representação. Identidade. Literatura.

ABSTRACT

The present work aims to analyze the representation of the black character in the narrative Concerto Campestre. Through the analyses of black man’s presence in Brazilian Literature, we seek to identify the ways he is represented and, also, how his identity is defined in the society represented in the work. This work is originated from a bibliographical research that searched to identify the moments and spaces in which the black man in the Brazilian society and in the Literature produced in various moments of our history. After identifying the black man in the Brazilian and Gaúcha Literature, we tried to find the character in the analyzed narrative through characters that could be categorized as blacks or related to him. The analysis of the character was done considering its representation; the identification processes that reach him and the historical point of view about the black man in the state of Rio Grande do Sul. It was possible to notice that its identity is constructed, basically, through the interaction with the “other” and the view of society will define a lot in which ways its identity is established and represented. Keywords: Back man. Representation. Identity. Literature.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 7 2. REFERENCIAL TEÓRICO: IDENTIDADE ...................... Erro! Indicador não definido. 3 A LITERATURA................................................................................................................. 18 3.1 A LITERATURA E O NEGRO ...................................................................................... 18 3.2 O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA ............................................................. 19 3.3 O GAÚCHO E O NEGRO .............................................................................................. 27 3.4 O NEGRO NA LITERATURA GAÚCHA .................................................................... 31 4. METODOLOGIA............................................................................................................... 34 5. A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM CONCERTO CAMPESTRE ........................ 35 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 39 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 41

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1 INTRODUÇÃO

O negro está presente na sociedade gaúcha há vários anos, tendo sido parte importante de sua formação, auxiliando no processo de desenvolvimento econômico e cultural. No entanto, na literatura gaúcha o personagem negro parece estar em situação marginal. Embora ligado historicamente à construção do estado, na literatura gaúcha a presença dos personagens negros é inexpressiva. É sabido que o personagem negro está inserido no Brasil desde 1531, segundo Raymond F. Sayers (1958, p. 24), quando os primeiros navios negreiros aportaram na Bahia. De sua chegada ao Brasil à inserção no estado do Rio Grande do Sul, o negro configurou-se como importante “ferramenta de trabalho”, como diz o Dr. W.E. Dubois (apud SAYERS, 1958, p. 61) em sua obra Black Folk then and now: “Os escravos negros tornaram-se não homens, mas coisas; e eram avaliados com o valor que as coisas têm, pela procura e aplicação de sua força de trabalho representada por seu corpo” (DUBOIS apud SAYERS, 1958, p. 61). Segundo Gabriel Soares de Souza em seu “Tratado descritivo do Brasil em 1587”, como visto em Sayers (1958), os negros interessam para economia. Impossível não notar o papel de importância do negro na economia, na cultura e, consequentemente, sociedade brasileira apesar de seu papel de servidor. Na história gaúcha esse protagonismo ocorre de mesmo modo, segundo Fernando Henrique Cardoso: “Ao mesmo tempo em que o processo de integração da incipiente economia de trocas do Rio Grande no mercado revolucionou as técnicas e a organização da empresa econômica naquela área, fê-lo à base de mão de obra escrava, que era o único recurso que podia ser utilizado para obter o fim desejado” (CARDOSO, 1997, p. 274) e ainda “a escravidão constituiu a mercantilização do próprio trabalhador” (idem). Pode-se deduzir que o número de negros no Rio Grande do Sul por anos suplantou o de brancos; no entanto a situação do negro era a escravidão. A presença do negro é perceptível na economia e sociedade, bem como na história; no entanto onde está sua representação na literatura? Onde e como está presente o personagem negro? É necessário identificar os traços que constroem sua identidade na sociedade e, tendoos como base, traçar um paralelo com a literatura gaúcha. Desse modo, identificando quem é o personagem negro na literatura gaúcha e verificando a verossimilhança e criticismo dessa representação. No entanto, não se busca aqui a consciência de um “existir-negro” identificável no movimento da Negritude, iniciado na França, como citado por Zilá Bernd (1988, p. 22). Busca-se a identidade do negro e sua representação na literatura gaúcha.

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Enfim, essa pesquisa busca por meio da narrativa Concerto Campestre, de Luis Antônio de Assis Brasil, identificar as características do negro na literatura gaúcha organizando um paralelo em relação à sociedade gaúcha do período final do século XIX. Para tanto se faz necessário à definição e delimitação de algumas categorias teóricas que serão utilizadas no corpo desse trabalho, a saber: a)

Identidade

b)

Negro

c)

Literatura Gaúcha

Assim um breve histórico do negro no Brasil e de sua trajetória na literatura Brasileira se faz necessário. No entanto, a história do negro é anterior ao Brasil, sendo assim será apresentada, brevemente, também sua história prévia à chegada ao Brasil, pois desse modo uma análise mais completa e acurada será realizada. Essa pesquisa busca trazer maiores informações com relação ao negro e sua participação na literatura, bem como serve a este pesquisador como uma forma de autoafirmação de sua identidade, sem, no entanto, apelar a um caráter panfletário como seria o movimento da Negritude, anteriormente citado. Assim sendo, a literatura será base pra uma reflexão sócio cultural através do ensino, leitura e literatura. A importância de tal busca tornase mais evidente por tratarmos de um grupo étnico minoritário no estado do Rio Grande do Sul: o negro. Essa será uma pesquisa eminentemente bibliográfica, buscando lidar com certas categorias teóricas prioritárias a este trabalho. Identidade será um conceito norteador da avaliação aqui proposta. Tal categoria será discutida neste trabalho através da análise de autores ligados ao estudo da identidade e da literatura brasileira com ênfase no negro e sua representação. O referencial teórico será utilizado para analisarmos o ponto de interesse dessa pesquisa: a presença do personagem negro na literatura sul-rio-grandense e sua representação.

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2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 IDENTIDADE

Para entendermos quem é o negro é preciso compreender o que gera o pertencimento a uma categoria. Para tanto é preciso analisar o conceito de identidade. Por meio da análise de materiais produzidos por autores diversos, buscaremos compreender e estabelecer o conceito de identidade que melhor se aplique ao caso estudado: a definição da identidade do negro presente na obra “Concerto Campestre”. Lévi-Strauss na década de 60 define identidade como

Uma entidade abstrata, sem existência real, mas indispensável como ponto de referência. Enquanto entidade abstrata, a identidade não possui referente empírico. Logo, referentes empiricamente verificáveis como, por exemplo, a cor da pele, o sexo, etc. não são suficientes para compor a identidade dos negros ou das mulheres.

(STRAUSS apud BERND, 2003, p.294) Logo, percebemos que somente possuir a pele negra não tornará esse individuo um negro ou, especificamente, o negro que buscamos nessa pesquisa, pois como citado por Gilberto Freyre (apud DIEGUES JUNIOR, 1980, p.99) a influência no Brasil não foi do negro africano em si, mas do escravo e da escravidão. Entretanto, não se pode reduzir o negro à condição de escravo; tal definição não representaria a realidade social e cultural do negro no Brasil do período analisado na narrativa - fins do século XIX. A identidade construída com base em referências empíricas como sexo, cor da pele, etc. é uma Identidade de 1º grau, ou seja, “aquela que se constrói como unidade discreta e circunscreve a realidade a um único quadro de referências” (LÉVI-STRAUSS apud BERND, 2003, p.294). Uma análise baseada em tal concepção seria falsa e cientificamente incorreta, pois segundo Zilá Bernd (1992), permitiria conclusões racistas, o que não é de nosso interesse. Diante disso somos levados a pensar o negro e sua identidade na relação com o outro. Tal raciocínio irá ao encontro de Lévi-Strauss, pois este considera que identidade e alteridade são inseparáveis - a identidade se dá no interior das relações que ligam o indivíduo ao outro. A identidade construída na relação com o outro é chamada Identidade de 2º grau. Tal identidade constrói-se em função de vários referenciais empíricos. Ainda assim, tal conceito

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constitui uma armadilha, pois segundo Todorov (apud BERND, 2003, p. 295), corremos o risco de tornar a busca identitária em etnocentrismo. Felix Guattari (apud BERND, 2003) prefere evitar, se não abandonar, o termo identidade, por considerá-lo redutor, propondo a expressão “processos de singularização” (idem.). O autor considera que a identidade é um conceito de referência, enquanto singularização é um conceito existencial. Não obstante isso, existiriam riscos implícitos ao conceito de identidade que poderiam levar a uma falsa idéia de que existam uma natureza ou essência negra, homossexual ou feminina etc. (GUATTARI & ROLNICK apud BERND, 2003, p. 296). Para Stuart Hall, em uma concepção sociológica clássica A identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2004, p.15).

Sob essa concepção temos o negro na sociedade gaúcha afastado da identidade que possuía enquanto africano livre. Em tal situação, seu “eu real” transforma-se de acordo com a sociedade em que se encontra inserido: escravocrata, branca, cristã e de cultura Européia adaptada aos trópicos. Sua nova identidade sofre influências de uma realidade alienígena que irá ter como base a condição de submissão que aflige o ex-africano. Claude Dubar – em seu “A Socialização” - nos diz que a identidade nada mais é que “o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições” (DUBAR, 2005, p. 136). Desse modo, vemos que a identidade depende igualmente do eu e do outro, pois “cada um é identificado por outrem, mas pode recusar essa identificação e se definir de outra forma” (DUBAR, 2005, p. 137). Além disso, é possível vermos que “a identidade nunca é dada, ela sempre é construída e deverá ser (re) construída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura” (Dubar, 2005, p. 135). Além do que, Erikson (apud DUBAR, 2005, p. 135) irá insistir que a identidade nunca é “instalada, nunca é acabada, visto que o entorno do ego é móvel” (ídem). Sendo que para Lacan e Freud (ídem) o ego é, ao mesmo tempo, um processo de estruturação e uma essência do sujeito em relação ao mundo circundante. Vemos que para o negro gaúcho aqui estudado a identidade constitui-se por meio de constantes atribuições, trocas e recusas do meio e para com o meio em que se encontrou imerso.

