Violência, Cosmologia e Aspectos Sóciopolíticos no Oásis Atacamenho: Dados Paleoepidemiológicos e Arqueológicos em Perspectiva Biocultural

June 20, 2017 | Autor: Andrea Lessa | Categoria: Arqueologia, Violência, Atacama, Bioarqueologia, Abordagem Biocultural
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CAPÍTULO 19 Violência, Cosmologia e Aspectos Sóciopolíticos no Oásis Atacamenho: Dados Paleoepidemiológicos e Arqueológicos em Perspectiva Biocultural Andrea Lessa

INTRODUÇÃO Principalmente a partir do início da década de 90 a bioarqueologia vem se configurando como uma importante ferramenta para a investigação da violência entre sociedades antigas, podendo recuar milhares de anos no passado. Mais de duas décadas se passaram e o interesse sobre o tema mantém-se atual, uma vez que o acelerado aumento nos índices de morbi-mortalidade associados à violência destacam o fenômeno como uma das principais preocupações no campo da saúde coletiva em todo o mundo. Buscando-se compreender os diversos aspectos da agressividade humana em uma perspectiva antropológica e histórica, esforços vêm sendo realizados no sentido de se avançar no desenvolvimento teórico-metodológico para a sua identificação e interpretação em material arqueológico. Neste sentido, muitos estudos de casos procuram cruzar dados osteológicos cada vez mais acurados com os perfis paleoepidemiológicos observados e com os contextos funerários mais diretamente associados ao fenômeno (por exemplo Martin et al. 2010; Murphy et al. 2010; Klaus et al. 2013). De uma forma geral, o foco das investigações está em se estabelecer os sub-grupos mais expostos à violência, assim como a forma como a agressão foi perpetrada, suas motivações e consequências. Ou seja, através do entendimento das relações agressivas intra e inter-grupais, vem sendo estruturada uma bioarqueologia da desigualdade relacionada a gênero e status social, na qual se busca evidenciar como o sofrimento pode motivar as distintas formas de resistência e agência ou de conformidade e subordinação. Esta abordagem pode tornar-se particularmente interessante quando o estudo da violência assume uma perspectiva diacrônica, possibilitando o entendimento e a comparação do fenômeno ao longo do tempo. Ganha visibilidade a forma como os distintos momentos políticos, a interação diferenciada entre os grupos, as alterações nas relações sociais e econômicas, e a introdução de novas Avances Recientes de la Bioarqueología Latinoamericana, 2014. Editado por L. Luna, C. Aranda y J. Suby: 409-435. Buenos Aires, GIB. ISBN: 978-987-27997-1-7.

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ideologias podem impactar de forma expressiva a tensão social e a agressividade em sociedades antigas. Não é comum, no entanto, a disponibilidade de séries osteológicas de um mesmo grupo associadas a distintos contextos cronológicos/culturais, que sejam representativas do ponto de vista quantitativo, e que se encontrem em bom estado de preservação. Neste sentido, a coleção osteológica pré-colonial proveniente do oásis de San Pedro de Atacama, no norte do Chile, contempla de forma mais ou menos satisfatória as características mencionadas. A contínua ocupação do oásis durante milênios, intensificada a partir do início da Era Cristã, gerou um notável potencial arqueológico, explorado sistematicamente a partir da década de 1950 pelo Pe. Gustavo Le Paige, fundador do então Museo Arqueológico de San Pedro de Atacama1, onde a coleção está depositada. Seguindo uma metodologia de coleta considerada apropriada para a época, a maioria das séries é composta apenas por crânios, elemento essencial para a investigação das questões antropológicas então em voga. Apenas poucas escavações mais recentes, como as de Bravo e Llagostera (1986) e Costa e Llagostera (1994) contribuíram também com os elementos pós-cranianos. Ainda assim, o bom estado de preservação das séries e das oferendas funerárias, além da identificação do período cultural de muitos dos indivíduos recuperados estimularam o interesse por se conhecer melhor alguns aspectos da antiga e complexa sociedade atacamenha. Desta forma, foram desenvolvidos dois projetos para o estudo diacrônico da violência na população adulta de ambos os sexos que viveu no oásis de San Pedro de Atacama, compreendendo os períodos culturais denominados Intermédio Médio, Intermédio Tardio e Tardio (Lessa e Mendonça de Souza 2004, 2006, 2007, 2009; Lessa 2006, 2007, 2009). No presente texto, entretanto, devido à extensão e complexidade do tema, foi feito um recorte temporal com destaque para o período Intermédio Médio, o qual abrange a fase Quitor (período pré-Tiwanaku, entre ca. 400 e 600 A.D. e início do período Tiwanaku, entre ca. 600 e 700 A.D.), e a fase Coyo (período Tiwanaku, entre ca. 700 e 1000 A.D.). Este é o período com o maior número de tumbas escavadas por Le Paige e demais arqueólogos, provavelmente por ser um dos períodos mais ricos e complexos da pré-história local. Fugiria ao escopo deste texto a apresentação detalhada dos dados e interpretações específicos sobre a violência em cada série examinada das fases supracitadas, já publicados por Lessa (2007) e Lessa e Mendonça de Souza (2004, 2006). Será apresentada apenas uma visão geral do perfil paleoepidemiológico observado, além das principais interpretações associadas a cada contexto, uma vez que o objetivo aqui é extrapolar a perspectiva biocultural alcançada a partir de uma leitura mais imediata do contexto cultural de cada fase. Embora esta perspectiva tenha proporcionado uma compreensão das relações intra e intergrupais no oá-

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sis antes e durante a influência de Tiwanaku na região, a notável complexidade e preservação dos seus espaços funerários abre uma possibilidade única de se construir um panorama mais integrado e amplo da sociedade atacamenha. Este panorama foi desenhado, como se verá, a partir da integração entre os resultados da investigação paleoepidemiológica e aspectos políticos, socioeconômicos e ideológicos próprios de cada contexto, representados através de elementos diagnósticos da cultura material.

CONTEXTUALIZAÇÃO GERAL DA CULTURA ATACAMENHA O modelo proposto por Núñez (1992), descrito em seguida de forma resumida, explica o povoamento da região circumpuneña (figura 1), o qual teria se iniciado por volta de 13000 anos atrás. Durante este período começaram a ingressar na vertente ocidental da Puna Atacamenha os primeiros caçadores arcaicos, atraídos pela disponibilidade de recursos animais, vegetais e hídricos, iniciando assim um sistema de coleta e de caça de camelídeos selvagens (vicunhas e guanacos), roedores e aves. Por volta de 3000-2000 AC., durante o início do período Temprano (3000 A.C.-100 D.C.), a estratégia de vida desses grupos começou a mudar de forma mais significativa em função do crescente aumento de períodos de seca e diminuição dos recursos naturais. Intensificaram-se os processos de sedentarização, de cultivo, e de domesticação de camelídeos, dando origem aos rebanhos de lhamas e alpacas. Durante este período já era realizada a atividade que caracterizaria posteriormente a cultura atacamenha propriamente dita, a saber, os deslocamentos através de regiões mais distantes para o abastecimento de produtos ausentes em troca dos excedentes da economia agropastoril e artesanal. A ocupação deste território na forma de assentamentos agropastoris Figura 1. Localização da Subárea Circumpude alta densidade demográfica, dis- neña dentro da Área Centro-Sul Andina (Núñez tribuídos sempre em pequenos oásis 1992).

