VIOLÊNCIA E CRIMINALIZAÇÃO: O DISCURSO DAS REVISTAS ÉPOCA, CARTA CAPITAL E VEJA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA TÁTICA BLACK BLOC

July 9, 2017 | Autor: E. Toscani Gindri | Categoria: Criminologia, Criminología Crítica
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6. VIOLÊNCIA E CRIMINALIZAÇÃO: O DISCURSO DAS REVISTAS ÉPOCA, CARTA CAPITAL E VEJA NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DA TÁTICA BLACK BLOC Eduarda Toscani Gindri1 Caroline Loureiro da Silva2 Ivanderson Pedroso Leão3 Profa. Dra. Marília De Nardin Budó4

RESUMO: No contexto das manifestações de junho de 2013, muitos foram os questionamentos surgidos a respeito das formas de protesto, sobretudo no que tange ao tema da violência. Diante disso, este artigo analisa o discurso das reportagens das revistas Época, Carta Capital e Veja que abordaram a tática black bloc e os atores a ela relacionados. Black blocs apareceram como ferramenta fundamental das manifestações. A partir da construção histórica dessa tática e da problematização do conceito de violência, no marco da criminologia crítica, o presente estudo buscará compreender de que forma o discurso formulado pelo jornalismo de revista buscou interpretar a tática black bloc e seus adeptos. Baseando-se nas categorias discursivas “violência” e “criminalização” será analisada criticamente a abordagem dos meios de comunicação e a forma como construíram a identidade da tática e dos manifestantes em black blocs. PALAVRAS-CHAVE: Análise de Discurso; black bloc; Criminologia Crítica; Jornalismo de Revista; Violência.