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Sob esses pontos de vista variados, podemos perceber e inferir que a identidade é ao mesmo tempo um movimento subjetivo e um conjunto de processos de identificação e/ou diferenciação com o outro. A identidade está em constante construção e depende das atribuições do meio circundante para estabelecer-se. Entretanto, jamais estará estável a ponto de ser imutável. O sujeito pode negar a identidade que se constrói, mas ainda assim uma identidade irá se construir de acordo com a sua subjetividade e com o meio e a subjetividade do outro. A negação da identidade, nada mais será que parte da construção de uma identidade outra. Logo a identidade é um conjunto de processos sociais que leva ao estabelecimento de um referencial subjetivo de identificação do indivíduo pelo outro e para com o “outro”.

2.2 O GAÚCHO

Sem chefes, sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm da moral, senão idéias vulgares, sobretudo, uma sorte de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz benefícios ou de quem os emprega ou neles deposita confiança. (DREYS apud GONZAGA, 1980, pg. 114 - 115)

Historicamente, os termos, gaúcho e gaudério, referem-se à gente nômade que vagava pelos pampas brasileiros e platinos. Na história do Rio Grande do Sul, o gaúcho foi um individuo sem raízes, propenso ao combate e também a ladinagem. Enquanto os limites territoriais estiveram abertos, os verdadeiros gaúchos – os gaúchos históricos – vagaram através do pampa buscando sua sobrevivência, praticamente, como mercenários. Somente quando o gaúcho da história encontrava seu fim, o gaúcho do mito recebia seu espaço como figura representativa do estado, isso devido às ideologias predominantes e a um momento historicamente propicio para tal acontecimento. A história nos fala de uma classe errante no território da província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Sergius Gonzaga cita o seguinte: Pouco se sabia desses indivíduos denominados gaudérios ou gaúchos. Sua origem residia tanto na dispersão das missões quanto no estupro das índias, prática corriqueira de bandeirantes e soldados. Eram tipos indiáticos, mestiços, raros os brancos. Haviam herdado dos guaranis a habilidade para a lide pastoril, a capacidade para montar, mas – na diáspora do mundo aborígene – perderam sua identidade, tornando-se marginais. Segundo um administrador de fazenda uruguaia “no se sabe tengan outro exercicio que andar de rancho en rancho y en las pulperías, enbriagándose y después con el cuchillo en la mano peleando com todo el mundo”. Na medida e quem não se sujeitavam as regras do capitalismo, fazia-se

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indispensável desaloja-los de seu domínio e impunidade, evitando-se assim a rapinagem. (GONZAGA, 1980, pg. 114)

Esses indivíduos formaram a casta mais baixa dentro dos pampas sendo reconhecidos como criminosos e bárbaros. No entanto, em um período onde pouca ou nenhuma lei se fez presente no território platino, eles constituíram uma força mercenária de importante valor. Originalmente, temos ladrões de gado, coureadores, aventureiros e desertores se valendo daquilo que o território oferecia originalmente: gado e liberdade. Segundo Ricardo Rodriguez Molas (apud GONZAGA), o termo gaudério, no século XVIII, é utilizado para se se referir a vagabundos que viviam soltos pelo território. O termo gaúcho é referido como definição para “contrabandistas vagamundos u ociosos”. Seriam os gaúchos acostumados a matar o gado chimarrão sacar-lhes os couros e vendê-los nas povoações platinas. Ao longo de todo o século são vários os relatos de viajantes que irão se referir ao gaúcho, gaudério ou guasca como um marginal, bárbaro e inculto. Tal tipo social esteve presente tanto no território do Rio da Prata, domínio Espanhol, como do lado Português da fronteira. Sua imagem em ambos os lados é a mesma como vemos no seguinte trecho de 1805: Esses homens não deixam de espantar a quem não esteja habituado a vê-los. Estão sempre sujos; suas barbas sempre por fazer; andam descalços, e mesmo sem calças sob a completa cobertura do poncho. Por seus costumes, maneiras e roupas, conhecem-se os seus hábitos; sem sensibilidade e muitas vezes sem religião. Eles são chamados gaúchos, camiluchos ou gaudérios [...] Trabalham apenas para adquirir o tabaco que fumam e a erva mate que tomam em regra sem açúcar e tantas vezes por dia quanto possível. (LASTARRIA apud NICHOLS, 1946, p. 30)

Historicamente, o gaúcho apenas deixará de ser o homem descrito anteriormente quando a presença massiva das duas coroas começa a estabelecer limites reais aos antes infinitos campos do sul do continente. Mas mesmo em tal situação teve seus usos junto aos exércitos de ambas as coroas que se dava como descrito por Augusto Meyer: Seu contato com as tropas regulares de espanhóis e portugueses durava enquanto havia gado alçado a arrebanhar, inimigo a bombardear e negacear, missões de vaqueano ou tapejara a cumprir, desfazendo-se logo, como um nó frouxo, o ajuste que haviam conchavado, e volvendo o gaúcho ao nomadismo (apud GONZAGA, 1980)

No entanto, a veia ladina do gaúcho sempre lhe soou mais forte, estando sempre envolto na rapinagem e marginalidade – aqui com seu duplo significado, sua situação só se modifica a partir do momento do cerceamento das estâncias devido à criação extensiva de gado para a produção do Charque ao fim do século XVIII. Então inicia o declínio do gaúcho real e o surgimento do gaúcho mítico.

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2.3 O NEGRO

No presente trabalho, o negro é identificado como: homens e mulheres de pele escura pertencentes aos variados grupos étnicos trazidos ao Brasil, durante o período colonial, como mão de obra escrava. Tais grupos comumente são classificados como Bantos e Sudaneses: classificação generalizante que ignora diversos aspectos culturais próprios de cada grupo. Estes indivíduos possuíam ricas cultura e sociedade e suas particularidades foram exploradas pelos portugueses em proveito próprio. O negro encontra-se intimamente ligado à história de Portugal e do Brasil; desse modo, é necessário resgatar tal história, oferecendo ao negro o lugar que lhe cabe: um protagonista de sua própria escravidão e liberdade. O historiador Sérgio Macedo (1974) cita três grandes grupos negros vindos ao Brasil devido à escravidão: 1) os sudaneses, 2) os sudaneses islamizados e 3) os Bantos. Os ditos Sudaneses, na verdade, eram parte de diversas culturas e reinos; o termo sudanês deriva de um termo árabe utilizado nos tempos do contato entre tais culturas, como vemos no livro do historiador Nei Lopes: Bantos, Malês e identidade negra, publicado em 1980. Os negros foram introduzidos no Brasil a partir da segunda metade do século XVI, devido à necessidade de mão de obra para o ciclo de desenvolvimento da cana-de-açucar. No entanto, sua presença tornou-se massiva com o advento da exploração de metais e pedras preciosas no território de Minas Gerais. Quando da exploração de tais recursos os negros foram trazidos em grandes quantidades, muito superiores às anteriormente presentes. Tal ciclo exploratório inicia-se no período de declínio do ciclo da cana-de-açucar. Nesse momento, podemos dizer que o negro tornou-se a mão de obra por excelência, no território Brasileiro. O negro tornara-se as mãos e pés do senhor de engenho, pois sem eles nada se fazia em um engenho, nada se fazia da economia e produção, não haveria Brasil, assim diz Sérgio Macedo (1974), bem como cita diversos autores que partilham de tal idéia. Para diversos historiadores a presença do escravo foi o elemento mais importante na construção da economia brasileira, sendo assim da própria nação. Apesar de cativo, distante de sua pátria, isolado de sua cultura e marginalizado o negro, com sua simples presença cheia de significados intrinsecos à sua condição, acabou moldando diversos aspectos da cultura brasileira. Tal presença será notada por meio de seu trabalho, sua revolta, sua dor, seu

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“Banzo”, sua resiliência como podemos ver em Nei Lopes, “Bantos, Malês e Identidade Negra” (1988). Sérgio Macedo (1974) nos mostra que o negro começa a chegar oficialmente ao Brasil em 1550; anteriormente a igreja havia proibido a exploração da mão-de-obra indígena em decorrência de seus próprios interesses na “salvação” dessas almas. Mas, em nada ela se opôs a exploração do Africano, sendo verdadeiramente, omissa quanto a isso. Os primeiro negros a chegar, oficialmente enviados pela metrópole ao Brasil, aqui desembarcaram em 1550 com destino a Salvador. Relatos indicam sua presença mesmo antes dessa data, já no início do século XVI, segundo o autor. A igreja possuía certo apreço pelos índios, bem como por sua passividade ao serem catequisados e, por motivos diversos, mas principalmente religiosos, estabeleceu, em 1537, uma punição a quem os perturbasse na América. No entanto, em um primeiro momento da colonização, o índio foi a mão-de-obra testada pelo colonizador. Com a impossibilidade de utilizá-lo, o colonizador volta seus desejos empreendedores ao negro africano. A igreja havia sido omissa quanto ao africano em todas as suas bulas, breves e pareceres. Ninguém desejava a inimizade da igreja, bem como prezavam por uma alta produtividade, desse modo trazer os negros ao Brasil, afinal ele já era utilizado havia tempos em solo português como podemos ver nos livros de Raymond Sayers (1958), Sérgio Macedo (1974) e Nei Lopes (1980). No Brasil, o negro é introduzido como mão-de-obra para as Bagaceiras, os engenhos de cana de açúcar, bem como para as casas dos senhores de engenho. Inicialmente, em pequenas quantidades, mas perto de 1600 já contavam 15.000 os negros aqui presentes, um número significativo se considerarmos a população da época. O escravo torna-se presente em todos os momentos da sociedade brasileira, seja como a mão-de-obra que produz nossas riquezas ou a força que gera as revoltas. Em vários momentos e espaços, o escravo foi amplamente utilizado como força de trabalho da nação: seja no norte para a cana de açúcar, seja em Minas Gerais para o café, seja no sul para o charque, bem como em todos os centros urbanos. O escravo brasileiro, proveniente de diversas etnias do continente africano, espalhou-se e se miscigenou com brancos, índios e outros grupos negros aqui presentes. Aos poucos tornou se livre, seja pela “bondade” do seu dono, seja pela compra da Carta de Alforria; muitas vezes matou por sua liberdade, o que em tal situação tornou-se “aceitável” e muitas foram as revoltas e muitos os revoltosos. Foram diversos os meios do negro se opor à escravidão, no entanto também foram muitas as formas de opressão encontradas para ele. Além dos castigos físicos impostos por