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(figura 2) em torno de fontes de água e de rios aconteceu durante o início do Período Intermédio Temprano (100-400 D.C.). Segundo Llagostera (1996), durante este período houve a estruturação de um padrão político, social e cultural de integração circum-puneña, o qual acompanhou os atacamenhos em todo o transcurso do seu desenvolvimento durante o período pré-colombiano. Este padrão se concretizou na inserção de San Pedro dentro de um eficiente sistema de complementaridade econômica com regiões distantes, através do qual se obtinham, trocavam e circulavam todo tipo de bens, tais como peixe seco, pigmentos, vegetais de valor alimentício, madeiras, fibras, equipamentos e substâncias psicotrópicas, além de Figura 2. Distribuição dos ayllus e localização dos sítios estudados, San Pedro de Atacama. matérias primas para a confecção de Redesenhado a partir de Le Paige (1963), com adornos. Alguns desses bens, como a redução para 90% do original. (Esc. 1 : 50.000) cerâmica forânea e os produtos perecíveis, eram acessíveis por esta via a todos os membros da sociedade. Os bens relacionados às práticas psicotrópicas, como os cachimbos e, mais tarde, as tabletas2, no entanto, moviam-se dentro de certas esferas, reforçando o processo de hierarquização. Tal estratégia assegurou aos atacamenhos, por longo tempo, hegemonia no transporte de cargas e condução das caravanas que cruzavam o deserto. Esta atividade os tornou especialmente importantes nos processos de expansão territorial desenvolvidos por outras culturas, como Tiwanaku e Inca, as quais, em diferentes períodos, acabaram por estender sua influência ideológica e/ou política a partir do Altiplano Meridional e Ocidental respectivamente. Estima-se que o auge da Cultura Atacamenha tenha ocorrido durante o Período Intermédio Médio, entre 400 e 1000 D.C. Este é o período mais bem estudado da pré-história atacamenha, mais especificamente a fase Coyo, quando o centro altiplânico Tiwanaku exerceu forte influência ideológica sobre o deserto (700-1000 D.C.). Uma notável complexificação cultural pode ser observada no artesanato em osso, madeira e metal, e na confecção de tecidos e trançados, os quais se tornaram muito mais elaborados. Um tipo de cerâmica conhecida como Negro Pulido, especialmente aquela com rostos antropomorfos, tornou-se

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muito popular. Os artefatos associados ao uso de alucinógenos, entre os quais as tabletas e tubos para inalação, começaram a aparecer com mais frequência nos contextos funerários. A decadência da cultura Tiwanaku, marco para o início do Período Intermédio Tardio (1000-1470 D.C.), parece ter sido sucedida por um período de reorganização social em toda a região andina, com a substituição do poder antes centralizado por poderes locais na forma de senhorios. A construção de fortificações ou Pukaras na região dos Andes Centro-Sul indica que este foi um momento de turbulência, com intensos conflitos interétnicos. Quase à época do contato com os espanhóis, durante o Período Tardio (1470-1536 D.C.), os Incas começavam a penetração nos oásis atacamenhos, o que, entretanto, não chegou a se consolidar uma vez que o próprio império incaico foi subjugado pela hegemonia européia. A narrativa etno-histórica refere que os oásis atacamenhos foram subjugados pela força do contato a partir de 1536, mencionando números da ordem de 4000 índios no oásis de San Pedro de Atacama quando da chegada dos europeus. Como em toda a América, os Lickan-Antay, como se autodenominavam, foram submetidos ao choque biológico e cultural, sendo quase exterminados por poucos espanhóis.

O PADRÃO ATACAMENHO DE VIOLÊNCIA DURANTE OS PERÍODOS PRÉ-TIWANAKU E TIWANAKU: PANORAMA GERAL A PARTIR DOS DADOS PALEOEPIDEMIOLÓGICOS No âmbito do presente texto, foram examinadas as séries Solcor-3 (esqueletos completos/períodos Pré-Tiwanaku e Tiwanaku) com 64 indivíduos, sendo 34 masculinos e 30 femininos, e Coyo Oriente (apenas crânios/período Tiwanaku) com 226 indivíduos, sendo 125 masculinos e 101 femininos. Apenas os indivíduos adultos foram analisados, considerando-se aqui que a expressão da violência em subadultos ocorreria apenas em casos específicos de massacres ou guerras, sendo, portanto, raramente observada em material arqueológico (Walker 1997). Os dados relativos à arqueologia funerária dos cemitérios do oásis (Le Paige 1971; Bravo e Llagostera 1986; Costa e Llagostera 1994), por sua vez, não dão suporte a esta última hipótese. Foram considerados traumatismos agudos associados à violência aqueles tradicionalmente descritos na literatura especializada: fraturas em depressão no crânio, fraturas na face, fraturas nos ossos nasais, fraturas transversas na ulna (parry fracture), atribuídas à elevação do antebraço em defesa de um golpe, e ferimentos causados por pontas de projétil. As fraturas nasais foram consideradas como uma categoria destacada das demais fraturas na face em função da sua especificidade de localização e de interpretação biocultural. Fraturas perimortem

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não foram consideradas devido à dificuldade em se estabelecer um diagnóstico seguro. Os ferimentos causados por pontas de projétil, ao contrário, representam de forma inequívoca um episódio de violência, mesmo no caso de lesões perimortem, tendo sido portanto quantificados.

Resultados para a Série Solcor-3 Figura 3. Indivíduo masculino apresentando duas fraturas em depressão remodeladas no frontal. Dimensões: A=0,80 x 0,40cm; B=1,50 x 0,90cm. Foto: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J., San Pedro de Atacama.

Na série Solcor-3, período préTiwanaku, foi observado um percentual de indivíduos afetados de 5,80% (1/17) para os masculinos e 23% (3/13) para os femininos, perfazendo um total de 13,30% (4/30). No período Tiwanaku, foi expressivamente mais alto o percentual de indivíduos masculinos afetados, com 47% (8/17), tanto se comparado com o período anterior, quanto se comparado com o percentual de 23,50% (4/17) observado nos indivíduos femininos. Para o total da série o percentual observado foi de 35,20% (12/34). A distribuição das lesões por tipo de traumatismo está apresentada na tabela 1. Em ambos os períodos, as fraturas no crânio são superficiais e estão totalmente cicatrizadas, sem sinais de processo infeccioso. Quase todas apresentam formato circular ou oval e pequenas dimensões, e não foi observado um padrão específico de distribuição, com ocorrência nos occipitais e nos frontais (figura 3). A única fratura na face, observada em uma mulher do período Tiwanaku, ocorreu na mandíbula e dividiu o osso em duas partes. A severidade da lesão é reforçada pela presença de pseudoartrose. Esta mesma mulher apresentou tamPeríodo Pré-Tiwanaku Masc.

Tipo de Traumatismo

Período Tiwanaku

Fem.

Masc.

Fem.

A

%

A

%

A

%

A

%

Fratura no crânio

-

-

1

8,30

3

20

2

12,50

Fratura na face

-

-

-

-

-

-

1

6,20

Fratura nos nasais

-

-

-

-

1

6,60

1

6,20

Fratura na ulna

-

-

2

15,30

-

-

-

-

Ponta de projétil

1

5,80

-

-

6

35,20

1

5,80

Tabela 1. Distribuição dos indivíduos afetados (A) por lesões associadas à violência, segundo tipo de traumatismo. Série Solcor-3.

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Figura 4. Indivíduo feminino apresentando fratura nos ossos nasais e na mandíbula, a qual resultou em uma pseudoartrose. Fotos: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J., San Pedro de Atacama.

Figura 5. Indivíduo masculino apresentando ponta lítica alojada na epífise distal do úmero esquerdo. O pedúnculo da ponta encontra-se cerca de 5mm exteriorizado, e sua trajetória de penetração foi anteroposterior e mesiolateral. Foto: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J., San Pedro de Atacama.

