Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: proteção integral e políticas públicas

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André Viana Custódio Felipe da Veiga Dias Suzéte da Silva Reis Organizadores

VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES proteção integral e políticas públicas

Autores André Viana Custódio Elizandro Sabino Felipe da Veiga Dias Ismael Francisco de Souza Josiane Rose Petry Veronese Júlia Souza Duarte Luciana Rocha Leme Marli Marlene Moraes da Costa Matheus Silva Dabull Nancy Crisálida Pessoa da Fonseca da Silva Monteiro Djata Patrícia Adriana Chaves Rafael Bueno da Rosa Moreira Rodrigo Cristiano Diehl Suzéte da Silva Reis

ISBN 978-85-8443-064-2

Multideia Editora Ltda. Rua Desembargador Otávio do Amaral, 1.553 80710-620 - Curitiba – PR +55(41) 3339-1412 [email protected]

Conselho Editorial Marli Marlene M. da Costa (Unisc) Salete Oro Boff (IESA/IMED) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Carlos Lunelli (UCS) Liton Lanes Pilau (Univalli) Danielle Annoni (UFSC)

Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Belloso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED)

Coordenação editorial e revisão: Fátima Beghetto Projeto gráfico e capa: Sônia Maria Borba Diagramação: Bruno Santhiago Di Mônaco Rabelo

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: proteção integral V795 e políticas públicas [recurso eletrônico] / organização de André Viana Custódio, Felipe da Veiga Dias, Suzéte da Silva Reis – Curitiba: Multideia, 2016. 168p.; 21cm ISBN 978-85-8443-064-2 1. Violência familiar. 2. Direito de família.3. Crianças – Maus-tratos. 4. Adolescentes – Maus-tratos. I. Custódio, André Viana (org.). II. Dias, Felipe da Veiga (org.). III. Reis, Suzéte da Silva (org.). IV. Título. CDD 362.8292 (22.ed.) CDU 362.7

Autorizamos a reprodução parcial dos textos, desde que citada a fonte. Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98.

André Viana Custódio Felipe da Veiga Dias Suzéte da Silva Reis Organizadores

VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES proteção integral e políticas públicas Autores André Viana Custódio Elizandro Sabino Felipe da Veiga Dias Ismael Francisco de Souza Josiane Rose Petry Veronese Júlia Souza Duarte Luciana Rocha Leme Marli Marlene Moraes da Costa Matheus Silva Dabull Nancy Crisálida Pessoa da Fonseca da Silva Monteiro Djata Patrícia Adriana Chaves Rafael Bueno da Rosa Moreira Rodrigo Cristiano Diehl Suzéte da Silva Reis

Curitiba

2016

PREFÁCIO

O grito necessário O que faz a violência? Rouba-nos da nossa dignidade. Quebra com os paradigmas da evolução. Sim, torna-nos bestas. Para a violência não há clemência. É o único discurso, prática para a qual não existe tolerância. Não podemos tolerar a barbárie! É imperiosa uma nova visão sobre a humanidade. É imperioso que nos agreguemos num único grito: “Basta de violência”!!

(Josiane Rose Petry Veronese)

A violência no espaço intrafamiliar, que deveria se caracterizar pelo carinho, segurança, educação, respeito e responsabilidade, por inúmeras vezes é cenário de dor, de opressão, de negação dos sujeitos, em especial do sujeito criança.

A presente obra, Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: proteção integral e políticas públicas, organizada por André Viana Custódio, Felipe da Veiga Dias e Suzéte da Silva Reis, desenvolvida pelo Grupo Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens, vinculado ao Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, agrega um conjunto de ensaios que podem ser sintetizados como um NÃO a todo e a qualquer tipo de violência que ocorra no interior das casas, em sua intimidade silenciosa.

6 André Viana Custódio; Felipe da Veiga Dias & Suzéte da Silva Reis – organizadores

As pesquisas aqui colecionadas encontram no NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente, do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina, seu parceiro, uma vez que desde 1998 este núcleo situa-se como um locus de análise e discussão em torno dos Direitos da Criança e do Adolescente, que tem como marco a proteção integral da criança e do adolescente. É importantíssimo que se valorize esta iniciativa, bem como todas as que são desenvolvidas no interior de relevantes centros universitários, os quais têm por objetivo a difusão da cultura da não violência, do amor. Sim, do amor. É o amor a essência, o elemento fundamental em toda família, e disto decorre a urgência de ações e políticas públicas que deem o suporte necessário para que, longe da sua “culpabilização”, a ela sejam dadas as condições para que cumpra a sua essência, função e vocação: a família como o lugar do cuidado. Josiane Rose Petry Veronese

Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente na Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Mestre e Doutora em Direito. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e subcoordenadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade. http://lattes.cnpq.br/3761718736777602. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...................................................................................................................................9 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL: A CONCRETIZAÇÃO DA PROTEÇÃO INTEGRAL, VIA PRINCIPIOLÓGICA ESTRUTURANTE E CONCRETIZANTE............. 11 Elizandro Sabino

Júlia Souza Duarte

A TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL COMO PRESSUPOSTO DE ANÁLISE PARA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE E NO BRASIL ...................................................................................................................................... 53 Felipe da Veiga Dias

Patrícia Adriana Chaves

A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: DAS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS .............................................................................................. 71 Rafael Bueno da Rosa Moreira Suzéte da Silva Reis

AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: EDUCAÇÃO CONTINUADA EM SAÚDE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ................................................................................................. 95 Ismael Francisco de Souza Matheus Silva Dabull

A PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES CONTRA A VIOLÊNCIA FAMILIAR: UMA ANÁLISE PELA PERSPECTIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIOASSISTENCIAIS ................................................................................................................. 115 André Viana Custódio Luciana Rocha Leme

8 André Viana Custódio; Felipe da Veiga Dias & Suzéte da Silva Reis – organizadores VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM GUNÉ-BISSAU: OS DOIS GRANDES “Ps” – PREVENÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS ......................................................................................................................................... 137 Josiane Rose Petry Veronese

Nancy Crisálida Pessoa da Fonseca da Silva Monteiro Djata

AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS ENQUANTO MECANISMO DE PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR ....................................................... 147 Marli Marlene Moraes da Costa Rodrigo Cristiano Diehl

APRESENTAÇÃO

Este livro apresenta os resultados do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, no âmbito do Edital Universal 14/2012.

Os estudos foram desenvolvidos pelo Grupo Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens, vinculado ao Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul.

O projeto destina-se, em especial, à análise do complexo tema da proteção intrafamiliar dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no Brasil contemporâneo. Ao reconhecer o atual estágio de violação grave aos direitos fundamentais previstos desde 1988, exige-se novo percurso nos processos de implementação de políticas públicas de inclusão social identificando seus limites e potencialidades de modo que se possa efetivamente realizar o atendimento, a promoção, a proteção e a justiça integral para crianças e adolescentes.

A violação dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil precisa de compreensão fundada na sua própria complexidade levando-se em consideração às peculiaridades contidas na questão da violência intrafamiliar. Assim, pretende-se não só demonstrar a vio-

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lação dos direitos de crianças e adolescentes mediante seus reflexos históricos, jurídicos e políticos, mas propor alternativas para a real efetivação dos direitos fundamentais, por meio da alteração ou ajustes nas políticas públicas de combate à violência intrafamiliar. Prof. Dr. André Viana Custódio Coordenador do Projeto Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL: A CONCRETIZAÇÃO DA PROTEÇÃO INTEGRAL, VIA PRINCIPIOLÓGICA ESTRUTURANTE E CONCRETIZANTE

Elizandro Sabino Bacharel em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (2003) e advogado militante. Atualmente é vereador na Câmara Municipal de Porto Alegre (Gestão 2013-2016). Foi conselheiro tutelar por seis anos (2001/2007) na cidade de Porto Alegre e, nesse período, foi corregedor dos Conselhos Tutelares e coordenador geral no ano de 2007. Foi membro da Comissão da Criança e do Adolescente da OAB/RS e conselheiro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) em 2008/2009. É palestrante sobre os seguintes temas: a arte de falar em público; o estatuto da criança e do adolescente (ECA); atribuições do conselho tutelar; direitos e deveres na relação escola/aluno, entre outros. É aluno especial do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) Stricto Sensu em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).

Júlia Souza Duarte Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Advogada.

Este estudo tem como objetivo demonstrar a evolução histórica dos direitos da criança e do adolescente no Brasil e analisar o atual estágio de proteção a esses direitos, bem como adentrar na base principiológica da Teoria da Proteção Integral, marco do desenvolvimento político, jurídico e social no Brasil.

A começar pelo “grande período da história brasileira sendo marcado por não haver uma proteção especial às crianças, em função destas não serem consideradas seres em estado peculiar de desenvolvimento” (CUSTÓDIO, 2009, p. 11). Até crianças e adolescentes serem reconhecidos como titulares de direitos adequados para a condição de pessoa em peculiar

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condição de desenvolvimento, foram superados muitos obstáculos. Embora, nesse mesmo período, na Europa, mais precisamente no século XVIII, já houvesse tratamento diferenciado para a infância, o Brasil continuou mantendo ideias segregacionistas por longo período histórico, representadas por concepções autoritárias, como os conceitos jurídicos de discernimento e incapacidade. No Brasil Império, o Código Criminal de 1830 fixou como idade de imputabilidade penal os 14 anos. Esse código ainda previu um sistema de punição para crianças de 7 a 14 anos de idade. Portanto, até o fim do período imperial no Brasil, praticamente não houve garantia de direito e proteção à infância.

O modelo menorista do Brasil, política perversa que negava direitos à infância, perdurou por quase cinco séculos. Até a promulgação da República, em 1889, o Brasil manteve um modelo exclusivamente caritativo-assistencial de atendimento à infância, que consistia em ações em função do desamparo, enjeitamento e exposição de crianças.

Outra marca, nesse período, foi o “controle jurídico-disciplinar sobre a infância, em função, principalmente, da aprovação do Código de Menores de 1927, que inovou com a inserção do Direito do Menor no sistema jurídico brasileiro” (CUSTÓDIO, 2009, p. 11) e com sua nova versão em 1979, baseado na ideia de situação irregular. Com a criação, por vários países, dos Tribunais de Menores, inclusive no Brasil, em 1923, “foi se construindo a Doutrina do Direito do Menor no mundo, baseada no binômio carência/delinqüência. Passou-se a não mais confundir adulto com criança, porém, a partir de então se fez a associação da criminalização com a pobreza” (SARAIVA, 2005, p. 35), não se distinguindo abandonados de infratores. Nesse sentido, Saraiva (2005, p. 39) entende que:

O perverso binômio carência/delinqüência, que marcou a lógica operativa deste sistema, e a resultante confusão conceitual, não distinguindo os abandonados dos infratores, até

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hoje presente na cultura brasileira, foi o fundamento das primeiras legislações brasileiras em relação ao Novo Direito da Criança. Na linha deste caráter tutelar da norma, a nova ordem acabava por distinguir as crianças bem-nascidas daquelas excluídas, estabelecendo uma identificação entre a infância socialmente desvalida e a infância “delinqüente”, criando uma nova categoria jurídica: os menores.

Nesse período, foi criada uma série de normas, entre elas as de caráter assistencial, visando à proteção dos menores abandonados e delinquentes, “e as de caráter penal, como a Consolidação das Leis Penais, que afirmava que não são criminosos os menores de quatorze anos” (SARAIVA, 2005, p. 39). Em 1942, para atendimento aos delinquentes e abandonados, foi criado o SAM (Serviço de Assistência aos Menores), que funcionava como um sistema penitenciário para menores, com orientação correcional-repressiva. “Era composto de internatos (reformatórios e casas de correção) para adolescentes infratores, bem como escolas agrícolas e de ensinamentos de ofícios urbanos para menores carentes e abandonados. Esse foi o embrião da futura FUNABEM, berço da FEBEM” (SARAIVA, 2005, p. 42).

Já em 1964, foi instalada no Brasil uma Política Nacional de Bem-Estar do Menor, sob o controle da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM) com órgãos executores estaduais (FEBEM).

Essa ordem legislativa não era direcionada à infância e juventude brasileira, mas apenas às crianças e jovens em situação irregular, como aqueles que passam por necessidades em função de seus pais não terem condições de mantê-los. Esse caráter tutelar da legislação deu origem à criação do Código de Menores de 1979. Tal documento foi baseado na Doutrina da Situação Irregular, que, segundo Saraiva (2005, p. 48), “pode ser sucintamente definida como sendo aquela em que os menores passam a ser objeto

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da norma quando se encontrarem em estado de patologia social”. Com relação à utilização prática da referida doutrina, o mesmo autor manifesta que: […] por esta ideologia, “os menores” tornam-se interesse do direito especial quando apresentam uma “patologia social”, a chamada situação irregular, ou seja, quando não se ajustam ao padrão estabelecido.

A declaração da situação irregular tanto pode derivar de sua conduta pessoal (caso de infrações por ele praticadas ou de “desvio de conduta”), como da família (maus-tratos) ou da própria sociedade (abandono). Haveria uma situação irregular, uma “moléstia social”, sem distinguir, com clareza, situações decorrentes da conduta do jovem ou daqueles que o cercam. (SARAIVA, 2005, p. 48)

Portanto, havia uma mistura entre infratores e abandonados, vítimas de abandono ou maus-tratos com vitimizadores autores de ato infracional. Isto porque se partia do pressuposto de que todos se enquadrariam na mesma condição de situação irregular.

É importante frisar que, enquanto no Brasil era criado o Código de Menores, a ONU (Organização das Nações Unidas), vendo a necessidade da elaboração de uma norma internacional com força cogente que outorgasse efetividade aos direitos instituídos na Declaração dos Direitos da Criança de 1959, propôs a criação de uma convenção em 1989. Tal convenção foi extremamente importante para o Brasil, sendo considerada grande marco na história brasileira, em função de a doutrina nela presente (Doutrina da Proteção Integral) ter sido imediatamente adotada pela Constituição Federal de 1988, modificando totalmente a doutrina anteriormente adotada (Doutrina da Situação Irregular), passando-se a se ter nova visão com relação à infância e à juventude.

Essa Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança, do ano de 1989, teve uma trajetória de elaboração de dez anos, com

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início em 1979, que consagrou a Doutrina da Proteção Integral, e passou a ser um documento global com força coercitiva para todos os estados signatários, inclusive o Brasil. Nesse sentido, manifesta Veronese (1997, p. 13):

[…] a citada Convenção trouxe para o universo jurídico a Doutrina da Proteção Integral. Situa a criança dentro de um quadro de garantia integral, evidencia que cada país deverá dirigir suas políticas e diretrizes tendo por objetivo priorizar os interesses das novas gerações; pois a infância passa a ser concebida não mais como um objeto de “medidas tuteladoras”, o que implica reconhecer a criança sob a perspectiva de sujeito de direitos.

Com a Doutrina da Proteção Integral, foi revogada a velha concepção tutelar, bem como deixado de lado o conceito de menor, fazendo com que crianças e adolescentes passassem a ser considerados sujeitos de direitos, titulares de direitos e obrigações inerentes de sua condição de pessoa em peculiar desenvolvimento. Todos os direitos e garantias dados a qualquer indivíduo passam a ser estendidos às crianças e adolescentes, principalmente quando da prática de ato infracional, visto que estes seres se encontram em condição peculiar de desenvolvimento.

A Doutrina na Proteção Integral tem como preceito que, em caso de ameaça ou violação a direito das crianças, é dever da família, da sociedade e do Estado fazer retomar o exercício desse direito lesionado, por meio de medidas eficazes e efetivas, administrativas ou judiciais, caso necessário. Ainda com relação à referida doutrina,

[…] não mais se admitem conceitos como “menor”, considerando a carga discriminatória encerrada nesta expressão, na medida em que o ordenamento propõe uma normativa apta a contemplar toda a população infanto-juvenil, agora em uma nova condição, não mais objeto do processo, mas sim

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sujeito do processo, protagonista de sua própria história. (SARAIVA, 2005, p. 61)

Nota-se que a Doutrina da Proteção Integral foi um marco no Direito brasileiro, que surgiu com a Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança e foi incorporada no ordenamento jurídico nacional, tanto na Constituição, por meio de princípios, quanto no Estatuto da Criança e do adolescente em todo seu contexto. Feita a análise histórica, passa-se ao estudo do Estatuto da Criança e do adolescente e à análise de outros fatores de importância correlata ao desdobramento do tema, quais sejam as possíveis causas do aumento da violência infanto-juvenil. 1

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13/07/1990) foi sancionado com o intuito de obedecer ao pacto firmado na Convenção das Nações Unidas de Direito da Criança e satisfazer o que determina o caput do artigo 227 da Constituição Federal. O artigo acima mencionado dispõe que:

[…] é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1990)

Conforme Veronese (1997, p. 12), além de resguardar os direitos acima referidos, o Estatuto da Criança e do Adolescente sequer permite ameaça de lesão a tais direitos. Veja-se:

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O Estatuto da Criança e do adolescente veio pôr fim a estas situações e tantas outras que implicavam uma ameaça aos direitos das crianças e dos adolescentes, suscitando, no seu conjunto de medidas, uma nova postura a ser tomada tanto pela família, pela escola, pelas entidades de atendimento, pela sociedade e pelo Estado, objetivando resguardar os direitos das crianças e adolescentes, zelando para que não sejam sequer ameaçados.

No seu artigo 1º, o ECA demonstra claramente sua obediência à Convenção já mencionada, eis que incorpora diretamente a Doutrina da Proteção Integral por ela consagrada. O artigo supramencionado refere que “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (BRASIL, 1990). Essa proteção integral, segundo Chaves (1997, p. 51),

[…] quer dizer amparo completo, não só da criança e do adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual, como também a sua salvaguarda desde o momento da concepção, zelando pela assistência à saúde e bem-estar da gestante e da família, natural ou substituta da qual irá fazer parte.

O Direito da Criança e do Adolescente foi criado com base em princípios os quais não só servem de base forte para o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas também servem de alicerce para toda a Teoria da Proteção Integral, viga-mestra de todo o sistema jurídico de proteção e garantia de direitos das crianças e adolescentes. 2

FUNDAMENTOS DA TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL AOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Arguindo-se sobre os direitos das crianças e dos adolescentes, sob um prisma contemporâneo, principalmente a partir do sé-

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culo XX, com a mudança de visão jurídica-social quanto à posição que crianças e adolescentes deveriam ter na sociedade, bem como desta por eles, muito se avançou no trato deste tema. Com a renovação do pensamento jurídico quanto no pensar em crianças e adolescentes, doutrinas inovadoras ganhavam contornos e surgiam como oportunidades para melhor efetivação dos direitos das crianças e adolescentes. Nesse sentido, o jurista Ubaldino Calvento já percebia a existência de três doutrinas:

1ª) Doutrina da proteção integral – partindo dos direitos das crianças, reconhecidos pela ONU, a lei asseguraria a satisfação de todas as necessidades das pessoas de menor idade, nos seus aspectos gerais, incluindo-se os pertinentes à saúde, educação, recreação, profissionalização, etc. 2ª) Doutrina do Direito Penal do Menor – somente a partir do momento em que o menor pratique ato de delinquência interessa ao direito. 3º) Doutrina intermédia da situação irregular – os menores são sujeitos de direito quando se encontrarem em estado de patologia social, definida legalmente. É a doutrina brasileira. (CALVENTO, I Congresso Ibero-Americano de Juízes de Menores)

Foi a partir da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, trazendo consigo o novo sentimento de democratização que se espalhava pelo Brasil, e também com a edição da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em 1989, marco para o reconhecimento de crianças como sujeitos de direitos, carecedores de proteção e cuidados especiais, que a teoria da proteção integral se fortaleceu. Destaca-se que, para a Convenção, eram consideradas crianças pessoas até 18 anos de idade. A despeito disso, não há dúvida de que foi somente com a Convenção que esta Doutrina (Proteção Integral) assumiu a condição de eixo-fundamental do Direito da Criança e do Adolescente em construção, erigindo-se num dos mais im-

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portantes instrumentos jurídicos à disposição dos movimentos sociais e políticos que fazem parte da luta em favor de crianças e adolescentes a sua “ratio essendi”. (LIMA, 2001, p. 172)

Com evidente avanço para a proteção de crianças e adolescentes, a edição da Convenção Internacional de Direitos da Criança, composto por um preâmbulo e mais 54 artigos, trouxe uma gama de direitos civis, políticos, culturais, sociais e econômicos para crianças e adolescentes.

Direitos esses que contribuíram para alçar crianças e adolescentes a novo nível de interesse do mundo jurídico e da sociedade, uma vez que voltadas as suas atenções, incumbia-lhes de efetivar tais direitos no mundo fático. Nesse sentido: […] liberdade de expressão, de pensamento, de consciência e de crença, de acordo com sua idade e sua maturidade; direito à proteção e assistências especiais do Estado; direito de gozar do melhor padrão de vida possível; direito à pensão alimentícia; direito à educação; direito de serem protegidas contra o uso ilícito de drogas; direito à proteção contra a tolerância econômica e contra o desempenho de qualquer trabalho que possa interferir no seu desenvolvimento físico e mental. (COBERLLINE, 2012, online)

A Convenção, que já foi ratificada por 192 Nações, acabou servindo de base, junto à promulgação da Carta Magna, para o fomento a novo entendimento quanto ao trato a crianças e adolescentes. Foi por meio dessas bases normativas que a teoria da proteção integral se fortaleceu e segue caminho até os dias atuais. “Enquanto houver espaço para a construção de esquemas que respondam à formulação dos problemas teóricos básicos, a Teoria da Proteção Integral tende a se manter consistente” (CUSTÓDIO, 2008, p. 31). Em caminho paralelo às reformulações trazidas pela Convenção Internacional de Direitos da Criança, a Constituição Federal, sob

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ótica democrática que se espalhava pelo país, insculpe em seu artigo 227 a garantia do reconhecimento, a crianças e adolescentes, da condição de sujeitos humanos com garantia de seus direitos: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)

Por meio dessa normatização, alça-os de objetos de tutela do Estado, quando sob condições de irregularidade, para serem reconhecidos como indivíduos igualmente merecedores de proteção e garantias, e que com essa nova conjuntura obtiveram uma gama de direitos passíveis de serem cobrados perante a sociedade e o Estado. As crianças e os adolescentes, com o advento da Constituição, passam a ser vistos pelo ordenamento jurídico nacional como sujeitos de direitos. Tais direitos lhes garantem a igualdade, a liberdade e a fraternidade. Sob esse novo prisma, abandona-se um sistema de tratamento discriminatório e opressor e tenta-se perceber as crianças e os adolescentes como seres humanos que são, em condição especial e, por isso, merecedores de uma proteção ainda maior e mais enfática. Essa perspectiva jurídica, tão óbvia e tão recente, de tratar criança e adolescente como seres humanos que são, em condições diferenciadas, mas não inferiores às condições dos adultos, é a celebração de um direito fraterno e de um humanismo que visa ao bem-estar e ao convívio harmônico entre os seres humanos, pura e simplesmente em razão de sua natureza. (FORTES, 2007, p. 54)

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Tal premissa fundamenta-se no sentir que a Carta Magna, quando da inscrição da garantia de direitos às crianças e adolescentes, em seu artigo 227, não teve o intento de restringir-se àquela norma, mas sim de garantir, agora como sujeitos humanos, todos os seus princípios e direitos fundamentais.

Sem maiores esforços, fica evidente o papel fundamental que a Constituição Federal desempenhou na efetivação da Teoria da Proteção Integral, uma vez que, mediante as diretrizes expostas por ela, foi possível o reordenamento normativo em prol de crianças e adolescentes. Toda a legislação posterior, referente a estes, embasa-se na condição de sujeitos de direitos declarada na Norma Máxima Brasileira.

A Constituição da República Federativa do Brasil e suas respectivas garantias democráticas constituíram a base fundamental do direito da criança e do adolescente, inter-relacionando os princípios e diretrizes da teoria da proteção integral, que por consequência provocou um reordenamento jurídico, político e institucional sobre todos os planos, programas, projetos, ações e atitudes por parte do Estado, em estreita colaboração com a sociedade civil, nos quais reflexos se (re)produzem sobre o contexto sócio-histórico brasileiro. (VERONESE; CUSTÓDIO, 2011, p. 30)

Tornam-se claras, desde então, as intenções do legislador, a fim de alçar crianças e adolescentes a um nível diferenciado, muito acima do que já estiveram antes, reconhecendo-lhes a condição de sujeitos humanos de direitos e garantindo-lhes a devida proteção do sistema jurídico.

Esse novo prisma, iniciado pelo fortalecimento da doutrina da proteção integral, está “em uma perfeita integração com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana” (MACIEL, 2006, p. 11). A ideia central da proteção integral à criança e ao adolescente foi capaz de articular uma teoria própria em determinado

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momento histórico, porque conseguiu ao mesmo tempo conjugar necessidades sociais prementes aos elementos complexos que envolveram mudança de valores, princípios, regras e neste contexto conviver com a perspectiva emancipadora do reconhecimento dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente. (CUSTÓDIO, 2008, p. 30)

Por sua vez, não é apenas na Constituição Federal que a proteção integral figura. Essencial destaque tem que ser dado à promulgação da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, a qual, “mais do que regulamentar as conquistas em prol das crianças e adolescentes na Constituição, veio promover um importante conjunto de revoluções que extrapola o campo jurídico e desdobra-se em outras áreas da realidade política e social no Brasil” (OLIVEIRA, 2013, p. 1).

Nele, a criança e o adolescente se constituem sujeitos de direitos e não mais meros objetos de intervenção social e jurídica por parte da família, da sociedade e do Estado. A criança e o adolescente são reconhecidos como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, detentoras de todos os direitos que têm os adultos e que sejam aplicáveis à sua idade, além dos seus direitos especiais, decorrentes do próprio processo de desenvolvimento em que se encontram. Eles não estão em condições de exigi-los do mundo adulto e não são capazes, ainda, de prover suas necessidades básicas sem prejuízo do seu desenvolvimento pessoal e social. (OLIVEIRA, 2013, p. 3)

A nova visão trazida pela Proteção Integral das crianças e adolescentes, mais do que garantir direitos, bem expressados na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente, trouxe outro avanço ainda maior, que foi começar a entender esse grupo como sujeitos humanos de direitos, a quem tem de ser garantido, por Estado, família e sociedade, as condições adequadas de vida e de crescimento.

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PRINCÍPIOS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Para compreensão da Teoria da Proteção Integral, faz-se necessária a análise dos princípios basilares que a integram. A priori, há de se vislumbrar a divisão dos princípios em estruturantes e concretizantes. “Princípios são espécies de normas, sentidos construídos a partir da interpretação sistêmica de textos normativos”. (ÁVILA, 2005, p. 22)

Os primeiros, princípios estruturantes, como bem nominados, acabam por construírem a estrutura sob a qual a Teoria da Proteção Integral se funda. Tal entendimento fundamenta-se quando se analisa pormenorizadamente cada um dos princípios integrantes dessa divisão.

A começar pelo princípio da vinculação à Teoria Jurídica da Proteção Integral, tido como o princípio mais importante, nos quais os demais se baseiam, este encontra respaldo quando entrega para sociedade, “por lei ou por outros meios” (LIMA, 2001, p. 179), um dever de ação para proporcionar a crianças e adolescentes “o pleno desenvolvimento físico, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (BRASIL, 1990). Dentro da Teoria da Proteção Integral, tal princípio tem o condão de garantir a organização e a unidade para todo o conjunto de princípios e normas do direito da criança e do adolescente.

Continua com o princípio da universalização, que reconhece a crianças e adolescentes todos os direitos fundamentais, bem como normas específicas, as quais “são susceptíveis de reivindicação e efetivação para todas as crianças e adolescentes” (CUSTÓDIO, 2008, p. 31).

A universalização, visando “ao bem-estar do adolescente, à satisfação de suas necessidades básicas, à proteção de seus direitos fundamentais, à implementação de condições que favoreçam o seu pleno desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e so-

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cial” (LIMA, 2001, p. 188), bem como promovendo a alteração da visão retrógrada antes posta para a visão contemporânea da Teoria da Proteção Integral, estes objetivos sendo alcançados por meio da outorga de um conjunto de direitos, fundamentais e específicos, que garantem a crianças e adolescentes a condição de pessoas em desenvolvimento, integradas na sociedade, família e escola, crescendo em condições normais.

Segue-se para o princípio do caráter jurídico garantista da Teoria da Proteção Integral, irradiado da proposta garantista proposta por Ferrajoli (2006), que vislumbra a dita “crise do Direito”, e oferece alternativas para tal problemática. “A proposta garantista significa uma profunda revisão dos fundamentos teóricos-dogmáticos e teóricos-doutrinários da cultura jurídica de matriz positivista, que se fez dominante, especialmente nos países à herança romano-germânica, como é o caso do Brasil” (LIMA, 2001, p. 189). O princípio do caráter jurídico-garantista da Teoria da Proteção Integral não só objetiva uma mudança de paradigmas, mas responsabiliza a tríade Sociedade, Família e Estado pela garantia e efetivação dos direitos outorgados a crianças e adolescentes, ou seja, “transformá-los em realidade objetiva e concreta” (VERONESE; CUSTÓDIO, 2011, p. 36).

O último integrante da linha estruturante, o princípio do interesse superior da criança e do adolescente, “deve ser interpretado e aplicado num contexto jurídico e político que pressupõe o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos próprios” (LIMA, 2001, p. 209).