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seus senhores, temos todas as revoltas por liberdade sendo violentamente suprimidas pelo governo. Mesmo o negro fugitivo tinha sempre um destino cruel a sua espera, tanto é que isso acabou sendo ilustrado pela literatura algumas vezes exemplo disso é o conto Pai contra Mãe de Machado de Assis, no qual uma negra grávida foge e um branco que busca evitar perder seu entra em conflito através de uma perseguição que acaba em violência contra a escrava. Devemos recordar de Palmares, um Quilombo, aglomeração de negros fugidos e livres que se opunham ao cativeiro, que foi varrido da face da terra por meio do uso de força extrema, seus líderes encontraram fins violentíssimos. Lembremos a Inconfidência Mineira que, mesmo movida por outros motivos, citava a liberdade do escravo em Minas Gerais, foi suprimida e grande parte de seus líderes mortos; a revolta do malês, negros islamizados; também suprimida de forma violenta. A situação do negro só passa a ser modificada de forma real a partir do momento que é feito livre, após diversas discussões na sociedade. Sucumbindo à pressões diretas da Inglaterra, que via no trabalho assalariado uma excelente forma de absorção de seus produtos industrializados, fonte da primeira Revolução Industrial pela qual a Grã-Bretanha passava. Libertos pela lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, o negro passava a ter direitos iguais frente a sociedade, no entanto tais direitos não foram levados a cabo pela sociedade da época, estando o negro à deriva em uma sociedade que não o aceitava como um igual e nem mesmo aceitavam sua prole. Os “mulatos” eram tão mal vistos como os negros. Aqui o Africano esteve totalmente deslocado, sendo obrigado a criar uma nova identidade para si, como vemos em Ribeiro (1994, p.223). A partir da Lei Áurea, apesar das dificuldades, isso tornou se mais simples, não tornou se fácil, mas ao menos já não apresentava a mesma dificuldade antes imposta por grilhões.

2.4 A LITERATURA

A literatura, aqui será usada como ferramenta para análise da situação social do negro no Rio Grande do Sul, bem como referencial para à contraposição da literatura e da sociedade. Sendo a literatura, segundo Carlos Reis, em linhas gerais, possível de ser definida como uma representação do real, logo uma re escritura da realidade e/ou sociedade. Torna-se de grande valia para compreender os processos sociais que envolvem o negro no Rio Grande do Sul. Tendo como base a história do estado é possível traçar os pontos de intersecção entre real e

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literário no que diz respeito ao negro, para tanto é preciso entendermos o fenômeno literário, bem como sua presença no contexto gaúcho. A arte literária segundo Reis (2003) está imbuída de uma capacidade de dialogar com a sociedade, história e cultura que a envolve revestindo-as de certo significado históricocultural. Isso se refere ao fato de que: A) a literatura envolve uma dimensão sócio cultural, directamente [sic] decorrente da importância que, ao longo dos tempos, ela tem tido nas sociedades que a reconheciam (e reconhecem) como prática ilustrativa de uma certa consciência coletiva dessas sociedades (REIS, 2003, p.24) B) na literatura é possível surpreender também uma dimensão histórica, que leva a acentuar a sua sociedade para testemunhar o devir da história e do homem e os incidentes de percurso que balizam esse devir (REIS, 2003, p.24)

Desse modo a análise dos traços sócio-culturais a representar o negro na literatura gaúcha deve encontrar um referente na história. Embora não seja fiel representante da história, a obra estudada, Concerto Campestre, é uma história possível. A literatura constitui um elemento, pode-se dizer tardio no contexto sul rio-grandense. Em meio aos históricos conflitos e a rusticidade do trabalho nos pampas, esse aspecto da cultura não foi devidamente desenvolvido até o início do século XX, embora o “Rio Grande” exista desde o século XVIII. O aparecimento e organização de um circuito literário no estado possui como principal agente motivador o grupo Porto Alegrense, Partenon Literário. Tal constituição do circuito literário, também irá permitir a sacralização de um mito na representação do “Gaúcho”. Segundo Zilá Bernd (1992, p.21), “Certos escritores ao investirem sua escritura de uma mitologia da origem e do enraizamento dão inicio à construção da ideia de nação”, tal qual ocorre com o gaúcho retratado pelo Partenon e outros escritores mais. Para Zilá Bernd:

A literatura atua em determinados momentos históricos no sentido da união da comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva, à fabricação de uma palavra exclusiva, ou seja, aquela que pratica uma ocultação sistemática do outro, ou uma representação inventada do outro. (BERND, 1992, pg.21)

Zilá Bernd (ídem) diz ser a representação do índio, vias de regra, inventada, no entanto o mesmo ocorre à representação do gaúcho. Mais do que isso, a literatura será um elemento de união da comunidade em torno da imagem do gaúcho no início do século XX. O gaúcho literário está repleto da ideologia da classe dominante no Rio Grande do Sul. Em um período de arrefecimento do poder político do estado, após a Revolução Farroupilha, a eleição de uma

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figura em declínio no plano real, mas em plena ascensão no imaginário popular, permite agregar a sociedade em torno de um ideal nem sempre entendido, mas amplamente aceito. Sergius Gonzaga nos apresenta tal situação:

Podemos supor que, em meados do século XIX, a figura marginal do gaúcho estivesse praticamente extinta. E, por conseguinte, apta a renascer como instrumento de sustentação e imposição ideológica dos mesmos grupos que a tinham destruído. O processo de transfiguração do gaúcho-pária em gaúcho-aristocrata, cheio de virtudes civis e militares, não foi instantâneo e nem uniforme: durou várias décadas, encontrou várias formulações e teve seu coroamento apenas no século XX, quando a oligarquia precisou aglutinar a seu projeto político as novas forças sociais existentes na província. (GONZAGA, 1980, p.118)

A partir disso poderemos ver o negro de forma mais clara em um ambiente em que o gaúcho é o elemento por excelência e por excelência não possui uma definição ou origem clara. Sendo assim, o negro pode ser parte do universo do gaúcho, nesse trabalho a literatura nos servirá de base nessa análise.

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3 A LITERATURA

3.1 A LITERATURA E O NEGRO

A literatura, aqui será usada como ferramenta para análise da situação social do negro no Rio Grande do Sul, bem como referencial para à contraposição da literatura e da sociedade. Sendo a literatura, segundo Carlos Reis, em linhas gerais, possível de ser definida como uma representação do real, logo uma re escritura da realidade e/ou sociedade. Torna-se de grande valia para compreender os processos sociais que envolvem o negro no Rio Grande do Sul. Tendo como base a história do estado é possível traçar os pontos de intersecção entre real e literário no que diz respeito ao negro, para tanto é preciso entender o fenômeno literário, bem como sua presença no contexto gaúcho. A arte literária segundo Reis (2003) está imbuída de uma capacidade de dialogar com a sociedade, história e cultura que a envolve revestindo-as de certo significado históricocultural. Isso se refere ao fato de que:

a literatura envolve uma dimensão sócio cultural, directamente [sic] decorrente da importância que, ao longo dos tempos, ela tem tido nas sociedades que a reconheciam (e reconhecem) como prática ilustrativa de uma certa consciência coletiva dessas sociedades (REIS, 2003, p. 24)

na literatura é possível surpreender também uma dimensão histórica, que leva a acentuar a sua sociedade para testemunhar o devir da história e do homem e os incidentes de percurso que balizam esse devir (idem)

Desse modo a análise dos traços socioculturais a representar o negro na literatura gaúcha deve encontrar um referente na história. Embora não seja fiel representante da história, a obra estudada, Concerto Campestre, é uma história possível. A literatura constitui um elemento, pode-se dizer tardio no contexto sul rio-grandense. Em meio aos históricos conflitos e a rusticidade do trabalho nos pampas, esse aspecto da cultura não foi devidamente desenvolvido até o início do século XX, embora o “Rio Grande” exista desde o século XVIII. O aparecimento e a organização de um circuito literário no estado possuem como principal agente motivador o grupo Porto Alegrense, Partenon Literário. Tal constituição do circuito literário, também irá permitir a sacralização de um mito na representação do “Gaúcho”.

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Segundo Zilá Bernd (1992, p. 21), “Certos escritores ao investirem sua escritura de uma mitologia da origem e do enraizamento dão inicio à construção da ideia de nação”, tal qual ocorre com o gaúcho retratado pelo Partenon e outros escritores mais. Para Zilá Bernd:

A literatura atua em determinados momentos históricos no sentido da união da comunidade em torno de seus mitos fundadores, de seu imaginário ou de sua ideologia, tendendo a uma homogeneização discursiva, à fabricação de uma palavra exclusiva, ou seja, aquela que pratica uma ocultação sistemática do outro, ou uma representação inventada do outro. (BERND, 1992, pg.21)

Zilá Bernd (idem) diz ser a representação do índio, via de regra, inventada, da mesma forma ocorre à representação do gaúcho. Mais do que isso, a literatura será um elemento de união da comunidade em torno da imagem do gaúcho no início do século XX. O gaúcho literário está repleto da ideologia da classe dominante no Rio Grande do Sul. Em um período de arrefecimento do poder político do estado, após a Revolução Farroupilha, a eleição de uma figura em declínio no plano real, mas em plena ascensão no imaginário popular, permite agregar a sociedade em torno de um ideal nem sempre entendido, mas amplamente aceito. Sergius Gonzaga nos apresenta tal situação:

Podemos supor que, em meados do século XIX, a figura marginal do gaúcho estivesse praticamente extinta. E, por conseguinte, apta a renascer como instrumento de sustentação e imposição ideológica dos mesmos grupos que a tinham destruído. O processo de transfiguração do gaúcho-pária em gaúcho-aristocrata, cheio de virtudes civis e militares, não foi instantâneo e nem uniforme: durou várias décadas, encontrou várias formulações e teve seu coroamento apenas no século XX, quando a oligarquia precisou aglutinar a seu projeto político as novas forças sociais existentes na província. (GONZAGA, 1980, p. 118)

A partir disso poderemos ver o negro de forma mais clara em um ambiente em que o gaúcho é o elemento por excelência e, por excelência, não possui uma definição ou origem clara. Sendo assim, o negro pode ser parte do universo do gaúcho e nesse sentido a literatura nos servirá de base nessa análise.