Figura 6. Indivíduo feminino apresentando perfuração no esterno e alojamento da ponta lítica na sétima vértebra torácica. Não há evidência de remodelação óssea. Fotos: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J., San Pedro de Atacama.

bém uma fratura nos nasais, muito provavelmente ocorrida durante o mesmo episódio, uma vez que também se apresenta muito severa, tendo desaparecido a projeção óssea do nariz, a qual ficou totalmente aplainada (figura 4). Praticamente todas as lesões causadas por pontas de projétil são de baixa letalidade, sendo observadas pontas líticas de pequenas dimensões (figura 5). A única lesão que provocou a morte da vítima ocorreu na única mulher atingida por este tipo de arma. A ponta lítica perfurou o esterno e se alojou na sétima vértebra torácica (figura 6).

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Resultados para a Série Coyo Oriente

Na série Coyo Oriente, representada apenas por crânios, foi observado um percentual de indivíduos afetados de 12% (15/125) para os masculinos e de 9,90% (10/101) para os femininos, perfazendo um total de 11,10% (25/226). A distribuição das lesões por tipo de traumatismo está apresentada na tabela 2. Todas as fraturas no crânio são superficiais e estão totalmente cicatrizadas, sem sinais de processo infeccioso (figura 7). Quase todas apresentam formato circular e pequenas dimensões, com exceção de uma mulher que apresenta politraumatismo com lesões de formatos e dimensões variados. Não foi observado um padrão específico de distribuição, com ocorrência nos parietais direito e esquerdo e nos frontais.

Tipo de Traumatismo

Masculinos A

Femeninos %

A

%

Fratura no crânio

2

1,60

4

3,90

Fratura nos nasais

13

10,40

5

4,90

-

-

1

0,90

Fratura na face

Tabela 2. Distribuição dos indivíduos afetados (A) por lesões associadas à violência, segundo tipo de traumatismo. Série Coyo Oriente.

As fraturas nos nasais estão totalmente cicatrizadas, mas as linhas de fratura podem ser observadas sem o auxílio de técnicas de imagem. Em todas elas há também sobreposição e/ou ausência de fragmentos ósseos (figura 8). A fratura na face observada em um indivíduo feminino ocorreu no osso zigomático (figura 9). Não foram observados indivíduos com fraturas no crânio, nos ossos nasais e na face simultaneamente.

Figura 7. Indivíduo masculino apresentando fratura em depressão no frontal com formato arredondado (1,50 x 1,60cm), remodelada e sem sinais de processo infeccioso. Foto: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J.

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A VIOLÊNCIA NO OÁSIS ATACAMENHO SOB UMA PERSPECTIVA BIOCULTURAL Série Solcor-3 - Períodos pré-Tiwanaku e Tiwanaku

Na série Solcor-3, considerando-se as prevalências observadas em indivíduos de ambos os sexos e em ambos os períodos estudados, evidencia-se um aumento significativo de episódios de agressão durante o período Tiwanaku, uma vez que a frequência para este período foi de 35,20%, contra 13,30% para o período anterior. Agrupando-se as frequências de indivíduos afetados por segmento sexual, observa-se que no período pré-Tiwanaku os homens apresentam um valor significativamente baixo (5,80%), principalmente se comparados com as mulheres (23%). Esta baixa frequência de lesões violentas entre os homens provavelmente exprime uma condição de equilíbrio social, sustentada pela interação milenar entre os grupos atacamenhos e o meio, e pelas relações de intercâmbio com outras etnias, através do tráfico caravaneiro para complementação de bens necessários à sobrevivência no circunscrito oásis atacamenho. Desde o início da era Cristã, já se havia definido chefias domésticas, cujo processo de hierarquização pode ser percebido através dos acompanhamentos funerários. Esta classe em emergência usufruía de elementos de status, como cachimbos, e de símbolos de poder, como maças, além de manejar e equilibrar as interelações com outros grupos e dentro do próprio oásis (Llagostera 1996).

Figura 8. Indivíduo masculino apresentando fratura remodelada nos ossos nasais. Notese as linhas de fratura e a sobreposição dos fragmentos ósseos fraturados. Foto: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J., San Pedro de Atacama.

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Figura 9. Indivíduo feminino apresentando fratura consolidada no osso zigomático esquerdo. Note-se o mal alinhamento dos fragmentos fraturados, assim como a presença de um orifício e linha de fratura. Foto: A. Lessa; acervo: Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J., San Pedro de Atacama.

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No período Tiwanaku, ao contrário, os homens apresentam uma frequência de lesões excepcionalmente alta (47%), enquanto as mulheres permanecem com um valor quase idêntico ao do período anterior (23,50%). A violência durante o período Tiwanaku ocorreu, portanto, de forma muito mais intensa entre os homens, os quais, segundo Burbank (1992), são normalmente os responsáveis pelas rixas inter e intra-grupais. Do ponto de vista social, as mudanças ocorridas durante a interação com Tiwanaku, expressadas nos acompanhamentos funerários, apontam para a introdução de uma nova ideologia, para uma expansão da rede de intercâmbio, para a acumulação de riqueza, e para a consolidação de uma hierarquia local que aproxima o xamanismo e o poder, ambas esferas de domínio masculino (Llagostera et al. 1988; Berenguer e Dauelsberg 1989; Llagostera 1996). Este remanejamento de valores e de estratégias dentro da sociedade atacamenha, traduzido na organização das novas alianças, na busca por prestígio e poder, e no descontentamento gerado por uma crescente hierarquização a qual beneficiava poucos indivíduos em detrimento de muitos, deve ser considerado um fator central no processo que envolveu a emergência de uma expressiva tensão social na sociedade atacamenha durante o período Tiwanaku. Quanto aos tipos de traumas sofridos, observa-se, entre os homens, uma maior frequência para as lesões causadas por pontas de projétil. Este dado configura uma condição aleatória para os episódios de agressão, já que as mesmas podem atingir qualquer parte do corpo, além de uma condição de embates a média ou longa distância. Lesões em locais específicos, como a face, os nasais e a epífise distal da ulna, associadas a embates corpo-a-corpo, apresentaram frequência pouco expressiva, e provavelmente não expressam táticas e/ou intenções específicas. A localização das lesões causadas por pontas de projétil descarta a possibilidade de confrontos com os oponentes de frente um para o outro, já que as mesmas tiveram uma trajetória de penetração posterior, lateral, ou de cima para baixo. Estes dados apontam para ataques desferidos pelas costas, durante emboscadas, ou quando a vítima estivesse em fuga. Esta situação estaria de acordo com o contexto que envolve as atividades dos caravaneiros e dos mineradores no deserto atacamenho, os quais atravessavam e se detinham em regiões com morros, penhascos e grandes pedras. Admite-se, portanto, que os ataques aconteceriam fora dos limites das aldeias, o que também explicaria porque as mulheres e os adultos senis teriam sido poupados. Segundo Chagnon (1992), a violência proveniente do uso de flechas, em sociedades tribais modernas, é mais frequentemente observada em confrontos ou guerras entre grupos com parentesco distante, sugerindo, neste caso, confrontos intergrupais. Entre as mulheres, o fato das frequências de indivíduos afetados serem equivalentes nos dois períodos, além do padrão de lesões observado, sugere que as agressões provavelmente se davam em um contexto de brigas domésticas, as

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quais envolveriam assuntos do cotidiano, entre pessoas de dentro e de fora do núcleo familiar. Wrangham e Peterson (1996), baseados em estudos etnográficos, sustentam que a violência praticada pelos homens em contexto doméstico é considerada um comportamento aceitável em menor ou maior grau em todas as sociedades patriarcais, tendo atingido as mulheres em todos os tempos e ao redor de todo o mundo. Este fato, no entanto, não invalida a possibilidade das agressões terem sido cometidas por outras mulheres. Levinson (1989 apud Wilkinson 1997) argumenta que a conduta violenta entre o sexo feminino pode ser observada principalmente em sociedades poligâmicas, embora não somente. No caso específico dos grupos atacamenhos, não há disponibilidade de dados etnográficos que informem sobre este aspecto da organização social, não sendo possível, portanto, inferências quanto ao sexo dos agressores. Quanto ao padrão dos traumatismos, ao contrário dos homens, o alvo mais frequente parece ter sido a cabeça e a face. Em um contexto de brigas domésticas, admite-se o desferimento de golpes com qualquer instrumento que esteja à mão do agressor. Considerando-se que o espancamento é uma das formas de violência mais comum entre as mulheres (Wrangham e Peterson 1996), e que este tipo de conflito não apresenta nenhuma regra (Lambert 1997), deduz-se apenas que vítima e agressor encontravam-se frente-a-frente, a uma pequena distância um do outro, possibilitando assim a execução do golpe, já que das 6 lesões observadas, apenas uma ocorreu na região posterior (16,60 %).