Em linhas gerais, pode-se entender o princípio do interesse superior como sendo o farol que orienta a tríade sociedade, família e Estado e a sua obrigação de garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Faz isso indicando a aplicação dos direitos, a fim de sempre interpretar normas e situações em prol da efetiva e adequada proteção à condição diferenciada de crianças e adolescentes. Nesse sentido, atuam como “vínculos normativos idóneos para asegurar a efectividad a los derechos subjetivos” (FERRAJOLI, 2006, p. 21).

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Entendendo que todas as ações relativas a crianças e adolescentes, efetivadas por entidades públicas ou privadas, devem sempre atuar primando pelo interesse superior destas, o que se espera é a mudança gradativa de mentalidade a fim de alterar o estigma que por muito tempo não garantia direitos.

Torna-se claro que o princípio do interesse superior atua como técnica jurídica, em que podemos “reforçar o caráter imperativo e de ordem pública dos direitos fundamentais e das necessidades básicas de crianças e adolescentes, assegurando, além da validade formal, a validade material e a efetividade do novo Direito” (LIMA, 2001, p. 214).

Com esse conjunto principiológico, princípios como a vinculação à teoria jurídica da proteção integral, o princípio da universalização, o princípio do caráter garantista e o interesse superior de crianças e adolescentes são a estrutura sob as quais os demais princípios, concretizantes, fundam-se para ganhar sentido na esfera de garantia, bem como servem, respectivamente, para organizar, estender direitos, outorgar responsabilidades conjuntas e nortear a intepretação e aplicação das normas ligadas a crianças e adolescentes. Os princípios estruturantes estão na base do sistema jurídico e, portanto, possuem superioridade quando em conflito com outros princípios ou normas, devendo sempre funcionar como fator de predeterminação de toda e qualquer decisão acerca de direitos fundamentais da criança e do adolescente (SOUZA; CABRAL; BERTI, 2010, p. 131). Seguindo, com total interligação com os princípios estruturantes, há de se analisar uma segunda leva de princípios, denominados concretizantes, que solidificam as diretrizes mestras expostas pelos princípios estruturais da Teoria da Proteção Integral. São estes: a prioridade absoluta, a participação popular, a descentralização político-administrativa, a desjurisdicionalização, a despoliciação/descriminalização, a humanização no atendimento e a ênfase nas políticas públicas básicas.

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Entre os princípios concretizantes, a prioridade absoluta consagra-se mediante a Declaração Universal dos Direitos da Criança, em seu artigo 3º: “A criança figurará em quaisquer circunstâncias entre os primeiros a receber proteção e socorro” (ONU, 1948, preâmbulo), bem como na Convenção de Direitos Humanos de 1989, em seu artigo 8º: “Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas e privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”(ONU, 1989).

Desde sua concepção inicial, a ideia transmitida é que crianças e adolescentes devem ser tratados de forma a reconhecê-los como sujeitos em desenvolvimento e, portanto, devem receber uma priorização por parte da sociedade, família e Estado, a fim de ver efetivado seu pleno e adequado crescimento físico e mental.

Após isso, foi recebido no ordenamento brasileiro, na Constituição Federal de 1988, onde no artigo 227 consagrou-se como base normativa com intento de promoção das diretrizes do tratamento que deve ser dispendido a crianças e adolescentes:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)

Seguindo o fluxo normativo, agora já com fins a especializar tal tratamento, o advento do Estatuto da Criança e Adolescente, em seu artigo 4º, parágrafo único, fundamenta e especializa a prioridade absoluta que deve ser dada por todos:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade,

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a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (BRASIL, 1990)

É evidente que, por essa trajetória, juntamente à consagração do princípio da prioridade absoluta na Carta Magna, bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente, criou-se uma base normativa para a mudança do paradigma negativo que se tinha em relação a crianças e adolescentes, “[…] constatamos que o sistema jurídico brasileiro passou a contar com uma regra fundamental que institui em prol de crianças e adolescentes um direito subjetivo público sem precedentes em nossa história” (LIMA, 2001, p. 216). Em suma, o princípio da prioridade absoluta funda-se na ideia de que crianças e adolescentes devem ser tratados de forma privilegiada na esfera de atuação da família, sociedade e Poder Público, cujo desenvolvimento deve ser impulsionado por meio de ações de cada um desses entes, a fim de cumprir com suas atribuições frente à garantia dos direitos de crianças e adolescentes.

Destaque especial é do papel dado ao Poder Público, que, mediante políticas públicas de garantia dos direitos de crianças e adolescentes, “responde, nos termos da Constituição Federal, da Convenção e do Estatuto, por dever de agir, pela efetivação dos Direitos Fundamentais e pelo atendimento prioritário das necessidades básicas” de crianças e adolescentes (LIMA, 2001, p. 220).

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Também deve se perceber que o rol descrito no parágrafo único do artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente não é um rol exaustivo, mas apenas as linhas mínimas que visam assegurar a devida prioridade absoluta que deve ser dispendida a crianças e adolescentes. “A enumeração contida nesse parágrafo representa o mínimo exigível e é indicativa de como se deverá dar efeito prático à determinação constitucional” (DALLARI, 1998, p. 201). Em continuidade, na análise principiológica concretizante, tem-se o princípio da participação popular. Inicialmente, pode-se achar que, vivendo em um Estado Democrático de Direito, fundamentado em uma Constituição Democrática, estaremos diante de um princípio efetivo em si mesmo, em que o ambiente, a partir da promulgação da Carta de Magna, propicia a participação popular de forma plena. Da mesma forma, com o sufrágio universal, supostamente outorgando ao povo o poder de escolha e de direcionamento do Estado segundo seus entendimentos. Tais entendimentos esbarram na mesma barreira realista em que muitas outras iniciativas de boas intenções pararam. A prática é sim muito divergente da teoria. Já muito antes de verificar-se a condição diferenciada de crianças e adolescentes, já se entendia que a participação popular tinha função essencial da formação do Estado, bem como seria dela o papel de liderança a propiciar o adequado equilíbrio político-administrativo do Estado.

A partir da criação do corpo político (República), o povo (ente coletivo) é o sujeito e a soberania da República encarna a soberania popular. O “Povo” é o conjunto de cidadãos designados enquanto formando uma comunidade, e o Estado é o associado enquanto “participante da autoridade soberana”. Nesta última visão, encontramos a afirmação singular, ao modo rousseauniano, do princípio participativo na construção e no funcionamento da nova ordem política. Assim, podemos ver que já encontramos em Rousseau, ou seja, nas raízes do pensamento democrático, a presença do princípio participativo como condição da mais adequada forma de participação política. (LIMA, 2001, p. 235)

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Deve-se entender que não foi com o sufrágio universal que a participação popular se concretizou. Este foi apenas um passo em direção à concretização dessa base principiológica. Para efetivamente perfectibilizar tal princípio, é necessário utilizar-se de todas as formas previstas na normatização constitucional, e posteriormente na legislação infraconstitucional, para dar aos cidadãos o poder que deles sempre emanou. “Assim, para nós, participar significa democratizar a democracia, ou seja, intensificar a optimização da participação dos homens no processo de decisão (CANOTILHO, 1995, p. 430). Na Constituição Federal de 1988 já se vislumbra, por parte do legislador, a intenção de concretizar a participação popular como princípio reformador e propulsor do Estado Democrático. No artigo 14, prevê a participação popular no âmbito legislativo: “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (I) – plebiscito; (II) – referendo; (III) – iniciativa popular” (BRASIL, 1988).

No artigo 27, § 4º, que destaca a participação popular em nível estadual: “a lei disporá sobre a iniciativa popular no processo legislativo estadual” (BRASIL, 1988). Também no artigo 29, inciso XIII, a indicação em nível municipal: “iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado” (BRASIL, 1988).

E o artigo 61, § 2º: “A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles” (BRASIL, 1988).

Fica claro entender que a participação popular é ferramenta fundamental para o desenvolvimento estatal, que não seria diferente quando se versa sobre a proteção de crianças e adolescentes, uma vez que a Carta Magna também denota preocupação especial

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em outorgar aos cidadãos a responsabilidade por garantirem direitos a crianças e jovens, levando isso à prática mediante a participação em todo o processo político-administrativo com foco nessa parcela em desenvolvimento da sociedade.

Seja como meio genérico de afirmação da cidadania política (art. 1º), seja como técnica de gestão de determinadas áreas da vida social, como é o caso das ações de Assistência Social e de Atendimento aos Direitos Fundamentais e Necessidades Básicas de Crianças e Adolescentes. (LIMA, 2001, p. 248)

Tal destaque dado à participação popular no âmbito da proteção a crianças e adolescentes encontra-se normatizado na Constituição Federal, no artigo 204, inciso II, que versa sobre a organização das ações governamentais para promoção da assistência social via “participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. E também no artigo 227, § 7º, que remete o atendimento de crianças e adolescentes ao artigo 204 da Constituição Federal, a fim de também utilizar-se da participação popular para efetivar o adequado atendimento de crianças e adolescentes: “Art. 227, § 7º. No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art. 204” (BRASIL, 1988). Como se pode verificar, pelos artigos da Lei Maior há uma preocupação especificada a fim de providenciar a participação da sociedade civil na prevenção, promoção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Como se vê, o enunciado da Constituição determina a obrigatoriedade da intervenção da sociedade civil em termos de participação legislativa e participação controle. Nesta última forma de participação está contida implicitamente a participação co-gestão, que se traduz no gerenciamento conjunto da Política de Atendimento, através dos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente – nacional, estaduais, municipais. (LIMA, 2001, p. 253)

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Na Lei infraconstitucional, expressa pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o legislador também se preocupou em prever formas eficazes de garantir a participação da sociedade civil em todas as fases do atendimento a crianças e adolescentes, tais como: a) a participação igualitária da sociedade civil com o Poder Público nos Conselhos de Direitos nas três esferas de Poder: nacional, estadual e municipal; b) a atuação nos Conselhos Tutelares a fim de atuarem diretamente na efetivação de políticas municipais de atendimento a crianças e adolescentes; c) a sociedade civil poderá “atuar em juízo, em qualquer instância ou Tribunal, na defesa (preventiva ou corretiva) dos direitos coletivos e difusos de que se beneficiem crianças e adolescentes (LIMA, 2001, p. 254); d) a escolha dos Conselheiros Tutelares de cada município, bem como a parcela dos Conselhos dos Direitos advinda da sociedade, deve ser feita pela própria sociedade civil; e) por fim, a sociedade civil está autorizada, via ações individuais, a provocar o Ministério Público, a fim de promover a defesa dos interesses de crianças e adolescentes, conforme normatiza o Estatuto da Criança e do Adolescente. Como se pode retirar da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente, o princípio da participação popular encontra papel fundamental na prevenção, promoção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Entretanto, para isso, é necessário que se busque assegurar a atividade do direito de participação na construção da sociedade jurídico-político-social a qual se almeja, e que tenha a cidadania, de crianças e adolescentes, como um de seus mandamentos.

O princípio da descentralização político-administrativa do Estado, por sua vez, tem seus primórdios na mudança de gestão imposta quando a Teoria da Proteção Integral ganhou lugar em detrimento do antigo sistema de trato com crianças e adolescentes. Tal mutação gerou inúmeras alterações sociais, políticas e administrativas, entre as quais surge o princípio da descentralização para suprir nova necessidade trazida pelo entendimento inovador de proteção e garantia de direitos a crianças e adolescentes. Pode-se

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dizer que o princípio da descentralização político-administrativa visa à melhor efetivação da proteção e garantia tão objetivada pela Sistema de Proteção Integral.

O princípio da descentralização político-administrativa está situado no terreno das mudanças de gestão. O seu conteúdo básico diz respeito às mudanças que tinham (e têm) se ser introduzidas na forma de administrar as Políticas Públicas que visam ao acolhimento de crianças e adolescentes, vistos, agora, como sujeitos de Direitos fundamentais, na condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, e não mais como “clientes” do “paternalismo estatal”, do “populismo” de determinada classe política, da “filantropia da sociedade civil”. (LIMA, 2001, p. 260)

A descentralização que dá nome ao princípio tem o condão de dividir o poder estatal, deixando-o chegar nos entes federativos locais – ou seja, municípios –, a afim de promover o melhor atendimento a crianças e adolescentes na esfera onde realmente estão as situações de necessidade de proteção e garantia de direitos. No Estatuto da Criança e do Adolescente, precisamente em seus artigos 86, 87 e 88, há clara menção ao modo de operação que deve ser utilizado visando ao atendimento a crianças e adolescentes, e neste já se evidencia a descentralização do poder estatal por todas as esferas de poder.

Art. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. (BRASIL, 1990)

Há, no princípio da descentralização, um intento muito positivo que é levar o poder estatal até o local onde ele se faz necessário, ou seja, na esfera municipal, para que se possam efetivar de manei-

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ra concreta a proteção e a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Só quem lida com o problema na prática pode organizar de forma adequada o atendimento a ser dispendido; entretanto, há um ônus intrínseco a tudo, que deve ser considerado no caso de tal instituto não ser utilizado de forma adequada.

[…] a descentralização, como todo e qualquer mecanismo/ instrumento de ação governamental, não possui qualidades exclusivamente positivas […] Pois, se por uma lado pode motivar relações que reconstruam o tecido social mais organizado e solidário, onde se constituem novos papéis e status (a descentralização pode ser instrumentalizada como um mecanismo de participação que permite o retorno do poder à sociedade civil), por outro, pode também se caracterizar como uma forma de reforço ao aparelho de dominação, encobrindo a face obscura de um regime autocrático e fechado. (STEIN, 1997, p. 84)

Há, no conceito de descentralização político-administrativa, uma fase que se traduz como sendo o “governo próprio para as entidades descentralizadoras” (LIMA, 2001, p. 262). Em suma, descentralizar, no intuito pretendido na Teoria da Proteção Integral, é dar autonomia em nível da esfera de poder local.

Um processo de distribuição de poder que pressupõe, “por um lado, a redistribuição dos espaços de exercício de poder – ou dos objetos de decisão – isto das atribuições inerentes a cada esfera de governo e, por outro lado, a redistribuição dos meios para exercitar o poder, ou seja, os recursos humanos, financeiros e físicos” (STEIN, 1997, p. 81). A efetivação do princípio da descentralização, no que tange à distribuição de condições para sua produção, tem seu respaldo no Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 260, que outorga ao município o poder de “organizar sua política de atendimento a crianças e adolescentes e de recorrer aos fundos estadual ou nacional, quando os recursos carreados para o municipal forem insuficientes” (SEDA, 1995, p. 71).

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Há consequências oriundas do processo de descentralização político-administrativa, as quais são projetadas diretamente para dentro da Proteção Integral de crianças e adolescentes, visando a: […] viabilização mais fácil de conversão das demandas sociais em programas e serviços; maior controle social sobre a administração pública de nível local; democratização do Estado; papel integrador das instituições municipais; multiplicação dos núcleos de poder público por intermédio do poder local; aumento de eficácia das políticas públicas; atenção as demandas crescentes por participação das instituições representativas de nível municipal. (STEIN, 1997, p. 84-85)

A descentralização político-administrativa, com a municipalização como base fundamental, alçou os municípios ao nível de possuírem competências e atribuições de condução dos interesses das comunidades, com peculiar destaque ao trato com crianças e adolescentes, os quais, por sua condição especial, acabam tendo um cuidado destacado. Essa condução é normatizada na Carta Magna, quando já em seu artigo 227 faz clara menção que o atendimento a crianças e adolescentes seria feito segundo o estabelecido no seu artigo 204, inciso I, onde está fundamentado o princípio da descentralização político-administrativa a colaborar na adequada proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes. Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social. (BRASIL, 1988)

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Novamente, como bem se destaca nas análises dos princípios concretizantes que formam a Teoria da Proteção Integral, é indispensável vislumbrar tais bases norteadoras na teoria e na prática e suas consequentes discrepâncias. Há sempre de se pensar em tais princípios na esfera ideal e na esfera de aplicabilidade no mundo real. Para que o princípio da descentralização político-administrativa se realize na integralidade, cumprindo a função social de trazer para junto das comunidades locais o poder-dever de participar na Política de Atendimento aos direitos e necessidades básicas de crianças e adolescentes, não basta redistribuir tarefas. É também preciso redistribuir recursos econômicos e financeiros, bem como científicos. (LIMA, 2001, p. 270)

Na mesma linha, o princípio da desjurisdicionalização é também um princípio oriundo das profundas mudanças promovidas quando do nascimento da Teoria da Proteção Integral em detrimento da concepção menorista que prevalecia nas primeiras sete décadas deste século. Profundas mudanças ocorreram – e pode-se dizer que para melhor – para crianças e adolescentes, pois o sistema menorista que vigorava colocava crianças e adolescentes em situação de tutela jurisdicional dos Juizados de Menores, que atuavam com todo o poder estatal a fim de colocar crianças e adolescentes em uma situação de prejuízo imensurável, em vez de ajudá-los. A partir do surgimento da Teoria da Proteção Integral, com o advento do princípio da desjurisdicionalização, crianças e adolescentes não precisam e não devem passar pela tutela jurisdicional do Estado; por consequência, podem sofrer muito menos danos quando no trato com entidades especializadas, em esfera administrativa, que possam ofertar a essas crianças e adolescentes a proteção e a garantia de direitos que merecem.

No Brasil, essa orientação jurídica foi instituída pela Constituição de 1988 (art. 5º, I, e art. 227, § 3º). Neste caso, juizados e tri-

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bunais competentes para o julgamento de situações que envolvem crianças e adolescentes têm o dever jurídico de proteger os direitos destes, sem que isso signifique “decaimiento de ciertos derechos superiores garantizados por la constitución como las reglas del debido proceso; evitándose de esta forma que a través del ejercicio de facultades discrecionales y arbitrarias se conviertan en centros de poder ilimitado” (AMARAL E SILVA, 1991, p. 167). Se em época passada, quando se entendiam crianças e adolescentes como menores, jurisdicionalizar significava “concentrar no Judiciário o conhecimento e o exame de situações que envolviam menores irregulares, desjurisdicionalizar, implica, agora, trocar o sinal dessa atitude concentradora” (LIMA, 2001, p. 282), diminuindo em todo o possível o envolvimento do sistema de justiça com questões que demandam tratamento político-administrativo e não judicial ou jurisdicional. […] não é próprio da função jurisdicional se envolver com o atendimento de casos onde inexistam conflitos de interesse (jurisdição contenciosa) ou fatos ou direitos a serem protegidos com possível formação de futuro litígio (jurisdição voluntária). A moderna tendência anotada por D’ANTÔNIO é no sentido de ampliar a participação de órgãos administrativos especializados […]. O sistema, principalmente a polícia judiciária, que é repressiva por natureza, não deve se envolver com casos exclusivamente sociais. O sistema só deve ser acionado no âmbito da jurisdição voluntária ou contenciosa. […] O atendimento de crianças e jovens em situação de risco deve ser feito pela autoridade administrativa especializada. (AMARAL E SILVA, 1991, p. 169)

É evidente que o princípio da desjurisdicionalização tem por intento mudar as formas de tratamento do antigo sistema, evitando ao máximo que crianças e adolescentes tenham que passar pela tutela jurisdicional. Em vez disso, o atendimento muito mais adequado seria ofertado por autoridade administrativa especializada. Tal autoridade são os Conselhos Tutelares. Quando

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a situação de crianças e adolescentes requerer um atendimento social ou provimento de direitos e necessidades, fora dos litígios jurídicos, a instância administrativa deve ser a esfera de direcionamento dada. Para que o princípio da desjurisdicionalização seja efetivo, a norma infraconstitucional específica, ou seja, o Estatuto da Criança e do Adolescente, normatiza no sentido de envolver a autoridade administrativa especializada com garantias de “existência, permanência, autonomia e funcionamento” (BRASIL, 1990). Busca-se, em suma, reduzir o envolvimento de crianças e adolescentes, seus pais ou responsáveis, com o sistema judiciário. De outro modo, visa “abrir as portas do sistema de atendimento aos direitos fundamentais da criança e do adolescente para a participação da comunidade, presente de maneira direta nos Conselhos Tutelares” (LIMA, 2001, p. 284). Diretamente interligado à desjurisdicionalização está o princípio da despolicialização ou descriminalização. Tal base principiológica tem alicerces fundados na ideia de democracia que foi fortemente difundida após a promulgação da Carta Magna de 1988. Quando se entende a Teoria da Proteção Integral, bem como sua adoção como embasadora de proteção e garantias, fica impossível não perceber a relação íntima e inderrogável entre Direitos da Criança e do Adolescente e a Democracia.

A ideia de democracia é muito importante, pois corresponde ao Estado de Direito dotado de efetivas garantias, tanto liberais quanto sociais, para a realização dos direitos fundamentais. Em suma, quanto à democracia, não é apenas a parcela que efetiva garantias e promove a realização dos direitos fundamentais que se destaca; também a ideia de minimização dos poderes estatais deve ser analisada. “O Estado Social e Democrático de Direito deve corresponder à maximização das liberdades e das expectativas dos cidadãos quanto à eficácia social dos Direitos Fundamentais e a uma minimização dos poderes estatais, nas funções relacionadas com a repressão, ou a restrição de liberdades” (LIMA, 2001, p. 285).

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É exatamente essa parcela da Democracia que vê sua plenitude na promoção das liberdades e na redução das repressões estatais que encontra o fundamento no princípio da descriminalização/ despolicialização.

Nesse enfoque, novamente se faz necessária a reflexão entre a Teoria da Proteção Integral e antes de sua criação, com o sistema menorista difundido. Nesse período nebuloso para crianças e adolescentes, o sistema posto se via estruturado de forma que atribui à força policial um contato direito e altamente prejudicial a crianças e adolescentes. “Em vez de tratá-las como um problema de política a ação governamental, preferiu vê-las como questão de polícia. Esta, aliás, era a palavra de ordem do governo Washington Luís” (LIMA, 2001, p. 289).

Durante todo o período anterior à Teoria da Proteção Integral, o caráter sociopenal da intervenção do Estado sobre os problemas com crianças e jovens era mais evidente quando os debates tinham por objeto as medidas de proteção aos menores irregulares, ou quando se referiam ao enquadramento legal dos menores infratores, também chamados de delinquentes. Nessa seara, a polícia e a justiça menorista, com suas práticas flagrantemente impróprias para o contato com crianças e adolescentes, eram a face do sistema de reeducação ou de ressocialização.

Em resumo, todo esse tratamento inadequado era fruto de uma visão em que violência, autoritarismo e repressão se manifestavam desde a linguagem austera e discriminadora até chegar em práticas institucionais. Nesse momento vigorava o princípio da politização. “O termo politização […] passou a significar, não apenas a intervenção policial propriamente dita, mas uma matriz ideológica, um padrão mental profundamente enraizado nas nossas instituições, na sua relação com menores irregulares” (LIMA, 2001, p. 292). A partir da democratização e da difusão da Teoria da Proteção Integral, o princípio da descriminalização/despolicialização serve de guia para a mudança de paradigmas, em que se tenta en-

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raizar a ideia de que crianças e adolescentes é assunto de política social e não de polícia.

Diante desse retrospecto histórico, a “despolicialização” adquire o significado crítico de autêntica contracultura em relação ao passado menorista. Sendo um dos princípios fundamentais concretizantes do Direito da Criança e do Adolescente, a “DESPOLICIALIZAÇÃO” exige a redefinição simbólica e prática das relações da criança e do adolescente com o sistema social, em todos os seus níveis e contextos, especialmente com os níveis e contextos aos quais incumbe a interpretação e aplicação desse novo ramo do Direito brasileiro. (LIMA, 2001, p. 293)

Em direta relação com essa mudança, a questão crianças e adolescentes passa a ser, antes de tudo, questão de Política, mas uma política democrática, que garanta a proteção integral e acesso a um adequado desenvolvimento. O princípio da descriminalização/despolicialização quer dizer pensar um sistema de instituições jurídicas e sociais, gestão de políticas públicas e de programas de atendimento e de procedimentos, livre da ótica sociopenal. Quando, em última hipótese, se fizer imprescindível a polícia, este contato não se fará com repressão e violência.

O outro princípio fundamental é a DESPOLICIALIZAÇÃO, que é um corolário também da Proteção Integral e da Humanização. A questão da criança e do adolescente não é questão de polícia. Ela tem um aspecto policial quando o adolescente ou criança são vítimas de violação de seus direitos ou quando são autores de violência, e isso porque, em primeiro lugar, foram vítimas. Houve omissão da sociedade, da família ou do Estado. Nesse caso, há um ângulo policial, no caso de alto risco para essa criança, de protegê-la com armas se for preciso, proteger sua integridade. Ou proteger as pessoas da sociedade de sua violência. Mas é um aspecto secundário, não é fundamental. (RIVERA, 1990, p. 50-51)

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O princípio da humanização, por sua vez, tem suas origens ainda nos séculos XIV até o XVIII, quando a corrente burguesa dominante objetivava a superação do sistema feudal, outorgando para todos os homens o respeito às suas condições diferenciadas no mundo, entregando-lhes a dignidade da pessoa humana, que transformaria, desde aquele momento, as concepções política, jurídica e social. Essa ideia de humanização teve fortes influências já na Carta Magna, que em diversas vezes faz menção ou deixa-se influenciar pela principiologia humanista. No artigo 1º, diz que: “A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, constituída em Estado Democrática de Direito” (BRASIL, 1988). De acordo com o artigo 3º, inciso III, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (BRASIL, 1988) é um dos objetivos fundamentais do Estado Democrático brasileiro; e, segundo o inciso IV, deve-se “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (BRASIL, 1988). Tais objetivos deixam clara a função da pessoa humana como valor-fonte da ordem política, jurídica e social. No artigo 4º, quando versa sobre as relações do Brasil com os demais países, novamente a Constituição reafirma o posicionamento humanista, dando prevalência aos “Direitos Humanos” (BRASIL, 1988).

Também no artigo 5º, em diversos incisos, demonstra a “irradiação do valor que a pessoa humana tem no Estado Democrático de Direito, como titular de Valores e Direitos Fundamentais” (LIMA, 2001, p. 311). […] Inciso III: ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

Inciso VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

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[…] Inciso X: são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; Inciso XI: a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Inciso XII: é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

[…] Inciso XLI: a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; Inciso XLII: a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; […] Inciso XLV: nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido; Inciso XLVI: a lei regulará a individualização da pena. (BRASIL, 1988)

O inciso XLVII, tem um destaque, pois é “considerado pela Doutrina uma situação em que o princípio da humanidade assume especial relevância na atual ordem constitucional brasileira” (LIMA, 2001, p. 311). Nele a Carta Magna veda práticas anti-humanistas, como: “a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis” (BRASIL, 1988). Continua, no artigo 5º da Constituição Federal, no inciso XLIX: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral”. E no inciso L, outro destaque no sentido de ofertar para as mulheres na condição de mães a amamentarem seus filhos, mesmo

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que presas. Mais uma forte influência humanista que aporta na Carta Política brasileira: “às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação” (BRASIL, 1988).

Demais artigos, como o 170, que expõe sobre a Ordem Econômica; o artigo 196, o qual estabelece que a saúde é um direito de todos e dever do Estado; o artigo 205, que estabelece a universalidade do direito à educação, bem como o dever bipartido entre Estado e família para efetivá-lo; e o artigo 220, que fala sobre a Comunicação Social, todos estes também exemplos de normas constitucionais que de formas muito diretas e claras, sofrem influência humanista no ordenamento jurídico brasileiro. Em referência a essa recepção dada pela Constituição Federal, reconhecida como fortemente democrática, o princípio da humanização se destaca como sendo uma espécie de “óculos de consciência epistemológica”, com a determinante função de ajudar na leitura das normas e ajudar na forma de decisão quanto à aplicabilidade destas. “É neste âmbito conceitual e ético-social que o princípio da Humanização adquire consistência epistemológica e dignidade política, como critério de compreensão e, portanto, determinante das melhores condições de decidibilidade do Direito da Criança e do Adolescente” (LIMA, 2001, p. 313).

Quando novamente se analisa a recepção do princípio da humanização na Constituição, o artigo 227, coluna central da Teoria da Proteção Integral na Carta Magna, fica mais que evidenciado o caráter humanista desta norma em específico e, por consequência lógica, acaba por determinar a amplitude humanista que se estabelece sobre crianças e adolescentes. “O princípio da Humanização se confunde com o próprio enunciado do art. 227, da Constituição” (RIVERA, 1990, p. 50), e isto significa que o Poder Público deve ter em crianças e jovens “centros axiológicos da ordem social e política“ (LIMA, 2001, p. 313). Assim, o princípio da humanização funciona como garantidor de efetividade dos Direitos Fundamentais e do atendimento dispendido para crianças e adolescentes.