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Graduada em Comunicação Social Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria, acadêmica do 9º semestre do curso de Direito no Centro Universitário Franciscano e bolsista de iniciação científica PROBIC na mesma instituição. Email: [email protected]. 2 Acadêmica do 6º semestre de Direito no Centro Universitário Franciscano. Email: [email protected]. 3 Acadêmico do 6º semestre de Direito no Centro Universitário Franciscano. Email: [email protected]. 4 Doutora em direito na Universidade Federal do Paraná. Atua em pesquisas na área de Direito, com ênfase em Sociologia jurídica, Criminologia e Direito penal; e de Jornalismo, com ênfase em Teoria e ética do Jornalismo. Atualmente é professora do Mestrado em Direito da Faculdade Meridional (IMED) e do curso de direito do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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Introdução A história brasileira é marcada pelas lutas e mobilizações sociais. O ano de 2013 exerceu papel importante na história dos movimentos sociais com a ocorrência de grandes mobilizações públicas. O fator que contribuiu para a eclosão das “jornadas de junho”, alcunha das manifestações que marcaram época, foi a forte repressão que movimentos sociais e coletivos sofreram dos aparatos policiais e jurídicos estatais. Como se não bastasse a violência dos meios de repressão policial - cassetetes, balas de borracha, bombas de efeito moral - a mídia hegemônica usou seu poder de informar e formar opinião para criminalizar os manifestantes. Além dos já conhecidos meios de repressão, do corriqueiro oportunismo de algumas empresas de comunicação, a tática black bloc apareceu como uma janela de oportunidades para os veículos de comunicação interpretarem os fatos. Os black blocs surgiram nas manifestações usando da violência como contra-resposta a violência estrutural cotidiana do sistema capitalista. Logo, não faltaram tentativas e abordagens criminalizantes por parte de setores midiáticos engajados em proteger interesses econômicos e preservar o status quo que os sustenta. A partir da análise de três revistas brasileiras, investigar-se-á de que maneira foi realizada a cobertura da tática black bloc por tais veículos, a partir da categoria discursiva violência. O objetivo é compreender de que forma as revistas Época, Veja e Carta Capital interpretaram a tática black bloc e os “manifestantes black blocs”, sobretudo no que tange à percepção da violência nas manifestações. As reportagens serão analisadas buscando compreender os discursos que o jornalismo de revista, enquanto aparato de controle informal da sociedade, utilizou para construir a imagem das mobilizações sociais de junho de 2013, sobretudo no aspecto relacionado à tática black bloc e seus adeptos. Este artigo é dividido em duas partes. A primeira trabalha com o aspecto histórico da tática black bloc e seus propósitos enquanto ferramenta em manifestações sociais e a complexificação do conceito de violência como contraposição ao discurso defendido pelas reportagens analisadas. A segunda parte busca analisar os discursos colhidos na análise das reportagens utilizando como categorias a violência e a criminalização da tática e dos “manifestantes black blocs”. ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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1 A violência que é notícia: a construção do conceito de violência a partir da tática black bloc A partir de uma perspectiva histórica sobre o surgimento e desenvolvimento da tática black bloc, este tópico tem o objetivo de desvendar a lógica subjacente às ações diretas empreendidas, a partir da complexificação teórica do conceito de violência. 1.1 A tática black bloc: ação direta e violência performativa A tática black bloc surgiu na Alemanha Ocidental dos anos 80 com o objetivo específico de lutar contra a repressão policial exercida nos squats, áreas de ocupação popular. Caracterizados por usarem roupas e botas pretas, os adeptos da tática black bloc logo ganharam visibilidade devido à homogeneidade de seus participantes e ao aspecto estético que os mesmos ofereciam dentro das manifestações, sendo esta, como aponta Dupuis-Déri (2014), a principal diferença dessa tática para as demais utilizadas em manifestações. Com o objetivo evidente de proteger os manifestantes, a tática assumiu primeiramente um posicionamento passivo nas manifestações, esperando ocorrer a repressão policial para então assumir a sua posição de “guerrilheiros urbanos” e, consequentemente, utilizar as ações concretas de enfrentamento policial. No entanto, na manifestação de Seattle em 1999, a tática black bloc demonstra a sua filiação aos ideários anticapitalistas e antiglobalização que eclodem com grande efervescência na virada para o ano 2000 e, em decorrência disso, a tática demonstra a sua face proativa agindo contra os símbolos do capitalismo e não apenas em resposta à repressão policial (DUPUIS-DÉRI, 2014). Pelo fato de estar presente nas mais diversas manifestações e localidades nos últimos trinta anos, a tática black bloc costuma ser confundida com uma organização internacional permanente, e seus membros como adeptos de uma ideologia específica. “Porém, o termo Black Bloc representa uma realidade mutável e efêmera” (DUPUIS-DÉRI, 2014, p.10). É necessário compreender o caráter descentralizado e horizontal das ações dos “manifestantes black blocs”, não havendo uma organização perene e contínua dessas pessoas, com pautas, regras e lideranças definidas. O black bloc surge e se desfaz na manifestação, logo, todos os presentes na manifestação podem ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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se vestir de preto, cobrir seus rostos e aderir à tática, não sendo necessário ser adepto de uma ideologia ou grupo específico. Verifica-se, portanto, errônea a afirmação de que todos os “manifestantes black blocs” são anarquistas, pois não há impedimentos ideológicos, apenas a concordância quanto à existência do inimigo em comum: o capital. A tática black bloc é uma forma de se comportar nas manifestações. O principal objetivo de seus participantes é chamar atenção para uma crítica radical contra a violência estrutural gerada pelo sistema político e econômico capitalista. Não se filiam a uma pauta específica, pois acreditam que cada uma é parte essencial na luta contra o capitalismo. Portanto, não possuem a intenção de serem revolucionários e nem nutrem a ilusão de que a utilização da tática isolada é suficiente para conseguir alcançar as mudanças que almejam, acreditam nela como um meio de viabilizar e dar visibilidade as reivindicações presentes nas mobilizações (DUPUIS-DÉRI, 2014). Podemos visualizar a presença da tática black bloc protegendo os manifestantes contra a repressão policial e praticando seus atos contra símbolos do capitalismo, na maioria das vezes depredações de bancos, concessionárias automotivas e estabelecimentos de grandes multinacionais, não sendo obrigatória a presença de ambos para haver a caracterização da tática. Ou seja, é perfeitamente possível a presença pacífica dos manifestantes black blocs, sendo suficiente a estética visual do bloco negro para estar caracterizada a crítica radical pretendida. Contudo, a presença dos manifestantes black blocs só costuma ser percebida quando há a face proativa dos mesmos, promovendo as depredações dos patrimônios públicos e privados, motivando, ou em resposta, à ação policial. Trazer visibilidade às manifestações é um dos objetivos dos manifestantes black blocs: a violência performativa tornou-se o principal instrumento na efetivação desse objetivo e uma característica relevante dessa tática que conseguiu a visibilidade midiática. Contudo, a representação social da tática nos meios de comunicação é a de vândalos, marginais, desocupados, que cometem uma violência sem sentido. Apesar da evidente deslegitimação pela mídia das ações praticadas, elas continuam a ser realizadas para conseguir os holofotes midiáticos, ainda que por ângulos não muito favoráveis. A ação dos black blocs adentra o “espetáculo midiático, na medida em que busca introduzir um contra espetáculo, ainda que, de certa forma, este dependa do espetáculo oficial, e da mídia pública e privada” (DUPUIS-DÉRI, 2014, p. 12). ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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A questão da violência performática utilizada pelo black bloc vem conceituada por Juris como: [...] encenações rituais simbólicas de interação violenta com ênfase predominante em comunicação e expressão cultural. Isso contrasta com a violência política direta que significa causar morte ou dano de humanos contra humanos, apesar de essa diferença ser frequentemente de grau. No contexto da ação política, a violência performativa pode ser vista como uma forma de comunicação através da qual os ativistas buscam efetivar transformações sociais encenando confrontações simbólicas baseadas na ‘representação de relações antagonísticas e na encenação de imagens prototípicas de violência’ (Schröder and Schmidt, 2001) (JURIS, 2005, p.415, tradução livre).

O autor busca esta categoria para inserir os atos realizados por manifestantes, na cidade italiana de Gênova, em 2001, quando houve a formação de black blocs e consequente representação midiática destes. Juris evidencia que a violência performativa possui aspectos singulares que a diferencia da violência física, que acontece nas relações entre os seres humanos. Os aspectos prático-instrumentais envolvem o esforço de transformar diretamente o ambiente social, enquanto os aspectos simbólicoexpressivos enfatizam a comunicação e dramatização de ideias e valores sociais importantes: “performances violentas funcionam amplamente através de exibições icônicas não verbais, espetaculares, fornecendo ativistas de base com valiosos recursos simbólicos” (JURIS, 2005, p. 415, tradução livre). A respeito do Occupy, de Wall Street, Žižek observa que em geral as ações empreendidas pelos manifestantes são caracterizadas como violentas. Essa não é uma percepção isenta de críticas, segundo o autor: Os manifestantes são violentos? É verdade que sua linguagem pode parecer violenta (ocupação e tudo mais), mas eles são violentos somente no sentido em que Mahatma Gandhi era violento. São violentos porque querem dar um basta no modo como as coisas são feitas - mas o que é essa violência quando comparada àquela necessária para sustentar o suave funcionamento do sistema capitalista global? (ŽIŽEK, 2012, p. 17 grifado no original).