Série Coyo Oriente-Período Tiwanaku

Na série Coyo Oriente, diferentemente do que foi observado na série Solcor-3, não há muita diferença entre as frequências de indivíduos masculinos (12%) e femininos (9,90%) afetados. Mais uma vez, porém, os dados para o segmento masculino se destacam, uma vez que as lesões que apresentam frequências mais altas são as de ossos nasais (10,40% dos indivíduos afetados), em oposição às fraturas no crânio (1,60% dos indivíduos afetados), caracterizando uma configuração não aleatória para as lesões. Observa-se, portanto, uma pequena variação nos tipos de lesões, com concentração especificamente na região nasal (86,60% do total de lesões observadas), em oposição a uma frequência significativamente mais baixa de lesões no crânio (13,30% do total de lesões observadas), e à ausência de lesões na face. Esta concentração de fraturas na região nasal sugere que os golpes foram desferidos segundo regras específicas de ataque, uma vez que durante combates corpo-a-corpo ou à distância, os golpes são desferidos de forma aleatória. Desta forma, a probabilidade de um golpe atingir o crânio e a face é muito maior do que de atingir especificamente a região nasal, a qual apresenta uma área muito

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menor. Esta concentração de fraturas não letais, e o fato dos indivíduos não apresentarem outras lesões no crânio ou na face, sugere que os golpes foram desferidos durante lutas rituais. É possível que esta predileção por golpes no nariz tenha relação com o oferecimento de sangue às divindades, considerando-se que ferimentos nesta região produzem bastante sangramento. Esta hipótese ganha força quando inserida dentro do contexto cultural desta fase, quando os oásis atacamenhos encontravam-se sob forte influência ideológica de Tiwanaku. Esta influência pode ser claramente observada em vários cemitérios desta fase, estando sempre representada através do complexo aparato cerimonial-religioso relacionado com a inalação de alucinógenos. No caso específico de Coyo Oriente, ossos pirogravados, tubos, colheres e principalmente tabletas apresentam a típica iconografia Tiwanakota, principalmente os temas centrais e secundários da Puerta del Sol (Orellana 1985; Winter et al. 1985). Relatos de cronistas e estudos etnográficos com grupos Aymaras que ainda vivem às margens do Lago Titikaka e em outras regiões da Bolívia, bem como com grupos Quechua que vivem em outras regiões andinas e no passado também receberam influência direta de Tiwanaku, registram a prática de lutas rituais. Essas lutas são denominadas nos dois idiomas de Tinku, e persistem até os dias atuais em algumas das regiões supracitadas (Celestino 1997; Duviols 1997; Isla 1997). De uma forma geral, essas batalhas rituais são travadas entre aldeias ou ayllus vizinhos, entre dezembro e março, a fim de assegurar o ciclo reprodutivo de plantas e animais. Os homens, após ingestão de bebidas alcóolicas, oferecem seus corpos a seus respectivos adversários, quando são submetidos a um enfrentamento a base de golpes que produzem feridas e sangramento. Trata-se, ao mesmo tempo, de um sacrifício de sangue para a terra que está sendo fecundada, e da afirmação de identidade das comunidades através de uma competição dual (Celestino 1997; Isla 1997). Cabe acrescentar que há uma variação na prática do Tinku. Os duelos podem ocorrer com os participantes chicoteando-se uns aos outros com o propósito de fazer sangrar seu oponente, ou podem se golpear em turnos com instrumentos ou socos. Os combatentes podem lutar emparelhados, formando filas, ou ainda na forma de lutas livres (Topic e Topic 1997). Um estudo paleopatológico em séries esqueléticas do sítio ritual Mochica Huaca de La Luna revelou fraturas nos crânios, em ossos longos, em costelas e nas margens da abertura nasal, com vários graus de cicatrização, as quais foram interpretadas como resultado de golpes desferidos durante lutas rituais. Todos os 65 indivíduos eram do sexo masculino (Verano 2000). Essas fraturas com distribuição variada revelam, no entanto, que neste caso não havia um padrão específico de luta. Os dados observados em Huaca de la Luna confirmaram os resultados de

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estudos iconográficos em cerâmica Mochica, cujos desenhos foram interpretados como cenas de lutas rituais Tinku, com ênfase no fato dos oponentes lutarem sempre em dupla, de serem todos Mochicas e não de etnias diferentes, e na abundante representação do sangue jorrado (Hocquenghem 1987). Topic e Topic (1997) citam um estudo das representações em outro sítio Mochica, Huaca El Brujo, onde os homens têm as bases dos pênis cortadas para jorrar o sangue. Os autores assinalam que neste caso não há evidência do ritual entre as mulheres. Ainda que no presente estudo a principal interpretação para a causa das lesões nasais seja a luta ritual Tinku, cabe mencionar que outros tipos de lutas rituais também poderiam ocorrer, atuando como uma forma de resolução para disputas sempre que relações importantes estivessem em jogo e a morte da vítima não fosse de interesse para o agressor (Chagnon 1992). Walker (1997) complementa esta discussão comentando que grupos que vivem em ambientes geograficamente limitados frequentemente optam por resolver seus conflitos através de duelos rituais. Isto ocorre porque os duelos fatais poderiam reduzir os indivíduos do grupo a um número inferior àquele necessário para a realização das atividades de subsistência de forma eficiente. A resolução de conflitos mediante uma mudança dos grupos para outra região tampouco seria uma alternativa viável em ambientes geograficamente limitados. Neste caso, portanto, ainda que o contexto cultural argumente a favor da associação das lutas rituais observadas em Coyo-3 com as práticas cerimoniais para fertilidade oriundas do Altiplano Meridional, lutas rituais para fins de resolução de disputas não devem ser descartadas como outra possível interpretação, se considerada a restrição geográfica do oásis atacamenho para a produção de subsistência. Cabrera (1968) destaca que a região da Puna de Atacama, ou puna desértica, é extremamente árida, e que as populações autóctones se concentraram nos vales do rio Loa e do Salar de Atacama por serem estas as únicas áreas que oferecem algum recurso para o desenvolvimento de grupos humanos. Entre as mulheres, por sua vez, foi observada uma variação maior na distribuição das lesões, com frequências de 3,90% para indivíduos apresentando lesões distribuídas aleatoriamente no crânio, 4,90% nos ossos nasais e 0,90% na face. A não observação de um padrão específico de lesão, situação contrária daquela observada entre os homens, sugere que as agressões entre as mulheres ocorreram em um outro contexto. Tal como discutido para a série Solcor-3, os dados sugerem que este segmento também foi vítima de violência doméstica associada a assuntos do cotidiano, a qual ocorre entre pessoas de dentro e de fora do núcleo familiar, e não apresenta nenhuma regra específica de ataque (Lambert 1997). Este padrão aleatório de ataque, e o fato de estudos com populações atuais (Isla 1997), iconográficos (Hocquenghem 1987; Topic e Topic 1997) e paleopatológicos (Verano 2000) apontarem para a prática de lutas rituais entre os homens, reforçam a hipótese acima discutida.