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O princípio da humanização exige que crianças e adolescentes sejam totalmente protegidos de circunstâncias que venham a lesar sua personalidade, liberdade e dignidade. Nesse sentido, o Estatuto, no artigo 5º, determina: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (BRASIL, 1990). Também, em outros diversos momentos, o Estatuto da Criança e do Adolescente recepciona o princípio humanista, a fim de embasar suas normas:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade; […] Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis; […] Art. 109. O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada. (BRASIL, 1990)

Por sua vez, o artigo 124 do Estatuto prescreve expressamente direitos a serem observados em favor de adolescentes privados de liberdade que têm a função de humanizar a aplicação de medidas socioeducativas:

Art. 124. São direitos do adolescente privado de liberdade, entre outros, os seguintes:

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I – entrevistar-se pessoalmente com o representante do Ministério Público; II – peticionar diretamente a qualquer autoridade; III – avistar-se reservadamente com seu defensor;

IV – ser informado de sua situação processual, sempre que solicitada; V – ser tratado com respeito e dignidade;

VI – permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus pais ou responsável; VII – receber visitas, ao menos, semanalmente;

VIII – corresponder-se com seus familiares e amigos;

IX – ter acesso aos objetos necessários à higiene e asseio pessoal; X – habitar alojamento em condições adequadas de higiene e salubridade; XI – receber escolarização e profissionalização;

XII – realizar atividades culturais, esportivas e de lazer; XIII – ter acesso aos meios de comunicação social;

XIV – receber assistência religiosa, segundo a sua crença, e desde que assim o deseje; XV – manter a posse de seus objetos pessoais e dispor de local seguro para guardá-los, recebendo comprovante daqueles porventura depositados em poder da entidade;

XVI – receber, quando de sua desinternação, os documentos pessoais indispensáveis à vida em sociedade. (BRASIL, 1990)

Continua no artigo 126, combinado com o artigo 180, inciso II, o qual objetiva evitar que jovens que estejam sobre a desconfiança de práticas de atos infracionais possam não sofrer com o contato negativo imposto pela persecução penal, mas tenham uma relação mais humanizada com o sistema de Justiça. Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério

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Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. […] Art. 180. Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá: […] II – conceder a remissão. (BRASIL, 1990)

Em seguida, nos artigos 141, 143, 178 e 232, ratifica a posição humanista do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 141. É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos; […]

Art. 143. E vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional; […]

Art. 178. O adolescente a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade; […] Art. 232. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a vexame ou a constrangimento. (BRASIL, 1990)

O Princípio da Humanização serve de base condicionante de todo o sistema jurídico vigente e, por consequência, atua fortemente no Estatuto da Criança e do Adolescente. “Finalmente, o princípio da humanização deve ser operacionalizado como critério político-jurídico na criação de novas leis que tenham por objetivo interesses e necessidades” de crianças e jovens, ou até mesmo que possa a vir a afetá-los (LIMA, 2001, p. 317). Por fim, fechando a base principiológica concretizante da Teoria da Proteção Integral, o princípio da ênfase nas políticas so-

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ciais básicas. Este princípio tem o escopo de corrigir um problema criado ainda no sistema menorista, pois, em vez de o Estado atuar a fim de garantir direitos a crianças e adolescentes, o sistema baseava-se em uma ideia assistencialista e de preocupação com ajustes meramente econômicos, que privilegiava a remuneração de capital em prejuízo ao desenvolvimento social da população, em especial de crianças e jovens.

Tais concepções, hoje sobre o prisma da Proteção Integral, acabam por gerar uma inevitável incompatibilidade. “Um dos motivos mais importantes para justificar esta incompatibilidade consiste no fato de que para o novo Direito o atendimento às necessidades básicas de crianças e adolescentes não deve ser uma questão de política assistencialista, mas de política de Direitos” (LIMA, 2001, p. 333). O posicionamento estatal equivocado e o tratamento assistencialista dispendido acabaram por acarretar um conjunto de vícios que podem ser resumidos da seguinte forma:

a) prioridade de ações sobre as consequências e não sobre as causas dos problemas vividos; b) predomínio da visão assistencial, em detrimento da visão socioeducativa; c) ênfase na técnica de institucionalização;

d) concentração do poder de decisão sobre distribuição e aplicação de recursos econômicos e financeiros;

e) judicialização dos problemas vinculados aos “menores” em situação de risco, com tendências de “patologizar” situações de origem estrutural; f) criminalização da pobreza;

g) negação explícita e sistemática dos princípios básicos de Direito, com infringência de princípios e regras constitucionais;

h) construção sistemática de linguagem eufemística, que etiqueta e condiciona o funcionamento do sistema institucional a este etiquetamento de parte da população de crianças e adolescentes. (LIMA, 2001, p. 332)

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É evidente que, até a adoção da Teoria da Proteção Integral, as políticas de atendimento em nada auxiliavam crianças e adolescentes. A partir do advento do pensamento contemporâneo de garantia e proteção aos direitos de crianças e adolescentes, o tema constitui uma questão de ordem pública, uma Questão de Política, de Política Nacional (LIMA, 2001, p. 334).

Como bem se percebe, o princípio da ênfase em políticas públicas básicas é consequência lógica do crescimento e adoção da Proteção Integral. Tal afirmativa reflete que os direitos de crianças e jovens são questão de política, e para que isso se concretize, torna-se “indispensável a existência de instrumentos cuja função básica seja garantir a observância ou o respeito desses direitos e o provimento dessas necessidades não fiquem na dependência do arbítrio ou do subjetivismo das autoridades ou dos agentes políticos” (LIMA, 2001, p. 340-341).

No caso, o ordenamento jurídico brasileiro, inundado pelas influências positivada da Teoria da Proteção Integral, acaba por recepcionar o princípio da ênfase em políticas públicas básicas dentro do seu marco normativo: o fundamento principal, como também o da Teoria da Proteção Integral da qual deriva, é o artigo 227 da Constituição Federal, e juntamente a este, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seus artigos 4º, parágrafo único, 5º e 6º, afirma tal princípio: Art. 4º […].

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

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Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. (BRASIL, 1990)

Para garantir a norma estatutária, os artigos 88 e 208 do Estatuto da Criança e do Adolescente atuam como mecanismos para garantia dos direitos de crianças e jovens.

Também no artigo 87 do Estatuto da Criança e do Adolescente, há clara intenção do legislador infraconstitucional de eleger o atendimento às políticas públicas básicas como prioridade, entre políticas, programas e serviços de proteção, para o adequado atendimento às necessidades de crianças e jovens: Art. 87. São linhas de ação da política de atendimento: I – políticas sociais básicas;

II – políticas e programas de assistência social, em caráter supletivo, para aqueles que deles necessitem;

III – serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; IV – serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos; V – proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente.

VI – políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes;

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VII – campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e à adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes, com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos. (BRASIL, 1990)

O princípio da ênfase em políticas públicas básicas resume-se em um posicionamento estatal, a fim de não apenas criar normas de garantia e proteção aos direitos de crianças e adolescentes, mas prioritariamente em agir de forma proativa, criando formas de efetivar tais garantias no mundo dos fatos e não só do direito. Visa romper com o sistema assistencialista de outrora, buscando, por meio de ações concretas, dar suporte estatal ao adequado desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Como bem se retira da análise dos princípios concretizantes e estruturantes da Teoria da Proteção Integral, pode-se captar o intuito protetivo e garantista de todo o ordenamento jurídico quando do trato com crianças e adolescentes. Todavia, há de se criar mecanismos de efetivação a fim de possibilitar que todos esses princípios possam ser respeitados no dia a dia; que sirvam de ponte entre o passado de desrespeitos para o presente, com a devida proteção e garantia de direitos a crianças e jovens. 4 REFERÊNCIAS

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A TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL COMO PRESSUPOSTO DE ANÁLISE PARA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE E NO BRASIL

Felipe da Veiga Dias Doutor em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Bolsista Capes (nº 12333/13-1) – Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Professor da Faculdade Metodista de Santa Maria (Fames). Coordenador da Cátedra de Direitos Humanos (Fames). Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (Grupeca/Unisc). Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis” (CNPq). Advogado. E-mail: [email protected]

Patrícia Adriana Chaves Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Integrante dos Grupos de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (Grupeca/Unisc). E-mail: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem o condão de fazer uma análise acerca da violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente a partir da teoria da proteção integral. A proposta do tema se deu pela relevância da questão que por muito tempo permaneceu obscurecida por dogmas culturais ou simplesmente pelo descrédito imputado às vozes de crianças e adolescentes vítimas de violações físicas e psicológicas no seio familiar (violência intrafamiliar). Alude-se o interesse deste estudo em remontar alguns aspectos históricos, co-

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nectando-os à recente evolução no tocante aos direitos da criança e do adolescente. Ao referirem-se traços históricos, faz-se isso não no intuito de estabelecer fatos ocorridos, e sim denotar os fundamentos teóricos e culturais que pautaram a manutenção de um padrão de violência contra esses sujeitos, seja no sentido de uma pseudoeducação, que estabelecia a disciplina pelo medo, ou repressivo aos supostos “desviantes”, que nada mais eram do que crianças e adolescentes em situação de risco; indiferentemente da motivação, em ambos os casos foram vítimas de visões retrógradas e que cerceavam garantias basilares do ser humano.

Por isto, com tais elementos pretéritos, explicam-se determinadas ações por parte do Estado, bem como se entende o grau de importância assumido pela chamada teoria da proteção integral, ocupante do novo texto constitucional de 1988, a qual trouxe consigo a modificação do suporte ético-jurídico de todo o ordenamento. Desse modo, o conteúdo adicionado à ótica do direito da criança e do adolescente traz um panorama diferenciado, com argumentos incontestáveis, que puseram abaixo a antiga Doutrina da Situação Irregular e o falido Código de Menores, ou seja, não se trata apenas de uma transição histórica na qual os valores e concepções se mantêm, mas sim de uma ruptura completa, em que novos princípios e regras surgem diferenciando-se por completo dos antigos sistemas jurídicos brasileiros. Diante disso, o tema em debate guarda seus pontos polêmicos, os quais se tentará referir e criticar, ao mesmo tempo que se procurará dialogar com a Teoria da Proteção Integral e o Direito da Criança e do Adolescente, no intuito de se ter maior compreensão da complexidade dessa mudança histórica e dos resultados efetivos que ela trouxe para a proteção das vítimas de violência intrafamiliar no Brasil, procurando demonstrar a efetivação de direitos fundamentais infanto-adolescentes.

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A CRIANÇA E O ADOLESCENTE NA HISTÓRIA – AS MARCAS DA VIOLÊNCIA NO TEMPO

Embora muito já se tenha realizado no campo jurídico para garantir os direitos a crianças e adolescentes, a violência disposta contra a infância ainda é um tema atual e polêmico. Os aspectos históricos dessa prática, que durante muito tempo foi utilizada como forma de impor uma cultura e um modelo de sociedade, traz o entendimento acerca do motivo de muitas famílias ainda a adotarem como forma de educar seus filhos.

Ao percorrer a história do Brasil, pode-se inferir que com a chegada dos padres jesuítas as crianças são entendidas como o alvo perfeito, ou seja, a forma mais fácil de implantar a cultura europeia e o cristianismo. Com intenção de catequizar e civilizar a todos, e fazer destas terras o paraíso cristão, ganharam as crianças com forma diferenciada de educação, por meio do cântico, das orações, do culto aos santos e das artes. Porém, essa forma amorosa de educar veio acompanhada da repressão por castigos corporais, até então desconhecida pelos nativos, impondo o medo como forma de dominar a civilização. Foram os jesuítas que trouxeram a valorização da educação na formação das crianças e também a prática dos castigos e da repressão, defendida e reproduzida por muitos até os dias de hoje (CUSTÓDIO, 2009, p. 13; CHAMBOULEYRON, 2004). É somente no século XIX que se ratifica a descoberta humanista da infância e da adolescência, embora houvesse alguns registros históricos da palavra criança na década de 1830, esta era vista como cria da mulher, associando-se a criança ao ato da criação, em que criar é o mesmo que amamentar (MAUAD, 2004, p. 140). Definindo a infância “por envolver uma distinção entre a capacidade física e intelectual” (MAUAD, 2004, p. 140), relaciona-se então a ideia de criança por aquilo que ela não era capaz, não sabia, trazendo uma imagem negativa da criança. Essa ideia se intensifica com o fim da escravidão, muitas crianças em situação de extrema pobreza, após a abolição, perambulavam pelas ruas e até mesmo roubavam para sua subsistência,

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tornando-se um problema para a sociedade, que passaram a defini-las como “menores de rua”, marginalizando-as. Todavia, somente com a institucionalização da República e as novas políticas criadas é que se passa a criminalizar a infância com a implantação do Código Penal. Uma política que em nada protegia as necessidades infantis, pelo contrário, colocava a criança como um problema a ser enfrentado. Seguia-se com uma visão positivista e simbólica, a fim de intervir duramente contra a infância, por meio do “controle do espaço público, a institucionalização de crianças, a regulamentação do trabalho, da aprendizagem e da educação em patronatos agrícolas, o abandono e a delinquência” (CUSTÓDIO, 2009, p. 15). É salutar mencionar que a lógica interventiva e violenta disposta contra crianças e adolescentes foi reforçada pela teoria jurídica adotada no país, pois, no princípio do século XX, a visão dominante se dava a partir da doutrina da situação irregular e sua política de atuação sobre os “menores”, com especial fundamento nos aspectos do trabalho, saúde e moral para resolver o “problema” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 52-53).

Nesse sentido, a concepção do “menor” relacionava o infante a uma situação de abandono moral ou social, reforçando tais aspectos a partir dos pré-conceitos sociais advindos da ausência dos pais ou mesmo de formações familiares distintas do modelo do período, conjugando em uma vala comum órfãos, infratores e todos os demais compreendidos como necessários a reformá-los (para serem “normais”) (MELO, 2011, p. 15-16).

Isso significa que, além da violência enquanto prática histórica, a infância nacional ainda sofria com a institucionalização desta, sendo tratada como um objeto de intervenção e não como um sujeito de direitos (COSTA, 2012, p. 129). Esse perfil de tratamento desigual e coercitivo pode ser vislumbrado ao longo de ambas as codificações que seguiram tal ideologia, ou seja, tanto a legislação de 1927 quanto a de 1979 (apesar de esta apresentar alguns avanços

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em relação àquela) incorreram na óptica repressiva como forma de atuação sobre a infância (VERONESE, 2012, p. 53). A história da infância no Brasil deixa claro que a violência contra a criança e o adolescente, tanto física quanto contra sua dignidade, perdurou por séculos, com uma visão negligente contra seus direitos. A visão menorista colocava a criança à margem da sociedade, dentro de um discurso moralista e elitista, sendo que a infância foi exposta ao trabalho sem direito à educação ou a alguma expectativa de futuro promissor, algo verificável inclusive nas políticas autoritárias (assistência, repressão e controle social) (CUSTÓDIO, 2008, p. 24).

Graças a essa passagem histórica, muitos rótulos inferiorizaram a infância, como o “menor de rua”, o “menor infrator”, o “delinquente juvenil”, todos eram colocados na sociedade (ou fora dela) como algo a ser combatido, para o bem deles, nunca se colocando a sociedade como responsável por essa situação, sendo, portanto, mais confortável incutir a “culpa” nas próprias vítimas, induzindo a ideia de que elas pudessem escolher por outra forma de vida.

Com ideias ultrapassadas, muitos ainda acreditam em uma educação pelo castigo e denominam o medo e a represália como disciplina e respeito, reproduzindo o antigo modelo pedagógico. Muito embora a nova legislação já tenha colocado a infância em novo patamar, principalmente os casos de agressão ainda são uma realidade na sociedade do século XXI. Porém, para compreender o nível de modificação jurídico-social necessário, é imprescindível entender a modificação teórica no campo da infância, em especial com a teoria da proteção integral. 3

TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL COMO BASE DE MODIFICAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A fase das modificações no âmbito da infância nacional inicia-se antes da promulgação da atual Constituição, de maneira que os

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movimentos sociais se utilizavam de novos suportes teóricos para declarar não apenas a necessidade de superação da visão menorista, mas também a imperiosidade de discussão a um nível mais profundo acerca das demandas de crianças e adolescentes para além das pontualidades de vulneração (RIZZINI; BARKER, 2004, p. 135).

Assim, quando advém a Constituição de 1988, esta surge para consolidar nova visão de Estado, não mais com caráter autoritário, mas uma “constituição cidadã”, baseada em construções ético-jurídicas, como os direitos humanos, fundamentais e diversas ferramentas de proteção das garantias basilares do ser humano, contando com a efetiva participação dos movimentos de defesa dos direitos da criança e do adolescente nesse processo.

Destarte, no que se refere aos direitos fundamentais da Constituição, pode-se entender o grande avanço da democracia ao vislumbrar que a constituinte adotou no seu artigo 1º, incisos II e III, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (de matriz kantiana) (SARLET, 2008, p. 37), formulando uma aceitação aos direitos relativos à pessoa. Com eles, uma série de novas regras foi apresentada ao país, nova visão de humanidade, como o dever do Estado de proteger o consumidor; o direito à saúde, à educação, à previdência e à assistência social; criou-se a proteção ao idoso, ao deficiente físico e aos diversos agrupamentos familiares; entre outras importantes normas fundamentais, está o reconhecimento de pessoa em desenvolvimento, a criança e o adolescente.

Isso significa uma primeira percepção com base no novo suporte teórico constitucional para infância, ou seja, a teoria da proteção integral impõe uma mudança no tratamento dos infantes enquanto objetos, migrando para um reconhecimento enquanto sujeitos-cidadão, “cujas autonomias estão se desenvolvendo, elevando-os a autores da própria história, enquanto atores sociais” (VERONESE, 2012, p. 50).

Enfim, depois de décadas de uma visão distorcida de deveres, a inovadora constituição traz em seu ordenamento a dignidade dos infantes, como “pessoas em desenvolvimento”, necessitadas de

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proteção para o seu crescimento, e não apenas de assistencialismo mascarado por uma política de exclusão, como era realizada pelo Código de Menores, ou seja, agrupa-se à necessidade especial o duplo mecanismo, constitucional e de políticas públicas. Igualmente, extirpa-se do ordenamento em toda sua carga de preconceitos o termo “menor”, para definitivamente marcar a mudança introduzida pelo texto constitucional (LAMENZA, 2011, p. 11).

É preciso lembrar que uma ruptura paradigmática traz consigo a proposição de outros problemas antes desconhecidos ou desconsiderados, mas ao mesmo tempo abandona problemas antes selecionados como relevantes. Isso pode ser observado com clareza na comparação entre os problemas teóricos propostos pelas duas doutrinas e, essencialmente, pela substituição dos objetos, métodos e técnicas de estudos. Sob este aspecto o Direito da Criança e do Adolescente apresenta poucas relações com o modelo do Direito do Menor, pois estão constituídos por valores, princípios, regras, métodos e problemas científicos radicalmente diferenciados, daí se poder afirmar que a contraposição dialética das duas doutrinas produziu uma verdadeira teoria, capaz de ser aferida por meio de métodos, técnicas e procedimentos científicos. (CUSTÓDIO, 2008, p. 29)

Apenas como adendo, cabe aludir que a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança foi mais um exemplo que influenciou a Constituição de 1988, a qual trouxe no seu artigo 227 o que muitos chamaram de uma síntese da Convenção recém-mencionada. No dispositivo em comento, há associação de responsabilidade compartilhada de todos os entes sociais, pelo desenvolvimento humano-social de crianças e adolescentes, exigindo por parte dos compromissários não somente um comportamento restritivo, no sentido da proteção de direitos, mas também positiva, a fim de efetivar direitos fundamentais. Portanto, infere-se que a proteção integral enquanto teoria de base estrutura “novo direito” (VERONESE, 2012, p. 49-50), com-

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pletamente apartado das raízes menoristas, repressivas e apoiadas na violência como prática permissiva, determinando que todos são responsáveis pelo “cuidado e garantia de condições para que crianças e adolescentes possam exercer sua cidadania, com dignidade” (COSTA, 2012, p. 131).

Essa premissa da teoria da proteção integral é complementada pelo sistema estruturado para infância (sistema de garantias), ou seja, não ocorre somente uma alteração de paradigma, mas também a combinação com mecanismos de efetivação e concretização dos direitos e garantias. Estando todo esse pensamento alinhado por bases como o melhor interesse da criança e o desenvolvimento peculiar, os quais são exemplificações de uma articulação ímpar pautada pelo reconhecimento e pelo respeito a crianças e adolescentes.

Diante disso, a teoria da proteção integral tem a potencialidade modificativa de grande proporção, especialmente quando comparada antagonicamente à postura antecessora, mais discriminante e menos inclusiva, por isso as palavras de Costa (2011, p. 857-858) sintetizam o pensamento constitucional inclusivo e especialmente protetivo dos direitos infanto-juvenis: A Constituição Brasileira estabelece, portanto, como sistema máximo de garantias, direitos individuais e sociais, dos quais são titulares todas as crianças e adolescentes, independente de sua situação social, ou mesmo de sua condição pessoal e de sua conduta. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Estado a efetivação destes direitos, assegurando as condições para o desenvolvimento integral de quem se encontra nesta faixa etária. Portanto, o estágio de desenvolvimento humano do público infanto-juvenil, em razão de suas peculiaridades, justifica um tratamento especial.

Tão somente como reforço, cabe frisar que a visão ora trabalhada entende pelo total distanciamento entre a nova fundamentação dos direitos da criança e do adolescente, a teoria da proteção

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integral e a sua antecessora – a chamada doutrina da situação irregular – e o menorismo. Esta observação tem como fundamento autores “manualescos” que não reconhecem verdadeiras diferenças entre os dois marcos teóricos, vislumbrando-os quase como a mesma coisa, fato este totalmente desconectado dos propósitos inclusivos e humanitários do novo baluarte axiológico utilizado (CUSTÓDIO, 2008, p. 29).

No entanto, inexiste demérito em afirmar que a teoria da proteção integral não é contida em um conceito fechado (ceder a isso seria manter necessidade latente do pensamento positivista), sendo sim aberta de forma transdisciplinar (RAMIDOFF, 2007, p. 83) e igualmente amparada pelas bases do respeito, liberdade e dignidade, estabelecidas tanto pelo texto constitucional quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Este último compondo o quadro normativo de duplo ensejo, por meio da garantia de direitos à infância e, ao mesmo tempo, do conjunto de instrumentos de proteção contra ameaças a esses direitos (RAMIDOFF, 2007, p. 21). Dito isso, compreende-se que, por meio dessa nova base, a teoria da proteção integral e esse novo sistema, a criança e o adolescente passam enfim a terem seus direitos garantidos, e a família e o Estado como agentes protetores desses direitos. Sem dúvidas que, no âmbito da efetividade destes, muito ainda deve ser feito, levando em consideração que a sociedade ainda traz em seu inconsciente a cultura histórica menorista, que resulta em muitos defensores da punição, do trabalho infantil como forma de afastar a criança da marginalidade ou ainda dos castigos corporais como forma de educação, assim como já se mencionou neste estudo.

O importante é que essa nova visão da teoria da proteção integral já trouxe muitos benefícios no campo jurídico infanto-adolescente, mas não é – e não deve ser – estática, levando em consideração que parcela considerável das crianças brasileiras ainda vive em situação de exclusão devido à sociedade brasileira possuir uma base histórica de desigualdade, sendo por isso essencial que se

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analise e trabalhe muito ainda no sentido de alcançar a igualdade e a proteção para o pleno desenvolvimento delas.

Nesse desiderato, a preocupação com a questão, muitas vezes silenciosa, da violência intrafamiliar é algo que demanda não somente a estruturação de um pensamento fundado na teoria da proteção integral, mas também da associação de esforços e mecanismos, como as políticas públicas para alteração desse panorama. 4

A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇA E O ADOLESCENTE EM CONTRAPARTIDA À TEORIA DA PROTEÇÃO INTEGRAL

Ao se pensar em violência contra a criança e o adolescente, é comum ter como primeira imagem a agressão física; no entanto, tal conceito é extremamente abrangente, podendo ser ela uma violência física, como citado, mas também sexual, o abandono físico e/ ou emocional, a negligência no que se refere à saúde, alimentação, educação e proteção e a violência psicológica, ou seja, trata-se de uma concepção sob a ótica social, não apenas uma transgressão por parte da família ou dos responsáveis pela criação destas, mas algo que pode ser relacionado às instituições, ao Estado e à sociedade como um todo.

Trata-se, portanto, de um conjunto de atos praticados contra a criança, agredindo-a física, social ou psiquicamente. Todos os atos que desrespeitam as condições especiais de desenvolvimento da criança e a violentam como ser humano dotado de dignidade podem ser incluídos na noção genérica de maus-tratos. (SHREIBER, 2001, p. 84)

Em síntese, entende-se por violência contra criança e adolescente o conjunto de atitudes, seja ação ou omissão, que venham a ferir o desenvolvimento biológico, psicológico e/ou social destes peculiares seres, colocando em risco sua saúde física e mental, bem

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como uma educação adequada para que possam atingir com plenitude sua vida adulta, sendo essas atitudes praticadas por qualquer ente da sociedade.

A vítima é, em geral, claramente identificável, no entanto, as testemunhas e os autores também são pessoas envolvidas no ato violento. No caso da vítima, os resultados de abuso sexual, abuso físico, abuso psicológico, negligência, exploração sexual e exploração do trabalho são bastante evidentes. A testemunha terá seu envolvimento ao presenciar a violência doméstica […]. O autor expressa sua violência pela transgressão de normas de convivência na sociedade, ou pelo rompimento com uma regra que protege o patrimônio da vida. O autor da infração decide pelo outro, utilizando de mecanismos de controle, carregados de hostilidade e agressividade, garantindo, assim, sua posição de poder. (KOLLER, 1998, p. 33)

A violência intrafamiliar, por sua vez, pode ser considerada uma das mais graves formas de violações ao direito de crianças e adolescentes, visto que tem por característica a violência que ocorre no âmbito familiar, ocasionada por pais, padrastos, irmãos, tios, mães, empregados domésticos ou qualquer outro que conviva intimamente ou pertença ao núcleo familiar. Assim, o local onde deveria ocorrer a primazia dos direitos dessas vítimas, ou seja, onde deveria ser o reduto de proteção e desenvolvimento afetivo destes, torna-se, na verdade, o lugar de seu sofrimento, onde seus desejos e vontades são violados e aprisionados. A vítima tem em seu lar um ambiente de dor, e em seus responsáveis, aqueles que deveriam lhes proteger, seus atrozes. Por essa razão, a violência intrafamiliar contra a criança e o adolescente é tão maléfica, pois a violência sofrida, neste caso, por esses peculiares seres humanos, é praticada por aqueles com quem esses infantes têm suas primeiras experiências de vida em sociedade, em outras palavras, aqueles que serão seus referenciais para a formação de sua personalidade.

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A violência doméstica ou intrafamiliar é motivo de indignação não tanto por um aspecto quantitativo, ou seja, pelo número de casos em ela ocorre, mas pelas formas cruéis em que ela se dá e, principalmente, pelo fato mesmo de ocorrer dentro da família, ou seja, pelo fato de que as pessoas que atentam, de uma forma ou de outra, contra a criança ou o adolescente sejam as pessoas de sua convivência mais íntima, aquelas que o colocaram no mundo, aquelas em que a criança ‘naturalmente’ confia, aquelas de que ela depende totalmente […]. (VERONESE; COSTA, 2006, p. 102)

Destarte, as consequências da violência intrafamiliar no desenvolvimento dessas crianças e adolescentes são devastadoras e na maioria das vezes de difícil diagnóstico, principalmente quando esta é praticada durante os primeiros anos de vida. A criança em tenra idade, que sofrer violência, seja por ação ou por negligência, não conseguirá distinguir entre o que lhe faz bem e o que lhe faz mal, assim, por desconhecer qualquer outra forma de vínculo afetivo, acaba por entender a violência como a única configuração de relacionamento entre seus pais ou responsáveis, diminuindo as chances de que ela busque ajuda de outras pessoas, já que o vínculo de violência gera consigo a dependência afetiva, acabando por provocar um sentimento de culpa na criança ou adolescente violentado, que não deseja o afastamento do agressor do seio familiar. Formando um círculo doentio, no qual a vítima permanece em silêncio para não romper o laço afetivo com seu agressor, esperando apenas que a violência cesse. As pessoas submetidas à violência intrafamiliar, principalmente as mulheres e crianças, muitas vezes culpam-se de serem responsáveis pelos atos violentos, percepção que é reforçada pelas atitudes da sociedade. (OMS/OPAS, 1991, p. 105)

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Não há como definir uma única razão para a violência intrafamiliar, pois estas são diversas, não se restringem a uma classe social, grupo econômico ou político, diferentemente do abandono material de crianças, que se explica quase exclusivamente pela desigualdade social, assim, ocorrendo basicamente em famílias de baixa renda, gerando inúmeras vítimas que sofrem pela fome, ausência de abrigo, exposição a doenças e demais situações de negligência. A violência intrafamiliar, por sua vez, não escolhe um “biótipo” de família, seus agressores encontram-se em todas as esferas sociais. […] embora haja uma certa sobreposição entre crianças vitimadas e vitimizadas, o processo de vitimação atinge exclusivamente filhos de famílias economicamente desfavorecidas, enquanto o processo de vitimização ignora fronteiras econômicas entre classes sociais, sendo absolutamente transversal, de modo a cortar verticalmente e sociedade. (SAFFIOTI, 2007, p. 15)

Todavia, há um fator determinante para a incidência dessa prática, que se encontra na ideia de poder que o adulto exerce sobre a criança ou adolescente.

[…] numa transgressão do poder disciplinador do adulto, convertendo a diferença de idade adulto versus criança/ adolescente, numa desigualdade de poder intergeracional; numa negação do valor liberdade: exigindo que a criança/o adolescente sejam cúmplices do adulto, num pacto de silêncio; num processo que aprisiona a vontade e o desejo da criança ou do adolescente, submetendo-os ao poder do adulto, coagindo-os a satisfazer os interesses, as expectativas e as paixões deste. Em síntese, a VDCA: é uma violência interpessoal; é um abuso do poder disciplinador e coercitivo dos pais ou responsáveis; é um processo que pode se prolongar por vários meses e até anos; é um processo de completa objetalização da vítima, reduzindo-a à condição de objeto de tratamento abusivo; é uma forma de violação

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dos direitos essenciais da criança e do adolescente enquanto pessoas e, portanto, uma negação de valores humanos fundamentais como a vida, a liberdade, a segurança; tem na família sua ecologia privilegiada. Como esta pertence à esfera do privado, a Violência Doméstica acaba se revestindo da tradicional característica de sigilo. (AZEVEDO apud BARROS, 2005, p. 38)

Ao sentir-se hierarquicamente acima da criança, o adulto acredita deter poder sobre ela, acreditando que esta deve apenas lhe obedecer, sem contestar, tal qual o subordinado ao seu chefe. É desse sentimento que surge a sensação de “poder” que faz com que o adulto, sem uma preocupação maior com os desejos ou necessidades específicas dessa fase peculiar de desenvolvimento da criança ou do adolescente, queira tão somente transformá-la em uma reprodução de si mesmo, acabando, na verdade, transferindo para a vítima dessa relação, suas frustrações e insatisfações perante a vida.