Desse modo, ao exercer a violência performativa, os manifestantes em black blocs buscam exercer a função de chamar a atenção midiática ao ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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movimento, e ainda, expressar a indignação com o sistema capitalista através da quebra de símbolos específicos, como vidraças de instituições financeiras ou veículos da mídia hegemônica. É importante destacar que a violência performativa não se destina à agressão de seres humanos, à produção de danos que causem prejuízo emocional ou físico, a outrem, sequer se dirige contra carros comuns, lojas e casas, pois tais condutas estão fora da lógica de significação proposta pela tática (JURIS, 2005). Sua ênfase é como forma de comunicação e expressão de indignação frente ao sistema opressor, ou seja, uma maneira de demonstrar publicamente o descontentamento com as violências perpetradas previamente pelo sistema. 1.2 Manifestações sociais e o capitalismo globalizado: a violência estrutural como pano de fundo A palavra violência movimenta uma gama de sentimentos e sentidos diferenciados ao ser enunciada e ao caracterizar atos, fenômenos e sujeitos. No senso comum, se percebe a violência como uma agressão que tem por consequência algum dano. Por outro lado, a problematização do conceito de violência leva a crer que ela apresenta dimensões complexas que vão além da relação causa efeito entre uma agressão e seu respectivo resultado. Quando se qualifica as manifestações sociais de violentas, é essa a perspectiva que geralmente está sendo adotada. Contudo, a violência performativa desempenhada pelos manifestantes tem fundamento e legitimidade na contestação das violências intrínsecas ao sistema capitalista, que suprime em inúmeras situações e contextos as necessidades e potencialidades do ser humano (ŽIŽEK, 2012). Baratta (2003), baseado em Galtung, explica que os direitos humanos projetam normativamente potencialidades de existência e de qualidade de vida das pessoas, ou seja, as necessidades reais. Daí que a violação dos direitos humanos, característica da história dos povos e da sociedade, é uma repressão das necessidades reais das pessoas. Para Galtung, a injustiça social é a principal causa dessa repressão, o que o autor denomina de “violência estrutural”: “insultos evitáveis às necessidades humanas básicas, e mais em geral, à vida, baixando o nível real de satisfação das necessidades que é potencialmente possível” (GALTUNG, 1990, p. 291, tradução livre). Assim, a violação dos direitos humanos é caracterizada como um tipo de violência, da qual decorrem direta, ou indiretamente todas as suas outras formas. PartindoANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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se do conceito de violência estrutural como repressão das necessidades humanas fundamentais, percebe-se que o modelo de desenvolvimento que gera a exclusão social, típica do capitalismo e sobretudo de sua versão neoliberal (BAUMAN, 1999), é violento, e gera conflitualidade. A partir da luta contra essa violência, essa conflitualidade passa a ficar evidente na forma de conflitos particulares, que se transformam em violência individual e de grupo (BARATTA, 2003, p. 340). Para Baratta (2003, p. 338), a violência estrutural, apesar de dificilmente ser assim identificada, “é a forma geral da violência, em cujo contexto, direta ou indiretamente todas as outras formas de violência encontram sua fonte, direta ou indiretamente”. Philippe Bourgois (2001), em um estudo sobre as diferentes formas de violência, percebe quatro tipos distintos, dentre eles a violência estrutural. Identifica, ainda, a “violência política”, aquela direcionada em razão de políticas ideológicas e às ações de movimentos populares ou de caráter repressivo do Estado. Outra dimensão, seria a violência simbólica, conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu (1997 apud BOURGOIS, 2001), para desmascarar aquela violência que opera em um nível mais íntimo e sutil, através do “desconhecimento das estruturas de poder por parte do dominado que é cúmplice de sua opressão, na medida em que cada vez que percebe e julga a ordem social, o faz por meio de categorias que fazem com que ela pareça natural e autoevidente" (BOURGOIS, 2001, p. 8, tradução livre). Por fim, Bourgois ainda conceitua a violência cotidiana, com base no conceito de Nancy ScheperHughes (1992, 1996, 1997). Para o autor, são as rotinas, práticas e expressões que servem para naturalizar a violência interpessoal, que pode evoluir a um nível de cultura do terror, na qual há o consenso de normalização da violência. Através desses conceitos percebe-se que o sentido de violência, vastamente utilizado para caracterizar as ações de manifestantes segundo a tática black bloc, é complexo e assume diferentes dimensões. Falar que a violência performativa é uma violência em si, sem raiz ou sentido, significa ignorar a violência estrutural que é o cerne da indignação e da denúncia ambicionada pelos manifestantes. Significa acreditar que o conflito emerge a partir das ações da tática black bloc, ocultando sua existência prévia. Nessa esteira, afirma Baratta (2003, p. 352): “uma característica geral da construção dos conflitos dentro do pensamento penal e criminológico tradicional é justamente a sua ‘despolitização’ em termos de uma suposta ciência do comportamento individual e de uma técnica de respostas a ele”. No caso dos movimentos sociais de luta pela terra no Brasil, por exemplo, percebeANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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se que a violência e a conflitualidade são anteriores a esses movimentos. E, portanto, os conflitos não se resumem à sua atuação, como querem transparecer os setores conservadores da sociedade. Trata-se de uma reação à violência estrutural, que, por se utilizar de uma violência performativa, acaba por ser tachada de violenta de maneira descontextualizada, levando à criminalização de seus agentes (BUDÓ, 2013). Quanto à tática black bloc, não é diferente. Há uma quase completa negação do caráter político das ações diretas, que são relegadas para fora do campo e da racionalidade políticos (DUPUIS-DÉRI, 2014). Em geral, a imagem da criminalidade, promovida pelo cárcere, e a percepção dela como uma ameaça para a sociedade devido à atitude das pessoas e não à existência de conflitos na sociedade produz um desvio da atenção do público, dirigida de modo privilegiado ao “perigo da criminalidade”, antes que à violência estrutural. Nesse sentido, a violência criminal adquire, para o público, o lugar que deveria corresponder à violência estrutural, e em parte contribui a escondê-la e mantê-la (BARATTA, 2003, p. 346, tradução livre).