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INTEGRAÇÃO DOS DADOS PALEOEPIDEMIOLÓGICOS E ARQUEOLÓGICOS: UM OLHAR MAIS AMPLO E SISTÊMICO SOBRE A VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE ATACAMENHA Os estudos paleoepidemiológicos sobre violência oferecem, sem dúvida, elementos bastante informativos sobre a intensidade e a forma como as sociedades pré-coloniais lidavam com seus conflitos. Na interpretação dos dados paleoepidemiológicos buscou-se associar os padrões de lesões observados tanto ao contexto arqueológico geral da região centro-sul andina, quanto aos contextos culturais específicos de cada fase estudada. Partindo-se, portanto, das informações disponíveis para ambas as fontes de dados, bioantropológica e arqueológica, foi possível refletir sobre vários aspectos relacionados ao fenômeno da violência no oásis, bem como sugerir modelos interpretativos para os resultados obtidos. Ainda que de forma embrionária, algumas hipóteses foram formuladas e poderão ser testadas em estudos futuros. Apesar do esforço que representou a agregação do grande volume de dados culturais de forma coerente e elucidativa em torno da questão específica da violência, ficou evidente que o excepcional potencial arqueológico do oásis atacamenho poderia propiciar um mergulho mais profundo no panorama social e político subjacente aos momentos de conflito. Desta forma, nos parágrafos a seguir, buscou-se complementar o cenário que envolve a questão das disputas no oásis, a partir de uma análise mais refinada e integrativa de dados oriundos dos contextos funerários, sempre com o objetivo de se compreender melhor de que forma a violência se associou à dinâmica dos processos sociais na vida dos atacamenhos. Pensar em violência no contexto pré-colonial atacamenho leva inevitavelmente à reflexão sobre quem detinha, ou de que forma era distribuído, o poder nos ayllus que formavam o oásis. Para responder a esta questão, considerou-se pertinente comparar os dados relativos a uma categoria de oferendas funerárias eminentemente masculinas, representada por elementos não diretamente associados às atividades bélicas, mas relacionados com a prática de inalação de alucinógenos. A associação quase exclusiva entre a prática do uso de alucinógenos e os indivíduos adultos masculinos foi bem demonstrada por Barón (1984), Costa e Llagostera (1994) e Llagostera et al. (1988). Estes últimos autores, após minucioso exame do conjunto de objetos psicotrópicos observados nas tumbas do período pré-Tiwanaku e Tiwanaku de Solcor-3, envolvendo 100 indivíduos, observaram apenas uma mulher portadora de tais objetos em cada fase, as únicas com idade entre 45-50 anos, além de uma criança de sexo masculino para o período Tiwanaku. Desta forma, a quantificação dos dados referentes a objetos psicotrópicos apresentada a seguir foi feita com base no número de tumbas masculinas e, sem-

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pre que possível, no número de indivíduos masculinos. Os resultados diferem, portanto, daqueles apresentados nos trabalhos acima citados, uma vez que os autores utilizaram metodologia distinta, quantificando os dados sobre o total de tumbas escavadas. Cabe assinalar que as tumbas apresentaram padrões de composição individual, duplo e múltiplo, sendo possível, no entanto, associar os objetos quantificados a um indivíduo masculino. O conjunto de objetos psicotrópicos inclui, além das tabletas confeccionadas invariavelmente em madeira, os tubos e as pequenas colheres, confeccionados em madeira ou osso, além de pequenas caixas, bolsas ou envoltórios confeccionados em madeira, couro ou lã os quais eram utilizados para guardar os demais objetos. São variadas as associações observadas entre estes objetos, mas, como bem observam Berenguer e Dauelsberg (1989), os tubos inalatórios são os objetos mais importantes do ponto de vista funcional. Os mesmos autores constataram que havia amplos setores da sociedade que careciam de tabletas, dispondo apenas dos demais objetos psicotrópicos. Desta forma, conclui-se que este elemento específico não era essencial para a prática psicotrópica, mas constituía-se como um diferencial entre os praticantes. Segundo Thomas e Benavente (1984), tradicionalmente se pensou na variabilidade estilística das tabletas em termos de mudanças cronológicas. Os avanços teóricos, no entanto, têm complementado esta idéia verificando que suas características morfotemáticas variam também espacialmente, e não apenas de uma região para outra, mas dentro da própria sociedade atacamenha. Berenguer e Dauelsberg (1989) observaram que os temas básicos presentes nas tabletas são mais conservadores que a morfologia do artefato, tendo alguns deles persistido por mais de 700 anos, embora de forma não simultânea. Os mesmos autores acreditam que esta variabilidade interna em San Pedro é de capital importância para se entender o processo de complexidade social emergente durante o final da Fase Sequitor e da Fase Quitor em diante. Devido ao exposto, e devido também ao seu caráter mais restrito dentro da sociedade e ao inigualável virtuosismo e complexidade de algumas peças, assume-se aqui, em concordância com os autores supracitados, que as tabletas diferenciavam seus portadores quanto ao seu status dentro do grupo3. A partir dos registros de vinte sítios escavados por Le Paige, Llagostera et al. (1988) contabilizaram 522 tabletas em um total de 2.574 tumbas relativas a todos os períodos culturais. Torres (1996) quantificou aproximadamente 20-22% de homens que inalavam psicotrópicos entre os séculos III e X D.C. Este autor identificou San Pedro como a região de uso mais intenso destas substâncias na América pré-colombiana, considerando-se que dos aproximadamente 50 sítios escavados, 42 apresentavam objetos psicotrópicos nos seus contextos. Uma divisão bastante generalizada aponta para a existência de três grupos de tabletas. Convém mencionar primeiro aquelas com estilo simples e que não

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possuem decoração, as quais, segundo Barón (1984), poderiam ser interpretadas como de uso não ritual. Llagostera et al. (1988) afirmam que o tipo sem decoração e com painel plano seria o grupo com maior representatividade no Museu de San Pedro de Atacama. Infelizmente, não existem dados publicados que possam indicar se este tipo de tableta foi utilizado com mais frequência em algum período cultural específico. O segundo grupo é composto por tabletas com estilos locais, as quais foram objeto de estudos mais específicos, e cuja iconografia não está associada com estilos Tiwanakotas. Torres (1996) identificou nove temas básicos, com suas respectivas variações, as quais representam predominantemente figuras antropomórficas, como as denominadas alter-ego e mulher heráldica. As representações observadas nas tabletas de estilos locais são interpretadas a partir de uma conotação sócio-política relacionada com os ancestrais fundadores de determinadas linhagens, e em associação com a organização dual da sociedade atacamenha (Serracino 1980; Thomas et al. 1985; Berenguer e Dauelsberg 1989). Sua presença nos contextos de determinados indivíduos manifestaria um status de liderança tradicional, não participativa de uma esfera de interação religiosa (Thomas et al. 1985), embora o líder de cada linhagem fosse o responsável pelas atividades cerimoniais (Schiappacasse et al. 1989). O terceiro grupo é constituído pelas tabletas que apresentam a típica iconografia Tiwanakota, representada por sete temas básicos (Torres 1996). A interpretação para os motivos decorativos destas tabletas, ao contrário daquelas com motivos locais, invoca a esfera ideológica-cerimonial através da qual Tiwanaku interagiu com o oásis atacamenho (Thomas et al. 1985). Llagostera et al. (1988), a partir do estudo sobre o complexo psicotrópico de Solcor-3, buscaram justamente comprovar se seria lícito ou não identificar como xamãs os portadores de tabletas atacamenhos. Com base em estudos etnohistóricos americanos, concluíram que as tabletas com determinados elementos estilísticos, como a esqueletonização, ou estilo raio X, e a representação de animais, podem ser claramente associadas ao xamanismo. Berenguer et al. (1980), por sua vez, identificam como xamãs os personagens mascarados representados em numerosos objetos psicotrópicos. Muitas destas tabletas apresentam, em associação com os elementos citados, a representação do chamado sacrificador com cabeças-troféu e machados. Ainda segundo Llagostera et al. (1988), as tabletas com os motivos mencionados estão associadas aos contextos do período Tiwanaku, confirmando para alguns indivíduos deste período a associação entre status e xamanismo. Thomas et al. (1985) complementam as inferências sobre a importância destes elementos com dados precisos e bastante elucidativos, após estudar as mudanças estilísticas das tabletas em relação aos outros elementos dos contextos a elas associados. A partir dos resultados obtidos, os autores afirmam que as

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mesmas são um claro referente organizativo estrutural dos sistemas correspondentes aos distintos períodos da cultura atacamenha. Buscando-se, portanto, entender de forma sistêmica o fenômeno da violência e a esfera ideológica, aqui associada a aspectos políticos, sociais e econômicos, serão brevemente discutidos e correlacionados a seguir os principais dados disponíveis sobre os elementos psicotrópicos para as duas fases culturais em questão. Serão utilizados dados obtidos pelos autores supracitados, assim como dados obtidos a partir do presente estudo.