Ao meu ver, o pequeno poder é potencialmente mais perigoso que o macropoder. Este último, não obstante castrar possibilidades de prazer, infunde em seu detentor uma sensação de plenitude. São tão numerosos, e por isso quase sempre massas anônimas os adultos sobre os quais exerce poder, ele não tem necessidade de atuar contara a criança, afim de se afirmar. Ao contrário, o pequeno poder, exatamente em função de sua pequenez, conduz, frequentemente, à síndrome caracterizada pela mesquinhez. (AZEVEDO; GUERRA, 2007, p. 19)

É nesse contexto das relações adultocêntricas, em que a criança é vista como objeto de poder pelo adulto e acaba submetida aos desejos deste, suprimindo-a enquanto sujeito, sendo assim violentada e mantida aprisionada pelo medo, que a violência intrafamiliar se mantém arraigada na cultura social de educação, unindo-se a isso as concepções menoristas de outrora, infringindo,

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 67

assim, o princípio basilar do Direito da Criança e do Adolescente e também constitucional, ou seja, a teoria da proteção integral.

Portanto, verifica-se que no tocante à violência intrafamiliar há ainda a necessidade de compreensão do potencial da dimensão modificativa trazida pela teoria da proteção integral, a qual resulta na desconstrução da visão opressora e de poder sobre crianças e adolescentes, recepcionando um pensamento inclusivo e reconhecedor da criança ou do adolescente como sujeito de direitos e não mais como objeto da família, da sociedade e do Estado. Isso significa que, no tocante à violência contra infância no seio familiar, a teoria da proteção integral ainda carece de produção dos seus efeitos, podendo ser expandida como fator de garantia de direitos fundamentais. 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência intrafamiliar possui uma relação íntima com as antigas concepções jurídicas existentes no Brasil em séculos passados. Por essa razão, combatê-la é tarefa árdua, pois implica modificações de valores antigos que viam a criança e o adolescente de forma submissa ao adulto, em que o castigo, a repressão e o medo eram a única forma de educar e desenvolvê-los para a vida em sociedade.

A exposição externada até este ponto trouxe um aporte considerável de aspectos, os quais auxiliam na compreensão dessas condutas, adotadas em períodos anteriores e as suas motivações, turvadas por pensamentos pseudocientíficos de legitimação da violência. Isso significa que a superação dos dogmas históricos e culturais é uma situação imperiosa na visão jurídica nacional, não se podendo mais aceitar menorismos disfarçados de proteção integral, sob pena de galgar um caminho disforme na proteção de crianças e adolescentes. É imperioso pensar que seja qual for a violência, física, sexual, psicológica ou a simples negligência, sofrida por crianças ou

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adolescente, jamais deve ser medida por grau de gravidade, pois não há como se classificar tais agressões com maior ou menor importância. Todas são e serão extremamente prejudiciais ao desenvolvimento desses seres humanos.

Por essa razão, o avanço alcançado com a teoria da proteção integral, em conjunto com o Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecendo essas criança e adolescentes como sujeitos de direitos, devendo ser tratados com prioridade absoluta, se faz tão importante, tal modificação doutrinária que sustenta o Direito da Criança e do Adolescente se dá em sentido semelhante a todo o texto constitucional, pois pretende não somente a alteração do suporte ético-jurídico, mas também uma alteração cultural e fática na sociedade.

Nesse sentido, há necessidade de alteração na perspectiva de perpetuação de violência contra crianças e adolescentes, sofridas em especial no âmbito familiar, e que por muito tempo foram abafadas pelo desprezo desses singulares indivíduos. Por fim, cabe mencionar que esta pesquisa se demonstra como um passo inicial no rumo da garantia, proteção e no combate à violência contra crianças e adolescentes impetrada no seio familiar, a qual terá como baluartes as bases constitucionais, sendo primordial a participação de corpo social para que tais direitos sejam garantidos, almejando assim um futuro digno da singularidade e peculiaridade destes inestimáveis seres humanos da sociedade brasileira. REFERÊNCIAS

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RAMIDOFF, Mário Luiz. Direito da criança e do adolescente: por uma propedêutica jurídico-protetiva transdisciplinar. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. RIZZINI, Irene; BARKER, Gary. Promises Kept, Promises Broken: Recent Political and Economic Trends Affecting Children and Youth in Brazil. In: Globalization and Children Exploring Potentials for Enhancing Opportunities in the Lives of Children and Youth. New York: Kluwer Academic Publishers, 2004.

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SHEREIBER, Elisabeth. Os direitos fundamentais da criança na violência intrafamiliar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Os direitos da criança e do adolescente: construindo o conceito de sujeito-cidadão. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (Orgs.). Os “novos” direitos no Brasil: natureza e perspectivas – uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, 2012. _____; COSTA, Marli Marlene Moraes da. Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente – uma leitura interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC, 2006.

A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES: DAS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS

Rafael Bueno da Rosa Moreira Mestre em Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes (Grupeca/ Unisc) e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (Unisc), Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera/UNIDERP, Professor do Curso de Graduação da Universidade da Região da Campanha – URCAMP/Alegrete e Bagé. Coautor do Projeto de Pesquisa em Direitos Sociais: desafios no efetivo cumprimento dos direitos de 2ª geração no Brasil (URCAMP/Alegrete) e Coordenador do Grupo de Estudos em Direito e Inclusão Social (URCAMP/Alegrete). E-mail: [email protected]

Suzéte da Silva Reis Doutoranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – Unisc. Mestre em Direito – Área de Concentração Políticas Públicas de Inclusão Social, pela mesma Universidade. Membro dos Grupos de Pesquisa “Direito, Cidadania e Políticas Públicas” e “Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens”, ambos ligados ao PPGD – Mestrado e Doutorado em Direito da Unisc. Professora de Direito do Trabalho da Unisc. Professora de Cursos de Especialização em diversas instituições de ensino superior. Advogada. E-mail: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo tem por objetivo averiguar os principais elementos contidos no problema da violência intrafamiliar e as afetações das crianças e adolescentes. A análise do tema será feita a partir dos pressupostos teóricos que fundamentam o Direito da Criança e do Adolescente, especialmente a partir da base epistemológica da teoria da proteção integral.

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A promulgação da Constituição Federal de 1988 foi um marco para a garantia de efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. A consagração da teoria da proteção integral, com a consequente superação da doutrina da situação irregular, teve repercussões importantes, tanto no âmbito legislativo, executivo e judiciário.

Ao estabelecer que crianças e adolescentes, indistintamente, são sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, são alvo da proteção da família, da sociedade e do Estado, o texto constitucional, influenciado por normativas internacionais, promoveu o reordenamento das políticas públicas voltadas à consecução dos direitos fundamentais da população infanto-juvenil.

O dever de proteção, na tríplice perspectiva desenhada pelo ordenamento jurídico, em especial pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, implica um olhar amplo sobre a infância e a juventude, incluindo, nesse aspecto, as próprias relações familiares. A violência intrafamiliar, incluindo a violência física, sexual, moral ou psicológica, a tortura, o abandono, além de outras formas, e que atinge um número significativo de crianças e adolescentes, exige, por parte daqueles que têm o dever de assegurar os direitos fundamentais, uma ação eficaz voltada ao combate dessa forma de violência. 2

O CONTEXTO DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Desde a redemocratização do país, o Brasil vem consolidando uma adequada proteção jurídica a direitos de crianças e adolescentes. Com base na teoria da proteção integral, o país garantiu uma diversidade de direitos para a proteção da infância desde o ordenamento jurídico constitucional, devendo ser assegurados de forma universal e igualitária. Além disso, foi instituído o Estatuto da Criança e do Adolescente e foram ratificadas inúmeras convenções internacionais de proteção a direitos da criança e do adolescente, que visam possibilitar o desenvolvimento integral.

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Os direitos da criança e do adolescente estão protegidos no ordenamento jurídico internacional e nacional. Se tratando de proteção contra violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, destacam-se os institutos previstos na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Convenção sobre Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas – ONU, ratificada pelo Brasil. A Convenção sobre Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas previu que os direitos nela dispostos deverão ser assegurados à universalidade de crianças e adolescentes de forma igualitária, conforme o disposto no artigo 2º: 1. Os Estados Partes respeitarão os direitos enunciados na presente Convenção e assegurarão sua aplicação a cada criança sujeita à sua jurisdição, sem distinção alguma, independentemente de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra índole, origem nacional, étnica ou social, posição econômica, deficiências físicas, nascimento ou qualquer outra condição da criança, de seus pais ou de seus representantes legais. 2. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar a proteção da criança contra toda forma de discriminação ou castigo por causa da condição, das atividades, das opiniões manifestadas ou das crenças de seus pais, representantes legais ou familiares. (ONU, 1989)

Foram asseguradas pela Convenção sobre os Direitos das Crianças distintas garantias: a proteção contra qualquer forma de castigo ou de discriminação (art. 2º); os direitos à saúde e à segurança (art. 3º); a proteção do bem-estar social (art. 3º); os direitos ao desenvolvimento e à vida (art. 6º); o direito a convivência familiar harmônica (art. 9º); o direito à liberdade de expressão (art. 13); o direito à educação gratuita e acessível na idade certa (arts. 18 e 28); a proteção contra todas as formas de violência física ou mental (art. 19); o direito ao descanso e ao lazer (art. 31); o direito à saúde (arts. 24 e 25); o direito ao não trabalho, a prote-

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ção contra a exploração econômica e o direito ao trabalho regular, conforme as condições pertinentes à idade (art. 32); entre outros direitos (ONU, 1989).

A Convenção foi um marco internacional na busca pela efetivação de uma pluralidade de direitos com o objetivo de possibilitar a proteção integral de direitos para garantir o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, indivíduos que se encontram em situação peculiar de pessoal em desenvolvimento (moral, físico, psicológico, social, intelectual e cultural) (CUSTÓDIO; VERONESE, 2013). A Constituição Federal previu no artigo 227 os direitos fundamentais da criança e do adolescente, garantindo os princípios da proteção integral, da tríplice responsabilidade compartilhada e da prioridade absoluta no Brasil, instituindo como dever para a família, para a sociedade e para o Estado a efetivação dos direitos fundamentais da criança e adolescente com prioridade absoluta: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)

O Estatuto da Criança e do Adolescente também previu a proteção integral no seu artigo 1º: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (BRASIL, 1990). Assim como disciplinou a proteção integral, mediante tríplice responsabilidade compartilhada, assegurando a prioridade absoluta no tratamento: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade,

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a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990)

O Estatuto da Criança e do Adolescente ainda dispôs em um título próprio sobre os “Direitos Fundamentais” de crianças e adolescentes, assegurando o direito à vida e à saúde; o direito à dignidade, à liberdade ou ao respeito; direito à convivência familiar e comunitária; o direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer; o direito à profissionalização (BRASIL, 1990).

Portanto, tais dispositivos têm por objetivo disciplinar a proteção jurídica para possibilitar a efetivação do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Como princípio fundamental previsto em lei, foi adotada a teoria da proteção integral, que é o instrumento concretizador de direitos e protetivo, que tem por finalidade o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeito de direitos. A pluralidade de legislações e de direitos, bem como a instituição da teoria da proteção integral, possibilitou a garantia de efetivação de crianças e adolescentes como sujeitos direitos no Brasil, reconhecendo a proteção especial tendo em vista a situação peculiar de pessoa em desenvolvimento.

No entanto, inúmeras são as ocorrências de todo tipo de violência contra crianças e adolescentes, sujeitos que vêm sofrendo distintas formas de abusos, explorações, agressões e outras violências. A ocorrência de violência contra crianças e adolescentes em ambientes familiares no Brasil vem fazendo muitas vítimas, o que gera a situação de violação de direitos e é um complexo problema a ser enfrentado pelo Estado, por meio de suas políticas públicas. Entre os principais tipos de violência contra crianças e adolescentes, o Mapa da Violência contra Crianças e Adolescentes no Brasil expôs, com base no Sistema de Informação de Agravos de No-

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tificação – SINAN, do Ministério da Saúde, o número de atendimentos por violência no Sistema Único de Saúde – SUS no ano de 2011. Nele foram identificados a violência física, a sexual, a moral ou psicológica, a tortura, o abandono e outras formas de violência como as que foram praticadas contra crianças e adolescentes e atendidas pelo exercício da política pública de saúde, por meio dos gestores e atendentes do Sistema Único de Saúde.

Verificou-se que foram realizados 33.327 atendimentos de crianças e adolescentes vítimas de qualquer forma de violência, pela política pública de atendimento à saúde no ano de 2011 no Brasil. É importante salientar que os dados representam somente os casos que foram atendidos pelas políticas públicas, havendo uma cifra oculta das crianças e adolescentes que sofreram violências e não foram atendidas pelo sistema de saúde (WAISELFISZ, 2012, p. 62; 67). Assim, o Mapa demonstrou expressamente que:

Tem que ser considerado que os quantitativos registrados pelo SINAN representam só a ponta do iceberg das violências cotidianas que efetivamente acontecem: as que demandam atendimento do SUS e que, paralelamente, são declaradas como violência. Por baixo desse quantitativo visível, um enorme número de violências cotidianas nunca chega à luz pública. (WAISELFISZ, 2012, p. 62)

Portanto, o SINAN registrou em 2011 a soma de 21.279 casos de violência física, 10.425 casos de violência sexual, 9.948 casos de violência moral, 8.275 casos de abandono, 992 casos de tortura e 2.596 casos de outros tipos de violência (não sendo expressado o tipo). Salienta-se que na estatística poderiam ser marcadas mais de uma alternativa ao mesmo tempo, havendo a possibilidade de realizar registros de vários tipos de violência em uma mesma notificação (WAISELFISZ, 2012, p. 67).

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 77

Quadro 1 – Atendimentos por tipo de violência Número de atendimentos de crianças e adolescentes por tipo de violência Tipo

Física

Sexual

Quantidade

21.279

10.425

Moral

Abandono

9.948

Tortura

8.275

Outros

992

2.596

Fonte: SINAN/ SVS/ MS/ Mapa da violência contra crianças e adolescentes no Brasil.

Dentre os locais onde ocorreu a violência, foi registrado a residência como local com maior número de notificações, totalizando 21.041 (vinte e um mil e quarenta e um) notificações. A residência como local de ocorrência de violência possui um percentual muito alto, maior que todos os outros locais identificados, o que evidencia que a violência intrafamiliar é a principal forma de violência contra crianças e adolescentes no Brasil (WAISELFISZ, 2012, p. 66). Quadro 2 – Atendimentos segundo o local de ocorrência

Número de atendimentos de crianças e adolescentes por violência segundo o local de ocorrência Local Quantidade

Residência 21.041

Via Pública 6.037

Outros 4.056

Escola 1.563

Bar 630

Fonte: SINAN/ SVS/ MS/ Mapa da violência contra crianças e adolescentes no Brasil.

Destaca-se, também, que a violência intrafamiliar é mais difícil de chegar ao conhecimento público, sendo, na maioria das vezes, de difícil identificação. Os pais tem o dever de cuidado e de educação de seus filhos, mas quando da ocorrência de violência o medo começa a fazer parte da rotina de crianças e adolescentes, dificultando o seu desenvolvimento e a busca por ajuda. Assim, se verifica que quem devia proteger é quem em muitos casos violenta e explora, ocasionando consequências irreparáveis ao desenvolvimento integral de crianças e de adolescentes.

Foi garantida na Constituição da República Federativa do Brasil proteção especial do Estado à família, prevendo-na como base da sociedade, como consta no § 4º do artigo 226: “Entende-se,

78 Rafael Bueno da Rosa Moreira & Suzéte da Silva Reis

também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes” (BRASIL, 1988).

Destaca-se o conceito de violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: […] todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. (GUERRA, 2001, p. 32-33)

O Mapa identificou, com base nos dados do SINAN, que os pais e os demais membros da família são os maiores violentadores de crianças e adolescentes, reforçando que a violência intrafamiliar é praticada por distintos membros da família (WAISELFISZ, 2012, p. 73). Quadro 3 – Atendimentos segundo relação com o agressor Número de atendimentos de crianças e adolescentes por qualquer tipo de violência segundo relação com o agressor Relação

Número de atendimentos

Percentual de atendimentos

Pai

5.354

14,8

Mãe

7.471

19,7

Padrasto

1.880

4,9

Madrasta

186

0,5

Cônjuge

1.035

2,7

Ex-cônjuge

347

0,9

Namorado

1.103

2,9

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 79

Ex-namorado

359

0,9

Irmão

1.012

2,7

Amigo/conhecido

6.682

17,6

Desconhecido

4.586

12

Outros

8.021

21,1

Total

38.036

100

Fonte: SINAN/ SVS/ MS/ Mapa da violência contra crianças e adolescentes no Brasil.

Portanto, identificou-se pela política pública nacional que, em aproximadamente 50% dos casos de violência contra crianças e adolescentes, o violentador convivia em relações familiares com a vítima. O pai e a mãe são os principais agressores do ambiente familiar. Nas notificações que identificaram a relação da vítima com o agressor, era possível ser identificado mais de um agressor (WAISELFISZ, 2012, p. 73).

No contexto geral descrito, verificou-se que os percentuais de violência intrafamiliar são consideráveis, expondo índices altíssimos de casos nos quais o agressor é membro da família. Frisa-se que no tópico “outros” poderá haver mais pessoas que tenham algum relacionamento familliar, como: avós, avôs, primos(as), tios(as).

O índice de reincidência registrado para o atendimento por violência foi de 10.584 casos, enquanto 22.473 não eram reincidentes (WAISELFISZ, 2012, p. 66-67).

A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes deverá ser enfrentada por uma diversidade de políticas públicas com distintas finalidades. Assim, a implementação de políticas públicas de proteção, atendimento, justiça e promoção de direitos, que estão previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, são fundamentais para a efetivação de direitos de crianças e adolescentes.

A proteção jurídica das políticas públicas, assim como o compromisso em desenvolvê-las, estão tutelados basicamente no Esta-

80 Rafael Bueno da Rosa Moreira & Suzéte da Silva Reis

tuto da Criança e do Adolescente e na Convenção sobre Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas.

O artigo 70 do Estatuto previu o dever universal de atuação na prevenção da ocorrência de qualquer violação ou ameaça de direitos a crianças e adolescentes (BRASIL, 1990).

Já a Convenção previu no artigo 19 a obrigatoriedade de os Estados Partes adotarem medidas para proteção contra qualquer forma de violência seja ela de natureza “[…] física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela” (ONU, 1989). As medidas de proteção devem ser de natureza legislativa, administrativa, social e educacional, se observando os mais diversos procedimentos para elaboração adequada de políticas públicas de assistência destinada à criança e às pessoas encarregadas por seu cuidado, quando da ocorrência de violência (ONU, 1989). O comprometimento dos países signatários em adotarem políticas públicas voltadas à infância encontra-se previsto no artigo 39 da Convenção, dispondo sobre a finalidade de “[…] estimular a recuperação física e psicológica e a reintegração social de toda criança vítima de qualquer forma de abandono, exploração ou abuso; tortura ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; ou conflitos armados” (ONU, 1989).

O desenvolvimento de políticas públicas no âmbito nacional é importante para garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e para enfrentar a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes. No Brasil, são previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente políticas públicas que visam à proteção da infância e a garantia de direitos. Encontram-se dispostas no Estatuto políticas públicas interdisciplinares e descentralizadas nos municípios, devendo ser realizadas primando pela articulação no seu desenvolvimento e concretizando uma rede de atuação (BRASIL, 1990).

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 81

Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, órgão que deverá existir no âmbito nacional, estadual e municipal, têm como função o planejamento das políticas públicas de atendimento à saúde, à educação, à assistência social, à cultura, ao esporte e ao lazer, agindo para a efetivação desses direitos sociais e para o enfrentamento a violência intrafamiliar, notificando as ocorrências, atendendo e realizando o acompanhamento das vítimas, bem como encaminhamentos a outras políticas/órgãos (BRASIL, 1990).

Os conselhos tutelares são os principais executores da política de proteção, que tem como objetivo a garantia a proteção integral de crianças e adolescentes. Os Conselhos podem aplicar distintas medidas de proteção disciplinadas no Estatuto da Criança e do Adolescente para assegurar a proteção desses sujeitos, assim como podem realizar acompanhamentos, encaminhamentos e medidas emergenciais, tendo um papel fundamental no enfrentamento a violência intrafamiliar (BRASIL, 1990). O Ministério do Trabalho e Emprego também age na política de proteção quando da sua competência, mais especificamento no enfrentamento ao trabalho infantil. As políticas públicas de justiça e de promoção de direitos atuam, respectivamente na garantia de um amplo acesso à justiça e na garantia e promoção de direitos humanos de crianças e adolescentes (BRASIL, 1990).

O conjunto de políticas públicas destinadas a crianças e adolescentes forma o sistema de garantia de direitos. A atuação articulada desse sistema, mediante uma diversidade de estratégias, é fundamental para o enfrentamento a violência intrafamiliar e para a garantia de direitos de crianças e adolescentes no Brasil. Entretanto, mesmo com as diversas estratégias que estão sendo construídas pelo Estado, não se pode eximir a reponsabilidade da família e da sociedade nesse processo. Os outros membros da família que não agressor tem o dever de notificar as políticas públicas a ocorrência da violência intrafamiliar e contribuir para a sua extinção, assim como os membros da sociedade que identificarem situações

82 Rafael Bueno da Rosa Moreira & Suzéte da Silva Reis

de violência intrafamiliar. As notificações deverão ser realizadas de forma anônima ou identificada ao Conselho Tutelar ou ao Disque 100, política pública de denúncias contra direitos humanos em nível federal. 3

DAS CAUSAS PARA A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A violência intrafamiliar é um problema que afeta o desenvolvimento integral de inúmeras crianças e adolescentes no Brasil, sujeitos que se encontram em situação peculiar de pessoa em desenvolvimento e necessitam de proteção especial. Tal violência se manifesta de diferentes formas, podendo ocorrer por:

1. Negligência: quando os pais ou responsáveis se omitem em garantir os cuidados e em possibilitar que as necessidades de crianças e adolescentes sejam satisfeitas. Poderá ocorrer se expressando pela “[…] indiferença e pela rejeição afetiva, manifestadas por humilhações e depreciações constantes que bloqueiam os esforços de autoaceitação da criança” (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 27). Em decorrência de relacionamentos afetivos, muitas vezes, as crianças ou os adolescentes são colocados em segundo plano, tendo em vista que, em alguns casos, não há uma boa aceitação de filhos de um antigo relacionamento por parte do novo companheiro, gerando negligência e violências.

2. Abusos Físicos: a violência física decorre, geralmente, da busca “falaciosa” da violência como forma de punição ou disciplina, sendo utilizados para agressão, além dos próprios membros, os mais diversos instrumentos como: cintos, fivelas, cordas, varas, chinelos, entre outros instrumentos que deixam as suas cicatrizes, fraturas e hematomas (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 27). Destaca-se que a violência como punição ou disciplina é um mito que deve ser combatido pela ciência, pois jamais a violência será um indicativo benéfico para o desenvolvimento pessoal, ocasionando, em contrapartida, os mais distintos traumas. A violência física também

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 83

decorre do vício em álcool ou outras drogas, assim como outros problemas familiares de violência. 3. Abusos Psicológicos ou Morais: é uma forma de violência que será consequência das outras modalidades, mas também poderá ocorrer de maneira isolada. É um tipo de violência que não deixa sinais visíveis, sendo muito difícil de ser visualizada ou documentada (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 27). 4. Abusos Sexuais: são todos os atos ou relações destinados a satisfação do prazer sexual realizado com crianças ou adolescentes, quando estas não compreendem e/ou não consentem. Poderá ser com ou sem contato físico e com ou sem emprego de força física (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 27).

Além da falsa crença de que a violência poderá disciplinar, existem outros mitos que geram, primordialmente, a violência psicológica ou moral, e causam consequências ao desenvolvimento integral, que são aqueles relacionados ao trabalho infantil. “O primeiro mito: é melhor trabalhar do que roubar”; “O segundo mito: o trabalho da criança ajuda a família”; “O terceiro mito: é melhor trabalhar do que ficar nas ruas”; “O quarto mito: lugar de criança é na escola”; “O quinto mito: trabalhar desde cedo acumula experiência para o futuro”; “O sexto mito: é melhor trabalhar do que usar droga”; “O sexto mito: trabalhar não faz mal a ninguém” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2013, p. 93-108). Assim, verifica-se que fatores culturais, por meio da persistência de mitos, influenciam a ocorrência de violência como forma de disciplina. A violência tem seu início no ambiente intrafamiliar e traz as mais diversas consequências para o desenvolvimento integral. A violência intrafamiliar é um problema que se desenvolve no transcorrer dos anos a partir de relações de poder, gênero, etnia e classe social. A violência intrafamiliar é “uma expressão extrema da distribuição desigual de poder entre homens e mulheres, da distribuição desigual de renda e da discriminação de raça social” (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 26). Ou seja, a desigualdade social e a exclusão social, situações causadas pelo sistema econômico em um

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modo de produção capitalista globalizado, ocasionam situações de violências. Os problemas decorrentes da exploração de uma família pelo modo de produção capitalista globalizado que impedem uma vida com qualidade, devido a falta de tempo, de capital, ao endividamento, entre outros problemas que acabam gerando consequências nas relações familiares. A dominação de classes, de gênero, de raça, o autoritarismo nas relações entre crianças, adolescentes e adultos, o desemprego, a pobreza, a extrema pobreza, as más condições de vida são fatores facilitadores para a ocorrência da situação de violência (PEDERSEN; GROSSI, 2011, p. 27). Deve-se esclarecer que a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes ocorre em todas as classes sociais, no entanto, nas classes mais altas há menor visibilidade por parte das políticas públicas e há menos facilitadores para a ocorrência, pois não a situação de exclusão social. Pedersen e Grossi (2011, p. 28-29) elencam como causas para a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes: dependência e excesso de álcool e outras drogas, problemas genéticos, problemas neurológicos, problemas psicológicos de membros da família, problemas relacionados a um histórico de violência doméstica, despreparo para a maternidade/paternidade, gravidez indesejada, utilização de práticas rígidas e autoritárias com o intento de educar, isolamento social familiar, utilização de práticas hostis, desprotetoras ou negligentes. A perpetuação da situação de pobreza ou de extrema pobreza da família podem, também, desencadear a violência intrafamiliar, tendo em vista que os problemas econômicos, a falta de alimentação, a falta de privacidade, a falta de trabalho, a falta de moradia, a falta de atendimento à saúde, a falta de atendimento educacional, a frustração social e outros problemas que decorrem da situação de pobreza ou extrema pobreza causam a fragilização social da família, gerando situações estressantes para o desenvolvimento de crianças e adolescentes o que pode ocasionar a violência intrafamiliar.

O Brasil possui altíssimos índices de desigualdade social que são históricos e que não diminuem sensivelmente no atual modelo

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 85

econômico capitalista globalizado. As desigualdades sociais geram exclusão social as famílias, o que aumenta as situações de violência em decorrência da falta de acesso as necessidades para uma vida em sociedade.

O atual modelo capitalista adequa a produção de acordo com os desejos burgueses, incentivando o consumismo, acentuando a competitividade e excluindo socialmente aqueles que não estão inseridos ao modelo de produção capitalista. Essa sistematização é fruto das ideias das classes dominantes, que impõem as suas intenções de maneira exploratória as classes dominadas, mantendo os seus interesses e perpetuando a situação de dominação dos detentores do poder econômico (MARX; ENGELS, 2003, p. 29-30; 44-46). Assim, o interesse capitalista global se perpetua em qualquer civilização, ocasionando violência, exploração de pessoas e padronização de condutas, tudo para garantir as intenções econômicas dominantes. No atual sistema econômico, não se medem as consequências, o que mais importa para a manutenção dos interesses capitalistas é o crescimento da economia e a evolução patrimonial.

A globalização contribui para os interesses econômicos em âmbito mundial, mantendo-se o discurso único de sociedade ideal. Ela padroniza comportamentos sociais e modela indivíduos a contribuírem ao modelo econômico de hiperconsumismo e pouca qualidade de vida, que gera grandes lucratividades aos detentores do capital. A globalização gera competições severas, tanto entre pessoas quanto entre empresas, excluindo aqueles que não têm utilidade para o mercado. No modelo capitalista globalizado, um sujeito pobre dificilmente irá almejar evoluir em suas condições sociais (SANTOS, 2001, p. 17-18). Com a globalização, é gerada uma competitividade feroz, sem espaço para a compaixão. A principal finalidade do capitalismo é que se deverá “[…] a todo custo, que vencer o outro, esmagando-o, para tomar seu lugar”. (SANTOS, 2001, p. 46-55). A informação no mercado capitalista globalizado contribui para a padronização de condutas, garantindo o consumismo e cum-

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prindo com os objetivos capitalistas. A informação transmitida pela maioria dos meios de comunicação, ao invés de esclarecer, contribui para a confusão e para os interesses capitalistas, mediante a manipulação da verdade. Devido a interesses econômicos, a verdade e a informação são manipuladas, evidenciando a chamada “violência do dinheiro”, que busca a lucratividade econômica a qualquer preço, gerando exclusão social, pobreza, criminalidade, exploração e violência. Portanto, a sociedade capitalista é voltada ao mercado econômico, que é extremamente violento e não tem compaixão aos direitos da pessoa humana (SANTOS, 2001, p. 37-45). Para Santos (2001, p. 147), a mudança do atual sistema de exclusão depende de uma revolução no modelo de globalização, em que o ser humano será a prioridade e não mais a economia: Uma outra globalização supõe uma mudança radical das condições atuais, de modo que a centralidade de todas as ações seja localizada no homem. Sem dúvida, essa desejada mudança apenas ocorrerá no fim do processo, durante o qual reajustamentos sucessivos se imporão.