A íntima relação entre o sistema penal e o capitalismo permite compreender tal simplificação da realidade conflitual em mero conflito criminal individual. A ruptura epistemológica proporcionada pela teoria do etiquetamento,é complexificada quando a criminologia crítica busca um viés macrossociológico com foco nas relações de poder, evidencia que o sistema penal é altamente seletivo. Assim, conclui que este sistema não atua segundo a promessa dogmática da segurança jurídica, mas com forte discriminação, já que quem possui os poderes de definição e distribuição do status de criminoso são aqueles grupos de alto poder econômico e político (BARATTA, 2002). Portanto, “além de a clientela do sistema penal ser constituída de pobres e excluídos em geral, as pessoas que reivindicam mudanças do status quo são frequentemente identificadas como desviantes” (BUDÓ, 2013, p. 55). Pelo fato de a imagem da violência se resumir à violência individual, o ocultamento da violência estrutural, implica em seu incremento, e na reprodução social das desigualdades. A impunidade dos crimes mais graves é cada vez mais elevada à medida em que cresce a violência estrutural e a prepotência das

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484 minorias privilegiadas que pretendem satisfazer as suas necessidades em detrimento das necessidades dos demais e reprimir com violência física as exigências de progresso e justiça, assim como as pessoas, os grupos sociais e movimentos que são seus intérpretes” (BARATTA, 2003, p. 341).

Nessa repressão que surge como reação às ações que intentam questionar a ordem desigual posta, o sistema penal é uma ferramenta fundamental, redundando em outra forma violência: a violência institucional, a mais legitimada pelos meios de comunicação. A violência institucional é exercida “quando o agente é um órgão do Estado, um governo, o exército ou a polícia. A violência institucional pode ter formas legais, ou seja, de acordo com as leis vigentes num Estado ou, como acontece em muitos casos, ilegais” (BARATTA, 2003, p. 339). A atuação gravemente violenta da polícia contra os manifestantes somente é possível de ser legitimada a partir da despolitização dos conflitos, que levam a uma redução dos fatos à fórmula crime = pena. Assim, despolitizar e superficializar a tática black bloc implica na descomplexificação do conflito que expressa. Como consequência, “o sistema penal intervém, então, para manter a situação e não para modificá-la. Sendo assim, constrói socialmente a ideia de que uma situação complexa de conflitualidade se resume a um simples conflito, subversor da ordem” (BUDÓ, 2013, p. 180), e assim, soluciona o aparente conflito, reprimindo as manifestações e buscando coagir a formação de novos movimentos. 2. A tática black bloc no jornalismo de revista: violência e criminalização A partir da análise teórica, é possível perceber que, ao discutir a violência a partir das manifestações nas quais há ações de black blocs, diferentes percepções do conceito vêm à tona e interagem na construção dessas manifestações no imaginário da sociedade. Os meios de comunicação são relevantes no processo de construção da realidade (BERGER; LUCKMANN, 2009) pois auxiliam os homens e mulheres a conhecer a realidade através das representações que aparecem nas mídias. O jornalismo, por sua vez, fundamenta-se em fatos reais para transmitir informação sobre uma determinada realidade, apreendida pelo jornalista e retratada através de um discurso específico. Assim, “ao mesmo tempo em que a notícia é um produto ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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da realidade social, ao registrá-la, a notícia também produz, através da seleção operada e dos enquadramentos realizados” (BUDÓ, 2013, p. 89). Quando representa a realidade, o jornalismo também atua na construção dessa, pois insere temas e significações no campo simbólico do leitor. Beira o impossível falar da tática black bloc sem tratar de violência, já que este conceito está na base da motivação dos manifestantes ou na percepção das suas ações como rupturas de um consenso momentâneo. Ao retratar os manifestantes em black blocs, o jornalista faz determinadas escolhas ao falar de violência. Aliando o referencial teórico ao contexto empírico, analisaram-se três revistas semanais brasileiras de grande circulação e renome. Foram elas: Revista Veja edição nº 2335, ano 46, nº 34, de 21 de agosto de 2013; Revista Época edição nº 807 de 11 de novembro de 2013 e Revista Carta Capital edição nº 760, ano XVIII, de 7 de agosto de 2013. Os três exemplares trazem como reportagem de capa a temática da tática black bloc. O método utilizado foi a Análise de Discurso (BENETTI, 2007; ORLANDI, 2001), pois através de tal método “procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (ORLANDI, 2001, p. 15). Visou-se perceber que sentidos de violência predominam na representação da tática blac block e seus manifestantes, a fim de percebem como as revistas os constroem. Segundo ensina Benetti (2007), primeiramente é preciso construir as categorias da análise, chamadas de Formações Discursivas (FDs), ou seja, uma região de sentidos que emergem um sentido único, e não outro. Como segundo passo, é preciso selecionar as Sequências Discursivas (SDs) que expressam aqueles sentidos dispersos pelo texto, para por fim permitir uma análise qualitativa do texto. Como categorias de análise, elencou-se: 1) O bloco dos arruaceiros, a fim de perceber como as diferentes revistas caracterizam os manifestantes, descrevem a tática e a organização dos black blocs; e 2) A ação dos black blocs: manifestações pacíficas versus manifestações violentas, na qual busca-se conhecer como os diferentes tipos de violência são retratados e interagem na representação das manifestações como violentas, em contraponto com a percepção de manifestação pacífica.