Cosmologia, aspectos sóciopolíticos e violência durante o Período pré-Tiwanaku

É a partir desta fase que os objetos relativos à prática psicotrópica aparecem em abundância nos contextos dos cemitérios da região (Berenguer e Dauelsberg 1989; Núñez 1992). Thomas et al. (1985) observaram que a partir de aproximadamente 400 D.C., uma nova forma de tableta, mais elaborada do que aquela observada na fase anterior, indicaria através de suas personagens as relações de dualidade dentro da sociedade atacamenha. Ainda segundo estes autores, a sua organização estaria estreitamente ligada ao conceito de linhagem (possivelmente clânico) e seria segmentada de acordo com padrões territoriais, representados pelos ayllus. O manejo territorial estaria fortemente inserido em uma conotação dual, vinculada à instituição de chefia. Este tipo de tableta estaria predominantemente associada à cerâmica tipo Negro Pulido, a qual apresenta seu auge durante esta fase, chegando a um tipo derivado mais aperfeiçoado, chamado Negro Bruñido. O setor relacionado ao período pré-Tiwanaku do cemitério Solcor-3 caracteriza bem a Fase Quitor, apresentando predominantemente tabletas e tubos sem os atributos estilísticos Tiwanakotas, e com associação cerâmica do tipo Negro Pulido. A presença de uma tableta representando felino com atributos Tiwanakotas foi considerada intrusiva dentro do padrão observado. Foi obtida uma datação radiocarbônica para este setor do cemitério de 480 ± 60 anos D.C. (Bravo e Llagostera 1986; Llagostera et al. 1988)4. A quantificação das tabletas demonstrou que 43,4% dos indivíduos masculinos estavam envolvidos com esta prática, confirmando a abundância dos objetos psicotrópicos nos contextos deste período. Com relação ao estilo, 70% das tabletas possuía decoração, sempre com atributos locais, tendo como exceção a tableta mencionada no parágrafo anterior. O único indivíduo que possuía apenas um tubo para inalar era uma mulher com idade entre 45-50 anos. Desta forma, se a proposição de Barón (1984) estiver correta, uma minoria de indivíduos (30% dos praticantes), faria um uso não cerimonial das substâncias psicotrópicas.

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Outro sítio que pode fornecer dados sobre a prática psicotrópica é Quitor-6, o qual apresentou dois setores opostos bem delimitados, e um total de 66 tabletas (Le Paige 1963). O setor meridional, que apresentou ricas oferendas e a clássica cerâmica tipo Negro Pulido, está associado à Fase Quitor (período pré-Tiwanaku). Segundo Llagostera (1996), dos 255 adultos recuperados neste setor, 35 indivíduos portavam tabletas, perfazendo um total de 13,70%. O autor observou que todos os portadores eram homens, no entanto, a quantificação foi feita sobre o total de adultos de ambos os sexos, o que subestima o percentual de homens portadores. Apenas a título especulativo, para se tentar uma aproximação do percentual de portadores de tabletas tendo como base os indivíduos que eram efetivamente praticantes, será feita uma projeção dos dados de Quitor-6. Desta forma, considerando-se um percentual de mortalidade equivalente entre homens e mulheres, a amostra masculina contaria com 127 indivíduos, o que representaria 27,50% de portadores de tabletas. Obviamente, caso haja desequilíbrio no percentual de mortalidade de ambos os sexos para este sítio, este percentual pode variar para valores mais altos ou baixos. Ainda que esta projeção sirva apenas como uma aproximação, ela sugere que os indivíduos masculinos de Quitor-6 apresentam um percentual para a prática psicotrópica apenas um pouco mais alto do que a média para a população atacamenha (20-22%). Os homens de Solcor-3, ao contrário, apresentam um percentual bem mais alto, indicando que estariam mais envolvidos com esta prática já durante o período pré-Tiwanaku. Berenguer e Dauelsberg (1989) argumentam que as tabletas eram objetos de uso pessoal, enterrados especificamente com seu dono. Nas tumbas múltiplas onde foi observada apenas uma tableta, esta estaria associada ao indivíduo de maior relevância dentro do grupo. Alguns temas básicos observados na sua decoração aparecem simultaneamente, identificando linhagens específicas. Estes temas seriam passados de geração em geração, legitimando a posição (ou identificação) das linhagens dentro da sociedade, as quais, durante esta fase, teriam repartido o poder sem uma particular notoriedade de uma sobre outra. A capacidade de liderança dependeria da habilidade destas linhagens para estabelecer alianças com as chefias de outras zonas, principalmente no sul da Bolívia, garantindo assim o estabelecimento das redes de tráfico e a complementaridade de produtos. Esta premissa tem apoio nos dados fornecidos por Llagostera et al. (1988) após a análise da associação entre objetos forâneos e locais em vinte e dois sítios do oásis. A quantificação destes objetos demonstrou que 30% das tumbas que apresentaram cerâmica forânea continham objetos psicotrópicos associados, enquanto apenas 18% das tumbas que apresentaram cerâmica local continham os mesmos objetos. Esta associação estaria assinalando uma relação mais próxima entre os líderes e as redes de troca. Por outro lado, os mesmos autores observaram um equilíbrio na aquisição

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de bens entre os líderes e os demais indivíduos atacamenhos. Durante esta fase os indivíduos portadores e os não portadores de tabletas possuíam oferendas funerárias equilibradas do ponto de vista da quantidade de bens, o que indica que o status não estaria associado à acumulação de riqueza. Para exemplificar esta constatação, vale mencionar que os autores quantificaram 40% dos machados existentes entre o primeiro grupo, contra 33% entre o segundo grupo. O panorama apresentado através das teorias vigentes e das quantificações de variados elementos da cultura material acima discutidas apontam para uma situação de relativa igualdade entre os membros da sociedade, no tocante à aquisição de bens. A diferenciação de status, ainda pouco marcada, provavelmente ocorria através da liderança alternada de determinadas linhagens, representadas pelo indivíduo mais proeminente dentro do seu grupo. Desta forma, a frequência de 5,80% para lesões associadas à violência na amostra masculina pré-Tiwanaku de Solcor-3 está em perfeita concordância com este panorama, confirmando a existência de um equilíbrio nas relações inter e intra grupais no oásis atacamenho.