A violência do mercado está explicitada por Bauman (2008, p. 20), quando ele defende que as pessoas estão sendo consumidas pelo mercado, evidenciando a violência gerada para a garantia dos interesses do capital: “Na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria”. Os aparelhos ideológicos garantem a multiplicação de informações para a sustentação do modelo dominante capitalista globalizado, desenvolvendo indivíduos submissos e que reproduzem as informações como corretas. A formação dos indivíduos é realizada desde a infância com a intenção de reprodução do modelo dominante e de sua manutenção sem questionamentos. As pessoas recebem constantes informações de como conviver em sociedade e de como se comportar, reprimindo qualquer outra ideia (ALTHUSSER, 1969, p. 17-21; 43-52).

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 87

O sistema é perverso e violento. A economia influencia no modo de vida em sociedade, causando desigualdade e exclusão social. Em decorrência das perversidades causadas, ocorrem as mais diversas formas de violência social e intrafamiliar. E as crianças e adolescentes, por serem indivíduos em situação peculiar de pessoa em desenvolvimento, não tendo atingindo a maturidade necessária para a vida adulta, e por estarem em uma situação de submissão são as maiores vítimas de violência nesse ciclo.

A situação de submissão de crianças e adolescentes decorre do poder que possuem os adultos na atual sociedade. As crianças e adolescentes necessitam de uma proteção especial em decorrência da situação peculiar de pessoa em desenvolvimento, que deverá ser exercida pelo Estado, sociedade e família, entes que possuem o poder estatal, o poder familiar ou que possuem a maturidade da vida adulta, e que deverão proteger em vez de explorar, violentar ou abusar. No entanto, diversas são as vezes em que o poder não é utilizado para proteger e sim para violentar principalmente no ambiente intrafamiliar, pois se utiliza de todos os tipos de violência com as mais diversas intenções contra crianças e adolescentes (intenções equivocadas de “educar” mediante violência física, intenções de satisfação sexual, omissões para dedicar tempo a outras tarefas, utilização do medo como subsídio equivocado para a “educação”). Há uma dominação pelo poder de crianças e adolescentes. A verdade de quem utiliza do poder nas relações intrafamiliares não condiz com as verdades comprovadas cientificamente, e assim ocorre com a utilização da violência para a “educação” em ambientes intrafamiliares. O poder sem limites traz riscos para os que não detêm o poder, ocasionando violência, exploração e dominação. Por isso, de suma importância é a instituição de formas de limitação do poder nas relações intrafamiliares, para se prevenir a violência.

Além disso, a violência é influenciada pela atuação midiática irresponsável e que promulga a repreensão como solução, por meio de programas e apresentadores que incentivam a violência como

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solução para os problemas sociais contemporâneos brasileiros. Essas opiniões são senso comum, culturalmente aceitas, mas inverídicas cientificamente.

As deficiências nas políticas públicas também dificultam a prevenção à violência intrafamiliar e prejudicam o enfrentamento da violência após a violação de direitos. Essa falta de capacitação poderá ocorrer por não haver, na maioria dos municípios brasileiros, uma equipe interdisciplinar para atender a crianças e adolescentes vítimas de violência, assim como por falta da capacitação necessária para o desenvolvimento de atendimento interdisciplinar da vítima (AZAMBUJA; FERREIRA, 2011, p. 48-49). Portanto, a dificuldade de atuação estratégica articuldade e em rede para o enfrentamento da violência intrafamiliar nos municípios brasileiros. Por fim, verifica-se o adultocentrismo e a coisificação da infância como causas para a violência intrafamiliar:

[…] todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. (GUERRA, 2001, p. 32-33)

A coisificação da infância é o tratamento de crianças e adolescentes sem ser um sujeito de direitos, não sendo assegurados no ambiente intrafamiliar as garantias, direitos e liberdades asseguradas em lei. A criança ou o adolescente seriam tratados como um objeto pertencente a um adulto ou a um casal de adultos, podendo ser explorado ou violentando da maneira que o seu “proprietário” o desejar. No atual ordenamento jurídico nacional, mais precisamente a partir da instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, foi garantido a crianças e adolescentes a condição de sujeito de direitos, sendo assegurados, entre outros, os mesmos direi-

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 89

tos de um adulto, só que com prioridade absoluta (BRASIL, 1990). Em consequência, qualquer condição que não seja a de sujeito de direitos não é aceita pela proteção jurídica estabelecida no Brasil.

Já o adultocentrismo é o tratamento do adulto como o centro de tudo, desconsiderando a importância de crianças e adolescentes. Assim, as crianças e adolescentes teriam menos direitos e garantias, poderiam ter sua liberdade cerceada por adultos e serem explorados pelos mais diversos tipos de violência em suas relações intrafamiliares, sendo submetidos a uma forma de dominação contemporânea. 4

DAS CONSEQUÊNCIAS PARA A VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A violência intrafamiliar causa sequelas que afetam a vítima durante toda a vida. As consequências atingem o desenvolvimento físico, social e a saúde psíquica, podendo apresentar prejuízos ao longo da vida (AZAMBUJA; FERREIRA, 2011, p. 48).

Azambuja e Ferreira (2011, p. 48) expuseram dados de pesquisas que comprovaram que no Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 1997, em um universo de 1.579 crianças e adolescentes que estão vivendo nas ruas, 23,4% não voltavam para suas casas em virtude do sofrimento decorrente de maus-tratos no ambiente intrafamiliar. Portanto, a ocorrência da violência intrafamiliar poderá ocasionar uma situação de fuga para as ruas, gerando outros tipos de violência e exploração, próprias de quem vive em situação de exclusão familiar e habitacional. O sofrimento traumático de crianças e adolescentes inicia-se com a dificuldades para revelar a ocorrência da violência e permanece por longo período. As crianças e adolescentes, por não terem atingidos maturidade suficiente, por terem medo das consequências de uma revelação e por saberem das dificuldades de aceitação de que haja ocorrido a violência por um ente da família, sentem dificuldades desde o ato de informar a ocorrência de violência:

90 Rafael Bueno da Rosa Moreira & Suzéte da Silva Reis

[…] como revelar? A quem revelar? Como reagirá a família? O que ocorrerá após a revelação? O trauma decorrente da violência sexual causa alterações neuropsicológicas na criança, só lhe permitindo pensar no abuso ao longo de um processo gradual, lento, envolvendo a pressão automática que a faz lembrar e a necessidade de esquecer. (AZAMBUJA; FERREIRA, 2011, p. 50)

Alguns problemas são diagnosticados em sujeitos que são vítimas de exploração sexual durante a infância, destacando-se: “[…] a automutilação, tentativas de suicídio, adição a drogas, hipocondria, timidez, impulsividade, hipersexualidade, transtornos de conduta (como mentiras, fugas de casa, roubo e estupro)” (AZAMBUJA; FERREIRA, 2011, p. 55). Destaca-se que a violência intrafamiliar poderá ocasionar, até mesmo, a morte de uma criança, tanto em decorrência de situações constantes e progressivas de violência, como da ideia de suicídio. As consequências psíquicas são muito claras quando da ocorrência de uma violência. Da violência sexual, as crianças e adolescentes vítimas sofrem desde o ato e pelo resto de suas vidas. O sofrimento pode aumentar quando da releitura do ocorrido em um inquérito ou em depoimentos judiciais (OLIVEIRA, 2012, p. 234).

Além disso, no caso da ocorrência de uma violência, mantêm-se as consequências psíquicas devido à busca pelo segredo por parte da vítima, tendo em vista o medo de revelação do ato, e as dúvidas em relação à informação revelada pela criança ou adolescente, pois os ascendentes tendem a não acreditar ou não querer acreditar naquelas informações: Aqui no geral se fala das consequências psíquicas geradas pelo abuso sexual intrafamiliar, pois é comum a situação de segredo e de proteção do agressor, para manter a família. Em outras vezes, é gerada uma situação de violência atribuindo como uma falácia a queixa de uma criança ou adolescente em relação a situação de abuso sexual. (OLIVEIRA, 2012, p. 234)

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 91

As crianças e os adolescentes, por se encontrarem em situação peculiar de pessoa em desenvolvimento, vivenciam uma fase de transformações biológicas, psíquicas, morais e socioculturais. Para a garantia desse desenvolvimento como ser humano, instituiu-se a proteção integral de uma infinidade de direitos para a garantia do desenvolvimento integral. Para tanto, buscou-se assegurar direitos que possibilitassem o pleno desenvolvimento físico, mental, social, psicológico, moral e da cidadania. No entanto, com a ocorrência de qualquer forma de violência, será afetado o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, trazendo as mais diversas consequências negativas a esse processo peculiar de pessoa em desenvolvimento. Além disso, os traumas gerados estarão continuamente presentes na vida desses cidadãos, demorando tempo para serem superados. A violação de direitos decorrente de uma situação de violência intrafamiliar é tão severa que afetará a saúde (física e mental), a educação, o lazer, a recreação, a alimentação, a imagem, a autoconfiança, o esporte, a cultura, o convívio social e as oportunidades futuras (ambiente de trabalho e educação superior), entre outros prejuízos. 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1988 inaugura nova concepção acerca da criança e do adolescente e dos seus direitos fundamentais, passando a auferir-lhes a condição de titulares desses direitos. Posteriormente, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabeleceu mecanismos e instrumentos para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais e coibir toda e qualquer forma de violação dos mesmos. A violência intrafamiliar é uma das principais formas de violência que vitimam crianças e adolescentes no Brasil. Os números retratam uma realidade preocupante, porque justamente aqueles que têm o dever de proteger são os que impetram a violência física, sexual, moral e psicológica. Além disso, a negligência e a omissão

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são algumas das práticas recorrentes de violência contra crianças e adolescentes.

Apesar dos instrumentos jurídicos e das políticas públicas, tanto no âmbito da saúde quanto da assistência social, a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes ainda persiste, afrontando os preceitos constitucionais e os direitos humanos e fundamentais. A violência intrafamiliar traz prejuízos imensuráveis à vida das crianças e dos adolescentes a ela submetidos. Seja em qual das suas formas ocorrer, a violência fere todos os princípios constitucionais e direitos fundamentais dos quais crianças e adolescentes são sujeitos. No âmbito familiar, as consequências são ainda mais devastadoras, porque justamente quem tem o dever de proteger, em primeiro lugar, é o agressor.

Diante disso, é indispensável a intensificação das ações e dos programas de combate à violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, sob pena de comprometimento da saúde física e psicológica das vítimas e, em consequência, de um futuro sadio. É preciso, portanto, combater toda e qualquer forma de violência contra as crianças e adolescentes e, especialmente no âmbito familiar, é preciso intensificar, mediante serviços de saúde e atendimento às famílias, as relações assentadas no respeito mútuo, com a observância do princípio da proteção integral e da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. REFERÊNCIAS

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AZAMBUJA, Maria Regina Fay de; FERREIRA, Maria Helena Mariante. Aspectos Jurídicos e Psíquicos da Inquirição da Criança Vítima. In: ______; ______. Violência Sexual Contra Crianças e Adolescentes. Porto Alegre: Artmed, 2011. BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: Acesso em: 25 jun. 2014.

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AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: EDUCAÇÃO CONTINUADA EM SAÚDE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Ismael Francisco de Souza Doutorando na Universidade de Santa Cruz do Sul. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito, e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva. Coordenador do Projeto Ação Adolescente (Unesc). Docente da Escola de Gestão Pública Municipal (EGEM) em Santa Catarina. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”. E-mail: [email protected]

Matheus Silva Dabull Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (Grupeca/Unisc) e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC). Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infanto-juvenis” (CNPq). Advogado. E-mail: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo aborda aspectos sobre as políticas públicas de promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente no âmbito da saúde, em especial como um direito fundamental elevado a um papel de destaque na universalização do direito à saúde, por meio do Sistema Único de Saúde – SUS, para a concretização da proteção integral. Da mesma forma, enaltece as políticas públicas

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específicas que propõem acompanhar não somente o desenvolvimento de propostas práticas de atendimento à saúde, mas também preservar os interesses dos direitos de crianças e adolescentes em processo de desenvolvimento. Para buscar os objetivos propostos, o trabalho inicialmente acende o direito à saúde destinado a crianças e adolescentes e a proteção jurídica no Brasil Contemporâneo. Num segundo momento, as políticas públicas de proteção e promoção dos direitos da criança e do adolescente aos serviços de saúde pública brasileira em prol da efetivação dos direitos humanos fundamentais. Por fim, a integração do sistema normativo brasileiro e a efetivação dos direitos humanos fundamentais em saúde pública de qualidade para crianças e adolescentes.

O presente trabalho fomenta a ampliação e o fortalecimento da rede de atores sociais responsáveis pelos direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes e a implementação de políticas públicas eficazes, principalmente pela promoção da saúde como um elemento desestruturante de qualquer forma de negligência ou violação de direitos, adequadas às exigências e compromissos internacionalmente assumidos pelo Brasil.

O estudo está inserido na linha de pesquisa de Políticas Públicas de Inclusão Social do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). O método de abordagem utilizado é o dedutivo e o método de procedimento é o monográfico. Assim, identificado e apresentado o tema, aprofunda-se na discussão buscando soluções a partir de premissas de conteúdo multidisciplinar e bibliográfico, de caráter documental, uma vez que tal caminho deve passar pelo crivo jurídico-político. 2

O DIREITO À SAÚDE PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES E A PROTEÇÃO JURÍDICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, instituiu em seu artigo 1º um Estado Democrá-

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tico de Direito, em que os sujeitos aparecem como principais detentores de direitos fundamentais, direitos sociais e de soberania popular, estabelecendo-se assim um espaço de “proteção social de caráter universal e não excludente, possibilitando a expansão de políticas sociais em todo o território nacional” (VIANA; BAPTISTA, 2008, p. 97). Nesse conjunto, somente com a Constituição Federal de 1988 surge no Brasil a prática do Estado Social, assentando como prioridade o atrelamento e a aplicabilidade imediata das normativas destinadas aos direitos humanos fundamentais de saúde, conforme artigo 5º, § 1º. O direito à saúde diferencia-se, portanto, “como direito social fundamental, de aplicabilidade imediata que exige do Estado prestações em sentido estrito” (CANUT, 2013, p. 18). É importante sobressair que num Estado Democrático de Direito, onde prevalece a soberania popular,

[…] é precisamente a anexação de uma cláusula pétrea a um dado direito subjetivo o que melhor certifica a sua fundamentalidade, porque assim, ao declará-lo intocável e pondo-o a salvo inclusive de ocasionais maiorias parlamentares, que o poder constituinte originário o reconhece como um bem sem o qual não é possível viver em hipótese alguma. (MARTINS NETO, 2003, p. 88)

Ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, trouxe medidas protetivas e de fortalecimento dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes mencionados na Constituição Federal de 1988, de maneira a implementar direitos sociais fundamentais a parcela particular da sociedade, mirando alcançar e materializar os princípios e diretrizes da teoria da proteção integral (CUSTÓDIO, 2009, p. 43). Desse modo, assinalando diretamente tais direitos, o Estatuto da Criança e do Adolescente exalta, em seu artigo 11, o atendimento integral à saúde de toda criança e adolescente por inter-

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médio do Sistema Único de Saúde, estabelecido pela Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, de modo gratuito, garantindo o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação. O Sistema Único de Saúde é:

[…] um sistema público nacional, baseado no princípio da universalidade, a indicar que a assistência saúde deve atender a toda população. Tem como diretrizes organizativas a descentralização, com comando único em cada esfera governamental, a integridade do atendimento e a participação da comunidade. (FIGUEIREDO, 2007, p. 97)

O artigo 8º do Estatuto da Criança e do Adolescente determina proteção à criança desde a concepção até a fase adulta, por meio do Sistema Único de Saúde, em conformidade com a Lei nº 11.108 de 7 de abril de 2005, que estabelece a inclusão de um acompanhante durante o parto ao pós-parto dando início à rede de afetos a crianças e adolescentes desde a concepção até a fase adulta. Art. 1º O Título II “Do Sistema Único de Saúde” da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo VII “Do Subsistema de Acompanhamento durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato”, e dos arts. 19-J e 19-L: Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada, ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. § 1º O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente.

§ 2º As ações destinadas a viabilizar o pleno exercício dos direitos de que trata este artigo constarão do regulamento da lei, a ser elaborado pelo órgão competente do Poder Executivo.

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 99

Já o artigo 7º, ainda do Estatuto, situa a criança e o adolescente como detentores do direito à saúde e que o poder público tem obrigação de criar e concretizar esse direito por meio de políticas sociais exclusivas que proporcionem o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Convenciona destacar o acrescentado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente mediante a Resolução nº 41, de 13 de outubro de 1995, compondo direitos a crianças e adolescentes no ambiente hospitalar, com a finalidade de garantir seus direitos fundamentais: DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE HOSPITALIZADOS

1. Direito e proteção à vida e a saúde, com absoluta prioridade e sem qualquer forma de discriminação.

2. Direito a ser hospitalizado quando for necessário ao seu tratamento, sem distinção de classe social, condição econômica, raça ou crença religiosa. 3. Direito a não ser ou permanecer hospitalizado desnecessariamente por qualquer razão alheia ao melhor tratamento da sua enfermidade.

4. Direito a ser acompanhado por sua mãe, pai ou responsável, durante todo o período de sua hospitalização, bem como receber visitas. 5. Direito a não ser separado de sua mãe ao nascer.

6. Direito a receber aleitamento materno sem restrições.

7. Direito a não sentir dor, quando existem meios para evitá-la.

8. Direito a ter conhecimento adequado de sua enfermidade, dos cuidados terapêuticos e diagnósticos a serem utilizados, do prognóstico, respeitando sua fase cognitiva, além de receber amparo psicológico, quando se fizer necessário. 9. Direito a desfrutar de alguma forma de recreação, programas de educação para a saúde, acompanhamento do curriculum escolar, durante sua permanência hospitalar.

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10. Direito a que seus pais ou responsáveis participam ativamente do seu diagnóstico, tratamento e prognóstico, recebendo informações sobre os procedimentos a que será submetido. 11. Direito a receber apoio espiritual e religioso conforme prática de sua família.

12. Direito a não ser objeto de ensaio clínico, provas diagnósticas e terapêuticas, sem o consentimento informado de seus pais ou responsáveis e o seu próprio, quando tiver discernimento para tal. 13. Direito a receber todos os recursos terapêuticos disponíveis para a sua cura, reabilitação e ou prevenção secundária e terciária. 14. Direito a proteção contra qualquer forma de discriminação, negligência ou maus tratos.

15. Direito ao respeito a sua integridade física, psíquica e moral. 16. Direito a preservação de sua imagem, identidade, autonomia de valores, dos espaços e objetos pessoais.

17. Direito a não ser utilizado pelos meios de comunicação, sem a expressa vontade de seus pais ou responsáveis, ou a sua própria vontade, resguardando-se a ética.

18. Direito a confidência dos seus dados clínicos, bem como Direito a tomar conhecimento dos mesmos, arquivados na Instituição, pelo prazo estipulado em lei. 19. Direito a ter seus direitos Constitucionais e os contidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, respeitados pelos hospitais integralmente. 20. Direito a uma morte digna, junto a seus familiares, quando esgotados todos os recursos terapêuticos disponíveis.

Nesse contexto, o Brasil adotou compromisso com um conjunto de Convenções Internacionais, em meio a elas a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que faz alusão ao direito à vida e a cuidados e assistência desde a gestação à infância.

Violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes 101

Artigo III Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. […]

Artigo XXV

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma proteção social.

Tomou a Convenção sobre os Direitos da Criança pelo Decreto nº 99.710/1990, garantindo a segurança e a saúde das crianças, obrigando que os Estados-Partes reconhecessem que toda criança tem o direito inerente à vida, assegurando ao máximo a sobrevivência e o seu desenvolvimento.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), por intermédio do Decreto nº 678/1992, garante: Artigo 4. Direito à vida

1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. […]

Artigo 19. Direitos da criança

Toda criança tem direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer por parte da sua família, da sociedade e do Estado.

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De volta ao Estatuto da Criança e do Adolescente, acrescentando promoção e proteção à saúde de crianças e adolescentes, o artigo 13 decide que os agentes das redes de atendimento à saúde devem originar fluxos de informações com os Conselhos Tutelares onde, diante de casos de dúvida ou confirmação da falta de atendimento dos serviços de saúde, devam prover o imediato encaminhamento para serviços de saúde particularizados e tomar as medidas necessárias para a regularização do atendimento. Ainda de forma a implementar o oferecimento à saúde de um modo geral, o Ministério da Saúde, por intermédio da Secretaria de Atenção à Saúde e do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas, mantém serviço de atendimento especializado para a saúde de crianças e adolescentes, colaborando, sobremaneira, na identificação, avaliação e diagnóstico de possíveis falhas na prestação dos serviços de saúde disponíveis (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).

Assim, em qualquer caso, toda criança e adolescente tem direito aos serviços de saúde especializada e, pela responsabilidade compartilhada, carecem o Estado, a família e a sociedade de proporcionar efetivo atendimento. Portanto, é pela participação intensa do poder público, integrado com a sociedade, que se alcançarão com máxima efetividade os serviços apresentados em relação à saúde de crianças e adolescentes. Todavia, faz-se de extremado juízo que o cidadão compreenda que tais serviços não são mera bondade do Estado, mas uma obrigação, a ser exigida pela família e sociedade. 3

AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO E PROMOÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE AOS SERVIÇOS DE SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA EM PROL DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS

Em se tratando de políticas públicas para proteção e promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, nada mais apropriado do que apresentar o significado de políticas públicas as quais dão

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composição ao tema abordado. Logo, conceituam-se políticas públicas como sendo atuações do Governo revestidas da autoridade do poder público que dispõem sobre que ações serão feitas, suas metas e qual o modo de agir (RODRIGUES, 2010, p. 53). Porém, preocupa-se com a descontinuidade das políticas públicas tendo em vista a distinção com planejamento de governo, a não participação da sociedade nas decisões políticas e a falta de preferência absoluta nas questões envolvendo proteção de direitos de crianças e adolescente, tornando, portanto, sem efeito prático tais ações (FERNANDES, 2013, p. 87).

[…] Cada novo governo significa alguma descontinuidade. Até certo ponto isso é positivo, pois permite inovações e avanços. Mas, é amplamente reconhecido que a descontinuidade administrativa leva frequentemente ao abandono das diretrizes vigentes e à criação de outras, bastantes distintas e não raro contraditórias em relação às anteriores, gerando desperdício de energia política e de recursos financeiros. (SCHIMIDT, 2008, p. 2.312)

Nesse contexto, a constituição de políticas públicas de direito à saúde no Brasil exige amparo eticamente envolvido com a plena efetivação dos diretos fundamentais de crianças e adolescentes, bem como a participação da sociedade em cada decisão política envolvendo violação de direitos, distinguindo-se dos programas de governo que não demonstram empenho e continuidade em suas aplicações.

É uma sociedade constituída de indivíduos ativos, que designamos como sociedade democrática, entendendo, como tal, não a sociedade que possui um regime político denominado de democrático, mas aquela sociedade organizada a partir de parâmetros instituídos por indivíduos participativos e incorporados em todas as instituições dinâmicas da mesma sociedade. (GORCZEVSKI, 2010, p. 3.021)

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A participação do cidadão, vinculando esforços na construção das políticas públicas, assegura canais de informação e um fluxo de ações entre a sociedade civil e Estado. “Este princípio visa estabelecer formas de participação ativa e crítica na formulação das políticas públicas, garantindo instrumentos de fiscalização e controle”, absorvendo as reivindicações na efetivação das políticas públicas próprias da saúde em cada região (CUSTÓDIO, 2009, p. 37). Assim, o artigo 86 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe sobre a política de atendimento que se realiza “através de um conjunto articulado de ações governamentais e não governamentais, da união, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios”. O fluxo de tais articulações é primordial para materialização e efetivação dos serviços garantidores dos direitos de crianças e adolescentes em saúde, atreladas sua qualificação através do monitoramento, diagnóstico, controle e avaliações periódicas. (BRASIL, 1990).

Da mesma forma, podem auxiliar expondo falhas do atendimento de saúde, bem como exercer forte influência de novas ferramentas de proteção de direitos destinados a crianças e adolescentes não só nesse aspecto, mas também em outros.

O Estatuto da Criança e do Adolescente concentra suas ações baseadas em dois aspectos principais, o primeiro com propósito de desenvolver políticas de atendimentos em parceria com todo o tecido social promovendo a descentralização das ações em cada município e comunidades. O segundo, alimentado por ferramentas jurídicas determinando o cumprimento e o acesso universal a direitos constitucionalmente garantidos. Assim, tais características oferecem subsídios à participação da sociedade e ao surgimento dos Conselhos Gestores de Políticas Públicas, promovendo maior descentralização municipal por meio de canais e fluxo de informações com os todos os responsáveis (CLAUDINO, 2007). Entre seus objetivos, propõe guiar os atos do SUS no cuidado absoluto à saúde de crianças e adolescentes em situações de trabalho, colocando-se, portanto, como ferramenta de colaboração por

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meio do fortalecimento de ações no âmbito educacional e no afastamento de situações de risco ou de vulnerabilidade social continuamente por meio do acesso universal à saúde. Na primeira etapa, estabelece as seguintes ações:

Toda criança ou adolescente que procure um Serviço de Saúde deve ter sua situação de trabalho mapeada/identificada: (1) Se nunca trabalhou:

(a) Encaminhar, assim como sua família ou responsáveis, para atividades de educação em saúde e segurança no trabalho, onde as informações possam ser dadas de forma participativa, ou seja, incluindo as experiências de trabalho, representações e valores que as famílias e as comunidades apresentem. […]

(b) Notificar imediatamente o Sistema Nacional de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, os Sistemas de Vigilância em Saúde Estaduais e Municipais, a Delegacia Regional do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, o Ministério Público do Trabalho e o Conselho Tutelar. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005)

Na segunda etapa, contempla as medidas a serem adotadas para avaliação e diagnóstico da exploração do trabalho infantil:

(1) Todas as crianças e adolescentes trabalhadores ou com história pregressa de trabalho, independente da situação de trabalho (legal ou ilegal): […]

(2) Todas as crianças devem passar por uma avaliação de saúde, condizente com sua idade e recomendada pelos protocolos assistenciais do Ministério da Saúde: Caso o diagnóstico seja: (a) Doente/acidentado:

Tratar o agravo à saúde.

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[…]

(b) Saudável

Encaminhar para atividades de educação em saúde e segurança no trabalho, onde as informações possam ser dadas de forma participativa, ou seja, incluindo as experiências de trabalho, que as famílias e as comunidades tenham. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005)

Assim, as relações intersetoriais e a conexão da saúde no sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente concretizam-se primordiais. Ainda nessa perspectiva, o próprio Ministério da Saúde exalta que em situação de trabalho infantil deve-se incluir uma abordagem familiar e comunitária nas atividades de educação em saúde e segurança no trabalho (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005).

Procurando ampliar as estratégias de melhor atender à saúde dessa parcela da sociedade, o Ministério da Saúde determina maior fluxo de informações com diversas instituições que agem para esse fim. Todavia, deve promover a identificação e prevenção, buscando, sobretudo, a implementação da garantia à saúde integral, estabelecendo articulações e parcerias entre as políticas públicas de saúde e de assistência social para proteção da saúde de crianças e adolescentes não somente contra o trabalho infantil, exemplo acima citado, mas em qualquer situação de vulnerabilidades (MDS, 2011, p. 79). Da mesma forma, internalizando o atendimento a crianças e adolescentes e à família, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), organismo intersetorial de gestão da Política Nacional de Assistência Social exalta a disposição territorial local como sede do fluxo de suas atribuições. De tal modo, acaba por se distinguir a responsabilidade singular de cada limite territorial e suas peculiaridades, explicitando e acolhendo individualmente as características da sociedade a qual os serviços se dedicam, da mesma forma em que a participação individual dos responsáveis é fortalecida por meio da ampliação do atendimento integral dos indivíduos.

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Dessa forma, o Sistema Único de Assistência Social é instrumento efetivo para o acesso a saúde na medida em que abastece de informações e subsídios as famílias necessitadas, distinto por uma articulação onde aproveita fluxos de subsídios e canais de atuações entre municípios, estados e federação, tornando-se singular para prática de um sistema que ofereça saúde a crianças e adolescentes universalmente.