3.2 O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA O personagem negro encontra-se quase esquecido, poucas são as obras que exploram sua condição e cultura, bem como poucos são os autores negros a serem conhecidos pela grande massa de leitores. Aqui lidaremos com algumas obras onde o personagem negro pode ser encontrado e onde veremos sua representação. No cenário cultural, o negro começa a ser

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representado principalmente durante o Romantismo, período esse a coincidir com a presença da família real no Brasil e as pressões internacionais pelo fim da escravidão, entretanto tendo sido referenciado em outras obras e outros momentos. Segundo Gregory Rabassa:

O primeiro escritor de real mérito literário a escrever sobre o negro no Brasil foi o Padre Antônio Vieira. Embora ele seja frequentemente classificado entre os autores portugueses, seus anos de residência no Brasil também podem qualificá-lo como brasileiro. Sua atitude em relação ao negro não era mais esclarecida que a de seus contemporâneos, embora ele próprio tenha sido perseguido pela Inquisição devido a sua defesa dos judeus. Sentia que a escravidão negra era uma boa substituta para escravidão índia, que condenava. (1965, p. 82)

Raymond Sayers há de concordar com o dito por Rabassa e considera que “a atitude de Vieira para com a escravidão negra é basicamente contraditória” (SAYERS, 1958, p. 74). O padre ora condena, ora considera válida a escravidão.

Como humanista liberal que defendia os judeus, teve a necessidade de simpatizar com a causa dos negros; como jesuíta, tinha que manter a posição tomada por sua ordem, que defendia o índio as expensas do africano; como estadista, dos maiores da restauração portuguesa, sentia a necessidade da escravidão negra como suporte do desenvolvimento econômico do Brasil (SAYERS, 1958, p. 75)

Gregório de matos Guerra foi outro autor a retratar o negro no Brasil. Segundo Rabassa (1965), Gregório seria de uma família de senhores de escravos, o que lhe permitiu ter um bom conhecimento da vida e dos costumes dos “pretos” e apesar de ressentimentos em relação aos mulatos nouveau riches, cantava em termos elogiosos as mulatas. Sendo muitas as mulatas que receberam de si algum verso, no entanto ataca-as e aos mulatos tão ferozmente quanto a qualquer outro se lhe apraz.

Embora, como Vieira, também lamente a sorte dos escravos famintos, obrigados a trabalhar inclusive nos domingos e dias santos e, se são mulheres, a servir de objeto de prazer nas noites de seus senhores, queixa-se também de que os brancos já não possam matar os negros sem sofrer consequências disso. (SAYERS, 1958, p. 81)

Vemos que a Vieira e a Gregório a visão do negro causa reações adversas e contraditórias. De certo modo tais reações são esperadas nesse período de fins do Renascimento, no qual o contraste entre a “luz” e a “sombra” de tudo é tão presente. Um momento em que o homem tenta se libertar de conceitos religiosos e viver mais plenamente sua vida material com base na ciência e novos pensamentos que surgem embasados nela. Seja

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como a alma e o corpo, seja como o preto e o branco, a presença do negro na produção de ambos os autores é, de certo modo, tão contraditória como o próprio pensamento barroco. Para complementar o quadro do período Barroco temos o jesuíta Italiano João Antônio Andreoni, que descreve A Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas em obra assim chamada, não sendo, no entanto, uma obra de ficção. Tal obra nos falara do negro como parte do capital da sociedade dos fins do século XVIII, embora o autor defenda um tratamento mais humano para com o negro, o escravo é visto como “um bem móvel com alma e seus conselhos são de prudência e religião” (SAYERS, 1958, p. 84). Do mesmo período, fins do século XVIII, temos Compêndio Narrativo do Peregrino da América, que se constitui de uma coletânea de relatos sobre o Brasil da época. Nesse livro os negros são visto como são: “pobres, tristes, semidesnudos na faina das fazendas; praticando todas as espécies de vícios na vida das cidades” (SAYERS, 1958, p. 87). Ou seja, nas obras vistas aqui, temos o negro visto de forma realista, não o Realismo literário que mais tarde irá detalhar tudo a que se refere, mas o realismo de uma narrativa descritiva. Temos na verdade tratados sobre a terra nos quais o negro é só mais um detalhe presente. Quanto ao Arcadismo ou escola mineira, o que vemos é pouca ou nenhuma presença do negro, tal escola literária voltou-se para a Grécia antiga como inspiração em suas cenas pastoris e bucólicas como nos dizem Sayers (1958) e Rabassa (1965). Segundo Sayers: “embora os negros povoassem bastante o panorama social, os poetas preferiram ver apenas com os olhos da imaginação ninfas e pastores encantadores, em vez de ver a realidade de escravos e mulatinhas inquietos e andrajosos” (SAYERS, 1958, p. 110). Há aparições do negro no Arcadismo, mas das poucas em que sua imagem é notável temos o O Caramuru do Frei Santa Rita Durão, narrativa em que vemos o Capitão Henrique Dias, heróis nacional nas batalhas pela soberania portuguesa na colônia, em uma breve descrição de seus feitos na batalha de Guararapes, tornando-se, segundo Sayers, o primeiro negro nobre na literatura. Em muitas outras obras Árcades, Sayers (1958) e Rabassa (1965) concordam que o negro aparece apenas como figura de fundo, parte imóvel do cenário, um incidente da paisagem, um exemplo seria o poema Vila Rica de Cláudio Manuel da Costa onde o negro é citado, em seu trabalho nas minas, pela primeira vez. Já no Romantismo, Nelson Werneck Sodré (1964), que discute a história da Literatura Brasileira e seus fundamentos econômicos, ao citar o indianismo presente na primeira fase Romântica cita o seguinte quanto ao índio como protagonista daquele momento da Literatura:

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A valorização do índio, conforme buscamos evidenciar, representava uma ideia cara à ascenção da burguesia. Do ângulo interno, correspondia inteiramente ao quadro das relações sociais dominantes. Representaria um contra-senso histórico, evidentemente, se o elemento valorizado tivesse sido o negro. No quadro daquelas relações que, subsistem intocadas pela autonomia, o negro fornecia o trabalho, colocava-se no extremo inferior da escala. (SODRÉ, 1964, p. 267)

O autor ainda diz, sobre o início do Romantismo quando o índio foi eleito herói nacional na literatura como parte da busca por uma identidade própria à nação, que:

O negro não podia ser tomado como assunto, e muito menos como herói, não porque, segundo escreveu um estudioso moderno, refletindo a ideia generalizada de sua classe, fôsse [sic] submisso, passivo, conformado, em vez de altivo, corajoso, orgulhoso, dado que não podia ser senão assim, submetido que estava ao regime de escravidão – mas porque representava a última camada da social, aquela que só podia oferecer o trabalho e para isso era até compelida. Numa sociedade escravocrata, honrar o negro, valorizar o negro, teria representado uma heresia. ... e nem teria tido o romantismo, pôsto [sic] nesses termos, afinidade alguma com o mundo dos leitores, também recrutado naquela classe. (SODRÉ, 1964, p. 268)

A classe que o autor cita é a burguesia fluminense para quem o trabalho do negro era uma realidade como qualquer outra. No entanto, ao citar a poesia do Romantismo, Sodré (1964) nos oferece uma opinião singular sobre Castro Alves. Ele nos diz que Castro Alves teria sido um autor que apontou o futuro por meio de seus textos que, em parte, refletiram inquietações da época, como a abolição da escravatura ao fim do séc. XIX, e ainda reflete sobre o principal tópico tratado por Castro Alves: a escravidão. A luta de Castro Alves pode ser facilmente identificada em seus textos, exemplo disso é o poema Navio Negreiro, que discorre sobre os horrores vividos pelo negro nessas embarcações utilizadas para seu tráfico, já citados por Macedo (1964) e Lopes (1970). Do mesmo período, fins do século XIX até próximo da década de 1880, ainda nos vem ao conhecimento trechos dos trabalhos de Fagundes Varela que, segundo o estudioso Inglês Raymond Sayers, em 1869...publicou em seus Cantos Meridionais “O Escravo” que, como “No cemitério de São Benedito”, de Luís Gama, foi inspirado pela Sepultura de um escravo. Narra como o escravo depois de ter sofrido uma vida de tormentos e resignação esperara a morte, para que esta lhe pudesse conferir a igualdade, esse algo que o nascimento deveria proporcionar a todos. (1958, p. 206-207)

No entanto, Sayers, ainda, diz que Fagundes Varela “teve interesse apenas ocasional pela escravidão não sentiu a unidade essencial com seus semelhantes brasileiros de pele escura, como vemos nos poemas de Luís Gama” (1958, p. 207). Quanto a Luís Gama é dito

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que esse defendia a igualdade do branco e do negro com veemência em seus poemas, pois todos os brasileiros eram aparentados por terem antepassados comuns da Guiné; no entanto seu trabalho foi mais um colaboração racional aos argumentos antiescravistas que uma influência direta à poética dos autores que lhe sucederam (SAYERS, 1958). Tais poetas eram parte da chamada “Geração Condoreira” que, fortemente ligados às questões sociais de sua época, denunciaram a escravidão por meio de textos em que vemos uma “sucessão de quadros de cores fulgurantes sobre o sofrimento e crueldade em que, como em Macbeth, de Shakespeare, a imagem predominante é a do sangue. São cenas de assassínios, de tortura e de vingança, que tanto devem ter aterrorizado quanto fascinado os leitores do tempo” (SAYERS, 1958, p. 206). Fagundes Varela escreve um longo poema épico chamado Mauro, o escravo, esse poema já apresenta uma construção idealizada do negro. Buscando vingança contra violência sexual e posterior assassinato de sua irmã, “Mauro” se veste de “maneira tipicamente romântica – capa negra, chapéu de abas largas e punhal” (SAYERS, 1958, p. 209), sendo capaz de ler e escrever, o que o torna um negro excepcional segundo Sayers (1958). Vemos em a A cachoeira de Paulo Afonso, de Castro Alves, temática semelhante à de Fagundes Varela, bem como tipos negros semelhantes, a saber: o negro heroico, a mulatinha bela e o carrasco negro. Ambas as obras são construídas com tipos idealizados; no entanto Lucas, de A Cachoeira de Paulo Afonso, é mais humano e menos Byroniano, pois foge as imagens idealizadas criadas pelo autor Inglês, um dos grandes expoentes do Romantismo (SAYERS, 1958). A obra de Castro Alves é vasta e muitos são os personagens negros por ele criados, bem como as poesias e os temas remetem ao negro. Um trabalho a parte seria necessário para analisar toda sua obra. Mas Alves é amplamente reconhecido com o epíteto “O poeta dos escravos”, devido à sua brilhante obra que muito contribuiu e se alimentou das ideias antiescravistas do século XIX, sendo sem dúvida o mais importante dos poetas a dar atenção ao tópico. No entanto, segundo Sayers (1958), o poeta conserva certo ar de superioridade em relação ao negro, por ter sido sua família senhora de escravos; mas sua poesia fala fortemente contra a escravidão. Ao citar o Parnasianismo, movimento literário que se seguiu ao Romantismo, Raymond Sayers (1958) nos fala de diversos poetas que adotaram o negro em suas temáticas de forma emotiva e constante, o que contraria as características da escola que, de forma superficial e generalizante, pode ser descrita como o “belo pelo belo”. No entanto, tais autores estariam em consonância com as inquietações do período: a luta social pela libertação do