Cosmologia, aspectos sociopolíticos e violência durante o Período Tiwanaku

Já no final da Fase Quitor, a partir de aproximadamente 600 D.C., percebe-se uma intensificação nas relações entre o oásis atacamenho e o altiplano boliviano, proliferando nos contextos atacamenhos os objetos com iconografia Tiwanakota. Uma vez que estes objetos eram quase exclusivamente de uso ritual, mais especificamente para a prática psicotrópica, a teoria vigente estabelece que a influência de Tiwanaku na região foi de cunho cerimonial-ideológico. Este fenômeno representa o começo de mudanças na estrutura social do oásis, as quais se cristalizaram na Fase Coyo (Berenguer et al. 1980; Serracino 1980; Orellana 1985; Llagostera et al. 1988; Berenguer e Dauelsberg 1989). O sítio Coyo Oriente, que forneceu datações por termoluminescência de 639 e 910 D.C. (Berenguer et al. 1986; Oakland 1992), expressa claramente o processo de mudança ocorrido na sociedade atacamenha. Esta mudança afetou, de uma forma geral, toda a bagagem de artefatos, mas ficou sensivelmente registrada na modificação total da técnica e do estilo da cerâmica, cuja reformulação obedeceu padrões próprios sem refletir qualquer influência Tiwanaku (Llagostera 1996). A partir dos dados de Le Paige (1971), observa-se que a cerâmica tipo Negro Pulido havia praticamente desaparecido durante a Fase Coyo, dando lugar ao tipo Gris Grueso Pulido associado a outras tipologias. As mudanças mais complexas, no entanto, ocorreram no nível social, tendo a esfera ideológica assumido um importante papel como via transmissora e estimuladora de uma nova ordem. Outras mudanças no contexto funerário, mas

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principalmente nos objetos psicotrópicos, evidenciam a ruptura dos sistemas tradicionais atacamenhos observados nas fases anteriores. Mais uma vez Coyo Oriente forneceu dados valiosos a partir das 55 tabletas recuperadas em seus contextos (Le Paige 1971). Thomas et al. (1985), ao analisarem estes elementos, observaram uma simplificação e empobrecimento dos motivos decorativos próprios da região, que caracterizaram o período anterior. No entanto, ainda que estes elementos tenham sido representados de forma apenas estilizada, o referente dual sociopolítico permaneceu presente. Simultaneamente, surgiram as tabletas que apresentam os elaborados motivos do altiplano boliviano representados na Puerta del Sol. Ainda segundo os autores, a distribuição das tabletas manifesta uma clara situação dicotômica entre o status de liderança tradicional em oposição a um status associado à influência Tiwanakota. Este último grupo exerceria o poder com base em uma fundamentação ideológica-cerimonial xamanística, ao contrário dos líderes locais que não participariam desta esfera de interação religiosa. De fato, foi observada uma quantidade semelhante entre indivíduos portadores de artefatos exclusivamente locais, e indivíduos portadores de cerâmica local e artefatos com iconografia Tiwanakota, o que indicaria a existência de dois tipos de liderança. Berenguer e Dauelsberg (1989) complementam estes dados ao interpretarem as mudanças ocorridas nesta fase como o reflexo de uma elite local ávida por adquirir bens de status que aumentassem seu prestígio regional e interregional. A discussão é ampliada ao afirmarem que as sociedades localizadas em pontos de rede de trocas onde se cruzam múltiplas vias de comunicação -como é o caso do oásis atacamenho- são submetidas a uma forte pressão para que possam se readequar à emergência de novas condições. A resposta mais provável para esta pressão seria o desenvolvimento de uma classe especial de indivíduos que deteriam a informação (através dos bens), a fim de estimular e facilitar seu crescente fluxo dentro da rede. Esta nova elite, em oposição à elite tradicional, teria baseado sua proeminência dentro da sociedade atacamenha através do manejo da interação interregional. Este seria o status daqueles setores da população atacamenha vinculados com a cosmologia Tiwanaku. Coyo Oriente também fornece dados paleoepidemiológicos bastante interessantes relacionados com a esfera cerimonial-ideológica, conforme discutido em parágrafos anteriores. A interpretação de golpes provocados durante lutas rituais para as fraturas nos ossos nasais de indivíduos masculinos reforça a importância da simbologia Tiwanaku durante este período. Até o momento, nenhum outro cemitério do oásis forneceu séries que apresentassem um padrão semelhante de lesão, o que reforça a idéia da importância emergente de uma esfera religiosa de influência Tiwanakota. O setor relacionado ao período Tiwanaku do cemitério Solcor-3 também caracteriza bem esta fase, apresentando tabletas decoradas com e sem a iconografia

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Tiwanakota. Bravo e Llagostera (1986) obtiveram três datações radiocarbônicas: 510 ± 150 D.C., 720 D.C. e 920 ± 120 D.C. Os autores identificaram esta fase através da presença de cerâmica tipo Gris Grueso Pulido, com muitas tumbas apresentando materiais Tiwanakotas, em oposição às tumbas do período anterior5. A quantificação dos objetos psicotrópicos demonstrou que 70,30% dos indivíduos masculinos estavam envolvidos com a prática de inalação, apontando para uma intensificação em relação ao período anterior. Entre os referidos indivíduos, 59,20% eram portadores de tabletas, caracterizadas da seguinte forma: 37,50% não possuíam decoração, e se for novamente considerada a proposição de Barón (1984), este dado indicaria uma popularização da prática, sem fins cerimoniais; 31,20% apresentavam iconografia Tiwanaku, representando as novas lideranças; e 31,20% não apresentaram iconografia Tiwanaku, possivelmente representando as lideranças tradicionais. Estes dados coincidem com as observações de Winter et al. (1985), refletindo uma dicotomia entre as lideranças, em proporções equilibradas. Diferentemente do que foi observado para o período anterior, Llagostera et al. (1988) observaram uma hierarquização mais acentuada por parte das lideranças como um todo durante o período Tiwanaku. Os autores perceberam um notável desequilíbrio na quantidade de bens associados aos portadores e aos não portadores de tabletas, com uma média de 2,50 peças cerâmicas para o primeiro grupo, contra 1,30 peças para o segundo grupo. O elemento machado, por sua vez, parece ter adquirido um simbolismo de status ou poder, enfatizando a hierarquização mencionada. A relação nesta fase passa a ser de 70% para os portadores, contra 20% para os não portadores. Por outro lado, aparecem alguns machados com lâmina de cobre, interpretados como uma ficção para incrementar seu simbolismo de poder. Ainda em relação a estes objetos, Bravo e Llagostera (1986) enfatizam a sua profusão nas tumbas desta fase, estando sempre junto ao braço direito do indivíduo e em oposição aos arcos e flechas, ao quais eram enterrados junto ao braço esquerdo. Os autores associaram os machados aos motivos decorativos do sacrificador e ao culto à cabeça troféu, elementos que aparecem nas tabletas Tiwanaku, e que segundo Muñoz (1989) representariam o símbolo de poder nas sociedades do altiplano boliviano. A importância do personagem sacrificador no sistema ideológico altiplânico e na sua concepção de estado também foi referida por Rivera (1985). Este ritual de sacrifício, no entanto, não apareceu no oásis atacamenho apenas como elemento decorativo nas tabletas, mas era de fato praticado, como atestam as três tumbas simbólicas do período Tiwanaku de Solcor-3, nas quais estavam presentes apenas os crânios com suas respectivas mandíbulas. Berenguer et al. (1980), por sua vez, já haviam assinalado a conexão entre as cabeças cortadas recuperadas em tumbas do período médio, e o personagem do sacrificador, já que ambos elementos não oferecem exemplos sincrônicos a