Ainda ao encontro da melhor prestação dos serviços de saúde, os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) sobressaem também como responsáveis pela acolhida de crianças e adolescentes vítimas de maus-tratos e, por consequência, à saúde, uma vez que diz respeito ao acesso aos direitos socioassistenciais, cooperando pelo viés da informação de direitos instituídos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Constituição Federal, principalmente com relação a serviços de saúde destinados a crianças e adolescentes (MDS, 2009). Portanto, o mais importante desafio na prática de um sistema de saúde dedicado a crianças e adolescentes situa-se nos aspectos culturais por falta de conhecimento dos serviços à disposição e aos mitos postos de modo a justificar as falhas do atendimento, dando margem ao descrédito e consequentemente à ineficiência das ações. Assim, as políticas públicas de saúde compreendem-se pelas estruturas e estratégias articuladas entre si como modo de garantir atendimento efetivo e irrestrito às crianças e aos adolescentes, vislumbrando ações no acesso a plena proteção e cuidado à saúde. 4

A INTEGRAÇÃO DO SISTEMA NORMATIVO BRASILEIRO E A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS EM SAÚDE PÚBLICA DE QUALIDADE PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

O mais importante a ser observado é o caráter não apenas individual em casos isolados como o exemplo da exploração do

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trabalho infantil, mas igualmente a sua importância coletiva em qualquer violação de direitos que acarretam na não observação do direito à saúde ou ainda no não oferecimento dos serviços de saúde pública, sagrando um pensamento metódico do aparato de direitos humanos e dos pilares constitucionais para o incremento da universalização da saúde pública brasileira.

Assim, apesar de apresentados brevemente determinados aspectos, tendo em vista a complexidade sobre direitos humanos e fundamentais1 à saúde de crianças e adolescentes, resta-nos delinear, bem como consolidar, o direito à saúde pela promoção de políticas que consolidem esses ideais de universalidade pela integração do sistema normativo e a efetivação de tais direitos.

Exigem-se, portanto, formas de participação política popular e universalização da isonomia diante da lei. Não se trata de originar meramente melhoras no que fere a legislação e políticas, a universalização à saúde é muito mais complexa, trata-se da alteração dos alicerces da ordem política. Nessas condições, não bastam ingênuas modificações de leis para garantia de direitos humanos e fundamentais. É imprescindível uma combinação de mutações na legislação com os motivos geradores dessas mutações, permitindo que a falta de proteção à saúde de crianças e adolescentes proporcione experiências sociais individuais e coletivas para o aprendizado, com fim, na modificação desse acúmulo de aprendizado em desenvolvimento institucional e em capital político para a prática do regime democrático almejado para saúde pública. A proposta da integração operacional do sistema de garantias dos direitos da criança e do adolescente atua de modo a facilitar e acelerar o atendimento de crianças e adolescentes nos casos de violação de direitos. Entretanto, tal tarefa é no mínimo desafiadora, uma vez que mobilizar ações no âmbito governamental e não governamental, do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Conse

1

A nomenclatura utilizada compatibiliza-se com a distinção basilar entre direitos humanos e fundamentais realizada por Sarlet (2009, p. 29).

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lhos de Direitos e dos Conselhos Tutelares, requer atenção especial em toda política de garantias de direitos.

O desafio da integração do sistema considera ações fragmentadas e sobrepostas, motivo pelo qual, ao se transpor tais barreiras, se aperfeiçoam recursos e amplifica a rede de atores e instituições comprometidas com a promoção e proteção da saúde ao alcance de todas as crianças e adolescentes.

O sucesso da aplicação de políticas públicas voltadas a esse desafio requer a concretização de um sistema de integração permanente e continuado com vistas a identificar, controlar e adequar ferramentas que facilitem a aplicação dessas políticas, ao mesmo tempo que se tenha total controle na preservação de garantias de direitos destinadas a crianças e adolescentes. Com vistas a integrar os órgãos competentes nesse espaço, contribuindo de maneira adequada, destacam-se os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, os quais se constituem como um dos principais instrumentos garantidores de direitos, promovendo as deliberações de políticas públicas.

O Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, proporciona mudanças importantes na participação da sociedade no controle e efetivação do acesso e garantia dos direitos da criança e do adolescente de modo geral. Contudo, a discussão deve tomar uma direção mais objetiva para a reprodução da questão da saúde no que tange às crianças e aos adolescentes, os quais são detentores de cuidados especiais defendidos inclusive pela Carta Constitucional, e também por documentos internacionais de direitos humanos, concluindo-se que os direitos humanos cooperam de uma forma específica para o desenvolvimento da via pública de acesso à saúde e também a concretização dos direitos de crianças e adolescentes até então a margem desse processo. Assim, objetivando alcançar essas intenções a tal conjunto da população, torna-se imperioso o acolhimento de políticas públicas,

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assistidas como ações governamentais interligadas na busca por adimplir com as demandas sociais, tais como a efetivação do acesso e implementação da saúde pública às crianças, adolescentes e famílias contemporâneas. Fica claro, portanto, que atitudes nas quais se destaca a produção de documentos pedagógicos dirigidos às escolas, a construção e manutenção de sites, blogs e de páginas na Internet, com inserção de conteúdos de fácil compreensão direcionados a crianças, adolescentes e adultos, de todas as classes sociais, são de suma importância na construção de uma cultura de conhecimento de direitos, de uma sociedade democrática e participativa e, ao mesmo tempo, que usufrui os direitos a ela inerentes. Assim, é indispensável uma política pública de saúde para crianças e adolescentes brasileiros, apontando, sobretudo, para o cultivo de um material pedagógico correspondente à nova multiplicidade informativa vigorante, e apta a fomentar uma tradição de saúde efetiva, da mesma forma que faz parte de um informativo sólido e verdadeiro, sem, todavia, impulsionar o individual. Igualmente, outras ações podem ser trazidas em apoio a esta mesma ação focada no público em geral, incluindo métodos como a criação de museus, espaços de cultura e memoriais, os quais providenciam por meio da informação e conhecimento espaços públicos de participação popular e democrática na construção de novos rumos para saúde.

As políticas públicas precisam dar atenção indispensável às ações culturais como as evidenciadas, tendo em vista que de toda forma contribuem decisivamente para o desenvolvimento da cultura política e democrática de crianças, adolescentes e jovens no Brasil contemporâneo.

Assim, vislumbra-se o fortalecimento de políticas públicas de promoção e proteção do direito e acesso à saúde, de consolidação do direito à informação pertinente ao tema, para a efetiva

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consolidação de uma cultura coletiva, pois o não acolhimento dos direitos acima aludidos podem trazer prejuízo, transformando ações fundamentais da ordem democrática e constitucional, diminuindo a ampliação democrática do acesso a saúde para crianças e adolescentes. 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente, ainda no Brasil contemporâneo o oferecimento de um sistema de saúde específico para crianças e adolescentes demonstra precariedade que, inevitavelmente, não permite a implementação eficaz da teoria da proteção integral.

Há, entretanto, reflexões que nos remetem a um momento de mudança, onde os direitos sociais, em especial, à saúde devem ser percebidos dentro do cenário dos direitos humanos e fundamentais alicerçados no que dita a Carta Constitucional e os demais compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

Agora que colocadas às propostas de políticas públicas como objeto de mudança na postura da prestação dos serviços de saúde, o assunto acaba por percorrer os seus efeitos, de modo que a democracia que é um regime político fundamentado nos princípios da soberania popular e da repartição justa do poder, dirigindo a análise especifica de um direito humano e fundamental, que é o direito a vida e por sua vez a saúde individual e coletiva de crianças e adolescentes seja amplamente universalizado.

Nesse sentido, é possível que se ouse aqui sugerir elementos para se fazer chegar ao público em foco, crianças, adolescentes e sociedade em geral, materiais didáticos, como informações escritas, orais, instrumentos tecnológicos utilizados para todas as famílias, ajustado, sobretudo, para implementar a plena cidadania e fruição de seus direitos. O mesmo se passa ao aludir a possível criação de lugares públicos como museus e memoriais, espetáculos teatrais, enaltecendo os objetivos aqui delineados.

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Portanto, a visão de direitos humanos ora dispostos na análise da proteção e promoção da saúde para crianças e adolescentes, revelou-se capaz de provocar além de reflexões e críticas, propostas de políticas públicas, tencionando assim alterações táticas na construção de diretrizes para melhor implementação do acesso à saúde para essa parcela especial da sociedade no Brasil contemporâneo.

Enfim, nessa linha de pensamento, cada qual com sua parcela de apoio e responsabilidade: governos, sociedade civil, Poder Executivo e Judiciário, organizações não governamentais, entre outras, devem comprometer-se na finalidade comum de garantir a todas as crianças e adolescentes o direito à saúde como um direito humano e fundamental a ser resguardado para as atuais e futuras famílias brasileiras. REFERÊNCIAS

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A PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES CONTRA A VIOLÊNCIA FAMILIAR: UMA ANÁLISE PELA PERSPECTIVA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIOASSISTENCIAIS

André Viana Custódio Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Sevilha/Espanha, Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Santa Cruz do Sul, Membro do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social e do Grupo de Estudos em Direitos Humanos da Criança e do Adolescente da UNISC, Coordenador do Projeto de Pesquisa Violência Intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infanto-juvenis financiado pelo CNPq.

Luciana Rocha Leme Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Professora de Direitos Humanos, Direito Constitucional, História do Direito e Ciência Política junto ao Curso de Direito e, da disciplina de Sociologia Organizacional junto ao Curso de Administração, ambos da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direitos e Políticas Públicas de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA) da UNISC. Desenvolve atualmente atividades referentes aos Direitos da Infância, Adolescência e Juventude, bem como, aos Direitos Socioassistenciais inseridas na linha de pesquisa de Direitos Humanos e Políticas Públicas de Inclusão Social. E-mail: [email protected].

1 INTRODUÇÃO O presente artigo possui como objetivo analisar a proteção à criança e ao adolescente diante da prática histórica de imposição de castigos físicos no ambiente familiar. Para tanto, foi necessária

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uma análise pontual aos institutos culturais, jurídicos e de políticas públicas que se propuseram e atualmente objetivam enfrentar situações de violência contra a infância brasileira.

Primeiramente será apresentada e analisada a evolução histórica do reconhecimento da infância como ator social e sua consequente elevação à condição de sujeitos de direitos de forma aliada à evolução jurídico-normativa no contexto nacional. Posteriormente, se mostrou necessária a abordagem do reordenamento pelo qual as políticas socioassistenciais passaram, dentro do contexto histórico e cultural brasileiro, resultante na construção de um Sistema Único de Assistência Social (SUAS), responsável igualmente pela proteção da infância como etapa da vida vulnerável à(s) violência(s).

Após discorrer sobre a construção cultural que justifica o bater como forma de educar crianças e adolescentes, sobre os mecanismos jurídicos existentes para o enfrentamento a esta forma de violência e, sobre o reordenamento político e institucional da Assistência Social resultante no SUAS, serão abordadas, dentro deste novo paradigma, as proteções sociais que instrumentalizam a política pública socioassistencial de forma a contribuir para a erradicação da violência doméstica: a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. O referencial paradigmático utilizado este artigo é a Teoria da Proteção Integral. O método de abordagem da pesquisa é o dedutivo e o método procedimental, o monográfico. Recorreu-se à pesquisa bibliográfica e documental, utilizando-se a legislação afeta a temática aliada à pesquisa de caráter histórico e sociológico. 2

APONTAMENTOS SOBRE A REALIDADE HISTÓRICA E NORMATIVA DA INFÂNCIA NO BRASIL

Segundo Ariès (1981), a concepção de infância como período da vida humana que deva ser protegido é fruto de uma longa evolução. Até o século XVII, adultos ainda não reconheciam crianças

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como tal, imprimindo-lhes um desvalor em relação à sua condição infantil, considerada apenas uma fase pueril da vida, e caracterizada pelos altos índices de mortalidade. Neste sentido, ainda segundo o autor, percebe-se a inexistência do sentimento de infância, pois a partir do momento em que a criança sobrevivia a esta fase, era imediatamente inserida na vida adulta. Para a caracterização de sua idade, não era considerada sua condição biológica e sim, a função que poderia desempenhar na sociedade. Partindo do pensamento de Ariès, Badinter (1985) acrescenta que a instituição família, tal como temos na modernidade, é identificada somente com classes em ascensão em meados do século XVIII, e é por meio da arte que se percebe a caracterização de um novo sentimento em relação à infância e, pela primeira vez, a alusão ao amor materno. Ainda segundo a autora,

Antes daquela data, a ideologia familiar do século XVI, em descenso nas classes dominantes, ainda sobrevivia nos demais estratos sociais. A acreditar não só na literatura, na filosofia e na teologia da época, mas também nas práticas educativas e nas estatísticas de que hoje dispomos, constatamos que, na realidade, a criança tem pouca importância na família, constituindo muitas vezes para ela um verdadeiro transtorno. Na melhor das hipóteses, ela tem uma posição insignificante. Na pior, amedronta. (BADINTER, 1985, p. 54)

Aliada ao surgimento do sentimento de valorização da infância encontra-se a eminente importância dada à educação nesse período da vida. A escola surge como um ambiente onde as crianças deveriam ser adestradas através de imposições rígidas, utilizando-se de práticas punitivas para a afirmação da disciplina. Surge a submissão de crianças e adolescentes aos castigos corporais. Os educadores da época, geralmente ligados a ordens religiosas, eram responsáveis pelas “almas” dos alunos e, “Era um dever também

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usar sem indulgência culpada de seus poderes de correção e punição, pois isso envolvia a salvação da alma das crianças […]”. (ARIÈS, 1981, p. 180).

No Brasil, a história da aplicação dos castigos físicos contra crianças encontra sua gênese com o início da colonização portuguesa no país. Teve sua entrada em terras brasileiras através dos padres jesuítas que, contrariamente aos índios, traziam como um dos métodos de sua educação totalmente disciplinadora e marcada por fortes traços moralistas, os castigos corporais (LOBO, 2007, p. 878-879). Sobre a educação jesuítica, diz Chambouleyron,

Tanto os problemas com os meninos, como a própria evangelização dos adultos, levaram os padres a optar cada vez mais por uma conversão pela “sujeição” e “temor”, como escreviam em seus textos. Fortalecia-se aos poucos a convicção de que os índios só se converteriam se fossem sujeitos a alguma autoridade […], essa perspectiva coincidia com a estruturação de um rígido sistema disciplinar, como vimos, que, no mesmo sentido que o próprio repensar da disciplina desde o século XV, dependia de uma vigilância constante, da delação e dos castigos corporais. (2000, p. 69)

Esta cultura relacionando educação com punição, herdada desde a colonização portuguesa, torna-se atualmente justificativa para a violência praticada contra crianças no ambiente familiar fazendo com que muitas vezes esta violência não seja reconhecida como tal, mas sim como uma forma de educação que visa à obediência imediata pela via do medo. Sobre esta prática de educação utilizada até hoje,

O medo é impositivo, suscita um desequilíbrio psicológico e físico, exerce uma ação de fora para dentro no indivíduo e o leva, pela incapacidade ou impossibilidade de enfrentá-lo, à obediência. A prática de educar pelo medo, pela punição,

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atua fortemente, predeterminando uma ação ou um comportamento através da inibição de outros. O medo impede determinadas ações, não porque desencadeia no indivíduo uma maior compreensão sobre algo, não necessariamente porque o conduz a um processo consciente de aprendizagem, mas porque faz com que o indivíduo, na maioria das vezes, se sinta sem iniciativa, podendo, conseqüentemente, comprometer suas futuras ações, o seu processo de socialização e sua auto-estima. (OLIVEIRA; VERONESE, 2008, p. 49)

A criança surge no âmbito do direito como sujeito passivo de cuidados especiais por sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento somente com o reconhecimento dos seus direitos humanos internacionais. Com papel relevante na articulação dos direitos destinados a esta fase da vida humana, encontra-se a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotando de forma definitiva a Teoria da Proteção Integral. Assim, tendo em vista sua proteção integral, crianças e adolescentes são sujeitos específicos, especiais, constituindo-se sua proteção em ônus de toda a sociedade e não apenas de seus genitores (RAMIRES, 2007, p. 858). A história da afirmação de direitos a crianças e adolescentes no Brasil é recente. Por isso ainda há uma enorme lacuna entre esses direitos e garantias e a realidade sociocultural do País, marcada pela falta de compreensão dos processos históricos que culminaram com a elevação de crianças e adolescentes a condição de sujeitos de direitos. Neste sentido, Custódio lembra que

O reconhecimento da criança como sujeito de direitos é uma conquista muito recente no direito brasileiro, pois durante o maior período da história brasileira, encerrava-se apenas como uma promessa de futuro. A adoção da doutrina da proteção integral na Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 foi o marco fundamental de todo esse pro-

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cesso de transformação jurídica. De qualquer forma, ainda nos dias atuais a criança, como sujeito político e detentora do direito à participação, busca o reconhecimento do direito ao respeito às suas características individuais, físicas e psicológicas diluídas cronologicamente pelo tempo de vida, que se desenlaça nas diversas etapas de desenvolvimento. É uma nova dimensão simbólica e efetiva representada pelas fases de desenvolvimento, que se estabelece gradualmente numa sociedade para poucos. (2006, p. 20)

A Constituição Federal de 1988 é o apogeu na normatização de direitos e garantias fundamentais, elevando crianças e adolescentes à categoria de sujeitos de direitos. A Constituição Cidadã enterra definitivamente a doutrina da situação irregular, estabelecida pelo Código de Menores de 1979. Segundo Veronese, denominava-se em situação irregular todo “[…] menor de 18 anos de idade que se encontrava abandonado materialmente, vítima de maus-tratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta e ainda o autor de infração penal” (1999, p. 35).

Decorrente do reconhecimento dos direitos humanos da criança e do adolescente, a Teoria da Proteção Integral, reconhecendo a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, garante o pleno “desenvolvimento físico, psicológico, moral, espiritual e social da criança e do adolescente em condições de liberdade e dignidade […]”. (CUSTÓDIO, 2006, p. 17-B)

A violência familiar, doravante sua proibição frente ao respeito aos direitos humanos, constantemente é encontrada em todas as culturas e classes sociais sendo, inclusive, socialmente aprovada e permitida legalmente pelos Estados. Em nosso direito pátrio, mesmo com a ratificação de instrumentos internacionais de proteção à infância, ainda encontramos no imaginário social resquícios de uma sociedade que considera normal os castigos corporais à infância nas relações familiares sob as mais diversas justificativas.

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3

REORDENAMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIOASSISTENCIAIS: DIMENSÃO NECESSÁRIA À PROTEÇÃO DA INFÂNCIA

Por representarem uma das formas de atuação do Estado diante dos interesses coletivos e da constante cobrança por efetivação de direitos sociais, tornou-se necessária a adoção de mecanismos capazes de implementar políticas públicas, demandas que não condiziam com o modelo de Estado mínimo (COSTA; REIS, 2009). Apontar a trajetória das políticas da assistência social no Brasil remete ao período republicano. Especificamente nos anos 30 do século XX, com o ingresso tardio na era industrial, o Estado brasileiro inicia suas intervenções na relação entre capital e trabalho, modificando, consequentemente, a concepção política sobre a assistência, que até então era praticada com caráter de filantropia através de iniciativas da Igreja e subsidiariamente pelo Estado. Neste sentido, identifica-se nesta trajetória histórica algumas etapas e evoluções pontuais, representativas das políticas sociais no país e das quais ainda encontramos resquícios, como: a filantropia caritativa, filantropia higienista, filantropia disciplinadora, filantropia pedagógica profissionalizante, filantropia vigiada e filantropia clientelista (MESTRINER, 2001).

A forma utilizada pelo Estado brasileiro para intervir, tanto no espaço urbano quanto para controlar os pobres e aqueles considerados de comportamento desviantes, acabou por reduzir e reclassificar como assistidos sociais, os inválidos, doentes, abandonados, indigentes, aqueles que não estivessem no mercado de trabalho, crianças e idosos. Esta realidade também é apontada por Rizzini:

O espaço urbano – ‘locus’ e símbolo de civilização (em oposição à barbárie) – era, portanto, o lugar onde mais claramente se evidenciava o rompimento de uma dada ordem. Isso explica porque os registros históricos sobre a urbe são marcados por exclamações sobre seus fantasmas e seus perigos, justifi-

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cando um constante apelo pelo restabelecimento da ordem. Explica também porque a pobreza urbana tornou-se alvo de tanto interesse, escrutínio e objeto de intervenção na tentativa de controle. Os pobres eram sistematicamente tipificado como ameaça a ser contida; missão que as instituições religiosas (paróquias, mosteiros, asilos e outras do gênero) não tinham como cumprir. Registrava-se com alarme o aumento incontrolável de pobres. (1997, p. 150)

Porém, é de se salientar que o modelo caritativo religioso foi promovido em terras brasileiras desde a colonização portuguesa, no qual se evidenciava, através da evangelização jesuítica, um verdadeiro massacre das culturas indígenas e africanas por meio da ação direta sobre as crianças (MEIHY, 1993). Na percepção dos colonizadores, os índios que habitavam a nova terra eram selvagens sobre os quais deveriam impor a cultura e a religião de Portugal, imposição esta pautada, principalmente, em isolar crianças indígenas de seus pais, para que fossem corrigidas em suas casas de recolhimento. O primeiro estabelecimento desta espécie foi construído no Brasil pelos Jesuítas em 1551 e justificava-se como forma de caridade (MARTINS; BRITO, 2001). O século XVIII foi marcado pela preocupação com o fenômeno do abandono de bebês. Como solução para este problema, foram instaladas as primeiras Rodas dos Expostos, geralmente sob incumbência de Santas Casas de Misericórdia, que recebiam subsídios do rei para seu funcionamento. A primeira foi instalada na cidade Salvador, a segunda no Rio de Janeiro e a última roda instalada no Brasil colonial, em 1789, foi na cidade de Recife. Salienta-se que, mesmo após a independência brasileira, estas rodas ainda continuaram em funcionamento no País (MARCÍLIO, 1999). Há que se destacar que as Constituições traduzem o período social, histórico, econômico e político pelo qual cada país passa, refletindo, ainda, a conjuntura internacional do momento. No tocante à primeira Constituição brasileira (1824) e a Constituição de 1891, percebe-se que enquanto aquela não trazia nenhum direito social,

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esta abordava apenas o livre exercício de qualquer profissão moral, industrial e intelectual (COUTO, 2004). No período da Primeira República, compreendido entre a proclamação da República (1889) e a Revolução de 1930, o Estado brasileiro não interviu na área social por não considerá-la sua função. No entanto, as mudanças políticas e econômicas ocasionadas pelo final do regime escravocrata e início da imigração de trabalhadores da Europa, ocasionado mão-de-obra excedente no mercado de trabalho e o crescimento desordenado das cidades, obrigou o Estado a assumir maiores responsabilidades frente às novas demandas sociais, já que o crescimento de oferta de empregos e de serviços públicos de saúde e educação foi desproporcional em relação ao êxodo ocorrido. Os direitos trabalhistas advindos com a Constituição de 1934, instituiu um arcabouço de medidas de proteção que originaram, posteriormente, Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), bem como, o direito à educação primária integral e gratuita, o amparo à maternidade, à infância e aos desvalidos, destacando-se ainda, o atendimento às famílias com muitos filhos. Especificamente em relação à regulamentação da assistência social, destaca-se a criação, em 1938, do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), com a responsabilidade de controlar as ações específicas da assistência, associando iniciativas públicas com as iniciativas privadas, bem como, desenvolver estudos sobre os problemas sociais. Neste sentido, “o Estado não só incentiva a benemerência e a solidariedade, mas passa a ser responsável por ela, regulando-a por meio do CNSS” (MESTRINER, 2001, p. 107).

No ano de 1942 é criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA) como órgão responsável pela coordenação das ações da assistência nacionalmente. Este período marca a institucionalização do chamado “primeiro-damismo” e o surgimento de diversas faculdades de Serviço Social com vistas a profissionalização de mulheres na área. Até sua extinção, a LBA adaptou-se à vontade política de quem estivesse no governo, tendo entre suas principais atividades a coordenação de programas de creches comunitárias, seja repas-

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sando recursos diretamente às entidades de assistência ou, ainda, através de convênios e programas pontuais, como a distribuição de leite, sempre de forma centralizada e sem controle social efetivo.

Segundo Frota, o cenário das duas últimas Constituições anteriores à de 1988, refletindo o autoritarismo dos regimes militares da época e o consequente cerceamento de direitos, é marcado pelo surgimento do Sistema Fundação Nacional/Estaduais do Bem-Estar do Menor, pautado na concepção ideológica da doutrina da segurança nacional e pela exigência de criação de fontes de custeio para os benefícios assistenciais. Nesta seara, a Política do Bem-Estar do Menor era estabelecida pela Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), órgão central, e executada nos Estados através das Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Assim, a FUNABEM foi criada objetivando formular e implantar a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, que fixaria uma nova estratégia de atendimento ao chamado “problema do menor” (FROTA, 2002). No contexto do final do século XX, o Brasil fortaleceu-se novamente num sistema democrático de governo, a globalização instaurou a mundialização da economia, tecendo espaço para uma ideologia neoliberal de desestatização no campo da política, da economia e das relações sociais. Os movimentos sociais constituíram movimentação intensa em defesa de direitos ou novas posições diante da lei. (LOPES, SILVA, 2014, p. 132-140)

Pereira aponta que os movimentos sociais passaram a privilegiar o nível institucional das ações políticas como espaços legítimos da transformação social. Desta forma, a participação institucional fomentou a criação de conselhos, movimentos, redes e canais diretos para a negociação da sociedade civil com o Estado o que, ainda segundo o autor, fez surgir novos paradigmas sociopolíticos, como a recuperação do Estado e da nação, o pluripartidarismo, substituição da pedagogia popular por propostas relacionadas à democracia, à cidadania, ao fortalecimento da sociedade civil, à atuação de

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organizações não governamentais trabalhando em parceria com o Estado, bem como a atuação direta da sociedade na esfera pública, como os conselhos da criança e do adolescente, da educação, da saúde, da habitação e dos movimentos culturais (PEREIRA, 2001).

Os anos 80 e 90 foram emblemáticos no cenário político, econômico e social brasileiro, pois, em que pese a ampliação do processo democrático e a organização política e jurídica advindos com Constituição Federal em 1988, ocorreu um processo de recessão e contradições econômicas sem igual, caracterizada pela inflação significativa e a centralidade da matriz econômica em detrimento da matriz social. Neste sentido, apesar dos avanços sociais assegurados pela Constituição de 1988, as diretrizes econômicas definiam as políticas sociais como mera consequência de seu funcionamento, desfigurando, assim, os princípios orientadores determinados na própria Constituição. Porém, há que se considerar os avanços construídos pela Constituição Federal de 1988 para a assistência social como política pública e que acarretaram “novas configurações e novas concepções para a área dos direitos civis, políticos e sociais, expressas na organização do sistema de seguridade social brasileiro” (COUTO, 2004, p. 139-140), pois no Brasil a Assistência Social, a Saúde e a Previdência Social constituem-se na base da Seguridade Social, inspirando a noção de Estado de Bem-Estar Social. Em dezembro de 1993 é aprovada a Lei nº 8.742, Lei Orgânica da Assistência Social - LOAS (BRASIL, 1993). A partir dela coloca-se a proteção social como mecanismo de enfrentamento às diversas formas de exclusão social decorrentes da velhice, da adversidade, de privações, da doença, etc., incluindo ainda a estas demandas as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais, tais como comida e renda, e de bens culturais, objetivando não só a sobrevivência, mas também a integração de todos à vida social. Ressalta-se que a LOAS considera a proteção da família como foco de centralidade da política de assistência social (BRASIL, 2004). Mesmo assim, esta atenção não foi efetivada pós-Constituição de 1988 e aprofundou-se o empobrecimento de trabalhadores

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e suas famílias, como consequência da crise econômica, reformas institucionais mais amplas não realizadas, medidas de enfrentamento equivocadas de cunho assistencialista e outras direcionadas à população pobre e vulnerável (ALENCAR, 2004).

É neste contexto que, em 2004, na IV Conferência Nacional da Assistência Social, é deliberado e aprovado pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), o Plano Nacional de Assistência Social (PNAS), que determina entre os eixos estruturantes para a sua própria operacionalização, a concepção, a matricialidade sociofamiliar, a territorialidade, o financiamento, o controle social, o monitoramento, a avaliação e os recursos humanos. Para a regulamentação deste plano, aprova-se em 2005, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), constituindo-se como marco instituidor da transformação da cultura baseada na caridade para uma noção ampla de direito e cidadania que relaciona a Assistência Social como política pública de proteção social articulada com a garantia de direitos e de condições dignas de vida. Nesta nova lógica, a Assistência Social estabelece-se com caráter universal, ainda que seletivo para quem dela necessitar, independentemente de contribuição ou participação da comunidade, bem como determina entre suas diretrizes a descentralização político-administrativa. 4

A PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA E ESPECIAL COMO INSTRUMENTOS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A universalização dos direitos socioassistenciais no Brasil, fora da lógica da caridade e filantropia tão característico da história nacional, é o objetivo do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que se coloca como instrumento de unificação das ações da Assistência Social nos três níveis da federação. Priorizando a família e o território como foco da sua atenção, este novo modelo de gestão da política assistencial divide suas ações e serviços em dois níveis

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de atenção, a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial. Rompendo com a cultura que entendia a Assistência Social como uma concessão e não como um direito, o SUAS inova ao separar e organizar seus serviços em níveis diferenciados de complexidade. Desta forma, […] o SUAS não é um programa, mas uma forma de gestão da assistência social como política pública, inscreve-se como uma das formas de proteção social não contributiva, “como responsabilidade de Estado a ser exercida pelos três entes federativos que compõem o poder público brasileiro”. (SPOSATI, 2006, p. 110)

Neste sentido, a Proteção Social Básica possui o objetivo de prevenir situações de risco, evitando que danos aconteçam, pelo viés do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, bem como, fortalecer vínculos familiares e comunitários. É destinada à população em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação de renda ou de serviços públicos e/ou, ainda, ou possuam frágeis vínculos afetivos, relacionais ou de pertencimento social. Este nível de proteção prevê o desenvolvimento de serviços, programas e projetos locais de acolhimento, convivência e socialização de famílias e de indivíduos, que serão identificados e direcionados de acordo com a situação de vulnerabilidade apresentada e executada pelas três estâncias de governo articuladas no interior do SUAS (BRASIL, 2004). Tais programas e serviços deverão ser articulados com as demais políticas sociais públicas locais com vistas a promover a sustentabilidade, desenvolvimento e protagonismo das famílias e pessoas atendidas, para que estas possam superar condições de vulnerabilidade e prevenir situações de risco. Destaca-se que os serviços e programas integrantes da Proteção Social Básica são executados diretamente pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) e outras unidades básicas e públicas integrantes da assistência social, podendo, ainda, ser executadas indiretamente

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por entidades e organismos presentes no território de abrangência dos CRAS (BRASIL, 2004).