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2.1. O Bloco dos Arruaceiros Através da análise das reportagens das revistas Época, Veja e Carta Capital é possível inferir a forma como os manifestantes adeptos da tática black bloc são caracterizados. São marcadores de identidade comuns nas reportagens analisadas a representação desses manifestantes como jovens, com vinculação ideológica anarquista. A Revista Carta Capital deixa claro que existe essa formação teórica na maioria dos manifestantes que aderem à tática: “Estudar política e quebrar bancos caminham juntos” (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, p. ). A revista também compreende que trata-se de manifestantes que aderem à formação de um black bloc, algo que acontece de forma espontânea e não centralizada, afirmando também que não há líderes no movimento: “Como não são uma organização, mas uma tática condicionada a contextos políticos [...] o surgimento de um bloco não é centralizado nem permanente. É o encontro de indivíduos com propósitos similares, mas nunca coibidos pela coletividade” (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, p. 25). Na contramão, a Veja fala em “os black blocs” enquanto indivíduos e não enquanto tática: “os black blocs estiveram pro trás de todas as manifestações violentas”; “em São Paulo, black blocs haviam queimado uma catraca” (MEGALE; ARAG O, 2013); "É um grupo pequeno, mas que, engrossado por vândalos de ocasião, em algumas capitais tem transformado a baderna e a violência em uma assustadora rotina” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 74); “muitos dos black blocs desprezam qualquer movimento político organizado”, além de destacar o grupo como “o bloco do quebra quebra” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 76); “grupo [...] membros [...] integrantes [...] turma” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 78).; “quadrilha” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 79). No entanto, a revista não utiliza a palavra “movimento” para qualificar os manifestantes que aderem à tática. Tal vocábulo é utilizado para tratar de movimentos sociais consolidados e tradicionais, como o movimento antinuclear alemão, ou para designar o movimento Occupy Wall Street. Nesse sentido, leva a crer que a revista não considera o balck bloc um “movimento” organizado, mas um grupo disperso, sem vinculação ideológica e estratégica no cenário da luta política (MEGALE; ARAGÃO, 2013). Já a revista Época oscila entre a caracterização enquanto tática e enquanto indivíduos. Abre sua primeira reportagem afirmando que um relatório identificou “pelo menos 130 suspeitos de ligação com manifestantes que praticam a tática Black Bloc” (LIMA; CORRÊA, 2013, P. 33); logo em ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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seguida afirma que “integrantes do movimento dizem à ÉPOCA que sim, eles recebem” (LIMA; CORRÊA, 2013, P. 33). Adiante, fala em “os Black Blocs e outros grupos que promovem atos violentos” (LIMA; CORRÊA, 2013, P. 33). A Época tenta negar o caráter de tática e de espontaneidade na reportagem “Por dentro da Máscara dos Black Blocs”: “É voz corrente que eles não têm organização e aparecem nas manifestações como que por geração espontânea. Ao contrário, eles têm método, objetivos, um programa de atuação e acesso a financiamento de entidades estrangeiras” (ROCHA, 2013, p. 37). A Época também afirma o caráter militarizado da organização: o dinheiro financia os treinamentos dos militantes [...] em Cáceres Aprendem a se proteger das valas de borracha com escudos feitos com tapumes. Foram orientados a formar paredes com os escudos para se defender em bloco [...] ex -recrutas do Exército, eles ensinaram os colegas Black Blocs o que aprenderam na caserna” (ROCHA, 2013, p. 39).

A leitura dos textos publicados em cada revista evidenciou os discursos sustentados por cada matéria na tentativa de frisar e caracterizar o comportamento dos manifestantes no sentido de compará-los a “manifestantes black blocs” de outros países, taxando-os de violentos, baderneiros, despolitizados e criminalizando suas ações e a cultura de alguns indivíduos entrevistados pelos jornalistas. As revistas Veja e Época tentaram traçar um paralelo entre os black blocs brasileiros e aqueles de outros países. É possível perceber claramente, através das Sequências Discursivas (SDs) analisadas, que os “manifestantes black blocs” brasileiros foram colocados aquém dos manifestantes estrangeiros. Foram comparadas as ações dos brasileiros adeptos da tática com as ações de manifestantes canadenses e alemães. É expressiva a tentativa de deslegitimar as ações dos “manifestantes black blocs” brasileiros frente às ações de manifestantes canadenses em 2001. A reportagem da revista Veja chama os brasileiros de anarquistas protestantes e aqueles como “bando de arruaceiros” que “destruíam a marretadas multinacionais situadas na cidade de São Paulo”: No começo, quase ninguém notou a chegada deles. Em 20 de abril de 2001, o mesmo dia em que grupos anarquistas no Canadá protestavam contra a criação da Alca, em Quebec, na Avenida Paulista, em São Paulo, um bando de arruaceiros com o rosto coberto destruía a marretadas agências bancárias e uma loja do ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