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escravo e, após 1888, data da libertação do negro, as questões da igualdade para com o escravo e seus descendentes. Exemplos seriam os poetas Lúcio de Mendonça, Raimundo Correa e Gonçalves Crespo. Lúcio Mendes escreve A Besta Morta, ilustrando o último descanso de um velho escravo, tendo em seu corpo uma cruz gravada pelas lanhas do chicote, sendo essa a única cruz que leva sobre o corpo velho e cansado. Raimundo Correa em sua poesia descreve o banzo, a mortal tristeza que ceifou inúmeras vidas cativas em seus sonhos de um mundo além-mar em uma terra mãe que já não lhes pertence, mal esse que é descrito e identifica-se com uma profunda depressão totalmente incapacitante, amplamente descrita em livros de história. Dentre os poetas aqui citados, o único realmente parnasiano a falar do negro teria sido Gonçalves Crespo, sendo esse um mulato um brasileiro que cedo foi morar em Portugal, ele tomou o negro como tema e conseguiu fazê-lo de forma imparcial e neutra, tornando o negro parte de cenas da vida do Brasil da época, falando da beleza das negras, da relação entre patrões e escravos, bem como dos desejos que uns guardam em relação aos outros. Nesse período muitos foram os autores que falaram sobre o negro de algum modo. A escola Parnasiana, contraditoriamente a sua estética, foi influenciada pela questão do negro que acabara de ser liberto e por isso aparece na obra de diversos autores da época como nos diz Raymond Sayers “Entre os outros parnasianos há vários que produziram poemas sobre os escravos e as cenas da escravidão, quase todos exprimindo indignação contra o intuito” (1958, p. 233). Aqui merece nota Joaquim Osório Duque-Estrada que em seu poema O Pai José fixa o padrão do escravo fiel que irá aparecer após o período da escravidão, tal figura é um velho que cozinha, cuida das crianças e parece feliz por ser tratado como parte da família, essa figura tornar recorrente segundo o estudioso. Um livro que merece nota nesse período é A Escrava Isaura, narrativa de Bernardo Guimarães que conta a história de Isaura, uma escrava branca, finamente educada, mas ainda presa à questão da sua ascendência. A obra é escrita mostrando o desejo que, sem ter essa pretensão, desperta a escrava em seu jovem senhor que de tudo faz para tê-la. Mas no fim, falido e mal sucedido em seu intento, o senhor, acaba por matar-se. De modo geral, ao encerrar o capítulo que lida com o Parnasianismo e o negro o autor diz que a poesia brasileira da época retratou:

muitos aspectos diferentes da vida do negro, desenvolvendo caracteres distintos, entre os quais sobrelevam o escravo fiel, o negro heroico e a bela mulata – que repontaram todos nos primórdios da prosa e da poesia. O tema predominante em

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toda essa poética é o do sofrimento, mas os poemas da escola de cor local1 apresentam um toque ocasional de humor. Embora o esforço dessa escola em gravar a fala de maneira realista seja pequeno, outros aspectos da vida nas fazendas são bem captados e um arquivo fiel de costumes e tipos já hoje não existentes foi assim preservado. Os movimentos poéticos mais importantes do período foram o condoreirismo, caracterizado por seus violentos ataques à escravidão, e o parnasianismo, menos puro do que o europeu, pois seus adeptos quase nunca se libertaram inteiramente das características das outras escolas. (SAYERS, 1958, p. 255)

Segundo Rabassa, o

Romance é, sem dúvida alguma, o gênero literário que produziu a mais clara caracterização dos negros na literatura brasileira do século XIX. Isso se deve ao fato de que a poesia, por suas próprias limitações, na pode analisar a fundo um personagem literário em detalhes menores, enquanto que o ensaio do século XIX estava intrinsecamente envolvido com a questão da abolição e, assim, tendia a ser bastante especializado em seu tratamento dos negros. (RABASSA, 1965, p. 91)

De acordo com Rabassa e Sayers, quando Realismo e Naturalismo, escolas literárias mais ligadas à representação de forma mais fiel da sociedade, passam a demonstrar o que é a sociedade brasileira é que veremos o negro de forma ampla e presente em diversas obras em algumas de forma a apenas compor parte de um cenário fidedigno, em outras de forma profunda e crítica. Machado de Assis, por exemplo, pouco se ateve a esse ponto, no entanto “era artista o bastante para compreender que qualquer pintura verdadeira da vida no Rio de Janeiro teria que incluir vários personagens negros” (RABASSA, 1965, p. 96). O próprio Machado de Assis era um mulato, no entanto, não gostava muito de sua situação, mas a falta de negros em suas obras era mais pela escolha dos assuntos do que alguma omissão em relação ao negro, afirma Gregory Rabassa. É dito, por Raymond Sayers (1958), que machado de Assis não teve nos negros seus principais personagens, pois lidava com a burguesia em seus romances urbanos e não com o proletariado, bem como seus personagens necessitavam fluir de forma mais livre e “tranquila” na condução de suas tramas, o que não era possível nem mesmo ao negro forro. Mas Machado de Assis teria criado a galeria de maior número de personagens negros na literatura da época, sendo esses personagens muito mais satisfatórios que quaisquer outros criados até aquele momento na literatura. Como exemplo disso, em Iaiá Garcia há um negro fiel que mesmo após a liberdade permanece com sua “família” e lhes é muito caro, agindo como lhe apraz, mas respeitando sua condição de negro, ex-cativo. Em seus contos ele

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A referida escola se identifica na valorização dos elementos locais como o povo, os costumes e mesmo o cenário geográfico.

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também apresenta os negros e, nos que ele está presente, denúncia às agruras da sociedade. Em Pai contra mãe, a narrativa termina com a conclusão de que nem todas as crianças se “criam”, isso devido ao fato de tudo se desenrolar em torno de uma negra fugida e seu caçador, ambos com filhos em situação de risco, se a negra for capturada seu filho, que está para nascer, possivelmente será perdido na violência do castigo, se não capturar a negra é o filho de seu captor que será perdido pra um orfanato. Aluísio de Azevedo teria sido o primeiro dos Naturalistas de sucesso a apresentar o negro e/ou o mulato. Em sua narrativa O Mulato ele nos fala de Raimundo que sendo rico, tendo estudado em Portugal e vencido por seus próprios méritos sofre enormes preconceitos por ser mulato, no entanto, sendo superior a muitos brancos que o cercam. Esse livro seria, acima de tudo, uma denúncia do absurdo do racismo. O Cortiço, publicado em 1890, outra narrativa de Aluísio Azevedo, lida com os cortiços do Rio de Janeiro, aglomerados de casebres ocupados por todos os tipos sociais possíveis. Aqui, temos uma seleção das mais completas dos tipos brasileiros daquele momento: brancos, mulatos, negros, imigrantes. Aqui temos “Rita Baiana”, uma mulata sensualíssima; “Bertoleza”, uma escrava que se acredita livre e vive com o Português “João Romão”; “Firmo”, amante mulato de Rita baiana; representantes do negro e seus descendentes. Entre os imigrantes temos Jerônimo que se encanta por Rita e todos os pecados que a mulata instiga em sua alma portuguesa.

O problema das relações raciais é simbolizado nos caracteres de Bertoleza e Rita. A primeira que se sacrificou completamente por João Romão, é denunciada por ele como escrava fugida, quando a sente como empecilho em sua vida, o que a faz suicidar-se. A última, que não é fiel a ninguém, domina Jerônimo, que se decide a viver com ela. Enquanto Bertoleza, a escrava negra, já não é útil para o homem que vai se aristocratizar, Rita Baiana não encontra dificuldades em achar um lugar para si, pois não enfrenta nenhum preconceito por parte dos brancos das classes mais baixas. (SAYERS, 1958, p. 423)

Muitas ainda são as obras que lidarão com o negro na Literatura brasileira, mas como pode ser visto em Sayers (1958) e Rabassa (1965), tais obras irão apresentar o negro já incluído na sociedade, aqui não mais sua cor é o principal elemento, mas sua interação com o mundo que ocorre de forma natural e em muitas obras nem mesmo será possível identificar se o personagem é negro, mulato ou caucasiano. A narrativa passa a ser o elemento mais importante, para o qual a cor dos personagens já não é mais tão importante, não tanto quanto os problemas sociais retratados. Seja a seca nordestina em Rachel de Queiroz, seja a sociedade Baiana em Jorge Amado. No entanto, as diferenças sociais presentes nas obras

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realizadas no norte e nordeste do país, já maduras ao lidar com o personagem negro, acabam por diferenciar-se do que encontraremos no Rio grande do Sul que, no presente trabalho, é nosso objetivo maior. Podemos dizer que na Literatura Brasileira o negro está representado de acordo com sua participação social e o momento que a sociedade vive. Sendo sua representação amplamente modificada ao longo da história e da Literatura da nação. Ele passa de simples elemento estético, necessário, pois aqui existe; a protagonista das narrativas. Suas características e sua situação social são o elemento gerador de conflitos nas narrativas, pois mesmo que superior em algumas narrativas, ele sempre carrega o estigma da cor.