No nível de ação da proteção social básica, centralizam-se os serviços que alocam a família como unidade de referência, fortalecendo seus vínculos de solidariedade, tanto internos quanto externos, estimulando o protagonismo de seus membros e a oferta de um rol de serviços com vistas a fortalecer a convivência, a socialização e o acolhimento de famílias cujos vínculos, sejam familiares ou comunitários, ainda não tenham sido rompidos e, ainda, promover a integração ao mercado de trabalho, destacando-se entre esses serviços: o Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF); o Programa de inclusão produtiva e projetos de enfrentamento da pobreza; os Centros de Convivência para Idosos; Serviços para crianças de 0 a 6 anos, que visem o fortalecimento dos vínculos familiares, o direito de brincar, ações de socialização e de sensibilização para a defesa dos direitos das crianças; Serviços socioeducativos para crianças, adolescentes e jovens na faixa etária de 6 a 24 anos, visando sua proteção; socialização e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários; Programa de incentivo ao protagonismo juvenil, e de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e os Centros de informação e de educação para o trabalho, voltado para jovens e adultos (BRASIL, 2004). No nível da Proteção Social Especial, o atendimento é direcionado às famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social devido à fatores como abandono, maus tratos físicos e/ou psíquicos, abuso sexual, uso de substâncias psicoativas, cumprimento de medidas socioeducativas, situação de trabalho infantil, situação de rua, entre outras. Neste sentido, pode-se caracterizar os serviços de proteção social especial como aqueles direcionados aos indivíduos que, por vários fatores, não mais se encontram sob proteção e cuidado familiar, ou que tiveram seus direitos já violados, o que exige maior atenção ao acompanhamento individual, flexibilidade nas soluções protetivas, monitoramento dos encaminhamentos e estreita relação com o sistema de garan-

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tia de direitos e, consequentemente, o compartilhamento de seus processos com os atores deste sistema: Poder Judiciário, Ministério Público e outros órgãos do Poder Executivo (BRASIL, 2004).

Os serviços da proteção social especial dividem-se em dois níveis de complexidade: a Proteção Social Especial de Média Complexidade e a Proteção Social Especial de Alta Complexidade. Em que pese ambas estarem direcionadas ao atendimento das famílias e indivíduos em situação de direitos violados e possuírem como unidade pública de referência para o atendimento, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), diferenciam-se quanto a existência ou não de vínculos familiares e/ ou comunitários. Na Proteção Social Especial de Média Complexidade, já houve a violação de direitos, mas os vínculos familiares e comunitários ainda permanecem. Serão executados através do CREAS, com vistas à orientação e a manutenção do convívio sociofamiliar e comunitário. Diferenciando-se da proteção social básica por exigir uma maior estruturação técnico-operacional, bem como uma atenção mais individualizada, com acompanhamento sistemático e monitorado, a proteção social especial oferece os seguintes serviços de atendimento: serviço de orientação e apoio sociofamiliar; plantão social; abordagem de rua; cuidado no domicílio; serviço de habilitação e reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência e medidas socioeducativas em meio-aberto (Prestação de Serviços à Comunidade – PSC e Liberdade Assistida – LA). A Proteção Social Especial de Alta Complexidade é direcionada aos casos nos quais os vínculos familiares e/ou comunitários já foram rompidos, além da ocorrência de violação de direitos. Neste caso, são considerados aqueles serviços “que garantem proteção integral – moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e, ou, em situação de ameaça, necessitando ser retirados de seu núcleo familiar e, ou, comunitário”, destacando-se: o Atendimento Integral Institucional; Casa Lar; República; Casa de Passagem; Albergue; Fa-

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mília Substituta; Família Acolhedora; Medidas socioeducativas restritivas e privativas de liberdade (semiliberdade, internação provisória e sentenciada) e Trabalho protegido (BRASIL, 2004). Materializando o conteúdo da LOAS, o SUAS ao definir e organizar os elementos norteadores da nova política de assistência social, utiliza como referências, além da proteção social, a vigilância social e a defesa social e institucional. A vigilância social está relacionada

[…] à produção, sistematização de informações, indicadores e índices territorializados das situações de vulnerabilidade e risco pessoal e social que incidem sobre famílias/pessoas nos diferentes ciclos da vida (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos); pessoas com redução da capacidade pessoal, com deficiência ou em abandono; crianças e adultos vítimas de formas de exploração, de violência e de ameaças; vítimas de preconceito por etnia, gênero e opção pessoal; vítimas de apartação social que lhes impossibilite sua autonomia e integridade, fragilizando sua existência; vigilância sobre os padrões de serviços de assistência social em especial aqueles que operam na forma de albergues, abrigos, residências, semi-residências, moradias provisórias para os diversos segmentos etários. Os indicadores a serem construídos devem mensurar no território as situações de riscos sociais e violação de direitos. (BRASIL, 2004, p. 39)

A proteção social é relacionada à segurança de sobrevivência ou de rendimento e de autonomia, através de benefícios continuados e eventuais com vistas a assegurar a proteção social básica de idosos e pessoas com deficiência sem fonte de renda e sustento, de pessoas e famílias vítimas de calamidades e emergências ou em situações de forte fragilidade pessoal e familiar, em especial às mulheres chefes de família e seus filhos; à segurança de convívio ou vivência familiar, seja através de ações, cuidados e serviços que restabeleçam vínculos pessoais, familiares, de vizinhança, de segmento social, mediante a oferta de experiências

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socioeducativas, lúdicas, socioculturais, desenvolvidas em rede de núcleos socioeducativos e de convivência para os diversos ciclos de vida, suas características e necessidades e; à segurança de acolhida através de ações, cuidados, serviços e projetos operados em rede com unidade de porta de entrada destinada a proteger e recuperar as situações de abandono e isolamento de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, restaurando sua autonomia, capacidade de convívio e protagonismo mediante a oferta de condições materiais de abrigo, repouso, alimentação, higienização, vestuário e aquisições pessoais desenvolvidas através de acesso às ações socioeducativas (BRASIL, 2004). Já a defesa social e institucional determina que, tanto a proteção básica e a especial deverão ser organizadas de modo a garantir aos seus usuários o acesso ao conhecimento dos direitos socioassistenciais e sua defesa (BRASIL, 2004).

Assim, a criação do Sistema Único de Assistência Social traduz o rompimento definitivo com os resquícios da política anterior que apenas assegurava a permanência do indivíduo e da família na situação em que se encontravam, sem propiciar o desenvolvimento humano e social necessários e a proteção social dos indivíduos e, em especial, às crianças e adolescentes vítimas de violência. 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da latente ineficácia do sistema judicial na efetivação do direito fundamental de crianças e adolescentes à não violência familiar, torna-se primordial que se encontre outra via de garantia deste direito. Nesta seara, as políticas públicas seriam o eficaz instrumento na abolição de práticas culturais perpetuadoras da violência, por ser da natureza das políticas públicas que sejam determinadas por demandas sociais e incluírem a participação social. Partindo do pressuposto de políticas públicas como o conjunto de ações tendo como diretriz o atendimento das demandas

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da sociedade, torna-se imperioso em seu âmbito de atuação a construção de alternativas para uma educação familiar não pautada na violência, contribuindo assim para o desenvolvimento de uma cultura social comprometida com mudanças significativas com vistas a uma sociedade mais solidária e pacífica.

Nesse sentido, é imperioso observar que as políticas socioassistenciais se constituem, na atualidade, em uma das instâncias primordiais de enfrentamento da violência, ao se considerar que na proteção social básica existe toda uma estrutura e mecanismos aptos a possibilitar, pela via da prevenção, o fortalecimento dos laços familiares necessários para se impedir a perpetuação de práticas violentas sob a justificativa de educação. Há que se salientar que a mudança cultural no pensamento da sociedade brasileira pode ser promovida por meio de iniciativas realizadas nos CRAS, tendo em vista que este espaço, por suas peculiaridades, possui potencial por meio do PAIF e dos Serviços de Convivência para modificar a realidade com práticas educativas e sensibilizadoras centralizadas nas dinâmicas das famílias.

No tocante à Proteção Social Especial, tanto a de média quanto a de alta complexidade, há de se considerar que as situações de violência familiar se revestem de violação de direitos, o que remete diretamente à atuação por meio da equipe técnica-profissional desta seara da proteção. Nesse sentido, a atuação por essa via é a primeira que se espera seja qualificada com vistas ao enfrentamento imediato, tendo vista a necessidade de famílias e indivíduos em situação de direitos violados, a necessidade excepcional de retirada de quem sofreu a violência do convívio familiar e o recebimento de orientação e apoio sociofamiliar. Para tanto, há a necessidade de implantação dos CREAS e seus serviços como via de erradicação da violência em âmbito local e/ou regional. Diante da construção de mecanismos de proteção da criança e do adolescente frente a toda forma de violência e crueldade, é imperiosa a aplicação efetiva destes mecanismos. Considerando-se tanto o Poder Judiciário como demais instâncias do Estado respon-

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sável pelas políticas públicas e integrantes do sistema de garantia dos direitos humanos de crianças e adolescentes e, diante do fato de que as práticas judiciárias, de suma importância, mas ineficaz na desconstrução das raízes culturais que justificam e perpetuam a violência, é latente a necessidade de novas formas de enfrentamento, não baseado em relações de poder e na lógica punitiva e sim, de conscientização sociofamiliar que vise à construção de uma sociedade inserida em uma cultura pacífica. Nesse sentido, as políticas socioassistenciais reordenadas pelo SUAS, tornam-se centrais para atingir este objetivo. Desta forma, a assistência social caracteriza-se âmbito no qual há a real possibilidade de legitimação das demandas de usuários, como as oriundas de situações de violência e, consequentemente transforma-se em espaço para o protagonismo social e democrático da população. REFERÊNCIAS

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VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM GUNÉ-BISSAU: OS DOIS GRANDES “Ps” – PREVENÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS

Josiane Rose Petry Veronese Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUC/RS. Coordenadora do Curso de Direito da UFSC. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e subcoordenadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/UFSC. Autora de vários livros e artigos na área do Direito da Criança e do Adolescente. http://lattes.cnpq. br/3761718736777602. E-mail: [email protected]

Nancy Crisálida Pessoa da Fonseca da Silva Monteiro Djata Mestranda em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Inspetora Coordenadora do BCN-INTERPOL-Bissau. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – Nejusca e do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/UFSC.

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A PRIMEIRA CENA

Guiné-Bissau, país da costa ocidental da África, foi colônia de Portugal desde o século XV até proclamar unilateralmente a sua independência, em 24 de setembro de 1973. Esse país ainda é na atualidade espaço de grandes violações, incompatíveis como um Estado Democrático de Direito, que entre suas funções estaria, justamente, a promoção de direitos iguais para todos os seus cidadãos e, portanto, a constituição de políticas públicas que fossem capazes de dar uma atenção especializada e diferenciada para o seu enfrentamento.

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Nesse sentido faz-se necessária uma melhor compreensão do que se passa no imaginário da sociedade guineense em relação às crianças e adolescentes. Pouco a pouco o tema da violência vem ocupando mais espaço público, por causa das exigências e lutas dos movimentos sociais, cujo objetivo é acabar com uma série de violações, até então consideradas como próprias, “naturais”, em termos culturais, dessa sociedade, cite-se como fruto desta mobilização: a criminalização da violência doméstica, a criminalização da mutilação genital feminina, o direito à escolarização das meninas, em especial as do meio rural, a anulação do casamento forçado das meninas. A legislação sobre a violência doméstica e contra a mutilação genital feminina é bastante recente em Guiné–Bissau. Ainda hoje na sociedade guineense essas práticas são realizadas e justificadas com argumentos religiosos, especificamente o islamismo, que é uma das religiões predominantes neste país. Daí decorre a dificuldade de se tentar entender as razões que tornam tão difíceis o abandono dessas práticas, mesmo com a existência de leis que as proíbam, como é o caso da Lei 12/08/2011, que criminaliza a mutilação genital feminina.

No que concerne à violência doméstica, no imaginário do homem africano a mulher é sua propriedade, por isso teria o poder de correção sobre ela, não a vê como sua parceira, gozando dos mesmos direitos, mas como um ser inferior, uma efetiva coisa sobre a qual se tem a propriedade. Assim, em que pese o advento da Lei 02/08/2013, que criminaliza a violência contra a mulher, esta ainda não foi incorporada ao cotidiano dos homens africanos. Nesse sentido, deve ser destacado o papel da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH) e do Comité Nacional para o Abandono das Práticas Nefastas, os quais têm promovido debates relevantíssimos em parceria com a Agência das Nações Unidas para as Mulheres (ONU MULHERES).1

1

Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2014.

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A Constituição da República da Guiné-Bissau, no título II, que trata dos Direitos Liberdades, Garantias e Deveres fundamentais, determina no seu artigo 24: “Todos os cidadãos são iguais perante a lei, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres, sem distinção de raça, sexo, nível social, intelectual ou cultural, crença religiosa ou convicção filosófica”, enquanto que no artigo 25 traz a clássica concepção de que “O homem e a mulher são iguais perante a lei em todos os domínios da vida política, econômica, social e cultural”. Outras legislações sobre a matéria como a Lei de 02 de agosto de 2013, que criminaliza a violência doméstica; a Lei de 12 de agosto de 2011, que proíbe a mutilação genital feminina; o próprio Código Civil guineense, que prevê, na parte especial família e sucessão, a possibilidade de arguir nulidade do casamento forçado de menores de idade, costume este de igual modo comum nessa sociedade, uma ação violadora promovida pela própria família da infante, revelam-nos que há um grande caminho a ser trilhado, pois são leis que ainda não têm a sua pela eficácia. 2

A NECESSIDADE DO DEBATE

Este tema merece destaque pela sua atualidade, pois infelizmente não são violações que ocorriam em um passado distante, antes, estão presentes no dia a dia de milhares de crianças e mulheres que sofrem em silêncio ou silenciadas. A mobilização social, com destaque para a das mulheres, e o trabalho de sensibilização em torno das práticas violadoras têm sido muitíssimo relevantes, inclusive, mostrando ao mundo o que acontece em Guiné-Bissau. Nesse espaço de mobilização destaca-se o papel das ONGs, as quais lutam diariamente para acabar com todas as formas de violência contra crianças e mulheres, sendo uma das principais parceiras, também em âmbito internacional, neste imperioso processo de conquista de direitos e fim de toda barbárie. Em se tratando da normativa internacional, podemos citar a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-

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lência Contra a Mulher, conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, de 1994, que merece destaque: Artigo 1

Para os efeitos desta Convenção deve-se entender por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público como no privado. Artigo 2

Entender-se-á que violência contra a mulher inclui violência física, sexual e psicológica:

a) que tenha ocorrido dentro da família ou unidade doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou haja convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação, maus-tratos e abuso sexual;

b) que tenha ocorrido na comunidade e seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, maus-tratos de pessoas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no lugar de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro lugar, e c) que seja perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra.

A citada Convenção evidencia que o reconhecimento e o respeito irrestrito de todos os direitos da mulher são condições indispensáveis para seu desenvolvimento individual e para a criação de uma sociedade mais justa, solidária e pacífica e destaca a responsabilidade histórica de fazer frente a esta situação para procurar soluções positivas.

Em se tratando dos direitos da criança, convém recordar que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ONU, 1989, em seu artigo 19, que tem, inclusive, Guiné-Bissau como

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um dos países signatários, proclama que a infância tem direitos a cuidados e assistência especiais. Reconhece, a família como grupo fundamental da sociedade e meio natural para o crescimento e bem-estar de todos seus membros, e em particular das crianças e adolescentes, que devem receber proteção e assistência necessárias para poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade. Artigo 19

1. Os Estados-partes tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela.

2. Essas medidas de proteção deverão incluir, quando apropriado, procedimentos eficazes para o estabelecimento de programas sociais que proporcionem uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, assim como outras formas de prevenção e identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior de caso de maus-tratos a crianças. acima mencionadas e, quando apropriado, intervenção judiciária.

O Pacto de São José da Costa Rica, de igual modo, preceitua: Artigo 5º - Direito à integridade pessoal

1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral Artigo 17 - Proteção da família

1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. […]

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Portanto, o sistema normativo internacional prevê a possibilidade de obstarmos definitivamente com as violações em todos os níveis, em todos os planos. No entanto, como o sabemos, o conjunto normativo, ainda que importante como alavanca central de toda uma necessidade de mudança, precisa caminhar lado a lado como a formação de uma nova mentalidade, uma nova conscientização da sociedade para a não violência, e em termos da responsabilidade do Estado, a efetiva estruturação de políticas públicas. 3

UM NOVO CENÁRIO PARA A FAMÍLIA

A família é fundamental para o desenvolvimento do ser humano, pois é nela que a criança vai se inteirando consigo mesma e com os outros. Desde os primeiros momentos de vida, na construção de um vínculo regular, seguro e contínuo com as pessoas que a constituem, a criança se comunica com o ambiente que deve oferecer-lhe todos os estímulos necessários para um desenvolvimento adequado, daí a importância do afeto, do aconchego familiar, do limite preciso sem ser autoritário e muito menos violento, para que a criança possa crescer e se estruturar de forma sadia e equilibrada. Uma criança que nasce no interior de um ambiente familiar violento e desequilibrado, que não a respeita em seus direitos fundamentais, é uma criança que, infelizmente, carece de elementos constitutivos fundamentais. A violência doméstica é sentida pela criança e pelo adolescente como uma guerra, pois os agressores estão próximos, e o mais paradoxal é que tal violência se estabelece no lugar onde se espera acolhimento, proteção, carinho e respeito.

A criança que sofre violência na família poderá vir a ter sérias consequências no decorrer de sua vida, quando adolescente e adulto. Ela poderá internalizar valores e normas distorcidos da realidade, podendo tornar-se extremamente agressiva, amarga, outras vezes, introspectiva ou apática e, infelizmente, com enormes possi-

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bilidades de vir a ser portadora de uma estrutura de personalidade “antissocial”.

Na realidade, essa criança terá uma enorme tendência a repetir o que viveu, o que experienciou no ambiente familiar, afinal estes são os registros que lhe foram passados. Uma criança que foi vítima de violência doméstica poderá repetir esse modelo, tornando-se uma mãe ou pai violentos. A personalidade do indivíduo refere-se ao modo relativamente constante de perceber, pensar e agir do mesmo. Esse “todo” peculiar a cada um é marcado por valores, crenças, habilidades, atitudes, desejos, emoções, o modo de comportar-se. Assim sendo, não temos como separar a personalidade do indivíduo das experiências de sua infância, dos ensinamentos recebidos, dos estímulos do meio em que vive.

Lamentavelmente, apesar de várias décadas de evolução da humanidade, dos notáveis avanços tecnológicos, de verdadeiros milagres no campo da genética, na cura de doenças, no aprimoramento da democracia, na igualdade entre os sexos, não conseguimos evoluir no sentido de protegermos nossas crianças e adolescentes de todos os tipos de violência a que estão submetidas, em especial a violência doméstica. Tal violação é de extrema preocupação por ser justamente o lar o ambiente apropriado para que a criança se desenvolva, sinta-se segura e amada, no entanto, quando ele é o local em a que maltratam, a espancam, tem-se aí o espaço da morte do sujeito, da destruição de todos os seus sentimentos. Para que os direitos de toda criança, de todo adolescente não se restrinjam à norma, faz-se necessário uma transformação estrutural e de mentalidade da sociedade, pois, o problema da violência não é fruto somente de questões vinculadas a um modelo sócio-político-econômico excludente, individualista e de exacerbado consumo, ela está também relacionada com a falta de solidariedade, do aniquilamento dos valores e da busca desenfreada por bens materiais. Chegamos a um estágio de nossas vidas em que não mais valorizamos o ser e sim o ter, e mais recentemente – considerando

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a realidade do ciberespaço – a do aparentar ser; e nesse contexto vamos nos perdendo enquanto filhos, mães, pais, enfim, como seres humanos. 4

A CENA FINAL: OS DOIS GRANDES “PS” – PREVENÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS

A prevenção pode ser considerada o aspecto mais importante do sistema normativo. A lei por si mesma não tem força para alterar uma conduta individual e social. A norma, fundamentalmente, é educativa e deveria obter a aceitação das pessoas para evitar as medidas coercitivas, de caráter exclusivamente punitivo. Devemos fomentar a sensibilização, proporcionar a formação e capacitação sobre como prevenir a violência doméstica, por intermédio de programas educativos que eduquem, sensibilizem e conscientizem a população sobre a importância de se prevenir e combater a violência, bem como promover ações e programas de proteção social as suas possíveis vítimas.

No Brasil, exemplificativamente, podemos citar a Lei Maria da Penha, para o universo da violência doméstica e o Estatuto da Criança e do Adolescente, que por meio de suas medidas protetivas pretendem criar uma nova cultura social, enfrentando o problema da violência, com destaque para a violência doméstica, que hoje se apresenta como um dos mais graves em nossa sociedade e que nos leva a uma desintegração ou mesmo à descrença da família como importante núcleo societário. Há que se falar de importante alteração no Estatuto da Criança por meio da Lei nº 13.010, 26 de junho de 2014 – conhecida até então como Lei da Palmada e que foi sancionada em seguida ao lastimável caso do “Menino Bernardo”, a qual tem a proposta de que é possível educar sem o emprego da violência, seja qual for (VERONESE, 2015). Num primeiro momento cabe à família, principalmente aos pais, garantir o cumprimento das funções básicas de assistência material, moral, espiritual, cultural e jurídica a que têm direito as

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crianças e adolescentes, face ao seu processo de desenvolvimento. Também a sociedade tem o dever de zelar para que os direitos das crianças e adolescentes não sejam violados, portanto, o olhar zeloso de todos. E, neste tripé de corresponsabilidade, destaca-se o papel fundamental do Estado, no estabelecimento de todos os mecanismos necessários, em especial de políticas públicas, destinadas a exterminar todas as possibilidades de violações. Portanto, neste cenário de responsabilidade tri-partite visualizamos o importantíssimo e imprescindível papel de construção de políticas públicas, em especial aquelas dirigidas à família, como forma de protegê-la e proporcionar-lhe as condições para a realização de sua primeira vocação: a de ser a primeira a gerar sociabilidade e vínculos de afeto e cuidado. Enfim, entendemos que devamos recuperar o humanismo e impedir que toda a construção civilizatória se volte contra si mesma, portanto é imperioso que conquistemos a nossa real humanidade, reconhecendo-a em nós e no outro. REFERÊNCIAS

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AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS ENQUANTO MECANISMO DE PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Marli Marlene Moraes da Costa Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, com pós-doutorado em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha, com Bolsa Capes. Professora da Graduação e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professora da Graduação em Direito na FEMA – Fundação Educacional Machado de Assis de Santa Rosa. Coordenadora do Grupo de Estudos “Direito, Cidadania e Políticas Públicas” da UNISC. Advogada e psicóloga com especialização em Terapia Familiar – CRP n. 07/08955, autora de livros e artigos em revistas especializadas. E-mail: [email protected]

Rodrigo Cristiano Diehl Pós-graduando (lato sensu) em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito - EDP. Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Integrante dos grupos de pesquisa: Direito, Cidadania e Políticas Públicas (Campus Santa Cruz do Sul – RS e Campus Sodradinho – RS); Direito Humanos; A Decisão Jurídica a partir do Normativismo e suas Interlocuções Críticas, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da UNISC. Bolsista de Iniciação Científica da FAPERGS, coordenado pela Pós-Dra. Marli M. M. da Costa. E-mail: [email protected]

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para sugerir uma alternativa de política de justiça para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar, inicialmente, é necessário reconhecer que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) está com a lógica punitiva, quando se preocupa apenas com um dos polos: a mulher, esquecendo que o homem agressor também é uma vítima da cultura patriarcal, e que mais

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que responsabilizado precisa lhe ser oportunizado um processo sério e educativo.

Nesse aspecto, é possível pensar nos círculos restaurativos ou de construção de paz, para que esses homens, em sua grande maioria, autores de violência de gênero reconstruam um caminho de ressignificação e compreensão, de o quanto manter a convivência com a ex-companheira não é somente violento ou destrutivo para ela, mas para ele e seus filhos.

Desse modo, para avançar nesse universo complexo e perverso que envolve a família, interessa primeiramente demonstrar neste artigo, de maneira a situar o leitor, o modelo restaurativo de justiça em processo de implementação no Brasil, para depois aprofundar a reflexão no sentido de verificar se é possível aplicar essa prática (adiantamos que sim) nos casos de violência doméstica e familiar. E, por fim, analisar se com o recepcionamento das práticas restaurativas para superação da violência doméstica e familiar e dado a fragilidade ou inoperância da Lei nº 11.340/06, deve-se pedir pela descriminalização dela na atual sociedade. Para isto, utiliza-se o método hipotético dedutivo como metodologia de abordagem, uma vez que consiste na adoção tanto do procedimento racional quanto do procedimento experimental. Dessa forma, a pesquisa desenvolver-se-á sobre preposições hipotéticas que se acredita serem viáveis. No que concerne às técnicas, o aprofundamento do estudo será realizado com base em pesquisa bibliográfica, baseada em dados secundários, como, por exemplo, livro, artigos científicos, publicações avulsas, revistas e periódicos qualificados dentro da temática proposta. 2

A SUPERAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A PARTIR DO ENGAJAMENTO DA COMUNIDADE

Nos tempos atuais, cada vez mais tem-se buscado (re)pensar no sentido de justiça, dadas as relações humanas que se quer alcançar em face a determinados conflitos sociais inerentes dos mais

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variados espaços ocupados pelo ser humano. Nesse viés, a Justiça Restaurativa é uma possibilidade de justiça alicerçada na multiplicidade humana e valorativa, em que se propõe a restauração da responsabilidade, da liberdade e da harmonia, por meio do sentimento de pertencimento e senso de comunidade. Não se pacifica os conflitos com a estrutura antiga, se faz necessário um espaço democrático amplo e de maior proximidade com a comunidade para juntos (poder judiciário, o município e os demais atores da rede) elaborarem as melhores estratégias de não conflituosidade. Pode-se afirmar que existe uma preocupação em transformar os espaços decisórios em cenários menos burocráticos, na construção de espaços de diálogo mais democráticos (SALM; LEAL, 2012). Sobre conflitos, interessa aqui a seguinte aproximação conceitual de que,

[…] en lo que se refiere a las teorías más relevantes con respecto al conflicto cabe destacar las teorías psicológicas, según las cuales el término conflicto designa, en primer lugar, un conflicto intrapsíquico, consciente o inconsciente. El conflicto se representa como un estado de un organismo sometido a unas fuerzas contradictorias. Esta situación conflictiva es universal e incluso cotidiana. (VISALLI, 2006, p. 36)

Ressalta-se ainda a importância da delimitação conceitual sobre os conflitos, pelo fato de compreender que eles podem ser pano de fundo para os crimes, e principalmente ser geradores de oportunidades para o desenvolvimento dos sujeitos no contexto social, exercendo o diálogo enquanto princípio de estabelecimento da humanidade. A partir disso, também se entende que os princípios e práticas de Justiça Restaurativa partem da crítica às premissas tradicionalmente vinculadas à justiça do sistema retributivo-penal, perquirindo sua perda do foco quanto aos relacionamentos subjacentes ao conflito ou à infração, à sua desatenção para as necessidades da

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vítima e à consequente desconsideração das possibilidades de reparação dos danos como forma de promover a pacificação social, fortalecer o senso de cidadania, os vínculos comunitários e a coesão social mediante a ocupação de espaços de autocomposição de conflitos inspirados num modelo de participação democrático e deliberativo (SALM; LEAL, 2012). A Justiça Restaurativa pode ser entendida como outra maneira de se enxergar que “o sistema institucional de justiça não é senão reflexo de um padrão cultural, historicamente consensual, pautado pela crença na legitimidade do emprego da violência como instrumento compensatório das injustiças e na eficácia pedagógicas das estratégias punitivas” (ZEHR, 2012, p. 10).

Dentro desse entendimento, para alguns, a Justiça Restaurativa é um processo de encontro, um método para lidar com o crime e a injustiça que inclui os interessados na decisão sobre o que efetivamente deve ser feito. Para outros, significa uma mudança na concepção de justiça, que se pretende ao ignorar o dano causado pelo delito privilegiar a reparação em detrimento da imposição de uma pena. Outros entendem que se trata de um rol de valores centrados na cooperação e na resolução do conflito, forma de concepção reparativa. “Por fim, há quem diga que busca uma transformação nas estruturas da sociedade e na forma de interação entre os seres humanos e destes com o meio ambiente” (PALLAMOLLA, 2009, p. 59). Embora, a Justiça Restaurativa seja um movimento ainda novo e emergente, existe um crescente consenso internacional em relação a seus princípios, inclusive documentos da ONU e da União Europeia, que validam e recomendam as práticas restaurativas para todos os países. Na Resolução nº 2000/12, de 24 de julho de 2000, do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, a ONU divulga os Princípios Básicos para a Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal. Diga-se de passagem, nas sociedades ocidentais, a Justiça restaurativa é implementada utilizando os modelos de tradições indígenas do Canadá, dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. A partir de 1989, “a Nova Zelândia fez da Justiça

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Restaurativa o centro de todo o seu sistema penal para a infância e a juventude” (PINTO, 2005). Apesar disso, o termo “Justiça Restaurativa” recepciona ampla gama de programas e práticas; no seu bojo, ela é um conjunto de princípios, uma filosofia, uma série alternativa de perguntas paradigmáticas, que em última análise oferece uma estrutura alternativa para se pensar nos danos.