488 McDonald’s. Era a primeira arruaça black bloc no Brasil (MEGALE; ARAGÃO, 2013, p.74 - grifou-se).

Na reportagem da revista Época, a deslegitimação dos “manifestantes black blocs” brasileiros frente aos estrangeiros pauta-se em tratar a tática empregada nas manifestações em 2013 como uma “manifestação tardia”. Além do aspecto cronológico, afirma que a tática que iniciou na Alemanha em 1980, reapareceu nas mobilizações antiglobalização dos anos 90 e, por último, nas mobilizações em razão da crise econômica de 2008, seguiram-se nas manifestações brasileiras com o objetivo de quebrar vitrines e enfrentar a polícia, conforme o SD abaixo: Os Blacks Blocs brasileiros seguem uma onda mundial. São uma manifestação tardia de um fenômeno que tem origem na Alemanha dos anos 1980 e, gradualmente, começou a aparecer nas manifestações de ruas pelo mundo. Primeiro, nos protestos antiglobalização dos anos 1990. Depois, como parte das mobilizações que se seguiram à crise econômica de 2008. Agora, quebram vitrines e enfrentam a polícia no Brasil. (ROCHA, 2013, p. 42).

Outro discurso encontrado na análise das reportagens é o apelo à despolitização dos manifestantes que aderiram à tática black bloc. A despolitização é levantada a partir de caracterizações dos manifestantes como carentes pautas, sem organização e sem líderes. Ainda que a Carta Capital tenha compreendido a organização da tática, os manifestantes são retratados como “tomadores de carona”, como expressa, por exemplo, o trecho extraído: “Se no começo eles tomavam carona em protestos organizados por entidades com pautas claras, pouco a pouco passaram a agir sozinhos” (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, p. 25 - grifou-se). Ainda, segundo a reportagem, as manifestações que empregam a tática tornam-se gradativamente incontroláveis, imprevisíveis e acéfalas, conforme demonstra a SD a seguir: “Tais manifestações tendem a ocorrer cada vez mais desse jeito: instantâneas, acéfalas, impossíveis de controlar”. (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, p. 25 - grifou-se). O tratamento dos manifestantes como pouco instruídos pode ser verificado em trechos como o que segue: “A formação intelectual da maioria é quase primitiva. Definem-se como anarquistas porque são, genericamente, contra a repressão do Estado, para eles encarnada pela polícia. A nata do anarquismo é muito citada, mas pouco lida” ( ROCHA, 2013, p. 40). Desse modo, as reportagens tiveram como principal característica buscar deslegitimar tanto a tática em si, como aqueles ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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que aderem a ela, seja através da sua qualificação como sem sentido, seja como criminosa. A partir dessa análise, parte-se para a identificação do conceito de violência e criminalidade como tratada pelas revistas, de modo a buscar compreendê-las criticamente no estudo da tática black bloc. 2.2 A ação dos black blocs: manifestações pacíficas versus manifestações violentas A forma de violência empregada pelos manifestantes é definida através do verbo “destruir um Chefrolet Camaro” (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, p. 22); “destruía a marretadas agências bancárias e uma loja do Mc’Donalds” (MEGALE; ARAGÃO, 2013, p. 74). São essas ações que as revistas consideram “violentas”: dirigida à objetos, meios físicos e que representam símbolos de um sistema. Segundo o referencial teórico discutido, as ações segundo a tática Black bloc obedecem uma lógica própria, com intenção política, ideológica e comunicativa, situando-se dentro do que se chamou de violência performativa. Das revistas analisadas, a Carta Capital parece ter compreendido, ao menos, essa intenção declarada da formação de um Black Bloc quando fez uso da expressão violência, ainda que não tenha exitado em trazer as críticas que pairam em torno do tática, como quando cita o manifesto Anti Black Bloc de Chris Hadges, em 2012. A revista não toma a posição de taxar as ações como corretas ou não, legítimas ou não, mas expõe a questão ao seu leitor: Nas bocas de jornais e na boca dos âncoras televisivos, eram a "minoria baderneira" em meio a protestos que "começaram pacíficos e ordeiros”. Uma abordagem simplista diante de um fenômeno complexo. Além da ameaça à propriedade e às regras do cotidiano (como atrapalhar o trânsito e a visita oficial do papa), as atuações explicitaram a emergência de uma faceta dos movimentos sociais, de cunho anarquista e autonomista, que vão do Movimento Passe Livre (MPL) e outros coletivos até a face extrema dos encapuzados. Corretos ou não, a tática Black BBloc forçou a discussão sobre o uso da desobediência civil e da ação direta, do questionamento da mobilização pelo próprio sistema representativo (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, p. 22). Em 1999, manifestaram-se com violência em Seattle (EUA), quando a Organização Mundial do Comércio ali se reuniu. Protestos terminaram com pichações e depredação de empresas como Starbucks. “É quando o anarquismo dominou e o Black ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

490 Bloc ficou associado ao uso da violência como ação direta, passando a ter caráter mais espetacular, de intervenção urbana (LOCATELLI; VIEIRA, 2013, pg.24).