3.3 O GAÚCHO E O NEGRO

Sem chefes, sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm da moral, senão idéias vulgares, sobretudo, uma sorte de probidade condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem lhes faz benefícios ou de quem os emprega ou neles deposita confiança. (DREYS apud GONZAGA, 1980, pg. 114 - 115)

Historicamente, os termos, gaúcho e gaudério, referem-se à gente nômade que vagava pelos pampas brasileiros e platinos. Na história do Rio Grande do Sul, o gaúcho foi um individuo sem raízes, propenso ao combate e também a ladinagem. Enquanto os limites territoriais estiveram abertos, os verdadeiros gaúchos – os gaúchos históricos – vagaram através do pampa buscando sua sobrevivência, praticamente, como mercenários. Somente quando o gaúcho da história encontrava seu fim, o gaúcho do mito recebia seu espaço como figura representativa do estado, isso devido às ideologias predominantes e a um momento historicamente propício para tal acontecimento. A história nos fala de uma classe errante no território da província do Rio Grande de São Pedro do Sul. Sergius Gonzaga cita o seguinte: Pouco se sabia desses indivíduos denominados gaudérios ou gaúchos. Sua origem residia tanto na dispersão das missões quanto no estupro das índias, prática corriqueira de bandeirantes e soldados. Eram tipos indiáticos, mestiços, raros os brancos. Haviam herdado dos guaranis a habilidade para a lide pastoril, a capacidade para montar, mas – na diáspora do mundo aborígene – perderam sua identidade, tornando-se marginais. Segundo um administrador de fazenda uruguaia “no se sabe tengan outro exercicio que andar de rancho en rancho y en las pulperías, enbriagándose y después con el cuchillo en la mano peleando com todo el mundo”. Na medida e quem não se sujeitavam as regras do capitalismo, fazia-se indispensável desaloja-los de seu domínio e impunidade, evitando-se assim a rapinagem. (GONZAGA, 1980, pg. 114)

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Esses indivíduos formaram a casta mais baixa dentro dos pampas sendo reconhecidos como criminosos e bárbaros. No entanto, em um período onde pouca ou nenhuma lei se fez presente no território platino, eles constituíram uma força mercenária de importante valor. Originalmente, temos ladrões de gado, coureadores, aventureiros e desertores se valendo daquilo que o território oferecia originalmente: gado e liberdade. Segundo Ricardo Rodriguez Molas (apud GONZAGA), o termo gaudério, no século XVIII, é utilizado para se se referir a vagabundos que viviam soltos pelo território. O termo gaúcho é referido como definição para “contrabandistas vagamundos u ociosos”. Seriam os gaúchos acostumados a matar o gado chimarrão sacar-lhes os couros e vendê-los nas povoações platinas. Ao longo de todo o século são vários os relatos de viajantes que irão se referir ao gaúcho, gaudério ou guasca como um marginal, bárbaro e inculto. Tal tipo social esteve presente tanto no território do Rio da Prata, domínio Espanhol, como do lado Português da fronteira. Sua imagem em ambos os lados é a mesma como vemos no seguinte trecho de 1805:

Esses homens não deixam de espantar a quem não esteja habituado a vê-los. Estão sempre sujos; suas barbas sempre por fazer; andam descalços, e mesmo sem calças sob a completa cobertura do poncho. Por seus costumes, maneiras e roupas, conhecem-se os seus hábitos; sem sensibilidade e muitas vezes sem religião. Eles são chamados gaúchos, camiluchos ou gaudérios [...] Trabalham apenas para adquirir o tabaco que fumam e a erva mate que tomam em regra sem açúcar e tantas vezes por dia quanto possível. (LASTARRIA apud NICHOLS, 1946, p. 30)

Historicamente, o gaúcho apenas deixará de ser o homem descrito anteriormente quando a presença massiva das duas coroas começa a estabelecer limites reais aos antes infinitos campos do sul do continente. Mas mesmo em tal situação teve seus usos junto aos exércitos de ambas as coroas, o que se dava como descrito por Augusto Meyer: Seu contato com as tropas regulares de espanhóis e portugueses durava enquanto havia gado alçado a arrebanhar, inimigo a bombardear e negacear, missões de vaqueano ou tapejara a cumprir, desfazendo-se logo, como um nó frouxo, o ajuste que haviam conchavado, e volvendo o gaúcho ao nomadismo (apud GONZAGA, 1980)

No entanto, a veia ladina do gaúcho sempre lhe soou mais forte, estando sempre envolto na rapinagem e marginalidade – aqui com seu duplo significado, sua situação só se modifica a partir do momento do cerceamento das estâncias devido à criação extensiva de gado para a produção do Charque ao fim do século XVIII. Então inicia o declínio do gaúcho real e o surgimento do gaúcho mítico.

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No presente trabalho, o negro é identificado como: homens e mulheres de pele escura, pertencentes aos variados grupos étnicos trazidos ao Brasil durante o período colonial, como mão de obra escrava. Tais grupos comumente são classificados como Bantos e Sudaneses: classificação generalizante que ignora diversos aspectos culturais próprios de cada grupo. Estes indivíduos possuíam ricas cultura e sociedade e suas particularidades foram exploradas pelos portugueses em proveito próprio. O negro encontra-se intimamente ligado à história de Portugal e do Brasil; desse modo, é necessário resgatar tal história, oferecendo ao negro o lugar que lhe cabe: um protagonista de sua própria escravidão e liberdade. O historiador Sérgio Macedo (1974) cita três grandes grupos negros vindos ao Brasil devido à escravidão: 1) os sudaneses, 2) os sudaneses islamizados e 3) os Bantos. Os ditos Sudaneses, na verdade, eram parte de diversas culturas e reinos; o termo sudanês deriva de um termo árabe utilizado nos tempos do contato entre tais culturas, como vemos no livro do historiador Nei Lopes: Bantos, Malês e identidade negra, publicado em 1980. Os negros foram introduzidos no Brasil a partir da segunda metade do século XVI, devido à necessidade de mão de obra para o ciclo de desenvolvimento da cana de açúcar. No entanto, sua presença tornou-se massiva com o advento da exploração de metais e pedras preciosas no território de Minas Gerais. Quando da exploração de tais recursos os negros foram trazidos em grandes quantidades, muito superiores às anteriormente presentes. Tal ciclo exploratório inicia-se no período de declínio do ciclo da cana de açúcar. Nesse momento, podemos dizer que o negro tornou-se a mão de obra por excelência, no território Brasileiro. O negro tornara-se as mãos e pés do senhor de engenho, pois sem eles nada se fazia em um engenho, nada se fazia da economia e produção, não haveria Brasil, assim diz Sérgio Macedo (1974), bem como cita diversos autores que partilham de tal ideia. Para diversos historiadores a presença do escravo foi o elemento mais importante na construção da economia brasileira, sendo assim da própria nação. Apesar de cativo, distante de sua pátria, isolado de sua cultura e marginalizado, o negro, com sua simples presença cheia de significados intrínsecos à sua condição, moldou diversos aspectos da cultura brasileira. Tal presença será notada por meio de seu trabalho, sua revolta, sua dor, seu banzo, sua resiliência como podemos ver em Nei Lopes, Bantos, Malês e Identidade Negra (1988). Sérgio Macedo (1974) nos mostra que o negro começa a chegar oficialmente ao Brasil em 1550; anteriormente a igreja havia proibido a exploração da mão-de-obra indígena em decorrência de seus próprios interesses na “salvação” dessas almas. Mas, em nada ela se opôs a exploração do Africano, sendo verdadeiramente, omissa quanto a isso. Os primeiro negros a chegar, oficialmente enviados pela metrópole ao Brasil, aqui desembarcaram em 1550 com

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destino a Salvador. Relatos indicam sua presença mesmo antes dessa data, já no início do século XVI, segundo o autor. A igreja possuía certo apreço pelos índios, bem como por sua passividade ao serem catequisados e, por motivos diversos, mas principalmente religiosos, estabeleceu, em 1537, uma punição a quem os perturbasse na América. No entanto, em um primeiro momento da colonização, o índio foi a mão-de-obra testada pelo colonizador. Com a impossibilidade de utilizá-lo, o colonizador volta seus desejos empreendedores ao negro africano. A igreja havia sido omissa quanto ao africano em todas as suas bulas, breves e pareceres. Ninguém desejava a inimizade da igreja, bem como prezavam por uma alta produtividade, desse modo trazer os negros ao Brasil, afinal ele já era utilizado havia tempos em solo português como podemos ver nos livros de Raymond Sayers (1958), Sérgio Macedo (1974) e Nei Lopes (1980). No Brasil, o negro é introduzido como mão-de-obra para as Bagaceiras, os engenhos de cana de açúcar, bem como para as casas dos senhores de engenho. Inicialmente, em pequenas quantidades, mas perto de 1600 já contavam 15.000 os negros aqui presentes, um número significativo se considerarmos a população da época. O escravo torna-se presente em todos os momentos da sociedade brasileira, seja como a mão-de-obra que produz nossas riquezas ou a força que gera as revoltas. Em vários momentos e espaços, o escravo foi amplamente utilizado como força de trabalho da nação: seja no norte para a cana de açúcar, seja em Minas Gerais para o café, seja no sul para o charque, bem como em todos os centros urbanos. O escravo brasileiro, proveniente de diversas etnias do continente africano, espalhou-se e se miscigenou com brancos, índios e outros grupos negros aqui presentes. Aos poucos tornou se livre, seja pela “bondade” do seu dono, seja pela compra da Carta de Alforria; muitas vezes matou por sua liberdade, o que em tal situação tornou-se “aceitável” e muitas foram as revoltas e muitos os revoltosos. Foram diversos os meios do negro se opor à escravidão, no entanto também foram muitas as formas de opressão encontradas para ele. Além dos castigos físicos impostos por seus senhores, temos todas as revoltas por liberdade sendo violentamente suprimidas pelo governo. Mesmo o negro fugitivo tinha sempre um destino cruel a sua espera, tanto é que isso acabou sendo ilustrado pela literatura algumas vezes exemplo disso é o conto Pai contra Mãe de Machado de Assis, no qual uma negra grávida foge e um branco que busca evitar perder seu entra em conflito através de uma perseguição que acaba em violência contra a escrava. Devemos recordar de Palmares, um Quilombo, aglomeração de negros fugidos e livres que se opunham ao cativeiro, que foi varrido da face da terra por meio do uso de força extrema, seus

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líderes encontraram fins violentíssimos. Lembremos a Inconfidência Mineira que, mesmo movida por outros motivos, citava a liberdade do escravo em Minas Gerais, foi suprimida e grande parte de seus líderes mortos; a revolta do malês, negros islamizados; também suprimida de forma violenta. A situação do negro só passa a ser modificada de forma real a partir do momento que é feito livre, após diversas discussões na sociedade. Sucumbindo às pressões diretas da Inglaterra, que via no trabalho assalariado uma excelente forma de absorção de seus produtos industrializados, fonte da primeira Revolução Industrial pela qual a Grã-Bretanha passava. Libertos pela lei Áurea, assinada pela princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, o negro passava a ter direitos iguais frente à sociedade, no entanto tais direitos não foram levados a cabo pela sociedade da época, estando o negro à deriva em uma sociedade que não o aceitava como igual e nem mesmo aceitavam sua prole. Os “mulatos” eram tão mal vistos como os negros. Aqui o Africano esteve totalmente deslocado, sendo obrigado a criar uma nova identidade para si, como vemos em Ribeiro (1994, p. 223). A partir da Lei Áurea, apesar das dificuldades, isso tornou se mais simples, não tornou se fácil, mas ao menos já não apresentava a mesma dificuldade antes imposta por grilhões.