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partir do Rio Loa para o norte, onde Tiwanaku exerceu um controle de natureza diferente daquela observada em San Pedro, sem implicâncias religiosas. O ayllu de Quitor parece ser o que oferece os melhores exemplos da relevância deste ritual em Atacama. Segundo Le Paige (1963, 1964), o cemitério de Quitor-5 apresentou três tumbas com remanescentes intactos mas sem os crânios, além de numerosos objetos psicotrópicos em cujas representações foi possível identificar todas as fases da cerimônia: desde o condenado com as mãos amarradas nas costas; o sacrificador caminhando com o machado sobre o ombro; o sacrificador com um joelho apoiado no chão esperando cumprir com seu ofício; até o momento em que o sacerdote, disfarçado com máscara de puma e asas de condor, engatinha a quatro pés para imitar o puma sagrado e apresenta a cabeça da vítima. Em Quitor-6, Le Paige (1963) escavou uma tumba com quatro indivíduos que se encontravam sentados um ao lado do outro, com as mandíbulas sobre os corpos e envoltos em um único fardo. Seus crânios estavam depositados aos seus pés, também envoltos em um único fardo, e sobre este último havia uma tableta com representação de quatro personagens estilizados. Além deste conjunto, havia mais uma tumba com indivíduo sem crânio, duas tumbas só com os crânios, sem mandíbula, e três tumbas com crânio separado e sem mandíbula. Finalmente, em Quitor-2 o mesmo autor assinalou a presença de três tumbas com indivíduos sem crânio. Ainda que os cemitérios de Quitor apresentem tumbas relacionadas a mais de um período cultural, a evidente associação entre as tabletas tiwanakotas e o culto da cabeça-troféu permite relacionar as tumbas citadas ao período de influência do altiplano na região. Pelo exposto, percebe-se que os dados referentes ao período Tiwanaku demonstram uma mudança profunda dentro da sociedade atacamenha. Diferentemente do que foi observado para o período anterior, as diferenças sociais tornaram-se mais profundas, tanto com relação à aquisição de bens quanto com relação ao tipo de liderança exercida dentro dos ayllus. As lideranças tradicionais enfraqueceram frente a uma nova liderança que se constituiu principalmente a partir de uma esfera religiosa. Ao que tudo indica, os xamãs foram instituídos de um grande poder, exercido através de rituais que aproximavam aqueles que os conduziam com as forças naturais e sobrenaturais, como é o caso do Tinku e do culto à cabeça-troféu. Berenguer e Dauelsberg (1989) argumentam que a participação de um estado como Tiwanaku dentro da rede de relações interregionais produziria um aumento da estratificação social como forma adaptativa para o suprimento da nova demanda de bens. Desta forma, o manejo ideológico através do material simbólico buscaria não apenas assegurar que a população se identificasse com a autoridade emergente, mas também asseguraria a aceitação de uma nova ordem, baseada em uma arbitrária e crescente diferenciação social.

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No caso específico de San Pedro, a iconografia, os bens de prestígio e os rituais teriam sido os mecanismos ideológicos mediante os quais as lideranças produziriam informações sobre importantes convenções sociais, e legitimariam aspectos como desigual distribuição de riqueza, diferença de classes e origem divina da autoridade. A liderança equilibrada entre as seculares linhagens que ocuparam os ayllus, baseada no prestígio e na capacidade de redistribuição de bens, entrou em conflito com uma liderança que justificava o acúmulo de riquezas, baseada na importação de bens e de uma ideologia altiplânica. Llagostera (1996) complementa esta visão observando que o processo de transformação no oásis ocorreu de forma rápida e generalizada. Mais uma vez, o cenário apresentado vai ao encontro dos dados paleoepidemiológicos referentes especificamente à violência. A alta frequência de 47% de traumatismos agudos associados à violência na série masculina Tiwanaku de Solcor-3, além da presença de armas em 100% das tumbas masculinas (Lessa e Mendonça de Souza 2007), demonstram a emergência de uma expressiva tensão social, interpretada no bojo da readequação das relações sociais dentro e fora do oásis e da aceitação de uma nova ordem. Llagostera (1996) chama a atenção para o fato de que, de todos os cemitérios conhecidos para San Pedro, apenas quatro apresentam valores significativos de tabletas com iconografia Tiwanakota, sendo Solcor-3 o sítio mais tiwanakizado do oásis com 31%, seguido por Coyo Oriente com 22%, Quitor-5 com 15% e Quitor-2 com 11%. Estes dados sugerem que o ayllu de Solcor-3 foi o mais conflituoso em relação às lideranças tradicionais, o que complementa a interpretação para o alto grau de violência e a grande quantidade de armas observadas nos seus contextos. Coyo Oriente, por sua vez, foi o segundo sítio que mais se distanciou da ideologia tradicional, fato que possivelmente guarda relação com a prática das lutas rituais de origem altiplânica. Quitor-5 e Quitor-2 também apresentam lideranças relacionadas com os novos dogmas e comportamentos observados para o período, demonstrados através da iconografia de algumas tabletas e da prática do ritual das cabeças-troféu. Seria interessante a realização de estudos paleoepidemiológicos em ambos os cemitérios, o que forneceria novos dados para comparação com as amostras já analisadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Vale destacar que no contexto dos estudos paleoepidemiológicos, de uma forma geral, as tentativas de se buscar uma abordagem efetivamente biocultural, em qualquer nível, são ainda tímidas, mesmo em grupos cujos vestígios materiais de diversas naturezas são virtuosos e abundantes. Pretendeu-se demonstrar

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neste texto, portanto, que um mergulho mais profundo em diferentes aspectos próprios de cada contexto cultural, mesmo através de elementos materiais não diretamente correlacionáveis em um primeiro olhar com a condição biológica examinada, pode ajudar a unir as diversas pontas soltas que representam os mais variados estudos arqueológicos e bioarqueológicos sobre uma determinada sociedade. Neste caso específico, proporcionou uma visão mais integrativa de toda a complexidade por trás do fenômeno da violência em um determinado momento da longa trajetória da cultura atacamenha.

AGRADECIMENTOS À Antropóloga Maria Antonieta Costa, ao arqueólogo Agustín Llagostera, à técnica Macarena Oviedo e a todos os funcionários do Instituto de Investigaciones Arqueológicas y Museo R. P. Gustavo Le Paige, S. J., por tornarem esta pesquisa possível.

NOTAS 1

Atualmente Instituto de Investigaciones Arqueológicas e Museu R. P. Gustavo Le Paige S. J. 2

As tabletas são artefatos confeccionados em madeira, com morfologia retangular, trapezoidal ou hiperbólica (com os lados maiores côncavos). Apresentam variados motivos decorativos, com figuras antropomorfas e zoomorfas, com iconografia Tiwanakota, ou ainda sem decoração. Eram utilizadas para a inalação por via nasal de substâncias alucinógenas (Llagostera et al. 1988). 3

Para uma discussão mais detalhada, consultar Berenguer e Dauelsberg (1989). 4

A datação por termoluminescência de 720 ± 120 anos D.C. (Berenguer et al. 1986), que representaria o final desta fase, foi considerada muito tardia por Llagostera et al. (1988), os quais obtiveram uma datação radiocarbônica mais antiga, de 480 ± 80 años D.C., para o padrão cerâmico Gris Grueso Pulido que representa a fase seguinte. No entanto, se for considerado o intervalo do desvio padrão, além de uma possível intrusão do padrão tardío, pode ser observada uma continuidade ou pequena sobreposição entre as duas datações. Por este motivo, os Llagosteral et al. (1988) situam o início do período Tiwanaku com uma cronologia mais recuada que os demais autores. Esta é uma questão que têm sido amplamente discutida, sem que haja, no entanto, consenso entre os pesquisadores.

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Em Solcor-3, as duas áreas de distribuição das tumbas do período Tiwanaku são limítrofes com a área de distribuição das tumbas pré-Tiwanaku. Este dado, associado ao fato da tumba com datação mais antiga (510 ± 150 anos D.C.) não apresentar elementos Tiwanakotas, leva à uma reflexão sobre a filiação cultural desta tumba. Ela poderia na verdade pertencer ao período préTiwanaku, e apresentando a cerâmica Gris Grueso Pulido como elemento intrusivo. Por outro lado, se for considerado o intervalo do desvio padrão, esta data pode avançar para 600 anos D.C., a partir da qual observa-se a influência tiwanakota de forma mais acentuada.

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