A revista Veja declara logo no início da reportagem que: “os black blocs estiveram por trás de todas as manifestações violentas que explodiram no Rio de Janeiro e em São Paulo” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 74). Esse trecho é marcante ao definir de onde parte o conflito que a Veja analisa: as manifestações tornam-se violentas a partir das ações dos manifestantes segundo a tática black bloc. Não há uma reflexão, por exemplo, sobre a violência policial institucional empregada, física e psicologicamente, contra os manifestantes durante as manifestações. Sequer a Veja discute com seriedade o conflito prévio, a violência estrutural que é contestada pelos manifestantes. Pelo contrário, a revista ironiza a atuação dos balck blocs através do uso de aspas: Na cartilha apreendida pelo delegado Marco Duarte de Souza, da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, um grupo de black blocs descreve seus alvos: “bancos, grandes empresas e a imprensa mentirosa”., Devem ser evitadas, segundo o texto, depredações de “carros particulares e pequenos comércios”. Os black blocs acham isso muito bonito e nobre – orgulham-se de dizer que não praticam o que chamam de “vandalismo arbitrário” (MEGALE; ARAGÃO, 2013, p. 78) Para eles e seus admiradores confessos – entre os quais professores universitários pagos com dinheiro público -, destruir uma agência bancária a marretadas ou golpes de extintor de incêndio não é vandalismo, mas uma “ação simbólica”, que, inserida na “estética da violência”, simularia a “ruína do capitalismo”. (MEGALE; ARAGÃO, 2013, p. 78-79)

A revista Época traça um dualismo específico: violência e democracia para a revista, ambos os conceitos tem relações antagônicas: não há democracia se há emprego da violência, no caso, a violencia performativa dos manifestantes. É interessante que o enunciador define que o democrático é baseado em opiniões diferentes, porém não aceita a estética da tática black bloc e chega a relacionar a tática com o surgimento de regimes totalitários: “a democracia é o embate, na forma de diálogo, entre ideias e opiniões diferentes. A violência é a tentativa de impor opiniões pela força. A violência em regimes democráticos, quando tolerada, pode levar a regimes totalitários” ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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(LIMA; CORRÊA, 2013, p. 34 - grifou-se). Ainda afirma: “Os manifestantes de várias facções, o Executivo e o Judiciário, os partidos de esquerda e de direita concordam num ponto: a democracia não pode conviver com movimentos que defendem o quebra-quebra como forma de protesto” (LIMA; CORRÊA, 2013, p. 32 - grifou-se), como se houvesse um harmonioso consenso sobre a questão. As reportagens analisadas apresentam determinado direcionamento na tentativa de criminalizar as ações dos manifestante em black blocs, quanto de associar suas atitudes fora das manifestações com condutas ilícitas ou reprovadas pelo senso comum, como fica evidenciado no SD extraído da revista Veja: “Dentro de suas tendas, entre um baseado e um gole de vodca, exigem a renúncia do político” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 74-75 - grifou-se). É evidente a associação dos manifestantes às drogas ilícitas e ao alcoolismo, questões que são tabus para a sociedade e que tem elevado grau de reprovação perante setores conservadores. A criminalização aparece de forma ainda mais evidente na passagem a seguir, cujo objetivo é taxar os “manifestantes black blocs” de tolerantes e praticantes de certos crimes: “Os black blocs, no entanto, assimilam apenas o subproduto desse ideário: a improvisação, a baderna e a tolerância para com certos crimes. Tudo aquilo de que o Brasil está louco para se livrar” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 79 - grifouse). Tal caracterização polariza sociedade e manifestantes, como se eles próprios dela não fizessem parte. No editorial da revista Época é possível detectar a relação da conduta dos manifestantes com ações criminalizáveis, pois é frisado que o repórter, ao adentrar à sede de “treinamento” dos manifestantes, não encontrou indícios de ações criminosas ou objetos que possam ser usados para tal: “em nenhum momento Leonel testemunhou atos criminosos ou teve acesso a informações que justificassem a quebra do que fora combinado com eles - se isso tivesse ocorrido, não faríamos uma reportagem, mas uma denúncia à polícia” (GUROVITZ, 2013, p.8 - grifou-se). A tentativa de criminalizar os manifestantes fica ainda mais óbvia quando abordada junto do apelo punitivista do senso comum. Os perfis de alguns manifestantes, como faz a revista Época e Veja, são traçados realçando questões relacionadas à criminalidade e possíveis atos passados dos personagens retratados pelas reportagens como, por exemplo, o caso da expresidiária Daniela Ferraz, personagem entrevistada pela revista Época. O apelo punitivista aparece na revista Veja de forma a questionar o porquê de os ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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manifestantes não estarem presos e de justificar essa questão com o rigor das garantias constitucionais, direitos de quaisquer cidadão. Com toda essa destruição, por que não há vândalos presos? Para que uma pessoa tenha a prisão cautelar ou preventiva decretada nos flagrantes de vandalismo, é necessário comprovar que, solta, representaria risco à ordem pública. Essa decisão tem de partir de um juiz, que, para tomá-la, precisaria estar amparado numa investigação policial – que até hoje não foi feita, ao menos de forma sistemática. Outra opção seria enquadrar os arruaceiros pelo crime de formação de quadrilha, além de dano ao patrimônio. Ocorre que, também nesse caso, é necessário haver uma investigação prévia que comprove que as pessoas se juntaram de modo estável e contínuo para cometer os delitos (MEGALE; ARAGÃO, 2013, p. 79 - grifou-se).