3.4 O NEGRO NA LITERATURA GAÚCHA

O Historiador Maestri Filho (2006), nos diz que o negro está no estado mesmo antes de sua colonização oficial em 1737, tendo chegado junto aos primeiro povoadores, que já o trouxeram como escravo. O negro foi instrumento essencial na ocupação do estado, no desenvolvimento da pecuária, agricultura e, até mesmo, contrabando com os países da Bacia Platina. O escravo também ofereceu seu braço às armas de ambas as coroas que aqui disputavam pelo domínio do território, participando em todas as guerras que foram travadas no estado. Mas ainda assim, era escravo, embora com um contato mais próximo com seus senhores, mas em seu devido lugar. A mais importante parcela da presença negra no RS se deve a produção das Charqueadas o trabalho extensivo de criar o gado e demais processos até o charque trouxeram o negro ao estado em grandes quantidades. Sua presença foi maciça, ele foi a mão de obra principal, diz-se que o negro era quase livre em uma charqueada, no entanto a história nos mostra o contrário. O negro viveu de forma relativamente tranquila antes das charqueadas, havia muito espaço, bem como seu contato com os donos era diferente do recebido no norte, assim como o dos gaúchos para com o estancieiro, mas isso tudo muda quando surge a

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charqueada e seu modo de produção em “série”, quando sua vida passa a se assemelhar a vista em outros estados (CARDOSO, 1977). O negro teve participação importante na Revolução Farroupilha, principal contenda da história gaúcha, iniciada devido aos interesses dos estancieiros em relação à produção do charque gaúcho e sua absorção no mercado interno. Os lanceiros negros, regimento formados por escravos, foram de extrema importância nas batalhas. Mas, o escravo também sofreu grande injustiça, pois, ao mesmo tempo em que o exército aproximou os homens “brancos” e de “cor”, os afastou, já que o negro só poderia ser parte da infantaria, nunca da cavalaria. (MAESTRI FILHO, 2006). Ao fim do conflito os cativos que lutaram pela causa Farroupilha foram feitos livres, mas antes disso também houve um episódio cruel: “a Surpresa de Porongos”, momento quando aos negros foram negadas armas sendo massacrados por Farroupilhas e Imperiais. No entanto, mesmo após a abolição da escravatura o negro permanece no estado, adaptado à vida na estância ou interagindo nos novos centros urbanos ou mesmo marginalizado nos novos espaços que se configuram. De certo modo, assim como o gaúcho não possui uma origem clara, o negro pode muito bem originar gaúchos e foi o que fez. Na Literatura, temos o negro sendo representado por João Simões de Lopes Neto em seu livro Contos Gauchescos de 1912, aqui temos O Negro Bonifácio. Negro valente, insolente, mas honrado que não aceita ofensas. Esse negro está mais para gaúcho que negro, quando comparado com os outros personagens do período, de certo modo ele engloba características de ambos os personagens: as virtudes gaúchas e o isolamento social do negro forro em relação ao resto da sociedade. Sua presença é incômoda ou causa constrangimento, embora também desperte o desejo de várias “chinas”, incluindo “Tudinha”, o que leva a todos ao desfecho final e sangrento. Já em Netto perde sua alma de Tabajara Ruas, publicado na década de 90, temos a narrativa das batalhas vividas pelo General Antônio de Souza Netto durante a Guerra Farroupilha, ao seu lado, na narrativa, temos o “Sargento Caldeira” e o negrinho “Milonga”. Sendo ambos os personagens negros/escravos e lutando por suas vidas: Caldeira representa tantos outros negros fiéis vistos até aqui e, como Henrique Dias, é um guerreiro respeitável e nobre; Milonga, um jovem que crê nas ideias de revolução e liberdade pregadas pelos Farroupilhas e ao fim da guerra se sente traído, acaba por continuar o sofrimento do negro escravo que conquistava lentamente seu espaço, mas muitas vezes tinha na morte sua real libertação.

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Poucas foram às obras encontradas na literatura gaúcha que lidam com o personagem negro, talvez devido à instituição tardia de uma literatura gaúcha, talvez pela pequena presença do negro no estado se comparado a outros grupos étnicos. Fato é que sua representação na literatura parece ser quase inexistente e a existente é pouco conhecida.

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4. METODOLOGIA

Essa foi uma pesquisa bibliográfica focada nas categorias teóricas que lhe permitiriam a correta análise do problema apresentado: a identidade do negro e sua representação na narrativa Concerto Campestre. Primeiramente foi preciso identificar os autores que melhor auxiliariam na construção dessa análise, servindo como base ou referencial para tal trabalho. Para a definição de Identidade trabalhamos com Stuart Hall (2004), Zilá Bernd (2003) e Claude Dubar (2005). Além disso, foi preciso buscar informações que nos auxiliassem na compreensão do negro e na construção de sua representação na literatura. Desse modo, trabalhamos com Nei Lopes (1980) e Sérgio D. T. Macedo (1974). Os principais autores trabalhados no que diz respeito ao negro e sua presença na literatura forma Raymond Sayers (1958) e Gregory Rabassa (1965). Após, identificados os pontos nos quais o negro poderia ser encontrado na Literatura brasileira e definida a categoria que nortearia esse trabalho, a saber: identidade; partimos para a análise do negro presente na narrativa, identificando personagens que pudessem ser categorizados como negros e ou a ele estivessem relacionados. Após isso, foi feita a avaliação final dos dados que posteriormente foram relacionados à realidade social do negro no período, tendo assim a identidade do negro e sua representação sido relacionadas à situação real do negro na sociedade brasileira e gaúcha.

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5. A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM CONCERTO CAMPESTRE Na obra “Concerto Campestre” ser negro não significa somente ter a pele escura, ser negro por destino ou capricho da natureza. Aqui ser negro torna-se um estigma social que atinge a todos que, porventura, tenham em seu sangue ou semblante traços da “negritude”2. No entanto, tal marca maldita parece desaparecer quando convêm aos senhores dessas terras do continente. Vemos também que o valor do negro encontra-se em sua aptidão ao trabalho e que, por meio deste, pode tornar-se superior ao colonizador branco, mas somente em situações específicas. A narrativa relata a presença de um “Maestro” mulato em uma estância gaúcha, onde um estancieiro, “Major” Eleutério, decide estabelecer uma orquestra sinfônica. No entanto, o “Maestro” e a filha do estancieiro, “Clara Vitória”, acabam por se enamorar o que segundo “Rossini”, um velho rabequista, irá se comparar a uma ópera. O “Maestro” e “Rossini” contrastam com os modos brutos e as mentes conservadoras encontradas no sul, bem como por sua condição de “estrangeiros”. O negro estará presente ao longo de toda a narrativa, normalmente em segundo plano, exceto, pelo “Maestro”, um mulato. O negro na obra é a mão de obra por excelência, tudo que há de ser feito é feito pelo escravo. Como exemplo, podemos ver nos trechos a seguir a relação do patrão, “Major Eleutério”, e seus escravos: “Ele estivera lá apenas uma vez, havia uns dez anos, e viera todo estropiado. Aquilo só os negros conseguiam” (BRASIL, 1997, p. 16), “Na madrugada seguinte, Antônio Eleutério mandou encilhar os cavalos mais mansos e ordenou que três escravos conhecedores do terreno os guiassem” (idem), “Os escravos iam desbastando os maricás com facões, alargando a trilha por onde passavam em fila” (idem, p. 16-17), “Enquanto os escravos colhiam os cachos depositando-os em cestos”, “Vieram de marcha batida, chegando à estância pelo meio da tarde novamente plena de sol. Esperava-os um assado de ovelha” (idem, p. 19). Nos trechos citados, temos o negro guiando o “Major” e o sacerdote da vila através os campos até o boqueirão onde crescem as chamadas “uvas do fantasma”. No entanto, aqui vemos claramente a cisão que existe entre escravo e patrão, o escravo guia o caminho no chão, a pé, abrindo as picadas em meio às matas, mas o patrão e seu convidado seguem montados a cavalo, menos esforço e maior proveito para o branco que ao fim tem um assado como refeição. E o negro o quê come?

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Não confundir com movimento social pela defesa dos direitos do negro.

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Mesmo “Clara Vitória”, a jovem filha do “Major”, tem seu momento de desmande em busca de atenção, como vemos: Essas súbitas variações de humor fizeram “Clara Vitória” pensar: “Está aí um homem duro”. Mas, com o rosto inflamado: “menos para mim”. E decidiu-se a hostilizá-lo. Quando a mixórdia no galpão foi particularmente atroz, ela conduziu as empregadas para o terreiro, e, num gesto inédito, comandou-as em voz alta, ordenando que areassem panelas e tachos (idem, p. 35).