Corrobora-se que a instituição de práticas restaurativas se configura em novo olhar na esfera judiciária, nas relações familiares e comunitárias, abrindo um horizonte de participação democrática e de autonomia, ao construir espaços específicos que possibilitam o diálogo pacífico entre as partes envolvidas em um conflito. “Não raro, vítimas, ofensores e membros da comunidade sentem que o sistema deixa de atender adequadamente às suas necessidades” (PINTO, 2005). Inúmeros entendimentos errôneos sobre o real sentido da Justiça Restaurativa deturpam sua aplicação, assim é fundamental definir aquilo que ela não é. A Justiça Restaurativa não tem como objeto principal o perdão ou a reconciliação, esta é uma escolha que fica totalmente a cargo dos envolvidos; a Justiça Restaurativa não é mediação, pois em um conflito mediado se presume que as partes atuem num mesmo nível ético, geralmente com responsabilidades que deverão ser partilhadas. Ainda que o termo “mediação” tenha sido adotado desde o início dentro do campo das práticas restaurativas, ele vem sendo cada vez mais substituído por termos como “encontro” ou “diálogo” (ZEHR, 2012). Considera-se ainda que a Justiça Restaurativa não tem por objetivo principal reduzir a reincidência ou as ofensas em série, nem é um programa ou projeto específico. “É um convite ao diálogo e à experimentação e não necessariamente uma alternativa ao aprisionamento” (ZEHR, 2012, p. 21).

O conceito da Justiça Restaurativa fala da justiça como valor e não apenas como instituição, e tem o foco nas necessidades determinantes e emergentes do conflito, de forma a aproximar e corresponsabilizar todos os participantes, com um plano de ações que ob-

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jetiva restaurar laços familiares e sociais, compensar danos e gerar compromissos futuros mais harmônicos e uma sociedade mais segura. Baseia-se numa ética de inclusão e de responsabilidade social, no conceito de responsabilidade ativa. É essencial na aprendizagem da democracia participativa fortalecer indivíduos e comunidades para que assumam o papel de pacificarem seus próprios conflitos e assim interromper as cadeias de reprodução da violência. A Justiça Restaurativa, assim, não é só um conjunto de práticas em busca de uma teoria; é também um aglomerado de concepções culturais desenvolvidas em contextos determinados que, com a implementação desse modelo de resolução, talvez esteja sendo implicitamente retrabalhado para se adequar aos novos contextos. Nesse sentido, a Justiça Restaurativa e suas práticas são compreendidas como moldadas dentro de um arranjo cultural mais amplo, incorporando conceitos, valores e “visões de mundo” e, ao atuarem, ajudam a gerar e a manter essas formas culturais que adotaram. Assim, a Justiça Restaurativa implementada é o resultado de um processo de lutas, alianças e transformações de aspectos culturais anteriores a sua implementação e aqueles por ela veiculados. Com isso, de acordo com Salm e Leal (2012), reconhece-se o princípio da não neutralidade, o compromisso com o resgate do tecido social por meio da pacificação do conflito e o compromisso em devolver à sociedade essa resolução, pelo (re)empoderamento da fala. 3

AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS COMO MECANISMOS EFICAZES NA PACIFICAÇÃO DOS CONFLITOS

As práticas restaurativas têm sua origem nos modelos de organização das sociedades comunais pré-estatais europeias e nas coletividades nativas, as quais, por sua vez, exerciam a regulamentação social embasadas na manutenção da coesão do grupo, privilegiando os interesses coletivos em detrimento dos individuais. Nessas comunidades, a transgressão de uma norma implicava o

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restabelecimento do equilíbrio quebrado, buscando encontrar uma solução para o problema causado. Nas sociedades ocidentais, a Justiça Restaurativa é implementada utilizando os modelos de tradições indígenas do Canadá, dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. Corrobora-se que a Irlanda foi o primeiro país a empregar práticas restaurativas, especialmente na resolução de conflitos envolvendo adolescentes (CUSTÓDIO; COSTA; PORTO, 2010).

Os autores distinguem Justiça Restaurativa de práticas restaurativas quando mencionam que “o conceito de práticas restaurativas tem suas raízes na Justiça Restaurativa, uma maneira de encarar a justiça criminal que se concentra em reparar o dano causado às pessoas e aos relacionamentos” (COSTELLO; WACHTEL; WACHTEL, 2011, p. 8), em vez de punir os infratores – mesmo que a aplicação da Justiça Restaurativa e das práticas restaurativas não impeça a prisão de infratores ou outras sanções. Originária dos anos 70 como uma mediação entre vítimas e infratores, incluindo comunidades de cuidados também, com a participação das famílias e dos amigos das vítimas e dos infratores nos processos colaborativos denominados de práticas restaurativas. Assim, apresentam-se como uma ferramenta emancipatória e comunitária de pacificar os conflitos por meio de uma comunicação não violenta, priorizada pela harmonia e pelo (re)estabelecimento da comunicação e das relações sociais entre os cidadãos. A partir disso, rompe-se com paradoxos punitivos e retributivos que se voltam apenas para o autor do fato delituoso, uma vez que somente essa punição não é suficiente para garantir os direitos humanos e fundamentais dos indivíduos atingidos pelo dano (DIEHL; COSTA, 2015). Do ponto de vista das práticas restaurativas, fazer justiça significa fornecer resposta sistemática para as infrações e medir as suas consequências, enfatizando a cura das feridas causadas pelo malfeito, dando destaque à dor, à magoa e à ofensa, contando para este feito com a colaboração e a participação de todos os envolvidos na pacificação dos conflitos. Assim, práticas de justiça com finalida-

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des restaurativas “identificam os males infligidos e influem na sua reparação, envolvendo as pessoas e transformando suas atitudes e perspectivas em relação convencional com o sistema de Justiça” (SCURO, 2000, p. 18).

As práticas restaurativas são um processo comunitário, não somente jurídico, em que as pessoas envolvidas em uma situação de violência ou conflito, vítima, ofensor, familiares, comunidade, participam de um círculo restaurativo, coordenado por um facilitador, em que é proporcionado um espaço de diálogo, onde essas pessoas abordam seus problemas, identificam suas necessidades não atendidas e buscam construir soluções para o futuro, procurando restaurar a harmonia e o equilíbrio entre todos os envolvidos no litígio. A abordagem realizada tem foco nas necessidades determinantes e emergentes do conflito, visando a uma aproximação e responsabilização dos envolvidos, com um plano de ações que procura restaurar os laços sociais, os danos e criar responsabilidades e compromissos futuros harmônicos (DIEHL; COSTA, 2015). Para a implementação das práticas restaurativas, é essencial a existência de democracia participativa, mecanismo capaz de fortalecer as relações entre indivíduos e comunidade, contribuindo para que os próprios cidadãos assumam o papel de pacificadores de seus próprios conflitos, atenuando os índices de violência. Logo, percebe-se que há um reforço na interconexão entre os atores sociais, e ao mesmo tempo as práticas reconhecem que todos os membros de uma comunidade, independentemente de serem vítimas ou infratores, estão unidos por meio de princípios comuns por constituírem uma comunidade compartilhada. Por consequência, as infrações ocorridas no meio social também são de responsabilidade da comunidade local, que pode contribuir com a restauração dos danos causados à vítima, assim como com a reintegração do ofensor ao seio comunitário. Entretanto, essas práticas restaurativas não são, de modo algum, resposta para todas as situações. Nem está claro que devam substituir o sistema penal, mesmo num mundo ideal. Muitos enten-

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dem que, mesmo que as práticas restaurativas pudessem ganhar ampla implementação, algum tipo de “sistema jurídico ocidental (idealmente orientado por princípios restaurativos) ainda seria necessário como salvaguarda e defesa dos direitos humanos e fundamentais” (ZEHR, 2012, p. 23). As diferentes e múltiplas ferramentas que se utilizam neste novo modelo, como ponto de partida, podem comportar uma unificação das práticas restaurativas, que, em geral, é acolhida por diversos autores, pois se trata de um processo pelo qual todas as partes que têm interesse em determinada ofensa se juntam para pacificá-lo coletivamente e para tratar suas possíveis implicações futuras. Desse modo, uma das principais diferenças presentes no sistema das práticas restaurativas em relação ao modelo tradicional de justiça é a existência de um diálogo, entendido como um processo comunicacional. Este novo modelo preconiza um diálogo acerca do sucesso delitivo entre as partes (SANTANA, 2007). Contudo, as mesmas dificuldades observadas na definição das práticas restaurativas também atingem os objetivos deste método, que é direcionado à conciliação e à reconciliação das partes, à pacificação do conflito, à reconstrução dos laços rompidos, à preservação da reincidência e à responsabilização. Entretanto, não há necessidade de que todos esses objetivos sejam efetivamente alcançados em um único procedimento restaurativo. Assim, as práticas restaurativas podem ser definidas como uma maneira de lutar contra a injustiça e contra a estigmatização, uma vez que buscam a redução da injustiça e não meramente a diminuição dos delitos (PALLAMOLLA, 2009).

Pretende-se com isso que a participação das partes que se envolveram em um fato delitivo, o infrator e a vítima, em consequência e a priori, seja indispensável no processo. Ambas as partes são guiadas por meio do processo comunicacional e da ajuda do facilitador, cuja tarefa é auxiliar os integrantes a gerarem um clima suficientemente aceitável para encontrarem soluções ao conflito. Os princípios da Justiça Restaurativa estão baseados no respeito à

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dignidade de todas as partes afetadas por um fato delituoso. Esse movimento prioriza maximamente as demandas humanas de participação e de comunicação de sentimentos e necessidades reais (SANTANA, 2007).

Diante desse contexto, as práticas restaurativas podem ser tidas para alguns como um processo de encontro, um método de lidar com o delito e a injustiça; outros acreditam que se trata de um rol de valores que busca a cooperação e a pacificação do conflito de forma respeitosa. Há quem afirme representar uma mudança na atual concepção de justiça; e, por fim, há também quem diga que visa à transformação nas estruturas da sociedade e na forma como os seres humanos interagem em seu meio (PALLAMOLLA, 2009). Procurar uma definição para as práticas restaurativas não é tarefa simples. Desde o seu surgimento, vem conquistando grande destaque na área do Direito, mas tanto seus organizadores quanto os seus adeptos têm tomado grande cautela ao tentar defini-la. Esse cuidado se justifica quando se olha para as inúmeras e infrutíferas teorias e paradigmas comportamentais criados ao longo da história jurídica a fim de encontrar um adequado instrumento de controle social. Para ter um conceito do que são as práticas restaurativas, então, é preciso aprender a aceitar que ela pode ser uma herança cultural, um conjunto de práticas conciliadoras, uma filosofia de vida, um movimento jurídico, uma alternativa ao defasado sistema retributivo-penal, tudo junto e ao mesmo tempo. De qualquer forma, em origem, todas as suas interpretações podem ser traduzidas em uma única coisa: a proposta de se repensar a Justiça enquanto Valor (COSTA; PORTO, 2014). O que diferencia as práticas restaurativas, de maneira geral, dos outros métodos de pacificação de conflitos é a sua forma de encarar e agir, fundamentada em valores e princípios como o respeito, a honestidade, a humildade, a responsabilidade, a esperança, o empoderamento, a interconexão, a autonomia, a participação e a busca de sentido e de pertencimento na responsabilização pelos danos

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causados. Baseia-se numa ética de inclusão e de responsabilidade social, promovendo o conceito de responsabilidade ativa (COSTA; PORTO, 2014).

Portanto, as práticas restaurativas consistem em uma experiência democrática, pela qual os participantes falam e escutam de forma respeitosa a todos, e assim elas são compreendidas como um caminho que levará a bons resultados. Mas a questão principal é saber se esses resultados foram efetivamente alcançados. E na busca pela solução da questão, “passou-se a prestar atenção nos valores que devem guiar estes encontros, mesmo que se tratem de diferentes processos restaurativos” (PALLAMOLLA, 2009, p. 56).

À vista disso, as práticas restaurativas são um caminho de abertura da justiça que põe ênfase em reparar as consequências do fato delituoso, entendido como uma violação da comunidade, das relações e uma destruição da paz social. São colaborativas e inclusivas, regeneram e supõem a participação da vítima, do ofensor e da comunidade afetada pelo feito, buscando uma solução que se encaminhe para a reparação do dano e devolva a harmonia destruída. O principal propósito da intervenção é restaurar a paz social, reparar ou remediar o dano causado, evitando assim a revitimação, frente a um paradigma construído sobre os auspícios dos elementos da mediação, da reconciliação, da restituição e da compensação (SANTANA, 2007).

O que se está apresentando com a Justiça Restaurativa e, por consequência, com as práticas restaurativas é que um elemento fundamental da justiça está diretamente ligado com criação de sentido. Ou seja, a justiça é feita quando o sentido do delito é construído a partir de experiências e perspectivas daqueles que foram afetados: vítima(s), agressor(es) e os membros da comunidade local. “Esse sentido não pode ser imposto por especialistas ou representantes externos, é necessário que a voz das vítimas, bem como a dos infratores, seja ouvida diretamente” (ZEHR; TOEWS, 2006, p. 419). Contudo, para isso, necessita-se de uma reorganização de papéis e de valores dos atores sociais, inclusive dos facilitadores.

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Nesse sentido, o facilitador, aquele que conduz as práticas restaurativas mediante o uso de técnicas muito precisas, vai progressivamente delimitando os aspectos das diferenças entre os facilitados, transformando suas paixões em posições, suas posições em interesses, e estes, finalmente, em pedidos. Inclusive, permite às partes participarem ativamente na regulação de seu próprio problema, fazendo-as protagonistas não tanto da situação do conflito, mas da sua pacificação, mudando de atitude diante dos demais, com o propósito de transformar o paradigma cultural, devolvendo à comunidade local uma parcela de protagonismo, o que lhes permite apropriarem-se de seu próprio conflito (SANTANA, 2007).

Diante desse cenário, reafirma-se o princípio da não neutralidade, prevalecendo o compromisso pelo resgate do tecido social por meio da pacificação do conflito e o acordo em devolver para a sociedade essa solução. “Tal profanação do monopólio da fala, do dizer, seria um pressuposto fundamental para uma juridicidade alternativa” (SALM; LEAL, 2012, p. 12). Igualmente, desde o primeiro momento em que ocorre um delito, são especialistas que apresentam e atribuem sentido ao fato.

Após a descoberta do crime, os policiais são geralmente os primeiros a chegar ao local do crime. O policial provavelmente escreverá um relatório com a descrição da infração, com base nas versões da vítima e das testemunhas. Ao fazer esse registro, é o policial quem decide qual informação deve ser incluída e criar uma tradução dos eventos que passa a ser a verdade inicial da infração. A infração então passa para as mãos de outro conjunto de especialistas neutros, os advogados, juízes e peritos forenses. Os advogados analisam e selecionam as histórias fornecidas pelo infrator, vítima e testemunhas, a fim de determinar qual informação é mais próxima da verdade relevante e útil, para os fins de acusação ou defesa do réu. Eles determinam também qual a acusação da qual o réu deve defender-se. São eles quem avaliam qual o caminho mais eficaz na acusação ou defesa do réu e aceitam ou rejeitam os acordos judiciais em nome de seus clientes. A informação é apresentada a um juiz, e

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algumas vezes a um júri que, por sua vez, determina o que é relevante e toma a decisão final em relação ao caso. (ZEHR; TOEWS, 2006, p. 422)

Dessa forma, assume-se como verdadeira a premissa de que o impacto de cada atendimento orientado pelos valores da Justiça Restaurativa e, consequentemente, aplicado às práticas restaurativas não se restringe apenas às pessoas presentes, todavia alcança seu entorno familiar e comunitário, multiplicando o alcance dos ideais restaurativos. Como resultado desse fenômeno, instaurar-se-á novo paradigma, baseado em uma Cultura de Paz, no qual as pessoas e as comunidades aprenderão a pacificar seus próprios conflitos e a prevenir a violência (COSTA; PORTO, 2014).

Quando uma pessoa se expressa oralmente, suas palavras jamais poderão separar-se completamente da pessoa. Isto ocorre inclusive nas ocasiões em que as palavras são ouvidas por testemunhas, as quais serão confrontadas com o emissor da respectiva mensagem, devido ao caráter flexível e transitório do meio de comunicação. Porém, as palavras escritas, de outra parte, criam uma distância entre o autor da mensagem e a maneira como essa mensagem se expressa, entre uma afirmação voluntária da pessoa e um fetiche interpessoal que adquire vida própria. Por uma parte, está a autonomia do compromisso escrito e a possibilidade de uso contra a própria pessoa que realiza esse compromisso. Pela outra, existe um sentimento de alienação experimentado pelo indivíduo diante de sua própria criação, um sentimento de antiposse e, para tanto, de impotência para afrontar e controlar o compromisso como seu (SANTOS, 2010). Dessa forma, cabe salientar que a exigência da voluntariedade como característica essencial das práticas restaurativas permite incorporar prestações a favor da vítima que não sejam exigíveis na via civil ou prestações reparadoras em benefício da comunidade. As práticas restaurativas, entendidas como a contribuição autônoma ao restabelecimento, constitui um aliado perante a exigência coa-

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tiva de responsabilidade mediante a pena, mas também um aliado frente à simples condenação de ressarcimento do dano causado (SANTANA, 2007).

O que interessa não é necessariamente revelar uma verdade objetiva como processo de alta integridade, mas tornar visíveis verdades múltiplas – em que a verdade da vítima pode ser diferente da do ofensor. Nesse sentido, a razão conectada com a emoção por meio da experiência prática forja a integridade como um propósito holístico. Esse propósito em questão é a finalidade de descobrir toda a verdade por intermédio da experiência prática efetiva de todos os membros. Para que a busca da verdade seja de grande utilidade, deve ser deliberativa, atenta às múltiplas formas de evidências, e aberta ao exame e às críticas da sociedade (BRAITHWAITE, 2006). Com tal característica, o regulamento responsivo defende uma quantidade contínua de respostas, em lugar de respostas singulares e prescritas. Essa abordagem “pode ser contrastada com o formalismo regulador, onde o problema e as respostas são predeterminados e designados por códigos de conduta, leis e outras regras de compromisso” (MORRISON, 2005, p. 303). Caracteristicamente, uma resposta formalizada engloba julgamento moral acerca da gravidade da ação e um julgamento legal sobre o castigo apropriado.

Essa falta de uniformidade, que pode surpreender ou mesmo escandalizar a quem a enxerga com os olhos etnocêntricos do direito oficial, não é, sem dúvida, caótica. “Es determinada por las exigencias normativas y de seguridad, que se van definiendo a lo largo del proceso de prevención o resolución de los conflictos” (SANTOS, 2010, p. 220). Assim, as formas e os requisitos processuais mantêm um estrito caráter instrumental e, como tal, são utilizados somente na medida em que possam contribuir para uma decisão justa para o conflito, sendo desenvolvidos a partir do formalismo elaborado pelo sistema jurídico estatal, um formalismo denominado popular. Corrobora-se que a instituição de práticas restaurativas se configura em novo olhar na esfera judiciária, nas relações familiares

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e comunitárias, abrindo um horizonte de participação e autonomia, ao construir espaços específicos que possibilitam o diálogo pacífico entre as partes envolvidas em conflito (COSTA; PORTO, 2014).

Entretanto, é necessária a urgente avaliação dos métodos empregados, avaliando inclusive os processos, resultados, bem como os objetivos e o funcionamento das organizações. Precisa-se aliar o que está sendo feito e comparar com o que se pensa estar fazendo. “Uma maneira interessante de avaliar um programa de Justiça Restaurativa é perguntar a todas as partes e atores envolvidos o que eles acreditam estar fazendo e o porquê” (ZEHR, 2006, p. 414). Ao realizar este procedimento, é possível chegar à conclusão de que todo mundo está participando de um jogo distinto, e que nem todos estão vendo as coisas da mesma maneira que os demais. Portanto, as práticas restaurativas são um caminho que “reúne a sabedoria ancestral da vida comunitária com os conhecimentos modernos sobre dons individuais e o valor da discordância e das diferenças” (PRANIS, 2010, p. 92). Durante a aplicação dos procedimentos respeita-se tanto o individual quanto o coletivo, e assim, com a interação de cada membro, também se encontra a ligação com o espírito coletivo.

O resultado restaurativo significa um acordo alcançado devido a um processo restaurativo, incluindo responsabilidades e programas, tais como reparação, restituição, prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e logrando a reintegração da vítima e do ofensor à vida em sociedade (COSTA; PORTO, 2014).

De qualquer sorte, as práticas restaurativas fazem parte do contexto de justiça, de forma que podem ser empregadas nas mais diversas instituições que constituem a sociedade, como, por exemplo, as escolas, os centos comunitários e até mesmo na prevenção e no combate à violência doméstica e familiar, como será visto na sequência, ao se diferenciar das formas habituais de prevenção de conflitos, a Justiça Restaurativa chega como uma proposta simples, emancipadora e eficiente.

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A QUEM PERTENCE A JUSTIÇA RESTAURATIVA E AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS? E A SUA (IN)APLICABILIDADE NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR

Muito embora as práticas restaurativas tenham sido motivadas por iniciativas do Poder Judiciário, é importante afirmar a necessidade que o povo brasileiro tem de resgatar sua identidade histórica para ter bem claro o seu sentido de justiça e a melhor prática que se adapte à sua realidade. Assim, a justiça restaurativa ainda é uma busca de justiça, por meio da ruptura de paradigmas arraigados culturalmente desde o período de colonização que moldaram as instituições, inclusive a do Judiciário. Nessa lógica, as pessoas têm uma ideia distorcida de justiça com a prática jurídica, não compreendendo que a justiça pertence a elas: ao coletivo, à comunidade. Sobre a aplicabilidade das práticas restaurativas nos casos de violência doméstica e familiar, o juiz Brancher (online), apresenta dois argumentos contrários, o primeiro é pelo fato de a vítima poder acabar sendo revitimizada segundo os desdobramentos de um encontro malsucedido. E o segundo argumento que se apresenta é que há uma matriz cultural discursiva, na maioria desses casos, condicionando à vítima a responsabilidade pela violência. Quer dizer, o infrator fomenta um discurso patriarcal reforçando a responsabilização da vítima, logo, como seria possível um processo restaurativo nessas condições (requisito este também essencial para o desenlace de um processo restaurativo)?

A título de exemplo, tem-se a experiência na Áustria, os homens não pararam com as agressões contra suas companheiras. Por outro lado, a participação nas práticas restaurativas foi positiva para as mulheres, pois ficaram mais fortes para enfrentar o problema. Evidencia-se com isso a necessidade de entender o contexto em que a violência contra as mulheres ocorre, bem como a existência de assimetrias de poder nas relações de gênero (PRUDENTE, online).

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Para propor políticas de enfrentamento à violência doméstica e familiar, que são as práticas restaurativas, que superem as assimetrias de poder nas relações entre os homens e as mulheres, é mister também desconstruir do imaginário social a ideia de sistema judiciário como ideal de justiça. É dado o momento de questionar acerca do sistema de justiça brasileiro, institucionalizado a séculos, operando na mesma lógica, a punitiva proveniente da reprodução desenfreada de leis para todos os comportamentos indesejados.

O interessante para implementação de uma das práticas restaurativas, um dos elementos da justiça restaurativa, é que nasça dentro das comunidades, por isso, a importância de fomentar nos núcleos comunitários o sentimento de comprometimento, participação e pertencimento dos sujeitos. Por conta disso, a relevância das pessoas compreenderem que enquanto geradoras de conflitos, tem autonomia e podem empoderar-se para juntamente com o poder local propor alternativas para o enfrentamento à violência doméstica.

Então, dois pontos precisam ser revistos: o primeiro questionamento está no equívoco de considerar o sentido de justiça com o sistema judiciário, ente este institucionalizado, que a partir do contrato social, hipoteticamente, abarcou para si a administração pública dos conflitos, quase inviabilizando a participação da comunidade no processo político e ativo de autocomposição de conflitos antes da judicialização, um processo de transformação dentro das comunidades que também requer a dimensão pedagógica e comunitária das práticas restaurativas. A partir desse contexto, o segundo ponto estaria em sugerir a descentralização do poder do Judiciário passando para determinadas comunidades, por meio do fortalecimento do direito assistencial (CREAS, CRAS), responsáveis em trabalhar com as vulnerabilidades sociais no entorno e dentro das famílias.

Nesses espaços, juntamente de uma capacitada e qualificada equipe interdisciplinar, pode ser possível discutir medidas para a aprendizagem e aplicação do pensamento complexo, tanto indivi-

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dualmente quanto coletivamente (MARIOTTI, 2000). O exercício do pensamento complexo é o primeiro passo para mudança do modo de olhar, que começa pela autoconsciência. Para tanto, dois princípios precisam ser observados: o primeiro refere-se a um grau mínimo de autoconhecimento, e o segundo diz que este não pode existir sem a interação e criação de espaços de convivência e aprendizagem entre as pessoas. Nos círculos de construção de paz, uma das práticas mais recorrentes no Brasil da justiça restaurativa, com a oportunidade da fala, os sujeitos podem descrever o mundo como o percebem. Essa percepção dá-se por meio do que as estruturas psíquicas e emocionais permitam, pois, “estando condicionados por preconceitos, crenças, dogmas, ideologias, dificilmente se aprende algo realmente novo” (MARIOTTI, 2000, p. 216). Por efeito a categoria cultural é algo que precisa ser enfrentada e trabalhada cotidianamente, de tal maneira que os condicionamentos arraigados pelo tempo, sejam transformados.

Dada a relevância, bem como a complexidade disso, é oportuno adotar dentro das práticas o pensamento complexo, que nada mais é que a “procura do autoconhecimento, que resulta da compreensão de que o ego é frágil e por isso precisa ser trabalhado e reestruturado para que possa ser capaz de cumprir o seu papel” (MARIOTTI, 2000, p. 320). Entre os benefícios desse modo de exercitar o pensar, está em facilitar o desenvolvimento de melhores estratégias de pensamento, permitindo o aprimoramento das comunicações interpessoais e, com efeito, aumentando a capacidade de tomar decisões complexas em longo prazo. Assim, é fundamental conhecer os cinco saberes do pensamento complexo que são: saber ver, saber esperar, saber conversar, saber amar e saber abraçar, ambos inter-relacionados. Saber ver consagra-se pelo olhar do outro e como eu enxergo ele. Saber esperar é o exercício para convivência. Saber conversar é a habilidade de construir uma ética dialógica. Saber amar é amar o outro na sua humanidade e saber abraçar, é antes de tudo saber amá-lo, vê-lo e sentir vontade de abraçá-lo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na atual sociedade, cada dia é mais recorrente a impaciência e inabilidade das pessoas para gerirem seus conflitos e reconhecerem que a partir deles é possível amadurecer, evoluir para conviver coletivamente. Nesse cenário estão os mais diversos arranjos familiares e as relações de gênero que se dão dentro desses ambientes. Relações assimétricas de poder entre os homens e as mulheres construídas historicamente e culturalmente, que estão sendo perquiridas e transformadas pelo feminismo, mas principalmente pela saída da mulher do espaço doméstico para o espaço público, ocupando lugares de ponta no mercado de trabalho. Essa mudança dada pelo poder feminino não findou com o fenômeno multifacetal da violência doméstica e familiar, que além de romper com as relações de afeto entre os parceiros ou companheiros atinge diretamente os filhos que poderão reproduzir os papéis na fase adulta. A cultura jurídica brasileira segue uma prática perversa reprodutora da lógica punitiva de esquerda, quando busca dar resposta aos comportamentos desviantes, conflitos sociais e crimes com a fábrica de leis, reduzindo o direito à violação da lei e ao direito penal. De igual modo, reconhece-se que a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) não reduziu a violência doméstica e familiar, mas não dá para deixar de lado o seu importante papel de visibilidade em cima desse grande problema social. Por outro lado, também é notório como a sua aplicabilidade efetiva ou não o desejo de reproduzir com o homem agressor a lógica punitiva e não de educativa. Coaduna-se ao raciocínio o recepcionamento das práticas restaurativas em algumas situações de conflitos envolvendo gênero, a partir do olhar interdisciplinar por meio do pensamento complexo, no sentido de compreender que a justiça precisa ser compartilhada com a comunidade e, conforme os conflitos, a autocomposição deles poder-se-á dar antes da judicialização, dentro de núcleos comunitários legitimados pelo direito socioassistencial. Assim, considera-se possível a descriminalização da Lei Maria da

166 Marli Marlene Moraes da Costa & Rodrigo Cristiano Diehl

Penha, no entanto, para dar outro desfecho aos seus envolvidos; não é necessário adotar esse procedimento, e sim valer-se do pensamento complexo para fazer uma construção sociojurídica e uma parceria com o judiciário e a rede no município para trabalhar com os agressores em separado, bem como com as mulheres, ambos vitimizados pela cultura patriarcal. REFERÊNCIAS

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168 André Viana Custódio; Felipe da Veiga Dias & Suzéte da Silva Reis – organizadores

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