O apelo punitivista aparece também na reportagem da revista Época: A entrada da PF no combate à violência em protestos foi sacramentada num encontro entre o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, o secretário de Segurança de São Paulo, Fernando Grella Vieira, o secretário de Segurança do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame. Na semana passada, Cardozo defendeu a unificação nas intrepretações judiciais sobre violência nas manifestações, além de mudanças na legislação. O objetivo é punir os Black Blocs e outros grupos que promovem atos violentos. Ele também anunciou uma força-tarefa para acelerar o julgamento de acusados de praticar vandalismo (LIMA; CORRÊA, 2013, p. 33 - grifou-se).

As três revistas analisadas são unânimes quando relacionam os atos do manifestantes black blocs enquanto “atos de vandalismo”. Sem problematizar a questão, tratam os manifestantes como desordeiros que quebram de forma gratuita a propriedade privada de grandes corporações sem analisar o aspecto simbólico dos atos. Não é problematizada a questão da violência simbólica nas revistas Época e Carta Capital. Na revista Veja, é problematizada, mas desdenha e resume os atos dos manifestantes como crime, atos com o único motivo de depredar e transgredir leis. Quando a polícia se aproxima, emitem em coro e de forma ritmada grunhidos semelhantes a um grito tribal. Nesse momento, alguns membros lançam morteiros, coquetéis molotov e pedras com estilingues. O objetivo é provocar a polícia. Quando ela reage, eles se dividem: uma turma parte para cima e a outra ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

493 foge para pichar muros, atear fogo em latões de lixo e destruir estabelecimentos, preferencialmente bancos, concessionárias de carros, lanchonetes de cadeia e tudo o que considerarem “símbolos do capitalismo” (MEGALE; ARAG O, 2013, p. 78).

Assim, cabe afirmar que esse discurso pinta uma violência irracional, sem motivo, ainda que haja um caráter instrumental da violência promovida, de servir de meio para expressão de uma indignação. Caráter esse que as revistas, Veja e Época, buscam menosprezar e ridicularizar, ou que a Carta Capital problematiza superficialmente e isenta-se de qualquer afirmação sobre sua legitimidade. O que mais resta demonstrado é que os enunciadores, ao falar da violência promovida segundo a tática, muito falam em depredação, vandalismo, destruição, mas sequer tangenciam a complexidade do tema e a profundidade da violência estrutural e suas consequências sociais em contraponto com os danos materiais da ação black bloc. 3. Conclusão Conceitos relacionados à violência foram amplamente explorados pelas revistas Carta Capital, Época e Veja, porém sem nenhuma reflexão ou complexificação em torno do seu emprego e de sua utilização pelos manifestantes em black blocs. A violência simbólica explorada pelos manifestantes foi empregada como resposta ao modelo capitalista de sociedade. Tal modelo violenta os manifestantes cotidianamente, seja através de órgãos estatais repressivos ou de processos cotidianos de exploração pelo capital. A violência cometida pelos manifestantes, é importante frisar: depredações ao patrimônio público e privado de grandes corporações; objetiva chamar atenção para o processo de repressão que o sistema capitalista exerce sobre aqueles que explora. O objetivo não era lesar a saúde de pessoas, sejam elas manifestantes, não-manifestantes ou policiais, mas mostrar de forma alarmante que aqueles “vidros quebradas” representam a violência estrutural que sistemática que é diuturnamente destinada aqueles indivíduos que sustentam o sistema capitalista com sua força de trabalho. Apesar da falta de complexificação, de problematização, em torno das ações e da forma de emprego da violência pelos manifestantes em black blocs ainda é possível detectar que o discurso das revistas varia em relação à criminalização e deslegitimação da tática. É notável que o discurso das revistas afirmam que as ações dos manifestantes em black blocs são violentas, no entanto, divergem na maneira ANAIS DO IV SEMINÁRIO DIREITO, PESQUISA E MOVIMENTOS SOCIAIS

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que encaram tal violência. Enquanto a revista Carta Capital traz a emergência da discussão sobre o uso de violência em manifestações, a Veja afirma que trata-se de uma violência irracional e criminosa, o que para a Época é inaceitável e antidemocrático. Todavia, a violência performativa tem intenção de comunicar e expressar uma violência muito mais danosa e nociva que o "vandalismo" contra uma vidraça. Nesse sentido, resta evidente a desproporcionalidade entre os pequenos danos materiais causados pelos manifestantes em black blocs e a grande violência estrutural, implícita nas relações de dominação e opressão do sistema capitalista. Através da análise empreendida, é possível conhecer como três das principais revistas semanais do país falam sobre a tática e identificam os manifestantes. Essa compreensão é primordial para análises futuras que busquem detectar as estratégias argumentativas que enquadram a conduta dos manifestantes como criminosa. É nessa busca que a pesquisa pretende se desenvolver nas próximas etapas. Para analisar a criminalização dos manifestantes em black blocs e da conduta que individualiza a tática em si, como o uso de máscaras e a leitura de material de cunho anarquista. Além disso, percebendo os meios de comunicação como parte do processo de construção social de identidades, é necessário conhecer como estes meios reconhecem e representam os manifestantes e a tática, para então analisar como esses são criminalizados. Referências bibliográficas BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos. In: ELBERT, Carlos Alberto. Criminología y sistema penal: Compilación in memorian. p. 334-356. Montevideo/Buenos Aires: B de F, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2008.

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