O trecho segue mostrando um rápido diálogo entre “Clara Vitória” e o “Maestro”, mas o importante é notar que para fazer valer seu sentimento, sua busca por atenção naquele momento, ela comanda as empregadas por um mero capricho. Embora, como visto em Sayers (1958), Macedo (19774) e Lopes (1980); o negro seja considerado um ser sem alma, o “Vigário” ouvia a todos os negros, pois eles tinham pecados: “Iniciou como sempre pela escravaria, que ele pouco escutava, pois os negros mais sofriam do que pecavam” (BRASIL, 1997, p. 96),“ouvira desde o último dos escravos até os donos da casa” (idem, p. 95). Aqui temos um momento de igualdade entre brancos e escravos, bem como em: “O Maestro e os músicos, numa exceção que a morte justificava, foram admitidos à sala, embora conversassem só entre si, atascados num reduto de cadeiras” (idem, 103). A igualdade entre uns e outros existia frente aos olhos de Deus, ao menos no pecado, ou momentos extremos, como a morte de um estancieiro vizinho, pelo que se pode ver. Também é possível perceber a situação a mulher negra nessa narrativa que não somente está submetida aos caprichos dos senhores, bem como aos seus desejos mais “terrenos”. Ao fim da narrativa, ao som de uma valsa, já enlouquecido, o “Major” Eleutério “pegou uma das negras e obrigou-a a dançar com ele” (idem, p. 172). Um dos jovens da casa, “Ambrósio”, “Até dois anos antes, desperdiçava a juventude em ocupações sórdidas, como masturbar-se ao espionar o banho das escravas nuas ou ao observá-las se deitando com os peões nas macegas distantes.” (idem, p. 60), ou ao fim da narrativa “Bobó, reassumindo sua antiga fraqueza, voltou a espionar as negras” (idem, p. 154). A mulher era desejada, mas proibida por ser escrava, e exatamente por isso desvalorizada. A mesma valoração é dada a “Clara Vitória” ao saberem que está grávida: “Uma puta igual a essas negras que ficam se rolando nas macegas. Meu Deus, eu não merecia, tanta infelicidade” (idem, pg. 127). O “Major” afirma haver um “modo gaúcho de ser” ao longo da obra e nesse modus operandi a negra é a referência de mulher ruim. Já o caso do mulato, o “Maestro”, é um tanto mais complicado. Pois como vemos no diálogo a seguir entre “Major Eleutério” e “D. Brígida”:

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“Não confio nesse negro” – ela disse. Para D. Brígida de Fontes, como de resto para todos os que ela conhecia, tudo que fosse além da província era o domínio do estrangeiro e do negro. – “Negro não, mulato” – contestou o marido - , “tudo é mulato, lá pra cima no Brasil”. – “Pois pior, muito pior” – disse “D. Brígida” - , “porque aqui no Sul é como Deus fez: ou é negro, e é escravo, ou é branco, e homem livre. Mulato é uma coisa que não se entende” (BRASIL, 1997, p. 38)

O mulato não possuía um lugar nessa sociedade do Sul onde tudo era extremante estático e bem definido como diz “Rossini”: “Maestro, estamos entre gente gaúcha, que resolve tudo na adaga e no tiro. E “Clara Vitória” não se comanda, nesse novelo todo” (idem, p. 79), realmente a moça não se governava e para ela estava destinado um casamento arranjado com um “rapaz bom, de bons modos, bom católico, dentro em pouco seria proprietário...” (idem, p. 76). Temos uma visão do que se considera um homem bom para o casamento de uma filha de estancieiro, o mulato está longe de ser isso. Por veze, veremos “D. Brígida” chamar ao mulato de “Macaco”, um termo visivelmente pejorativo nesse contexto. O “Maestro” sente-se inferior a tudo isso embora “Os notáveis que, de fato, ainda abominavam o Maestro, agora se intrigavam com aquela dignidade.” (idem, p. 23), dignidade adquirida pelo domínio sobre a música. Frente ao espelho:

Experimentou uma camisa, achou-a ruça, trocou por outra, alvíssima. Em frente ao pequeno espelho, molhou o cabelo, espichando-o à força de pente e banha. Ao fazer o laço na gravata de seda negra, comparou a brancura do colarinho com sua tez e apertou os lábios, constrangido. Mas logo erguia a cabeça: tinha sua arte, que o distinguia e o colocava em posição superior. “Hoje eles veriam.” (idem, p. 49)

Mas “O macaco está botando casaca” – Disse D. Brígida para a filha -, “mas aquilo nem vestido de Jesus Cristo” (idem). Ou seja, a arte dá a posição superior, mas para as mentes que habitam o sul isso é indiferente, bem como pode ser engraçado para uns, como “Silvestre”, futuro noivo de “Clara Vitória”, considera a situação. A forma como a arte se apresenta na figura do “Maestro” de “mãos escuras e terrestres” (idem, p. 52), parece dar-lhe algum domínio sobre o divino. Bem como, o viam de forma diferente dos outros por ser um estrangeiro. Por dar atenção à “Clara Vitória”, ela considera que “Essa deveria ser a maneira com que os baianos tratavam as mulheres de sua terra, uma fidalguia máscula, temperada pelo respeito e pela admiração” (idem, p. 66). “O Maestro possuía uma dicção modulada por carícias, e ela constatou, embora ele nunca o dissesse: era homem muito só, sinceramente só, e tinha apenas a música a acompanhá-lo pela existência”.

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No entanto tudo isso passa a ser um problema menor, uma situação não tão importante no momento em que “Clara Vitória” se descobre grávida, daqui para frente os valores morais do gaúcho pesam mais que a cor do “Maestro”, embora “Silvestre Pimentel” seja erroneamente acusado dessa barbaridade para com “Clara Vitória”. Tudo ao fim da narrativa encaminha a obra para um fim trágico, no entanto ao final, com a morte do “Major”, a dissolução de sua família e o retorno do “Maestro”, as barreiras que impedem “Clara” e o Mulato de estarem juntos se acabam e assim eles podem permanecer um ao lado do outro com sua recém-nascida filha: uma mulata e gaúcha.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vemos nessa narrativa que os negros e os mulatos são vistos como seres inferiores, sem nenhuma explicação racional para tal concepção. Há a construção da identidade do escravo ocorrendo de forma empírica, no entanto elementos empíricos não definem a identidade de algo e/ou alguém, como dito por Strauss (apud Bernd, 2003). Aqui buscamos o negro e sua representação na literatura tendo como referência o “outro” e desse modo vemos a identidade como definida por Stuart Hall (2004): uma relação entre o eu e a sociedade. Sob essa concepção, temos o negro na sociedade gaúcha afastado da identidade que possuía enquanto africano livre. Em tal situação, se “eu real” transforma-se de acordo com a sociedade em que se encontra inserido: escravocrata, branca, cristã e de cultura europeia adaptada aos trópicos. Sua nova identidade sofre influências de uma realidade alienígena que irá ter como base a condição de submissão do escravo. A literatura, nesse contexto, apresenta uma visão possível do negro, com base no breve histórico do negro visto no corpo do presente trabalho, é possível notar que a narrativa é fiel ao que ocorre com o negro na sociedade gaúcha do período retratado. O negro era a mão de obra da estância, na narrativa temos uma charqueada e seu universo circundante como palco de grande parte dos eventos representados. As charqueadas foram o principal motivo da presença do negro no estado, como visto em Cardoso (1977), Lopes (1980), Macedo (1974) e Mestri Filho (2006). O negro está presente na obra de forma superficial o que não nos permite uma avaliação muito profunda de sua identidade; no entanto, visto que a identidade foi anteriormente citada como um processo de construção constante por meio da aceitação ou negação da visão do outro, podemos inferir que o negro está também inserido em diversos processos identitários (HALL, 2004). O negro está em situação de submissão e os processos aos quais ele está submetido contribuem para isso. Tais processos definem sua condição, bem como sua identidade para os outros integrantes dessa sociedade. Para o mulato a situação não é tão diferente, sua condição de mestiço é pré-julgada como sinal de inferioridade, a exemplo dos xingamentos de “D. Brígida”. Não fosse o personagem em questão um maestro, sua condição seria tão miserável quando a dos outros negros. No entanto, podemos notar situação do mulato torna-se um pouco melhor, embora ainda não seja um igual naquela sociedade, por possuir o conhecimento da arte musical, ele se torna superior enquanto comanda a “Lira Santa Cecília”, a orquestra.

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A condição do personagem “Maestro”, sua ascendência negra, é motivadora de conflitos ao longo da obra, mas também vemos a questão dos costumes locais muito presentes e fortes. Podemos dizer que a obra girará em torno da visão da sociedade em relação ao negro e ao mulato, bem como da realidade social do Sul: patriarcal, cristã, branca com todas as suas morais e valores decorrentes dessa situação. Nesse ambiente, pouco ou nenhum espaço resta ao negro para demonstrar valores que não sejam os necessários à submissão e sobrevivência. Exceção a isso será o “Maestro”, por ser um mulato e de fora do estado, ele não se enquadra nos padrões presentes no estado para o negro, embora a sociedade tente submetê-lo aos seus valores e morais. Por tudo isso, pode-se notar que o negro e o mulato estão em situação marginal na sociedade gaúcha e na obra em questão. Sua identidade constrói-se em um processo de negação por parte do outro. Como dito por Hall A identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais exteriores e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2004, p. 15).

Ao negro é negada a liberdade; o que o define, primeiramente, como escravo e, devido a tal condição, um instrumento a serviço das vontades mais ínfimas de seus senhores. Ao mulato é negada a igualdade; situação que o faz duvidar de seu valor como individuo e buscar o reconhecimento através de sua arte, visto que não possui espaço entre os negros, mas também não pode se igualar à sociedade branca e dominante no Rio Grande do Sul. Desse modo, é possível apontar que em Concerto Campestre o negro é um elemento indispensável, pois sem os conflitos gerados pela sua presença e de seus descendentes nada na trama teria grande importância, no entanto o indivíduo negro não é mais que um elemento estático. A presença do negro é identificada na obra, no entanto não é dado maior foco ao personagem negro que o necessário para demonstrar a vida da estância. Quanto ao mulato, sua presença e sua identidade dissonante da realidade que o circunda são o reais conflitos existentes na narrativa quando confrontados com os valores morais vigentes no estado.

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